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Autor: Bruno

  • PEDRA DE ESCÂNDALO: APRESENTAÇÃO DO MENINO JESUS NO TEMPLO

     

     

    Quando o Profeta Simeão teve nos braços o Menino Jesus e entoou o seu famoso cântico Nunc dimittis servum tuum, Domine… – Senhor, agora envia em paz o teu servo… –, ele disse que Nosso Senhor foi enviado como pedra de escândalo para a perdição e salvação de muitos, e para que se conhecessem as cogitações ocultas dos corações.
    Portanto, Nosso Senhor foi mandado para salvar a todos, mas a perdição daqueles que O recusassem não significava o fracasso d’Ele, e sim um elemento intrínseco à sua Missão, ou seja, criar condições para os justos conhecerem a verdade e se salvarem, para os ímpios manifestarem a sua impiedade e, não se arrependendo, irem para o Inferno.
    Christianus alter Christus – o cristão é um outro Cristo. Também nós somos pedra de escândalo posta para a salvação e a perdição de muitos, e para que se revelem as cogitações dos ímpios. A nossa missão é, pois, suscitar nas pessoas a definição, para a salvação dos bons.

    (Extraído de conferência de 31/1/1966)

  • Senso hierárquico e contrarrevolucionário

     

    Os sete Santos Fundadores Servitas propagaram uma devoção que prenunciou a da escravidão a Nossa Senhora, pregada por São Luís Grignion de Montfort. O título de “Servos” marca muito bem a diferença entre a boa piedade católica e a Revolução.

    A respeito dos Sete Santos Fundadores dos Servos da Bem-aventurada Virgem Maria, cuja festa se comemora no dia 17 de fevereiro, diz Dom Guéranger1:

    Aclamados por crianças nas ruas de Florença

    Quando, no século XIII, o funesto cisma instigado por Frederico II2 e as sangrentas facções dividiam os povos mais civilizados da Itália, a previdente misericórdia de Deus suscitou, dentre pessoas ilustres pela santidade, sete nobres florentinos, de cuja união na caridade iria dar um memorável exemplo de amor fraterno.
    No ano 33 desse século, no dia da Assunção da Bem-aventurada Virgem, rezavam eles fervorosamente na piedosa confraria “Laudesi”, a Mãe de Deus apareceu exortando-os a abraçar um gênero de vida mais santo e mais perfeito.
    Tendo, pois, conversado previamente com o Bispo de Florença, estes sete homens logo disseram adeus à sua nobreza e riquezas. Eles tomaram como vestimentas hábitos vis e usados, e, por baixo destes, cilícios. Estabeleceram-se num lugar retirado fora da cidade no dia 8 de setembro, pois queriam colocar sob os auspícios de Maria Santíssima esta nova existência, no mesmo dia em que Ela, nascendo entre os homens, começava sua santíssima vida.
    Deus mostrou por um milagre o quanto esta decisão lhe foi agradável. Com efeito, pouco depois os sete atravessaram Florença mendigando de porta em porta. Aconteceu que de repente as vozes das crianças, entre as quais São Felipe Benzini com apenas cinco meses, os aclamaram como servos, “servitas”, da Bem-aventurada Virgem Maria. Seria com este nome que a partir de então deveriam ser conhecidos.

     

    A Virgem lhes mostra o hábito que deveriam trajar

    Depois deste prodígio, o amor que eles tinham pela solidão os levou a evitar o contato com as pessoas, escolheram se retirar ao Monte Senário. Lá, entregando-se a uma vida inteiramente celeste, moravam nas cavernas. Contentando-se com água e ervas como alimento, castigavam seus corpos com vigílias e outras macerações. A Paixão de Cristo e as dores de sua aflitíssima Mãe eram o objeto de suas contínuas meditações.
    Numa sexta-feira santa em que meditavam fervorosamente nessas considerações, a Bem-aventurada Virgem lhes apareceu uma segunda vez, indicou-lhes o hábito negro de que deveriam se revestir e lhes disse que seria muito do seu agrado que eles fundassem uma nova Ordem regular cuja missão seria venerar e promover sem cessar o culto das dores por Ela suportadas ao pé da Cruz do Senhor.
    Na constituição desta Ordem sob o título de Servitas da Bem-aventurada Virgem, eles tinham o apoio de São Pedro mártir, ilustre dominicano, que se tornou íntimo amigo dos Santos fundadores a quem, numa visão particular, a Mãe de Deus revelou seus desígnios sobre esta fundação.
    A Ordem foi aprovada pelo Soberano Pontífice Inocêncio IV.

     

    Saúde espiritual, virtude, alta civilização

    Nessa narração há vários fatos magníficos como índice de saúde espiritual, de virtude, de alta civilização, que ocorriam outrora, mas em nossos dias não se dão mais, o que indica a profunda putrefação na qual se encontra o mundo moderno.
    Analisemos ponto por ponto. Primeiro, existia em Florença uma confraria em honra de Nossa Senhora que impedia os progressos da heresia cátara. Será que em nossos dias se fundaria uma confraria em honra da Santíssima Virgem para impedir o progresso de qualquer heresia? Onde tal confraria encontraria aceitação?
    Em determinado momento, essa confraria admitiu sete membros da aristocracia. Ora, hoje em dia vemos como é árduo o apostolado junto às elites.
    Certa ocasião, os sete rezavam juntos. Que coisa linda encontrar sete aristocratas orando juntos! Foi quando, Nossa Senhora lhes apareceu exortando-os a abraçar um gênero mais perfeito de vida. Eles decidiram, então, retirar-se à solidão.
    Depois de algum tempo voltaram para a cidade e aconteceu algo maravilhoso pelo qual as pessoas louvavam a Deus e as crianças gritavam: “Eis os servidores de Maria!” A admiração da cidade por jovens que abandonam tudo por amor de Deus, e quando voltam são recebidos calorosamente, isso acontece hoje em dia? Vemos, assim, como tudo mudou, a fonte mesmo do bem parece estar estancada, enquanto a do mal afigura-se ter atingido o auge de sua miserável fecundidade.
    O título de servidores de Maria deixou-os jubilosos e decidiram se dedicar ao culto da Mãe de Deus. Portanto, Nossa Senhora falou pela boca dos inocentes e lhes deu um nome, o qual eles aceitaram com alegria.

    Em nossos dias, vasta conspiração contra a Igreja

     

    Então a Santíssima Virgem lhes apareceu mais uma vez e lhes deu a missão de honrar especialmente a Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo e as tristezas de Maria ao pé da Cruz. É o attendite, et videte – parai e vede se há uma dor semelhante à minha – que se canta na Semana Santa.
    Aos pés da Cruz, Nossa Senhora sofria em união com os padecimentos de seu Divino Filho, não só por causa dos pecados que ali estavam sendo cometidos, mas pelos pecados de todos os tempos. Portanto, o imenso pecado de apostasia – o pior de todos os séculos – Os afligiu naquele momento. E por uma reversão difícil de entendermos, os atos de reparação feitos hoje por nós consolam a Nosso Senhor e sua Mãe Santíssima no Calvário, porque prevendo essa nossa reparação, Eles se consolaram. Desta maneira podemos consolá-Los e desagravá-Los pelos pecados cometidos hoje.
    Assim sendo, o que significa esta expressão do Profeta Jeremias: “Ó vós todos que passais pelo caminho parai e vede se há uma dor semelhante à minha dor?” (Lm 1, 12). O que quer dizer “parai”?

    Deixai os vossos negocinhos, as vossas preocupaçõezinhas, não vos preocupeis com vossos interesses pessoais.
    Ele não se referia a um caminho material pelo qual talvez as pessoas passassem perto do Calvário, mas é algo imensamente maior, a estrada da História por onde transita toda a humanidade. É um convite a todas as pessoas que passam em todos os tempos.

    Num mundo no qual se cometa o pior das ofensas a Nosso Senhor e a Nossa Senhora como jamais se praticou, porque em nenhuma época houve uma tão vasta conspiração contra a Igreja, e que chegasse a uma tão pequena distância da vitória completa, de forma a constituir um superlativo de injúrias.
    Então “parai e vede” é a missão dos servos, é a nossa missão em nosso século. Devemos ser almas reparadoras, ter na mente os sofrimentos de Nosso Senhor Jesus Cristo e de sua Santíssima Mãe. Sobretudo com a ideia de estarmos consolando-Os. E se Eles tiveram consolações imensas pela reparação de tantos Santos ao longo da História, é verdade também que receberam uma gota de alívio ao terem o conhecimento de que, neste século de suprema apostasia, essas minhas palavras seriam ouvidas com boas disposições de alma.
    Alguém poderia objetar que Nossa Senhora apareceu a eles, mas não a nós. Aqui se aplica o que o Divino Mestre disse a São Tomé: “Tu crestes porque viste; bem-aventurados os que creem sem terem visto” (Jo 20, 29).
    Na capela de uma de nossas sedes temos uma relíquia dos sete Fundadores dos Servitas. Certa ocasião, alguém perguntou qual a razão de existir uma única relíquia e serem mencionados os sete Santos.
    Foi-lhe explicado, então, que eles foram sepultados juntos, de maneira que, com o passar do tempo, seus restos mortais se confundiram. Essa confusão até do pó desses sete Santos, os quais, em certo sentido, formavam uma só alma e acabaram constituindo uma só relíquia, diz tanto sobre as almas consagradas a Nossa Senhora que mais não poderia dizer.

    Prenúncio da devoção ensinada por São Luís Grignion de Montfort

    Essa é uma das mais antigas Ordens especialmente fundadas para propagar a devoção a Nossa Senhora. É muito bonito trazerem o título de Servos da Bem-Aventurada Virgem Maria. Como é evidente, esse título prenuncia a devoção de São Luís Grignion de Montfort da escravidão a Nossa Senhora, com um despojamento completo de todos os bens presentes, passados e futuros, inclusive os espirituais, que são os méritos das nossas boas obras, postos nas mãos de Maria Santíssima.
    Esse título marca muito bem a diferença entre a boa piedade católica e a Revolução. Há quem o considere como indigno do homem de nosso século, como próprio a ser utilizado no passado, mas não em nossa época em que a escravidão foi abolida, ninguém mais é servo, nem sequer de Nossa Senhora. Assim, em relação a Ela poder-se-á chamar filho, porém não escravo, porque a dignidade humana não comporta tal título, nem em relação à Santíssima Virgem.
    Evidentemente, essa é uma afirmação igualitária, de caráter revolucionário.

