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Autor: Bruno

  • Varão polêmico e recriminador

    Na escultura de Aleijadinho representando o Profeta Isaías, nota-se o olhar de um homem que está com a cabeça povoada de ideias, não meramente contemplativas, mas de quem vai fazer uma invectiva. É um varão polêmico e recriminador.

    Lendo as profecias de Isaías, tem-se a impressão da narração da dor e da desventura de um homem, quase uma autobiografia. É preciso ver como essa autobiografia se encaixa na História da salvação.

    Os justos são o centro da História

    Ela poderia eventualmente ser vista da seguinte maneira: uma vez que o centro da História são os justos, Isaías representaria a história de Nosso Senhor e dos filões de justos ao longo dos tempos, e conteria uma espécie de doutrina da história dos justos, a qual teria, no Antigo Testamento, seu ápice em Elias.
    Alguns trechos dão a história do justo, que se divide em dois tipos de episódios. Primeiro, Deus parece retirar-se e o justo é abandonado, perseguido, precisando confiar n’Ele. Segundo, a hora em que o Criador volta e dá o triunfo ao justo. Notem a coisa curiosa: muito mais do que se diz, Ele concede ao justo também o triunfo terreno.
    De outro lado, vem narrada a história da atitude interna do justo diante dessa variação de tratamentos de Deus e uma história da tática de combate em face do injusto. Para ser mais preciso, a história do justo diante de sua própria dor e do Criador enquanto permitindo sua dor. Depois, a tática de combate e a atitude dele perante sua própria vitória e diante de Deus, causador de sua vitória.
    Ele era inocente, foi atacado injustamente e padeceu tormentos que não merecia; o Criador pareceu abandoná-lo; mas ele rezou, confiou e reagiu de acordo com uma certa conduta interior e exterior, e Deus lhe deu a vitória.
    Tomando em consideração as vitórias e as dores dos justos, são compendiadas todas as inocências, as vitórias, as dores e as táticas dos justos ao longo da História, em Nosso Senhor Jesus Cristo e, a seu modo, em Nossa Senhora. Ela vive tudo isso e depois o Divino Redentor leva ao auge.
    Todas as inocências, dores, táticas e vitórias dos justos ao longo da História constituem uma coleção metafísica. Eu seria levado a supor que cada resplendor de Cristo ressurreto não deveria mostrar-se como se costuma fazer – um halo luminoso em torno de Nosso Senhor –, mas sim fachos de luz, cada qual representando, na coleção das modalidades de glória, uma espécie de tratado de metafísica da glória enquanto tal, de maneira que Ele estaria cercado de todas as formas e graus de glória possíveis.

    O melhor modo de meditar o Rosário

    Outro dia fiz a meditação do Rosário neste sistema, imaginando em cada dezena as várias modalidades metafísicas que aquele mistério comportava, desde a Anunciação até a Coroação de Nossa Senhora no Céu. Constitui o melhor modo possível de meditar o terço.
    Então, por exemplo, a Ressurreição: triunfo sobre a morte.

    Imaginar, por exemplo, na Ascensão todos os movimentos ascensionais dos bons e do Bem rumo à vitória completa. Essa trajetória tem mil modalidades realizadas na Ascensão de Nosso Senhor, de maneira tal que os muitíssimos brilhos possíveis de todas as ascensões do Bem na História foram representados em aspectos sucessivos à medida que Ele ia subindo.
    Vinda do Espírito Santo: todas as formas de graça possíveis que há na Igreja Católica baixando, metafisicamente ordenadas, sobre os fiéis. Línguas de fogo, sim; mas o que elas conteriam? Não é uma maçaroca de linguinhas de fogo, e sim uma apoteose de ordem, de sabedoria e de ordenação, uma coisa maravilhosa!

    A Assunção de Maria Santíssima aos Céus. Não é mais o Justo que Se levanta por uma ação direta sobre ele, mas o justo que, socorrido pelos outros, sobe glorificado. Por fim, a Coroação d’Ela.
    Seriam todas as formas possíveis de vida do justo imbricadas na vida de Nosso Senhor. Também na dor. Neste sentido, eu seria levado a imaginar que o número de açoites desferidos contra o Redentor não foi arbitrário, nem determinado pela cólera vil daqueles bandidos, mas cessaram quando Ele gemeu todos os ais próprios à flagelação, enquanto flagelação de alma mais do que de corpo.
    Quer dizer, eu veria na Paixão uma espécie de compêndio, ao mesmo tempo, de Teologia e de Metafísica. Caso se justificasse teologicamente, esse modo de meditar seria belíssimo!
    Os profetas, enquanto precursores de Nosso Senhor Jesus Cristo, já possuíam sinais de toda a história d’Ele, mas que é também a história dos justos ao longo dos tempos. Inclusive a nossa própria história.
    Seria interessante fazermos um histórico nesse nível sobre os profetas; serviria muito para se ter uma visão de conjunto.

