Varão polêmico e recriminador

A TFP

Na escultura de Aleijadinho representando o Profeta Isaías, nota-se o olhar de um homem que está com a cabeça povoada de ideias, não meramente contemplativas, mas de quem vai fazer uma invectiva. É um varão polêmico e recriminador.

Lendo as profecias de Isaías, tem-se a impressão da narração da dor e da desventura de um homem, quase uma autobiografia. É preciso ver como essa autobiografia se encaixa na História da salvação.

Os justos são o centro da História

Ela poderia eventualmente ser vista da seguinte maneira: uma vez que o centro da História são os justos, Isaías representaria a história de Nosso Senhor e dos filões de justos ao longo dos tempos, e conteria uma espécie de doutrina da história dos justos, a qual teria, no Antigo Testamento, seu ápice em Elias.
Alguns trechos dão a história do justo, que se divide em dois tipos de episódios. Primeiro, Deus parece retirar-se e o justo é abandonado, perseguido, precisando confiar n’Ele. Segundo, a hora em que o Criador volta e dá o triunfo ao justo. Notem a coisa curiosa: muito mais do que se diz, Ele concede ao justo também o triunfo terreno.
De outro lado, vem narrada a história da atitude interna do justo diante dessa variação de tratamentos de Deus e uma história da tática de combate em face do injusto. Para ser mais preciso, a história do justo diante de sua própria dor e do Criador enquanto permitindo sua dor. Depois, a tática de combate e a atitude dele perante sua própria vitória e diante de Deus, causador de sua vitória.
Ele era inocente, foi atacado injustamente e padeceu tormentos que não merecia; o Criador pareceu abandoná-lo; mas ele rezou, confiou e reagiu de acordo com uma certa conduta interior e exterior, e Deus lhe deu a vitória.
Tomando em consideração as vitórias e as dores dos justos, são compendiadas todas as inocências, as vitórias, as dores e as táticas dos justos ao longo da História, em Nosso Senhor Jesus Cristo e, a seu modo, em Nossa Senhora. Ela vive tudo isso e depois o Divino Redentor leva ao auge.
Todas as inocências, dores, táticas e vitórias dos justos ao longo da História constituem uma coleção metafísica. Eu seria levado a supor que cada resplendor de Cristo ressurreto não deveria mostrar-se como se costuma fazer – um halo luminoso em torno de Nosso Senhor –, mas sim fachos de luz, cada qual representando, na coleção das modalidades de glória, uma espécie de tratado de metafísica da glória enquanto tal, de maneira que Ele estaria cercado de todas as formas e graus de glória possíveis.

O melhor modo de meditar o Rosário

Outro dia fiz a meditação do Rosário neste sistema, imaginando em cada dezena as várias modalidades metafísicas que aquele mistério comportava, desde a Anunciação até a Coroação de Nossa Senhora no Céu. Constitui o melhor modo possível de meditar o terço.
Então, por exemplo, a Ressurreição: triunfo sobre a morte.

Imaginar, por exemplo, na Ascensão todos os movimentos ascensionais dos bons e do Bem rumo à vitória completa. Essa trajetória tem mil modalidades realizadas na Ascensão de Nosso Senhor, de maneira tal que os muitíssimos brilhos possíveis de todas as ascensões do Bem na História foram representados em aspectos sucessivos à medida que Ele ia subindo.
Vinda do Espírito Santo: todas as formas de graça possíveis que há na Igreja Católica baixando, metafisicamente ordenadas, sobre os fiéis. Línguas de fogo, sim; mas o que elas conteriam? Não é uma maçaroca de linguinhas de fogo, e sim uma apoteose de ordem, de sabedoria e de ordenação, uma coisa maravilhosa!