     

    Sendo Nossa Senhora a Rainha absoluta do Céu e da Terra, em relação a Ela todos são servos, e é uma honra sê-lo. Por isso aspiramos e consideramos dever nosso sermos verdadeiros escravos d’Ela, pois assim seremos autênticos filhos. Porque nós A amamos como filhos, queremos servi-La como servos.
    Os sete Fundadores dessa Ordem religiosa, à qual quiseram dar o nome de Servos de Maria, a Igreja canonizou, instituindo essa Ordem, aprovando e promulgando suas regras. Assim, o magistério da Igreja, por várias formas, indica que em relação a Nossa Senhora deve-se ser servo.
    O espírito demoníaco da Revolução, não querendo nenhuma espécie de superioridade, não se contenta em abolir a hierarquia na Terra – tanto a eclesiástica como a temporal –, mas quer negar até as desigualdades na ordem sobrenatural. Contesta a existência das desigualdades imensas estabelecidas por Nosso Senhor entre a Mãe d’Ele e as demais criaturas, enquanto Rainha de todos os Anjos e Santos e de todo o universo.
    Se os sete Santos Servitas ressuscitassem e vissem as abominações proferidas por lábios católicos e amadas por corações católicos, que indignação teriam, que censuras fariam!
    Nós devemos pedir a eles que intervenham aqui na Terra e ajudem a estabelecer uma verdadeira devoção a Nossa Senhora entre os homens e, com essa devoção, o senso da hierarquia e da Contra-Revolução.v

    (Extraído de conferências de 11/2/1965 e 11/2/1966)

  • Uma prefiguração dos apóstolos dos últimos tempos

    São Paulo era um homem violento e queria exterminar os cristãos. Deus o converteu e lhe concedeu a graça de realizar um apostolado extraordinário, pela qualidade ou quantidade das pessoas que abraçavam a Fé. Ele abriu um sulco sobre o qual a Igreja Católica se desenvolveu, e depois deu o primeiro passo essencial para a derrubada do paganismo no Império Romano.

     

    Em 25 de janeiro comemora-se a festa da conversão do Apóstolo São Paulo. No trecho dos Atos dos Apóstolos, lido na Liturgia desse dia, há matéria para comentários.

    Respirava ameaças de morte contra os cristãos

    Naqueles dias Saulo, respirando ainda ameaças de morte contra os discípulos do Senhor, apresentou-se ao príncipe dos sacerdotes e lhe pediu cartas para a sinagoga de Damasco, a fim de que, se achasse homens e mulheres empenhados naquele caminho, os levasse presos para Jerusalém.
    E indo ele andando, aconteceu aproximar-se de Damasco. Subitamente o cercou uma Luz vinda do céu e, caído por terra, ouviu uma voz que lhe dizia: “Saulo! Saulo! Por que me persegues?”
    Saulo disse: “Quem sois, Senhor?” E Ele respondeu: “Eu sou Jesus a Quem tu persegues. Duro te é recalcitrar contra o aguilhão.” Então, tremendo espavorido, disse ele: “Senhor, que quereis que eu faça?” E o Senhor lhe respondeu: “Levanta-te e entra na cidade! E aí te dirão o que convém fazer.”
    Ora, aqueles que o acompanharam estavam espantados ouvindo a voz, mas sem ver ninguém. Levantou-se então Saulo do chão e, tendo os olhos abertos, nada via.Desta maneira, levado pela mão, o introduziram em Damasco, onde esteve três dias sem ver, sem comer nem beber. Havia em Damasco um discípulo chamado Ananias. E, numa visão, o Senhor lhe disse: “Ananias!”; e ele respondeu: “Eis-me aqui, Senhor!” E o Senhor acrescentou: “Levanta-te e vai à rua que se chama Direita e procura em casa de Judas a um homem chamado Saulo de Tarso! Porque ele lá está orando.”
    (Saulo viu também um homem com nome Ananias que entrava e lhe punha as mãos para que ele recobrasse a vista.)

    Respondeu Ananias: “Senhor, tenho ouvido falar muito deste homem e do mal que tem feito aos nossos santos de Jerusalém. Aqui mesmo ele tem poder dos príncipes dos sacerdotes para prender todos aqueles que invocam o vosso nome.” Mas o Senhor lhe disse: “Vai porque este é um vaso de eleição escolhido por Mim para levar o meu nome diante dos gentios, dos reis e dos filhos de Israel. Eu lhe mostrarei quanto deverá ele padecer pelo meu nome.”
    Partiu então Ananias e entrou na casa. E pondo as mãos sobre ele disse: “Saulo, irmão, o Senhor Jesus que te apareceu no caminho por onde vinhas me enviou para que recobres a vista e sejas cheio do Espírito Santo.” Imediatamente caíram dos seus olhos como que umas escamas e ele recuperou a vista. E levantando-se foi batizado. Tendo tomado alimento ficou confortado. Esteve alguns dias com os discípulos que se achavam em Damasco.
    E logo começou a pregar nas sinagogas a Jesus, dizendo que Ele era Filho de Deus. Pasmavam, porém, todos os que o ouviam e diziam: “Pois não é este aquele que perseguia em Jerusalém os que invocavam este nome? E não veio aqui para levá-los presos e entregá-los aos príncipes dos sacerdotes?”
    Saulo, porém, se fortalecia cada vez mais e confundiu os judeus que habitavam em Damasco, afirmando que Jesus é o Cristo. (At 9, 1-22).

    Homem célebre pela violência

    Essa narração é tão rica em pormenores saborosos que se fica em dúvida sobre o que comentar. Mas um dos traços curiosos presente em toda essa história é a violência. É uma história toda ela violenta nas suas linhas gerais e nos seus detalhes principais.

    Saulo é um homem violento. Ele toma a iniciativa de pedir às autoridades da sinagoga cartas de perseguição. Vê-se que eram autoridades meio acomodadas, e ele, zeloso, queria acabar com aquilo que reputava uma heresia; então, pede cartas. Portanto, é ele quem desencadeia a ação um tanto indolente das autoridades e põe-se a campo para exterminar, nos seus vários núcleos, a pseudo-heresia nascente. Munido dessas cartas e cheio de violência – está dito que Saulo respirava ameaças de extermínio –, ele vai caminhando para Damasco porque queria acabar com essa nova seita naquela cidade.
    Na resposta de Ananias a Deus Nosso Senhor, vê-se que Saulo era célebre pela violência: “Este homem tem uma fama de ser muito violento contra nós.” Quer dizer, era tido como um inimigo capital dos católicos.

    Um aguilhão que atuava sobre Saulo: a graça

    Saulo caminhava pela estrada de Damasco, e o texto usa até uma expressão curiosa para indicar essa marcha em que ele vai respirando violência. Diz o seguinte: “E indo ele andando, aconteceu aproximar-se de Damasco”. Ou seja, é uma marcha um pouco longa. Tem-se a impressão de que com aquele galopar a raiva se torna cada vez maior, até acontecer que ele se aproximou de Damasco.
    Sucede, então, para esse homem violento, um acontecimento violento: uma voz que lhe fala. Quer dizer, é a ordem das coisas invisíveis que se abre para ele e uma advertência: “Saulo, por que me persegues?”
    É uma pergunta que importa numa censura violenta. Porque ele estava resistindo a uma violência interior, rejeitando graças: “Duro te é recalcitrar contra o aguilhão” (At 9, 5).
    Quer dizer, a graça era um aguilhão que soprava sobre Saulo, e ele rejeitava essa graça. Então, para levar o aguilhão ao máximo há uma violência ainda maior: ele cai do cavalo.
    Para alguém que está montado a cavalo, a maior violência possível é cair do cavalo.
    E ele sentiu a violência.
    — Senhor, o que quereis que eu faça?
    A essa queda sucede uma violência pior ainda: a cegueira. A não ser morrer, o pior que poderia acontecer era cair do cavalo e ficar cego. Para um homem do temperamento de São Paulo não há coisa pior, pois a condição humana mais incompatível com a da violência é a de cego. E um outro o levava pela mão; era o único remédio.

    Passo essencial para a derrubada do paganismo no Império Romano

    Podemos imaginar o que significou para a comunidade católica de Damasco aquele homem ser levado para a casa de Ananias, os comentários ardentíssimos a que essa cena fantástica dava lugar… Com certeza isto circulou rápido e foi muita gente ver Saulo, deitado devido à cegueira, falar com ele. Quer dizer, aquilo deu efervescência.
    Trato violento dele consigo mesmo: ficou três dias sem comer nem beber; jejum duro. Depois lhe caíram as escamas dos olhos e ele começou a ver.

    A narração explica curiosamente que ele se confortou muito. Ou seja, não estava nem um pouco alquebrado, mas assim que se lhe deu o necessário ele se esticou, se alçou de novo e ficou disposto para a luta. Torna-se um líder que vai para as sinagogas e lugares públicos pregar o nome de Jesus contra o qual o sinédrio se levantara. No diálogo Igreja versus sinagoga houve uma espécie de mudança estrepitosa. É o líder da violência que muda com toda a sua violência para o outro lado.

    Então tudo isto é uma operação violentíssima a qual precedeu ao apostolado de São Paulo, que foi o da violência não só por causa do seu feitio que marcou tudo quanto fez, mas porque ele realizou como só um homem capaz de fazer violência a si mesmo realiza. Ele enfrentou riscos que somente o violento enfrenta. Mas tudo isto não é nada perto da ação violenta no mundo antigo que representou o apostolado dele.
    Aqui se repete a história: ele era um líder de um lado que parte para o outro. Quer dizer, uma espécie de posição chave que se desloca. Esse homem chave depois vai atuar na posição central do mundo antigo, que é a bacia do Mediterrâneo. E como a palavra de Deus era para ele semelhante a um gládio de dois gumes, que atinge até a juntura da alma com o espírito, Deus lhe tinha dado esta graça de fazer violência às almas e ser capaz de operar conversões extraordinárias, pela qualidade ou quantidade das pessoas que ele convertia, de maneira tal que ele abriu um sulco sobre o qual a Igreja Católica se desenvolveu. Ele depois deu o primeiro passo essencial para a derrubada do paganismo no Império Romano.