     

    Batalhador contemplativo da batalha

     

    Na escultura de Aleijadinho que representa o Profeta Isaías, nota-se um olhar que fita um ponto indefinido no horizonte, o mirar de um homem que está com a cabeça povoada de ideias, as quais não estão na mente dele numa posição contemplativa, mas de quem vai tirar dali uma invectiva.
    Ele está com ar de quem descansa da descompostura que passou e prepara-se para a que vai passar. É um homem polêmico e recriminador em posição de luta, que contempla o embate de todas as ondas. Não o deixaram impune, mas ele sente que permanece substancialmente o mesmo e, percebendo as outras vagas que vêm, pensa: “A lembrança dos embates passados me ajudará no futuro.”
    O Profeta Isaías é um batalhador e, ao mesmo tempo, um contemplativo da batalha. Nessa contemplação ele vê os inimigos de Deus avançando por todas as partes e sente o que Nosso Senhor Jesus Cristo disse: “O Filho do Homem não tem onde repousar a cabeça” (Mt 8, 20). E pensa: “Todos têm um ponto de beneplácito, eu não tenho. Tudo é mal, dor, oposição. Porém, Deus é maior do que todas as investidas.” A certeza da vitória divina está presente. Encontrava-se pronto a prorromper em catilinárias e não tinha pena de si mesmo. Eis a visão do mundo do Profeta Isaías.
    Essa visão cada alma a tem conforme a vocação. Por exemplo, São João Bosco. É-me fácil penetrar no olhar dele. Ele possuía uma centelha profética. Não era o profeta dos castigos previstos em Fátima, mas da vitória que deveria vir docemente triunfante, dando uma antecipação, um deleite dessa vitória.

    Conosco o que há é a previsão de uma situação análoga à de Isaías, de todo o pulchrum1 de estar nessa situação e uma felicidade de encontrar-se nesse infortúnio: “Mar bravio! Isto é lindo!”
    Se me oferecessem de vencer já, sem enfrentar a luta, eu não quereria. Esse holocausto teria que ser feito.
    Paciência é a capacidade de sofrer, de entrar na dor e arrostá-la. Santo Ambrósio dizia: “Ubi patientia ibi lætitia”2. Sofrer na jovialidade e na alegria.

    O que Isaías afirma de si mesmo se aplica a Nosso Senhor Jesus Cristo e a Nossa Senhora: “Eis na paz minha amargura amaríssima” (Is 38, 17).
    Como é bonito sermos os guerreiros que enfrentamos a luta a ponto de estalarmos e com a confiança de que vamos para frente! Ter esse estado de espírito e mostrá-lo levanta as ondas contra si. E quanto mais os inimigos ficam sem pretexto, mais odeiam. É o que o Profeta Isaías via vir de longe.v

    (Extraído de conferências de 10/3/1966, 31/7/1979 e 15/1/1989)

    1) Do latim: belo.
    2) Do Latim: Onde há paciência há alegria.

  • Fazei que eu seja um perfeito Apóstolo dos Últimos Tempos!

    Ó Virgem Mãe, Nossa Senhora de Fátima, que anunciastes ao mundo tão extremas aflições e tão extremas alegrias, revelando os terríveis castigos e os grandes triunfos pelos quais passará a Cristandade! A Vós que denunciastes com tanta clareza os extremos de abominação moral a que chegamos e ao mesmo tempo fizestes ver a plenitude de vossa insondável santidade, eu suplico que mudeis o meu espírito.
    Não permitais que eu continue sendo uma dessas incontáveis pessoas de horizontes curtos e de interesse circunscrito à pequena esfera de seu próprio eu. Fazei, pelo contrário, com que, pela despretensão e pela abnegação, eu seja uma alma aberta e ardente, capaz de medir em toda a sua extensão os extremos que em Fátima se divisam, e de tomar posição intransigente e completa a favor do extremo sacrossanto que sois Vós, ó minha Mãe: extremo de amor de Deus, de pureza, de humildade e de despretensão, extremo de inquebrantável combatividade! Fazei com que eu, assim, seja um contrarrevolucionário modelar, um perfeito Apóstolo dos Últimos Tempos!
    Cor Sapientiale et Immaculatum Mariæ, opus tuum fac!1
    (Composta em 8/5/1971)

  • Uma meditação para a Ascensão

    Devemos imaginar o momento da Ascensão como uma glorificação, uma despedida na qual todas as virtudes singularíssimas, insondáveis, infinitas de Nosso Senhor apareceram com uma rutilância como nunca antes tinham manifestado.