A Assunção de Maria Santíssima aos Céus. Não é mais o Justo que Se levanta por uma ação direta sobre ele, mas o justo que, socorrido pelos outros, sobe glorificado. Por fim, a Coroação d’Ela.
Seriam todas as formas possíveis de vida do justo imbricadas na vida de Nosso Senhor. Também na dor. Neste sentido, eu seria levado a imaginar que o número de açoites desferidos contra o Redentor não foi arbitrário, nem determinado pela cólera vil daqueles bandidos, mas cessaram quando Ele gemeu todos os ais próprios à flagelação, enquanto flagelação de alma mais do que de corpo.
Quer dizer, eu veria na Paixão uma espécie de compêndio, ao mesmo tempo, de Teologia e de Metafísica. Caso se justificasse teologicamente, esse modo de meditar seria belíssimo!
Os profetas, enquanto precursores de Nosso Senhor Jesus Cristo, já possuíam sinais de toda a história d’Ele, mas que é também a história dos justos ao longo dos tempos. Inclusive a nossa própria história.
Seria interessante fazermos um histórico nesse nível sobre os profetas; serviria muito para se ter uma visão de conjunto.

 

Batalhador contemplativo da batalha

 

Na escultura de Aleijadinho que representa o Profeta Isaías, nota-se um olhar que fita um ponto indefinido no horizonte, o mirar de um homem que está com a cabeça povoada de ideias, as quais não estão na mente dele numa posição contemplativa, mas de quem vai tirar dali uma invectiva.
Ele está com ar de quem descansa da descompostura que passou e prepara-se para a que vai passar. É um homem polêmico e recriminador em posição de luta, que contempla o embate de todas as ondas. Não o deixaram impune, mas ele sente que permanece substancialmente o mesmo e, percebendo as outras vagas que vêm, pensa: “A lembrança dos embates passados me ajudará no futuro.”
O Profeta Isaías é um batalhador e, ao mesmo tempo, um contemplativo da batalha. Nessa contemplação ele vê os inimigos de Deus avançando por todas as partes e sente o que Nosso Senhor Jesus Cristo disse: “O Filho do Homem não tem onde repousar a cabeça” (Mt 8, 20). E pensa: “Todos têm um ponto de beneplácito, eu não tenho. Tudo é mal, dor, oposição. Porém, Deus é maior do que todas as investidas.” A certeza da vitória divina está presente. Encontrava-se pronto a prorromper em catilinárias e não tinha pena de si mesmo. Eis a visão do mundo do Profeta Isaías.
Essa visão cada alma a tem conforme a vocação. Por exemplo, São João Bosco. É-me fácil penetrar no olhar dele. Ele possuía uma centelha profética. Não era o profeta dos castigos previstos em Fátima, mas da vitória que deveria vir docemente triunfante, dando uma antecipação, um deleite dessa vitória.

Conosco o que há é a previsão de uma situação análoga à de Isaías, de todo o pulchrum1 de estar nessa situação e uma felicidade de encontrar-se nesse infortúnio: “Mar bravio! Isto é lindo!”
Se me oferecessem de vencer já, sem enfrentar a luta, eu não quereria. Esse holocausto teria que ser feito.
Paciência é a capacidade de sofrer, de entrar na dor e arrostá-la. Santo Ambrósio dizia: “Ubi patientia ibi lætitia”2. Sofrer na jovialidade e na alegria.

O que Isaías afirma de si mesmo se aplica a Nosso Senhor Jesus Cristo e a Nossa Senhora: “Eis na paz minha amargura amaríssima” (Is 38, 17).
Como é bonito sermos os guerreiros que enfrentamos a luta a ponto de estalarmos e com a confiança de que vamos para frente! Ter esse estado de espírito e mostrá-lo levanta as ondas contra si. E quanto mais os inimigos ficam sem pretexto, mais odeiam. É o que o Profeta Isaías via vir de longe.v

(Extraído de conferências de 10/3/1966, 31/7/1979 e 15/1/1989)

1) Do latim: belo.
2) Do Latim: Onde há paciência há alegria.

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