    O contrário da “heresia branca”

    A sua oração final tem algo de santamente violento em relação a Deus Nosso Senhor. Porque ele diz uma coisa que a maior parte dos hagiógrafos e teólogos “heresia branca”1 qualificaria de falta de humildade. Mas como é São Paulo, eles não têm remédio senão ficar quietos.
    Na hora de morrer, seria tão legítimo que ele dissesse: “Senhor, tende piedade de mim e segundo a multidão de vossas misericórdias apagai os meus pecados!” Não. Ele afirmou: “Senhor, eu combati o bom combate, dai-me agora o prêmio de vossa glória!” (Cf. 2 Tm 4, 7-8).
    É uma espécie de atestado brilhante que ele dá à sua própria fidelidade, e quase como quem diz: “Senhor, o cheque está preenchido e eu estou perto do guichê. Pagai-me! A minha vida valeu o prêmio que vossa justiça me prometeu.” Como um homem de consciência tranquila, ele se apresentou diante de Deus.
    Isso tudo é o contrário de uma das facetas que a “heresia branca” mostra. Esta não gosta de conversões violentas, nem de cogitar de conversões de homens sábios ou que mudam as coisas. A “heresia branca” não considera o corpo de Igreja nem a sociedade humana como um conjunto, no qual há homens chaves, mas aprecia umas conversõezinhas individuais que são narradas assim: “Fulano estava com a alma muito agitada. E numa hora em que o rádio estava reproduzindo uma música melosa, com muita suavidade, ele se converteu. Ficou numa paz de alma, se recolheu, afastou-se do bulício de todas as coisas humanas, e agora não faz senão rezar.”

    Eu até compreendo que uma conversão pudesse dar-se assim. Porque os caminhos de Deus são muitos. Mas apresentar a conversão como sendo só desse modo não é legítimo.
    E essa espécie de trombada dada por São Paulo no adversário: primeiro na sinagoga e depois no Império Romano. A “heresia branca” não gosta dessas trombadas nem dos homens que tenham uma palavra a qual é como uma espada de dois gumes, que atinge a junção da alma com o espírito. Aprecia apenas as pessoas as quais dão uns conselhos que deixam os outros mais tranquilos, mais serenos…

    Dom da santa violência

    Havia um sacerdote em São Paulo – muito idoso, tipo do homem preclaro – do qual se dizia que era o diretor espiritual dos ateus da cidade. Tratava-se daqueles antigos ateus com um restinho de religião e que, quando ficavam aborrecidos com qualquer coisa, procuravam o padre e diziam-lhe: “Eu lamento não ter fé porque a religião é uma grande coisa.” E depois contavam aos outros: “Que palavra de unção o sacerdote me disse! Eu saí tranquilizado de lá.”
    Que dizer, a palavra não é para converter, mas apenas para adoçar, um bálsamo que se esfrega sobre a ferida sem curá-la. É mais ou menos como uma pessoa que está com muita febre, e lhe concedem um torrão de açúcar para chupar; é uma coisa doce que distrai um pouco nas amarguras da febre.
    Esse sacerdote atualmente é mais que nonagenário. Segundo uma informação muito segura que eu tive há poucos dias, ele está com o seu clergyman pronto, porque quer ser um dos primeiros padres de São Paulo a tirar a batina e pôr esse novo traje.O que devemos pedir a São Paulo?
    É evidente que Nossa Senhora lhe obteve esse dom da santa violência, porque ele se defrontava com muitos obstáculos para derrubar. Naquela época de lutas era preciso derrubar o paganismo. Nós devemos pedir à Santíssima Virgem essa santa violência para destruir a Revolução, que é hoje muito mais poderosa do que foi o paganismo no tempo do Império Romano. De maneira que se pode compreender que os apóstolos dos últimos tempos tenham uma violência à São Paulo.

    Aliás, sob alguns aspectos São Paulo pode ser considerado uma prefiguração dos apóstolos dos últimos tempos. Quando lemos aquela Oração Abrasada de São Luís Grignion e comparamos o que ali está dito com São Paulo, as analogias são enormes, uma porção de coisas se reportam umas às outras admiravelmente.

    De uma cidade consagrada a São Paulo partiu o movimento contrarrevolucionário

    Aqui estão alguns comentários a respeito de São Paulo. Ser-nos-ia lícito acrescentar uma outra consideração.
    É uma coisa curiosa que de uma cidade consagrada a São Paulo tenha partido o movimento contrarrevolucionário no Brasil, que está se irradiando agora para outros países. Quer dizer, tem-se a impressão de que o Apóstolo São Paulo deseja que os nascidos na sua cidade tenham essa iniciativa. E por outro lado aquilo que se chamou outrora o espírito paulista tinha qualquer coisa do vigor, da força, da intrepidez, da iniciativa, do senso organizativo próprios àqueles que devem desenvolver uma larga ação de um certo sentido universal e imperialista. Os bandeirantes tinham como que uma prefiguração natural de algumas qualidades as quais um contrarrevolucionário deve possuir no plano sobrenatural.
    Devemos hoje nos lembrar particularmente de rezar a São Paulo. É muito natural e justo para que ele nos dê esse seu espírito, ou seja, o dos apóstolos dos últimos tempos.v

    (Extraído de conferência de 25/1/1965)

     

     

  • Mãe do gênero humano

    A Redenção operada por Jesus Cristo nos veio através de Maria Virgem, e sua participação nessa obra de ressurreição sobrenatural do gênero humano foi tão essencial e profunda, que se pode afirmar ter Ela cooperado para nos fazer nascer para a vida da graça. Nossa Senhora é autenticamente nossa Mãe.

     

    Dada a espessa ignorância religiosa que reina em nossos dias, não falta quem suponha que a Igreja dá a Nossa Senhora o título de Mãe do gênero humano simplesmente para descrever de certo modo os sentimentos afetuosos e protetores que Ela experimenta em relação aos homens. Como estes sentimentos são próprios às mães, por analogia Nossa Senhora seria também a nossa Mãe. E nós seríamos em relação a Ela pobres mendigos que, na sua generosidade, Ela protege como se fossem filhos.

    Gravidade do pecado original

     

    A realidade, entretanto, é muito outra. Não somos filhos de Nossa Senhora simplesmente por uma adoção afetiva. Ela não é nossa Mãe apenas no terreno fictício ou na ordem sentimental, mas com toda a objetividade na ordem verídica da vida sobrenatural.
    Antes do pecado original, nossos primeiros pais, vivendo no Paraíso, foram criados por Deus para a glória celeste, que eles poderiam atingir transpondo os umbrais desta vida em um trânsito que não teria a tristeza tétrica da morte, mas o esplendor de uma glorificação.
    O pecado original, entretanto, rompendo a amizade em que o gênero humano vivia com Deus, fechou aos homens a porta do Céu e obstruiu o livre curso da graça de Deus para os homens. Em outros termos, com a punição do pecado original, os homens perderam qualquer direito ao Céu e à vida sobrenatural da graça.
    Se bem que não fosse extinto, isto é, perdesse a vida terrena, o gênero humano perdeu, pois, o direito à vida sobrenatural. E ele só poderia readquirir tal vida se apresentasse à justiça divina uma expiação proporcionada à enormidade de seu pecado.
    Não vem a propósito, aqui, discutir a natureza deste pecado. É certo que todos os teólogos, sem exceção, afirmam nada ter o pecado de Adão de comum com o pecado da impureza, ao contrário de uma versão muito generalizada no povo. Mas a narrativa bíblica mostra claramente os requintes de rebeldia que agravaram sobremaneira o delito de nosso primeiro pai.
    Aliás, um dos elementos para se aquilatar a gravidade de uma ofensa consiste em medir a dignidade da pessoa ofendida. Uma mesma impertinência quando dita a um irmão é muito menos grave do que quando dita a um pai. Um gracejo comum entre colegas poderia constituir uma grave irreverência se fosse feito a um Chefe de Estado, e assim por diante. Ora, Deus é infinitamente grande. Por aí não é difícil avaliar a gravidade do pecado original. Uma ofensa feita ao Infinito só poderia ser convenientemente resgatada por meio de uma expiação infinitamente grande. E não está no poder de homem, ser contingente por natureza e envilecido pelo pecado, oferecer ao Criador um tão valioso desagravo. Os pontos que nos ligavam a Deus pareciam, pois, definitivamente cortados e irremediável a decadência a que se atirara loucamente o gênero humano com o pecado.

     

    Nossa Senhora transmitiu ao Salvador a natureza humana

     

    Foi para remediar tão insolúvel situação que a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade, encarnando-se no seio puríssimo de Maria Virgem, assumiu natureza humana sem nada perder de sua divindade, e o Homem-Deus, assim constituído, Se pôde apresentar à justiça do Pai como Cordeiro expiatório do gênero humano. Efetivamente, como Homem, Nosso Senhor Jesus Cristo podia oferecer uma expiação que fosse realmente humana. Mas em virtude da dualidade das naturezas n’Ele existentes, essa expiação, se bem que humana, tinha um valor infinito, pois que consistia na efusão generosa e superabundante do Sangue infinitamente precioso do Homem-Deus.

    Assim, no sacrifício do Calvário, Nosso Senhor aplacou a justiça divina e fez renascer para o Céu e a vida sobrenatural da graça a humanidade, que estava absolutamente morta em tudo quanto se referisse ao sobrenatural. Se Deus, uno e trino, é nosso Criador, a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade, encarnando-Se, se tornou nosso Pai por um título muito especial, que é o da Redenção. Jesus, morrendo, deu-nos a vida sobrenatural. E quem dá a vida é verdadeiramente pai, no sentido mais amplo da palavra.
    Se o gênero humano pôde beneficiar-se da Redenção é porque a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade se fez Homem, pois que o pecado dos homens deveria ser resgatado.