     

    Para atentarmos bem ao significado da Ascensão de Nosso Senhor Jesus Cristo, deveríamos tomar em consideração o fato concreto de ela ser a despedida d’Ele dos homens.
    A existência terrena do Redentor se encerrou, de algum modo, com sua morte. Entretanto, depois de ressuscitado, Jesus esteve entre seus discípulos e lhes apareceu várias vezes. De maneira que a sua presença era como um fato comum, frequente, porque Ele tinha convivido com os homens.

     

    Novo modo de conviver com os homens

    A partir do momento da Ascensão, pelo contrário, esse convívio visível se tornaria raríssimo, esporádico, extraoficial, em

    revelações particulares somente. Entretanto, a presença d’Ele entre os homens, no período entre a Páscoa e a Ascensão, teve o caráter de uma revelação oficial.
    E, por esse lado, então, podemos afirmar ter a Ascensão constituído uma verdadeira despedida de Nosso Senhor. Os homens não O veriam mais. Ele continuaria realmente presente no Santíssimo Sacramento, porém de um modo insensível.
    A Ascensão era mais uma despedida das aparências do sensível, do que do real, embora insensível, isto é, a sua presença permanente entre os homens na Eucaristia.
    E era, portanto, a figura de Nosso Senhor naquilo que o homem vê, ouve, admira através dos sentidos, que se retirava da Terra e subia aos Céus. Era um encerramento e uma despedida. E, ao mesmo tempo, uma glorificação, porque Nosso Senhor Jesus Cristo voltava ao Padre Eterno. A sua missão terrena estava encerrada. Ele subia para receber o triunfo, as manifestações de honra e de glória devidas àqueles que cumprem, de um modo exímio e sublime, uma missão muitíssimo árdua. Ele seria glorificado pelo Padre Eterno.
    Assim, a Ascensão se daria em condições para que toda a glória de Nosso Senhor aparecesse aos olhos dos homens. E chegando ao Céu seria recebido por uma manifestação, no sentido literal da palavra, apoteótica, de todos os Anjos e de todos os justos que tinham morrido e estavam à espera do Redentor para entrar no Céu com Ele e reinar com os Anjos por toda a eternidade.

    No momento da despedida, uma nova rutilância

    Devemos imaginar o momento em que Nosso Senhor Jesus Cristo se despediu como uma despedida imensamente gloriosa e uma glorificação de todos os aspectos de sua santidade, de sua perfeição moral infinita.
    Então, todas as virtudes singularíssimas, insondáveis, infinitas manifestadas por Nosso Senhor em sua existência terrena, todos os atrativos, todos os encantos de sua personalidade, tudo isso devia aparecer com uma rutilância, uma cintilação, um fulgor, uma glória, como nunca tinham aparecido.
    À medida que Nosso Senhor ascendia, a sua glória resplandecia ainda mais, até o momento no qual os homens perderam o olhar d’Ele e compreenderam que aquela glória se tinha confundido com os esplendores do Padre Eterno e nada mais dela era visível.
    Imaginemos Nosso Senhor caminhando com os seus para o alto do monte a partir do qual Ele subiria aos Céus. Assim como quando Ele foi para o Horto das Oliveiras ao iniciar a Paixão, com os Apóstolos cada vez mais tristes e distantes d’Ele, assim nessa segunda caminhada Nosso Senhor foi com os seus, desta vez, porém, foi com uma alegria e glória cada vez maior. Houve uma despedida, Ele disse algumas palavras para todos e, então, começou a subir aos Céus.

    Todos viam tudo, mas com aspectos diferentes

    Numa síntese maravilhosa, todos os predicados de Nosso Senhor Jesus Cristo começavam a aparecer. E cada alma ia notando, de acordo com sua luz primordial1, algo que ela deveria ver.

    Podemos conjecturar a Ascensão tendo se passado aos olhos de todos de um modo igual. Entretanto, cada um deve ter notado qualquer coisa de completamente diferente. Para algumas almas, Nosso Senhor apareceu como um Rei resplandecente de glória, subindo ao Céu e refulgindo de poder sagrado; a outras, com uma nota mais dominante de Mestre sapientíssimo, levando consigo toda a Sabedoria; a outras, como o Taumaturgo poderosíssimo; a outras, como o Pastor boníssimo; a outras, enfim, apareceram o encanto e a meiguice do Divino Salvador.
    Nosso Senhor Jesus Cristo, se ousássemos afirmar isto, mostrou-Se pequeno para os pequenos, meigo para os meigos, acessível para os tímidos e, assim, subiu ao Céu na glorificação de sua condescendência, de sua bondade, de sua afabilidade e misericórdia.
    Alguns tê-lo-ão visto subir com aquele poder terrível da divindade manifestada por Ele quando respondeu aos soldados que O buscavam: “Ego Sum”, fazendo todos caírem por terra. Outros viram-no ascender de tal modo que as suas palavras mais carinhosas, mais afetuosas e condescendentes para com os homens tenham aparecido ali de uma forma verdadeiramente magnífica. E, sobretudo, todos viram tudo, mas cada um viu aquilo que faria mais bem para sua alma.