    Ora, se Jesus Cristo assumiu natureza humana, fê-lo em Maria Virgem, e assim Esta cooperou de modo eminente na obra da Redenção, transmitindo ao Salvador a natureza humana que nos desígnios de Deus era condição essencial da Redenção. De mais a mais, Maria Santíssima ofereceu de modo inteiro, e sumamente generoso, o seu Filho como vítima expiatória, e aceitou de sofrer com Ele, e por causa d’Ele, o oceano de dores que a Paixão fez brotar em seu Coração Imaculado.
    Assim, pois, a Redenção nos veio por Maria Virgem, e sua participação nessa obra de ressurreição sobrenatural do gênero humano foi tão essencial e tão profunda, que se pode afirmar que Maria cooperou para nos fazer nascer para a vida da graça. Pelo que Ela é, autenticamente, nossa Mãe. Autenticamente, acentuo, pois que não se trata aí de divagações sentimentais ou literárias, mas de realidades objetivas que, se bem que sobrenaturais, não deixam de ser absolutamente verdadeiras por isso mesmo são sobrenaturais.
    Convidando os fiéis a adorar o Santíssimo Sacramento, a Igreja exclama na Sagrada Liturgia: Quantum potes, tantum aude, isto é, tem o arrojo de amar tanto quanto te permitir o teu coração.

     

    Verdade teológica profundamente substanciosa

    O mesmo se deve dizer a esta altura. Diante da maravilhosa realidade da maternidade de Maria em relação aos homens, realidade que constitui uma verdade séria, teológica, profundamente substanciosa, o homem deve romper decididamente para que se dilate plenamente os limites acanhados de seu coração, sem susto, e singre sem cuidado pelo oceano de amor que se descortina ante seus olhos. Não são indispensáveis, aí, os artifícios da retórica humana. Uma consideração madura da realidade será suficiente para encher o homem de amor.
    De acordo com toda a Doutrina Católica, São Luís Grignion de Montfort aponta para as grandezas de Maria Santíssima. Demonstrando que Ela é Mãe, o que há de mais conveniente e de mais necessário até do que o conhecimento da suprema dignidade e da inexcedível misericórdia que Ela possui?
    São Tomás de Aquino diz que Nossa Senhora recebeu de Deus todas as qualidades com que seria possível a Deus cumular uma criatura. De sorte que Ela se encontra no ápice da Criação, firmando seu trono acima dos mais altos coros angélicos e sendo inferior apenas ao próprio Deus, que, sendo só Ele infinito, está infinitamente acima de todos os seres, inclusive de Nossa Senhora.
    Costuma-se dizer que Nossa Senhora brilha mais do que o Sol, tem a suavidade da Lua, a beleza da aurora, a pureza dos lírios e a majestade do firmamento inteiro. Muita gente supõe que tudo isso não passa de hipérboles. Entretanto, essas comparações pecam por sua irremediável deficiência. O Sol, a Lua, a aurora e todo o firmamento são seres inanimados e estão, portanto, colocados na última escala da Criação. Não é admissível que Deus os fizesse tão formosos, dando ao homem dons menores. E, por isto mesmo, a mais apagada das almas das pessoas mortas em paz com Deus tem uma formosura que excede incomparavelmente a de todas as criaturas materiais.

    Que dizer-se, então, de Nossa Senhora colocada incalculavelmente acima não só dos maiores Santos, mais ainda dos Anjos mais elevados em dignidade junto ao trono de Deus? Um caipira que fosse assistir à solenidade da coroação do Rei da Inglaterra, voltando aos seus pagos natais, possivelmente não encontrasse outros termos para explicar a magnificência daquilo que viu, senão afirmando que foi mais belo do que as festas em casa do Nhô Tonico, o homem menos pobre da zona. Se o Rei da Inglaterra ouvisse isto, que outra coisa poderia fazer senão sorrir? Pois nós, quando procuramos descrever a formosura de Nossa Senhora com os termos escassos da linguagem humana, fazemos o mesmo papel… e Ela também sorri.

    Único canal necessário

    Não espanta, pois, que seja verdade de Fé que Deus se compraz tanto em Nossa Senhora que um pedido feito por meio d’Ela é sempre atendido, ainda que não conte senão com o apoio d’Ela. E que se todos os Santos pedissem alguma coisa sem ser por meio d’Ela nada conseguiriam. Porque, como diz Dante, querer rezar sem Ela é o mesmo que querer voar sem asas…
    Assim, pois, todas as graças nos vêm de Nossa Senhora, e é Ela a Medianeira universal de todos os homens junto a Nosso Senhor Jesus Cristo.
    Mas se todas as graças nos vêm d’Ela, e se nossa vida espiritual não é senão uma longa sucessão de graças a que correspondemos, ou renunciamos a ter vida espiritual, ou devemos compreender que esta será tanto mais suave, mais intensa e mais perfeita, quanto mais próximos estivermos junto daquele único canal de graças que é Nossa Senhora. Deus é a fonte da graça, Nossa Senhora o único canal necessário, e os Santos meras ramificações, aliás veneráveis e dignas de grande amor, do grande canal que é Nossa Senhora.
    Queremos ter a graça inestimável do senso católico? Queremos ter a virtude inapreciável da pureza? Queremos ter o tesouro sem preço que é o dom da fortaleza, queremos ser ao mesmo tempo mansos e enérgicos, humildes e dignos, piedosos e ativos, meticulosos em nossos deveres e inimigos do escrúpulo, pobres de espírito se bem que jungidos às riquezas do mundo, em uma palavra, fiéis e devotos servidores de Nosso Senhor Jesus Cristo? Dirijamo-nos ao trono que Deus deu a Nossa Senhora, e, no recesso amoroso da Igreja Católica, nossa mãe, peçamos a Nossa Senhora, também nossa Mãe, que nos faça semelhantes a seu Divino Filho.v

    (Extraído de O Legionário n. 378 de 10/12/1939)

  • Luzes de consolação e confiança

    Mãe de Misericórdia e Rainha de Sabedoria, tornai bem claro à minha alma frágil o quanto a angústia e a perturbação me são nocivas.
    Fazei-me entender que tendes vosso manto continuamente posto sobre mim, como vosso filho e escravo, e vossa predileção me acompanha, mesmo nos momentos mais tristes, ó Refúgio dos pecadores!
    Quem assim é assistido por Vós não tem motivo nenhum para se angustiar. Antes, pelo contrário, deve fazer de todas as horas de seu dia um hino daquela confiança especial que vos dá tanta glória, ó Porta do Céu, isto é, a confiança dos miseráveis pecadores.
    Peço-vos que afasteis quanto antes de mim os perigos e angústias com que o demônio quer arrastar-me, e inundeis minha alma com luzes de consolação e confiança das quais é sacrário o vosso Coração Imaculado.

    (Composta na década de 1970)

  • Mãe e Refúgio dos pecadores

    Minha Senhora e minha Mãe, aos vossos pés está, ferido pelo pecado, o filho e escravo que ainda há pouco se achava numa tão elevada e suave união convosco.
    Venho pedir-vos perdão e misericórdia. Não tenho méritos nem virtudes a alegar para obter de Vós o que rogo. Mas sois a Mãe e o Refúgio dos pecadores.
    Amai-me, minha Mãe, apesar do meu pecado. Permiti-me a filial ousadia de vos dizer: amai-me por causa do meu pecado, isto é, com o amor que tendes aos infelizes que pecam.
    Ofereço-vos minha pobre condição de pecador, minhas fraquezas e misérias, certo de que vosso sorriso acolhe esses meus pobres dons.
    Encontro-me tão fraco que receio vos ofender de novo, mas desde já tenho a certeza de que me perdoareis e não me abandonareis.
    Na minha aridez sinto ser tão grande minha miséria que não posso ir à Vós. Vinde, pois, a mim e tudo se resolverá.

    (Composta na década de 1970)

  • Auxilium Christianorum na via gloriosa dos becos sem saída

     

    Ao considerar a dolorida e gloriosa avenida dos becos sem saída por ele percorrida, Dr. Plinio se perguntava: “Se Nossa Senhora me desse a escolher esta via ou outra qualquer, qual eu preferiria?” E sua resposta seria: “Minha Mãe, se Vós me derdes força, escolho a avenida dos becos sem saída!” Avenida do inexplicável, da aparente catástrofe, da derrota, do arrasamento, mas da vitória que se afirma. Porque todo caso tem saída. Às vezes não vemos a solução, mas Ela está dando uma saída monumental.

    Há uma pequena imagem de Nossa Senhora Auxiliadora que nos acompanha desde há muito tempo. Eu a deixava na sede da Ação Católica de São Paulo, enquanto afiávamos os instrumentos para desferir o “Em Defesa da Ação Católica”.

    Conduzida à Sede do “Legionário” para que lutasse dentro da trincheira

    Não posso me esquecer do salão onde a Ação Católica, a dois passos do meu escritório de advocacia no mesmo prédio, tinha a sua sede. Ali, numa peanha, estava essa imagem a qual eu mesmo comprei e instalei, e que, com minhas próprias mãos, levei depois para a sede do Legionário quando tivemos de entregar a Ação Católica ao adversário, para que a Rainha, saída de seu trono, lutasse dentro da trincheira. Lembro-me, e com quanta emoção, de que, entregue o Legionário, essa imagem foi levada para nossa sede da Rua Martim Francisco, 669, onde ocupávamos exclusivamente o andar térreo e tínhamos no fundo um oratoriozinho, no qual a imagenzinha possuía o seu altar; ali nós rezamos a Nossa Senhora de um modo ininterrupto até que a hora da reconquista começasse.
    Tendo sido acrescido o nosso contingente, passamos a ocupar uma sede no sexto andar da Rua Vieira de Carvalho; para lá levamos a imagem, e obtivemos um retábulo que se encontra hoje na capela da Sede do Reino de Maria1. Na sede da Vieira de Carvalho a imagem foi entronizada e diante dela foram rezadas inúmeras Missas, distribuídas Comunhões, num movimento intenso de piedade, até que a reconquista marcou um outro passo.
    Deixando dois andares num prédio de apartamentos, passamos para um palacete da Rua Pará. Para essa nova sede, nós mesmos levamos a imagem, à noite, num automóvel, rezando durante todo o tempo do percurso, e a instalamos no seu altar, o mesmo que ela ocupava na Rua Vieira de Carvalho. Ali esteve ela até o momento em que passou para a maior das sedes, até agora, do nosso Movimento, a da Rua Maranhão. Ali ela é objeto de nossa contínua veneração.
    Não é uma obra de arte, mas uma imagenzinha de gesso dessas fabricadas em série e que se encontram por toda parte, de um tipo religioso chamado sulpiciano, que é bem conhecido e não vou descrever aqui.

     

    Algo de virginal e ao mesmo tempo materno

     

    Por que motivo eu julguei fazer um achado encontrando essa imagem? Pareceu-me de uma expressão de fisionomia, de uma serenidade interior toda ela decorrente da temperança. A temperança é a virtude cardeal pela qual se tem por cada coisa o grau de apreço ou de repúdio que é proporcional a todas as circunstâncias. Nunca se quer uma coisa exageradamente nem menos do que merece, e jamais se detesta algo exageradamente nem menos do que merece. A completa execração para com as coisas inteiramente execráveis faz parte da virtude da temperança.
    Essa disposição de alma me pareceu reluzir muito nesta imagem. Discretamente, ela é tão calma, tão senhora de si, está de tal maneira pronta a tomar atitude diante de qualquer coisa de modo inteiramente proporcionado, é tão desapegada de si que me pareceu o próprio símbolo do equilíbrio que é o corolário da virtude da temperança. E por isso mesmo com algo de virginal. Ela tem qualquer coisa de puro, de virginal, que me encantou, e ao mesmo tempo algo de materno por onde parece estar olhando para o filho, sorrindo e pronta a acionar o cetro de Rainha decisivo, segundo o pedido que se faça.
    Auxílio dos cristãos verdadeiramente e com esta simbologia: Nossa Senhora com a coroa aberta porque em presença do rei ninguém usa coroa fechada. O Menino Jesus está de coroa aberta, mas deveria ser fechada! Ele Se encontra no braço d’Ela com os bracinhos abertos, sorrindo. Vê-se que Maria Santíssima pediu e Ele sorriu, os braços abertos são fruto da prece de sua Mãe. Nossa Senhora está olhando comprazida por ver como o pobre filho d’Ela, ajoelhado ali, se encanta observando o Filho d’Ela por excelência sorrir e abrir os braços. É o auxílio: Aquela que nos consegue d’Aquele que é o Autor, a fonte última de todas as graças, tudo aquilo que nós pedimos. Ela pareceu-me ao mesmo tempo muito régia, mas muito simples. E tudo isto junto de tal maneira que a expressão global da imagem me agradou enormemente.

     

     

    Lírio nascido do lodo que floresce à noite, durante a tempestade

     

    Por que, falando da devoção a Nossa Senhora Auxiliadora in genere, eu passei, de repente, para as várias etapas dos atos de piedade realizados em função ou em presença desta imagem e, de algum modo, para a história da TFP? A fim de marcar que o sentido profundo de todas as nossas derrotas era um recuo da devoção a Maria Santíssima como fato que se exprimia por todo o Brasil, mas também que a nossa reconquista era uma reconquista da devoção a Nossa Senhora. E temos a alegria de poder afirmar que todo o terreno por nós reconquistado pelo Brasil, passo a passo, foi reconquistado para Ela. Reconquistado para Ela é dizer pouco! Foi reconquistado por Ela! Se a todo momento a Virgem Maria não nos tivesse ajudado, não houvéssemos recorrido a Ela, sentindo o seu apoio maternal, não teríamos feito coisa alguma. Quando a TFP chega aos seus píncaros e, por exemplo, considera os belos resultados que aqui nesta noite foram proclamados, ela deveria dizer que esses são os feitos de Nossa Senhora nas regiões sertanejas do Brasil.
    Que espécie de feitos?
    Sobretudo, e antes de tudo, os realizados nas nossas próprias almas. Quer dizer, que haja uma organização como a TFP, com um número de membros absolutamente falando reduzido, mas proporcionalmente enorme de sócios e cooperadores, e agora nesta semana a nova onda de correspondentes com esta mentalidade, estes costumes, este estilo de piedade, em toda a borrasca que existe em torno de nós, isto é bem o lírio nascido do lodo que floresce à noite, durante a tempestade. Mas quando se diz “lírio nascido do lodo”, não se recorre à metáfora senão para afirmar que está acontecendo algo de inteiramente inverossímil, inexplicável como a edelvais que brotou no Deserto do Saara. Foi, portanto, a Mãe de Misericórdia, a Medianeira de todos os favores que apresentou nossa prece ao seu Divino Filho e obteve que fosse atendida.

     

    Co-Redentora do gênero humano

     

     

    Qual prece? Antes de tudo a oração pela qual nós Lhe pedimos que nos dê a graça de cada vez mais amá-La, sermos d’Ela, confiarmos n’Ela, nos unirmos a Ela e que Ela se una a nós. A grande e

    fundamental prece é que Maria nos torne devotos d’Ela.

    Vejo alguém que poderia dizer: “Mas então fica encaminhado para segundo plano a devoção suprema, o culto de latria a Nosso Senhor Jesus Cristo? Que revolta é esta: o culto de dulia substituindo o culto de latria?”Fico com vontade de responder: “Que asneira é essa?” Nossa Senhora é o canal necessário, único, para chegar a Nosso Senhor Jesus Cristo. E se nós de tal maneira aplaudimos e veneramos a Santíssima Virgem é porque adoramos Aquele a Quem Ela conduz. Ela é o caminho pelo qual Ele veio a nós. N’Ela Jesus Cristo Se encarnou para depois remir o gênero humano; Ela é a Co-Redentora do gênero humano. Quando subiu ao Céu, Ele deixou sua Mãe para atenuar um pouco a tristeza e o imenso vazio que ficara na Terra. Tendo tudo isto em vista, se nos agarrarmos bem a Nossa Senhora, iremos até Ele; se não nos agarrarmos à Santíssima Virgem com todas as forças de nossa alma, aonde iremos? Para baixo! E nós sabemos bem quem está embaixo…

    Carta de um sacerdote jesuíta

    Lembro-me que nosso Grupo estava num de seus momentos mais cruéis, na luta do “Em Defesa”. Eu tinha tido uma pequena esperança de que uma editora de Montevidéu, de grande expressão naquele tempo, publicasse o “Em Defesa” em espanhol. Ela me enviou uma carta, pedindo licença a fim de traduzir a obra para o espanhol, e eu tinha concordado. Mas a editora me remeteu outra missiva, dizendo que não se interessava mais pela publicação; era naturalmente a “máfia” que havia chegado até lá. Pouco depois recebo outra carta de Montevidéu. Abro-a pensando: Que novo dissabor será esse? Era escrita com uma letra tremida de alguém que parecia enxergar pouco e empunhava mal a caneta.
    Tratava-se de um velho sacerdote jesuíta que eu não conhecia, o qual dizia na sua carta, resumidamente, o seguinte: “Por mais que os senhores sejam combatidos, eu os prezo muito e por causa disso lhes dou aquilo que posso conceder: as minhas orações, em primeiro lugar; em segundo lugar, um conselho: Os senhores valem o que valem porque são muito devotos de Nossa Senhora. Sejam cada vez mais devotos e não há bem que não lhes acontecerá; não diminuam jamais em um grau que seja essa devoção, porque do contrário todo o mal poderá vir sobre os senhores!” Eu dobrei a carta e pensei: “Este velho moribundo regou com um pouco de consolo a alma daquele que está em plena luta.”
    Quero crer que a piedosa alma desse verdadeiro filho de Santo Inácio esteja aos pés de seu Fundador no Céu, gozando da visão beatífica e olhando para Nossa Senhora. Peço a ele que reze por todos nós, para que sigamos esse conselho. Mas para isso, meus caros, é capital um ponto: não basta não decair na devoção a Nossa Senhora; ou se sobe cada dia mais, ou se para, e aquilo que para decai. Não tenhamos medo de exagerar, desde que fiquemos fiéis à Doutrina Católica em matéria de culto a Santíssima Virgem, porque De Maria nunquam satis, diz São Bernardo: sobre Nossa Senhora jamais há o que baste. Ela saberá depois premiar.

     

    Se Judas tivesse procurado Nossa Senhora, Ela o receberia com bondade

     

     

    Nossa Senhora Auxiliadora dos Cristãos… Para Maria Santíssima não é glória maior ser Mãe de Deus, Co-Redentora do gênero humano, concebida sem pecado original? É claro! Por que, então, tanta insistência em torno desta invocação Nossa Senhora Auxiliadora?
    Compreende-se. Como Ela é Mãe de Nosso Senhor Jesus Cristo e é nossa Mãe, está permanentemente disposta a nos ajudar em tudo aquilo que precisamos. São Luís Maria Grignion de Montfort tem uma expressão que parece exagerada, mas está absolutamente dentro da verdade: ele diz que se houvesse no mundo uma só mãe reunindo em seu coração todas as formas e graus de ternura que todas as mães do mundo teriam por um filho único, e essa mãe tivesse um só filho para amar, ela o amaria menos do que Nossa Senhora ama todos e cada um dos homens. De maneira que Ela é de tal modo Mãe de cada um de nós, quer-nos tanto por desvalido, desencaminhado, espiritualmente trôpego que seja e nada valha, que se nos voltarmos para Ela seu primeiro movimento é de amor e de auxílio. Maria Santíssima nos acompanha antes mesmo de nos voltarmos para Ela, pois tem ciência do que acontece com todos os homens, em todos os lugares. Ela me vê aqui falando d’Ela, e eu ouso esperar que, pela intercessão de nossos Anjos no Céu, Ela sorria. Ela conhece, portanto, nossas necessidades e é por intercessão d’Ela que temos a graça de nos voltarmos para Ela. É Ela que pede a Deus que tenhamos essa graça, e Deus no-la concede. Nós nos voltamos e a primeira pergunta que Ela faz é: “Meu filho, o que queres?”

    á vi uma afirmação que não era de um grande teólogo, mas tenho a impressão de que é verdadeira: se o próprio Judas Iscariotes, depois de haver vendido a Nosso Senhor e estar caminhando para o lugar maldito onde ele se enforcou, tivesse tido um momento de devoção para com a Santíssima Virgem e rezado a Ela, teria recebido um apoio. Se houvesse procurado por Ela e dito: “Eu não sou digno de chegar próximo de Vós, de Vos olhar, nem de me dirigir a Vós, sou Judas, o imundo… Mas Vós sois minha Mãe, tende pena de mim!”, Ela teria recebido com bondade o homem cujo nome é sinônimo de torpeza mais baixa e mais asquerosa, e que ninguém pronuncia sem extremos de nojo, por assim dizer, sem esgares de nojo: Judas Iscariotes… Até este!

    A bela avenida dos becos sem saída

     

    Mas nós sentimos dificuldade em ter isto sempre em vista. Por quê? Porque não vemos e, na nossa miséria, muitas vezes somos daqueles que não creem porque não veem. Nós não duvidamos, mas esquecemos. Sentimo-nos tão deslocados que dizemos: “Mas será mesmo? Aconteceu-me isto, aquilo, aquilo outro. Eu pedi a Ela e não fui socorrido; por que vou crer que agora serei ajudado? Mãe de misericórdia… para mim, às vezes sim, mas às vezes não…”
    É nessas horas que se deve dizer: “Auxilium Christianorum, ora pro nobis!” Nos momentos em que não compreendemos, não temos noção de como será a saída do caso,

    do que vai acontecer, precisamos repetir com insistência: “Auxilium Christianorum! Auxilium Christianorum! Auxilium Christianorum!” Porque todo caso tem saída. Nós às vezes não vemos a solução, mas Ela está dando ao assunto uma saída monumental.
    Quando lembro a história de nossas catástrofes, nossos reerguimentos, nossa dolorida e gloriosa avenida de becos sem saída, voltando-me para trás eu me pergunto: “Se Ela me desse para escolher esta via dos becos sem saída ou outra qualquer das que eu imaginava, qual preferiria?” Eu teria respondido: “Minha Mãe, se Vós me derdes força, escolho a avenida dos becos sem saída!” Avenida do inexplicável, da aparente catástrofe, da derrota, do arrasamento, mas da vitória que se afirma. Como é bela a avenida dos becos sem saída! Por quê? Porque é a avenida triunfal de Nossa Senhora. Ela abre os becos sem saída, transforma esta coisa monstruosa – uma avenida esquartejada em becos – e faz disso uma avenida. Compreende-se a providência de Maria Santíssima. É uma verdadeira maravilha!

    Portanto, a esse título muito especial, devemos repetir sempre: “Auxilium Christianorum!” Somos tão poucos, tão perseguidos, tão isolados, muitas vezes tão provados interiormente, há tanta coisa que se passa dentro de nós mesmos, em torno de nós, sentimos tanto adversário que ruge, há toda espécie de distâncias, que precisamos dizer constantemente: “Auxilium Christianorum! Auxilium Christianorum! Auxilium Christianorum!”, para ficar claro que a vitória foi de Nossa Senhora. Nossa insuficiência proclama a vitória d’Ela, canta a glória d’Ela. Como não poderemos ficar entusiasmados com a ideia de que Ela nos fez tão poucos para que Ela fosse tão largamente glorificada? É evidente! Esta prece deve estar nos nossos lábios em todos os momentos: “Auxilium Christianorum, ora pro nobis! Auxilium Christianorum, ora pro nobis! Auxilium Christianorum, ora pro nobis!”

    Batalha de Lepanto

    Temos um exemplo disso na Batalha de Lepanto, tão ligada à festa de hoje, na qual se deu isto: a esquadra católica estava enormemente desproporcionada em relação à esquadra maometana. Já era uma coisa para não se entender. Não seria mais compreensível que Nossa Senhora tivesse reunido uma esquadra católica potente, magnífica, para esmagar aqueles ímpios seguidores de Mafoma? Porém Ela não fez isso. Era uma esquadra pequena, talvez quase se pudesse dizer raquítica.
    Surge a esquadra muçulmana que forma a meia-lua e vai apertando os católicos. A batalha se inicia e há vários reveses dos católicos. Em certo momento, estes pulam para a nau capitânia inimiga e começam a atacar. Há alguns êxitos, a esquadra maometana foge. Eles mesmos não compreendem bem por que fugiam. Mas em anais dos próprios maometanos, que foram encontrados, está escrito: “A esquadra fugiu porque uma Dama terrível apareceu no céu e nos olhava com ar de ameaça tal que…” Não foi bom que os católicos fossem tão poucos, passassem por tantos riscos, lutassem como heróis de um modo mais ou menos inútil porque os outros eram muito mais fortes? Mas eles não deixaram de confiar em NossaSenhora. E o resultado é que a Virgem Maria apareceu e afugentou os inimigos. Não há nada mais belo.

     

     

    “Houve um homem enviado por Deus, cujo nome era João”

    Encerremos com um dado final. Desviemos nossos olhares de Lepanto e os voltemos para os esplendores do Vaticano. Numa sala, um Papa santo – São Pio V – preside uma reunião de cardeais. Mas o melhor de sua atenção está posto naquela esquadra que, com uma dificuldade diplomática enorme, ele conseguiu reunir. O grosso da esquadra era de naus espanholas, mas que o Filipão2 levou demais tempo em mandar. De outro lado, um pouquinho de navios venezianos, da Sereníssima República de Veneza, e alguns naviozinhos da Santa Sé. Tudo junto colocado sob o comando de Dom João d’Áustria. Os navios da Santa Sé eram comandados pelo Príncipe de Colonna. A esquadra vai para aquelas regiões e o Papa pensa, pensa… Em certo momento, ele se afasta de sua sala aonde estava havendo a reunião dos cardeais e se põe junto à janela, e se vê um tercinho que desce de suas mãos. Ele reza o terço inteiro, volta e diz: “Uma grande vitória foi ganha por Dom João; a esquadra cristã está vencedora!”
    Dom João combateu, foi um grande guerreiro, um herói. Em sua sepultura, no Escorial, que eu tive a alegria de ver, está escrita como epitáfio uma frase que São Pio V disse dele: “Fuit homo missus a Deo, cui nomen erat Iohannes!” O que o Evangelho diz de São João Batista, ele aplicou a Dom João d’Áustria: “Houve um homem enviado por Deus, cujo nome era João (Jo 1, 6).”
    Mas quem obteve que a Rainha do Céu cortasse as imensidões vazias e com o olhar ganhasse a batalha? O Rosário rezado por São Pio V, que dizia a Nossa Senhora, “Auxilium Christianorum!”
    Meus caros: rezemos, portanto, “Auxilium Christianorum! Auxilium Christianorum! Auxilium Christianorum!” em todas as circunstâncias de nossa vida. E na hora de morrer, quando estivermos no último alento e ainda dissermos “Auxilium Christianorum”, daí a pouco o Céu se abre para nós.

     

    (Extraído de conferência de 23/5/1984)

    1) Situada em São Paulo, na Rua Maranhão, 341, Bairro Higienópolis.
    2) Filipe II, Rei de Espanha.

  • Contemplar o mundo maravilhoso das almas

    Comentando alguns aspectos da vida de Santo Ampélio, o Ferreiro, Dr. Plinio mostra a importância de se conhecer as almas para admirar em cada uma aquilo que é reto, segundo Deus, o que ela seria se fosse inteiramente fiel, e o grau de fidelidade que dentro dela existe e a torna um reflexo especial do Criador.

    No dia 14 de maio celebra-se a memória de Santo Ampélio, o Ferreiro. Temos para comentar uma ficha sobre a biografia desse Santo1.

    Com um ferro em brasa expulsou o demônio

    Santo Ampélio, o Ferreiro, século V.
    A vida de Santo Ampélio, apelidado “o Ferreiro”, é toda lendária. Conta-se que era originário do Egito, ferreiro de profissão. Desejando a perfeição, procurou os solitários da Tebaida, a eles prestando serviços variados, inclusive de sua profissão.
    Certa vez, o demônio transformou-se numa jovem impudica e foi tentá-lo. O ferreiro com um ferro em brasa nas mãos avançou para queimá-la, espantou-a para sempre.
    Já velho, deixou a Tebaida e foi para as imediações de Gênova, onde levou vida de santificação e contemplação. Santo Ampélio é o padroeiro dos ferreiros.
    Bem entendido, afirmar ser a vida dele toda lendária é um modo de dizer… Se está canonizado pela Igreja, tem-se a certeza de que ele existiu e de fato foi Santo. Muitas vezes aquelas canonizações primeiras não eram feitas regularmente. Havia uma inspiração do Espírito Santo a todos, a qual fazia com que a voz do povo considerasse alguém como santo. E então era de fato santo. Mas aí estava também engajada a autoridade da Igreja, embora sem o processo regular de canonização que se faz hoje em dia.

     

    Isolamento, silêncio e estranhos visitantes

    Nós podemos imaginar mais ou menos o que seria a vida de Santo Ampélio, como ferreiro ambulante na Tebaida do século V.
    Nesse século precisamente a instituição eremítica estava ganhando o seu verdadeiro feitio. Porque durante os séculos anteriores, sobretudo o III e o IV, nos Impérios Romanos do Ocidente e do Oriente se perseguiam muito os católicos. A vida deles era extremamente difícil. E muitos fugiam para o deserto a fim de não serem presos, torturados. Ali eles passavam, às vezes, uma vida longa, até noventa anos ou mais, na tranquilidade absoluta do ermo, rezando a Deus e pedindo pela Igreja Católica de tal maneira perseguida.
    Mas nesta Terra o Criador não permite que a vida de ninguém seja sem provações grandes. E até provações heroicas, sofridas por pessoas que Deus ama mais e destina a prestarem um serviço especial à Igreja. Não devemos supor que o único martírio que esses eremitas, indo para a Tebaida, sofriam era o do isolamento e do silêncio, o que constituía um martírio. Pode-se imaginar, no homem com instinto de sociabilidade e, portanto, tendência a comunicar-se, o que representa de sofrimento passar quarenta, cinquenta anos sem ver absolutamente ninguém, a não ser um ou outro raro visitante que aparecia de vez em quando, e que não se sabia bem quem era. Às vezes tratava-se de uma alma necessitada que ouvia falar daquele eremita e, então, empreendia uma viagem arriscada para lhe pedir orações. Porém muitas vezes era algum bandido ou criminoso político que estava fugindo da polícia ou das autoridades, algum lunático, algum maníaco ou até um possesso do demônio que estava correndo por aquelas zonas.

     

    O homem é feito para a luta e para a dor

    É preciso acrescentar esta coisa curiosa e real. Os lugares muito ermos, isolados, se não são bastante abençoados, às vezes são especialmente infestados pelos demônios. Por exemplo, certos baixios, certas grutas muito profundas, lugares aonde nunca vai ninguém, pântanos, locais malcheirosos, etc., são lugares que facilmente os demônios procuram como permanência habitual, de onde eles saem para fazer infestações. Esses eremitas se situavam onde podiam. Às vezes lugares lindos, às vezes feios, comuns. Eles estavam ali, portanto, sofrendo todos os inconvenientes do isolamento, inclusive certa presença preternatural.

    Mas isso não é nada. O homem é de tal maneira feito para a luta e para a dor que quando ele foge delas e se põe no deserto, dentro de sua alma surgem os problemas, nascem a luta e a dor. E acaba, então, havendo as provações interiores que são, muitas vezes, mais terríveis que as provações exteriores.

     

    O que é uma provação interior? Um eremita vai para o ermo; nos primeiros tempos uma alegria, uma consolação, as graças de Deus inundam sua alma. Aos poucos aquilo vai se afastando e perde toda a unção primeira, ele se sente isolado, triste, deprimido, abatido e com mal-estar. De repente, começam as tentações a zumbir dentro de sua alma. E com as tentações iniciam-se, às vezes, as infestações diabólicas.

    A pior de todas as tentações é a tentação contra a Fé. Ele é convidado pelo demônio a pôr em dúvida a própria Religião Católica. Os demônios aparecem, às vezes, aos eremitas e fingem festins de Roma, de Alexandria e de outros lugares onde eles estão. Os eremitas têm alucinações. Tudo acontece.

    Desejo de oferecer a Deus o holocausto e a solidão

    No século V, o número de eremitas era muito grande, já não causado pelo medo das perseguições – que acabaram com Constantino, com a invasão de Roma pelos bárbaros –, mas determinado pelo temor de se perderem nas cidades e pela vontade de oferecerem a Deus o holocausto da sua solidão. E houve tantos e tantos nessa época que se chegou a dizer que o deserto estava formigando de eremitas.
    Em todas as épocas da Civilização Cristã houve eremitas em grande quantidade. A nossa é a infeliz época sem verdadeiros eremitas.
    Costumo ir com frequência, à tarde, na Igreja da Luz, fazendo minhas orações na ida e na volta. E nunca deixo de me lembrar que, nas histórias de São Paulo, se conta ter sido o bairro da Luz povoado por eremitas, que moravam nas voltas e contornos do Rio Tietê, tornadas particularmente poéticas pela névoa que, em certas épocas do ano, existia naquela zona mais úmida, e pela quantidade enorme de garças que voavam de um lado para outro e encantavam Frei Galvão, quando ele passava por lá. Quão diferente é o bairro da Luz de hoje em dia!

     

    Conhecedor dos esplendores espirituais do deserto

    Os eremitas, tão numerosos no século V, eram servidos, às vezes, por ambulantes que iam levar-lhes coisas, faziam caridade para eles, etc.
    E Santo Ampélio, levava uma vida curiosa, com esta forma única de turismo: o das almas. Um homem que é ferreiro de profissão vai gratuitamente ajudar tal eremita; mais adiante há um que fez tal milagre, mais além um outro que se destaca por tal virtude. Assim ele vai conhecendo alma por alma, revisitando os itinerários conhecidos e prestando serviços de bater ferro, ou fazer alguma peça de que eles precisavam para facilitar sua vida material, etc.
    Provavelmente sem falar, recebendo apenas do eremita algum conselho – se ele pedisse – para sua própria vida espiritual. E depois seguia adiante. Esse é um verdadeiro Guide Bleu – o grande guia de turismo da Europa – dos esplendores espirituais do deserto. “Se quer conhecer alguém que tem o dom da profecia, vire por ali e desça lá, naquela gruta há um velho que possui esse dom; se deseja conhecer um que é heroico nas penitências, suba até o alto daquele morro onde vive um jovem que se flagela de um modo admirável. Mais adiante um eremita que se levanta do solo, quando saúda Nossa Senhora, ao meio-dia. E ao chegar a noite, vai ver tal eremita dormir na serenidade, enquanto uivam as feras lá fora; trata-se do grande eremita tal, cujo sono é edificante e traz paz a todo mundo que o contempla.”

    Os verdadeiros monumentos deste mundo são as almas

     

    Provavelmente Santo Ampélio, com seus dons de ferreiro, foi um visitador, um turista da santidade pelos desertos. E era movido, com certeza, pelo encanto, pelo entusiasmo que lhe causava o contato com almas tão extraordinárias.
    Se essa hipótese – perfeitamente plausível – é verdadeira, então nós sabemos qual virtude podemos imitar de um Santo tão desconhecido no geral de sua biografia. Devemos pedir-lhe que nos obtenha uma dupla graça: termos discernimento para perceber como são as almas, e admirar em cada alma aquilo que é reto, segundo Deus, o que ela seria se fosse inteiramente fiel e o grau de fidelidade que dentro dela existe e a torna um reflexo especial do Criador. Saber também discernir nas almas o que é ruim e, a contrario sensu, ficar amando o que é bom.
    Eu lhes garanto que se uma pessoa passasse sua vida apenas estudando e conhecendo as almas, levaria uma vida muito mais entretida do que se fizesse qualquer outra coisa. Certamente mais do que tomar um avião e ir para Nova Deli, de lá para Xangai, depois a algum ponto da América do Sul, do Norte ou da Suécia, entrando em aeroportos, hospedando-se em hotéis, vendo monumentos e ficando com a alma vazia. Os verdadeiros monumentos deste mundo são as almas dos homens. E não há nada mais belo, mais interessante, mais atraente do que conhecer as almas.

     

    Conhecer os homens “sem alma”

    Confesso que o pouquinho que a experiência do contato com as almas me tem proporcionado faz com que, nas poucas viagens que fiz, o que me interessa mais é conhecer as almas; inclusive as almas dos homens “sem alma”, pois até essas são interessantes de conhecer, a contrario sensu.
    Lembro-me que uma vez viajei do Rio para Paris, ao lado de um holandês que vinha da Indonésia e ia descer em Londres, e que não tinha alma.
    Olhei para ele de soslaio e pensei: “Mas que horrível. Isso é uma longilínea posta de carne, ele não tem alma! O que é esse homem?!”
    Deve ser interessante conversar para conhecer a alma de um homem “sem alma”. Então eu fiz um comentário com ele a respeito de qualquer coisa sobre a rapidez do avião, e conversamos em alguns trechos da viagem. Fiquei vendo o vazio de um homem completamente sem alma que se sentia bem no corpo – porque era evidente que ele tinha uma invejável saúde, e fazia disso sua alegria –, mas ficava sempre comprimindo uma alma que persistia em voltar e dizer-lhe que não estava satisfeita. De maneira que havia nele, ao lado de muita saúde, horas de tanta tristeza, de tanta amargura e de tanto vazio, que disso fiz para mim um tema de meditação e – eu lhes garanto – entretenimento.
    Mais ainda, quando converso com uma pessoa, com duas, às vezes com duzentas, eu me entretenho em olhar para as almas. Sempre aprendo alguma coisa e saio com melhor capacidade de conhecer a minha alma, conhecendo a alma dos outros.
    Então, aqui está um convite para todos começarem a ser amatoris animarum, da categoria de gente que ama as almas, gostando de conhecê-las.

     

    Alegria de Nosso Senhor quando olhava para a Santíssima Virgem

     

    Haveria algo na vida de Nosso Senhor que seria um exemplo adequado para isso?
    Toda a vida do Redentor é isso. Em todas as coisas que fazia, nota-se um conhecimento perfeito das almas com as quais Ele tratava, e tudo ajustado às condições e às necessidades dessas almas.
    Quer dizer, Ele estava continuamente com a mente posta no Padre Eterno e nas almas com as quais tratava, considerando-as logo no primeiro olhar, como, por exemplo, aquele moço rico. Diz o Evangelho que Nosso Senhor o olhou e o amou. Quer dizer, viu a alma dele e o amou por causa da sua fidelidade. Quando Jesus tratava com os fariseus, era a alma que Ele via e conhecia até o fundo. E por isso, com sua sabedoria, sua santidade infinita, remexia até o fundo os acontecimentos dos povos com que Ele tomava contato.
    Podemos imaginar qual era a alegria de Nosso Senhor quando olhava para Nossa Senhora e via a alma perfeitíssima d’Ela. Não conseguimos ter ideia do gáudio que Ele tinha com isto. Entretanto, podemos ter uma noção indireta ao ver a imagem de Nossa Senhora de Fátima peregrina na Sede de seu Reino, quando reflete algo da alma da Santíssima Virgem. De tal maneira ela encanta que atrai multidões. Na Venezuela, quarenta mil pessoas foram ver a imagem, não certamente para olhá-la na sua materialidade, mas para observarem uma expressão de alma numa imagem.

     

    Devemos amar as almas desinteressadamente e acabar com o “eu, eu, eu”

     

    Se víssemos Nossa Senhora pessoalmente, qual seria nossa impressão, nossa sensação? É algo simplesmente incalculável!

    Isso – num grau levado a que auge? – Nosso Senhor tinha quando olhava para a Santíssima Virgem. E Nossa Senhora tinha também quando olhava para Ele. E quando os olhares se encontravam, Ele dizia: “Minha Mãe!” e Ela: “Meu Filho!” O que entrava ali de comércio de almas! É a relação mais nobre, mais alta, mais perfeita havida em toda a História. Foi essencialmente uma relação de almas.
    Então, procurem conhecer as almas, interessar-se por elas.

    Existe um obstáculo para isto? Existe. É quando estamos tratando com os outros e não pensamos nas almas deles, mas em nós mesmos; aí ficamos incapazes de conhecê-los. Quando a pessoa analisa os outros, não para ver como são, mas para observar que efeito está produzindo neles, se a estão considerando prestigiosa, fina, inteligente, enfim a cavalcata das vaidades, ela desce um véu, só olha para si e não conhece ninguém.
    É preciso amar as almas desinteressadamente, querer conhecê-las como reflexo de Deus, acabar com o “eu, eu, eu”, com a ideia fixa de si mesmo. Contemplar esse maravilhoso mundo das almas, do qual Santo Ampélio, o Ferreiro, foi muito presumivelmente um modelo, é o tema da meditação de hoje.

    (Extraído de conferência de 14/5/1976)

  • Misericordiosa iniciativa

    Ó minha Mãe, considerai os obstáculos que oponho a tantas graças que recebo de Deus, por vosso intermédio: derrubai-os Vós, com poder de Rainha e misericórdia de Mãe, já que não os derrubo eu.
    Atraí-me sempre a Vós e tomai a misericordiosa iniciativa de vir ao meu encalço, sempre que eu tenha a infelicidade de me afastar de Vós.

    (Composta em março de 1969)

  • De inquisidor a apóstolo do Peru

    Felipe II, tendo conhecido um homem bom e virtuoso como São Toríbio de Mongrovejo, retirou-o das doçuras da sua piedade e nomeou-o Presidente da Inquisição na Espanha. Exercendo tão bem o seu cargo, foi sagrado Bispo de Lima, no Peru, onde combateu os costumes devassos e tornou-se o açoite dos maus padres.

    No dia 23 de março comemora-se a festa de São Toríbio de Mongrovejo, cujos dados biográficos a seguir sintetizamos.

     

    Em Granada, foi Presidente da Inquisição por cinco anos

    São Toríbio nasceu em 1558 em Mayorga, Espanha, de uma nobre família. Desde a infância revelou amor pela virtude e um extremo horror ao pecado, ao lado de uma grande devoção à Santíssima Virgem. Cada dia recitava seu Ofício e o Rosário, e aos sábados jejuava em sua honra.
    Com inclinação para os estudos, fê-los em Valladolid e Salamanca. Felipe II veio a conhecê-lo e, notando suas qualidades, o nomeou primeiro magistrado de Granada e presidente do Tribunal da Inquisição dessa cidade, cargo que exerceu de forma excepcional durante cinco anos. Vagando a Sé episcopal em Lima, no Peru, o soberano chamou-o para o cargo apesar de seus veementes protestos. Foi sagrado sacerdote e bispo, e assumiu o seu posto aos 43 anos de idade.
    Sua diocese era imensa e os costumes dos espanhóis e outros conquistadores, ao lado do clero, deixavam muito a desejar.

    Os selvagens por sua vez estavam abandonados ou eram perseguidos. São Toríbio não se deixou desanimar e resolveu aplicar as decisões do Concilio de Trento para reformar a região.

    Em Lima, começou sua ação pela reforma do clero

    Dotado de excepcional prudência, bem como de zelo ativo e vigoroso, começou pela reforma do clero, mantendo-se inflexível para qualquer escândalo que daí viesse. Tornou-se açoite dos pecadores públicos e protetor dos oprimidos. Foi duramente perseguido por isso.
    Como alguns cristãos dessem à Lei de Deus alguma interpretação que favorecia os pendores desregrados da natureza, mostrou-lhes que Cristo era a Verdade e não um costume, e que em seu tribunal nossos atos seriam pesados não pela falsa balança do mundo, mas pela balança do Santuário.
    Conseguiu o nosso santo o que queria e voltou-se à prática das máximas evangélicas com enorme fervor, principalmente com a chegada do virtuoso Vice-Rei Dom Francisco de Toledo.
    Infatigável pela salvação da menor das almas de seu rebanho, não poupava nenhum trabalho. Protegeu os índios chegando a aprender, em idade avançada, vários de seus dialetos para poder ensinar-lhes o Catecismo. Toda essa atividade era iluminada por intensa vida de piedade, Missa, longa meditação, confissão diária, longas horas de oração e severas penitências. Sua prece era contínua, pois a glória de Deus era o fim de todas as suas palavras e ações.
    São Toríbio caiu doente em Sana, uma cidade distante de Lima. Previu sua morte e distribuiu seus bens aos seus criados e aos pobres, repetindo sem cessar as palavras de São Paulo: “Desejo ser libertado dos laços de meu corpo para unir-me a Cristo.” Morreu dizendo com o profeta: “Senhor, em tuas mãos entrego meu espírito.” Era 23 de março de 1606, quando expirou o grande apóstolo do Peru.

     

    Saiu das doçuras da sua piedade para ser o açoite dos hereges

    É uma tão bonita biografia que quase não dá vontade de fazer comentários. Em todo caso, vamos tomar alguns aspectos desse assunto e considerá-los.
    O primeiro deles, naturalmente, é a excepcional devoção desse Santo a Nossa Senhora. Todos nós sabemos bem que sem veneração enlevada à Virgem Maria não há santidade, a qual de algum modo existe na medida da devoção a Nossa Senhora. Passemos um pouco para a consideração de coisas do tempo.
    Tão logo o Rei Felipe II notou esse homem tão piedoso, chamou-o para exercer o Poder Judiciário.
    Imaginem que, em nossos dias, fosse publicada uma notícia dizendo: “O Presidente Fulano esteve em tal lugar e, ouvindo falar de um homem muito religioso que jejuava, fazia penitência todos os sábados, rezava o Ofício Parvo de Nossa Senhora, exclamou: ‘Oh, aqui está o magistrado!’” Ninguém acreditaria nessa notícia porque todo o mundo sabe que nenhum Chefe de Estado contemporâneo seleciona os homens verdadeiramente piedosos e religiosos.

    Ora – maravilha das maravilhas! –, Felipe II encontrou um homem piedoso que não era, todavia, “heresia branca”1, e esse Monarca – também ele bem o contrário da “heresia branca” –, vendo

    esse homem tão bom, chamou-o para um ramo especial do Judiciário que é a nossa bem-amada “Inquisição contra a perfídia dos hereges”. Ei-lo, então, transformado em perseguidor dos hereges. Esse varão sai das sombras do santuário, das doçuras da sua piedade, para ser o açoite dos hereges. E exerce tão bem o seu cargo que é nomeado Bispo de Lima, no Peru.

    Isto significa, afinal de contas, toda uma atmosfera de uma época na qual a virtude era procurada, galardoada e considerada como um instrumento para o bom andamento do governo de um reino.

    Implantou e consolidou os fundamentos do Reino de Cristo no Peru

    Vê-se qual era o pensamento de Felipe II ao mandar para o Peru um homem como esse. O Rei, compreendendo muito bem toda a corrupção a que uma nação colonial estava sujeita, com a presença da elite na Espanha ou em Portugal e a vinda da borra para a América do Sul, sua preocupação foi a de tomar um homem eminente para implantar e consolidar os fundamentos do Reino de Cristo no Peru.

    Essa atitude nos faz perceber melhor como havia da parte de Felipe II verdadeiro zelo na propagação da Fé. Há uns patoteiros por aí que dizem que Espanha e Portugal, quando fizeram o descobrimento, só se interessavam por dinheiro. O que lucrava monetariamente Felipe II em mandar um homem deste valor para o Peru, a fim de fazer uma reforma de caráter espiritual? Nada!
    São Toríbio começa a agir e, porque é um Santo autêntico, sabe vergastar quando necessário e se transforma no açoite dos maus padres, reformando o clero. Sua ação é prestigiada por outro homem de altas virtudes, que Felipe II manda para o cargo de Vice-Rei do Peru: Dom Francisco de Toledo.Vemos, portanto, o grande Monarca, a quem Santa Teresa chamava de “nosso santo Rei Felipe”, nomear um santo bispo inquisidor e um virtuoso vice-rei. Quem é que ouve falar dessas coisas nos dias de hoje? Como nós caímos! Estamos numa tal decadência que achamos natural que esses excêntricos estejam por aí governando, dominando, mandando, falando, dirigindo…

    Nós não compreendemos o fundo do abismo em que estamos, porque o normal é que um bispo seja como São Toríbio de Mongrovejo, e o poder político esteja entregue a um rei ou a um vice-rei virtuoso, não à “mercadoria” que vemos por aí. Mas nós até já perdemos a noção disso.
    Então, devemos pedir a São Toríbio de Mongrovejo que nos obtenha a graça de lutar ativamente para derrubar esse estado de impiedade em que a normalidade parece um conto da carochinha, e esse horror que se vê por aí passa a ser o normal.
    É, pois, a derrota da ordem revolucionária e o triunfo da Contra-Revolução que devemos rogar a este Santo que, como inquisidor, tanto lutou pela causa contrarrevolucionária. Do alto dos Céus, certamente ele ouvirá com benignidade e alegria a nossa prece.

    (Extraído de conferência de 22/3/1966)

    1) Expressão metafórica criada por Dr. Plinio para designar a mentalidade sentimental que se manifesta na piedade, na cultura, na arte, etc. As pessoas por ela afetadas se tornam moles, medíocres, pouco propensas à fortaleza, assim como a tudo que signifique esplendor.