    Como estava o Céu naquele momento

    Enquanto Nosso Senhor Jesus Cristo subia, talvez o céu tenha tomado coloridos inefáveis, com irisações onde se alternaram o ouro e cores várias; as pessoas tenham ouvido músicas e experimentado sensações extraordinárias que eram coruscações da glorificação do Céu e do concerto dos Anjos baixando à Terra, para os homens compreenderem quais triunfos o Pai preparava para Ele.
    Tudo isso é uma conjectura. Entretanto, algo à maneira disso se deu e a História não nos registra bem exatamente, nos pormenores e nas manifestações concretas. Mas esse é o efeito que a Ascensão d’Ele produziu sobre as almas, impressionando a todas de um modo ou de outro.
    Fazendo uma recomposição hipotética de lugar, imaginemos Nosso Senhor subindo e a glória d’Ele empolgando cada vez mais.
    Podemos, então, voltar os nossos olhos para os fiéis que estavam ali contemplando a Ascensão, a multidão embevecida, entusiasmada com o que via, mas com um entusiasmo sagrado, cheio de recolhimento, de veneração, de amor. Essa multidão, que era a semente da Igreja Católica, estava ajoelhada. Imaginem a impressão de piedade que todas aquelas almas deviam dar.
    Ainda que não víssemos a elevação de Nosso Senhor aos Céus, mas apenas essas almas, pelo estado delas poderíamos saber como foi a Ascensão. E, no centro de tudo, naturalmente São Pedro e os Apóstolos, mas, sobretudo, Nossa Senhora!

     

    A Ascensão e a missão de Maria

    Nossa Senhora ficava enquanto a imagem de Cristo. Era Ela quem assegurava, nos planos da Providência, pela sua presença na Igreja, que aquela distância imensa estabelecida entre Nosso Senhor e os homens não era um abismo ou um hiato, mas, pelo contrário, havia algo que continuava e unia. Maria era exatamente a Mediadora onipotente, o traço de união entre o Céu e a Terra, entre Deus e os homens.
    Ana Catarina Emmerich nos diz, e é muito explicável, que durante a presença de Nosso Senhor na Terra a Santíssima Virgem não apareceu tão claramente no esplendor de suas prerrogativas aos Apóstolos e aos primeiros católicos. E isso era para que a Pessoa de Nosso Senhor ocupasse a plenitude de tudo.

    No entanto, a partir do momento em que Ele subiu aos Céus, começou-se a notar mais tudo quanto havia n’Ela e toda a sua semelhança com Ele, e isso foi reforçado com Pentecostes. Deste modo o fervor de todos para com Ela foi crescendo. Iniciou-se, então, aquilo que alguns escritores chamam “a missão de Maria”. E a missão terrena de Maria antes d’Ela subir ao Céu era fazer de algum modo as vezes da presença sensível de Nosso Senhor.
    Começava a veneração “marial” a se tornar mais nítida, a tomar o caráter de um culto e Nossa Senhora iniciou o seu trabalho na Igreja, como quando o Sol se põe e aparece a Lua. E, embora a Lua não seja de nenhum modo o Sol, ela tem sua meiguice, seu encanto, sua beleza e seu atrativo, que é verdadeiramente maravilhoso!
    Nosso Senhor Jesus Cristo partiu, mas nos deixou sua presença real na Eucaristia e sua Mãe Santíssima. E todas aquelas refulgências notadas na Ascensão começaram a se notar depois, conservados os devidos graus, na pessoa de Nossa Senhora. Iniciava-se, assim, a grande missão de Nossa Senhora na Igreja.
    Com base nessas considerações, poderíamos nos perguntar o seguinte: “Se eu estivesse lá, como veria? De acordo com minha luz primordial, como imaginar?” Desde que se tenha o cuidado de compreender que não passa de uma hipótese – com certo substrato real no seu aspecto simbólico, não histórico –, existe a possibilidade de uma meditação muito frutuosa a respeito da Ascensão.

     

    Magnificência do mistério

    Ainda sobre a Ascensão, temos uma ficha tirada do L’Année Liturgique, de D. Guéranger2, com uma oração da liturgia grega a respeito de Nossa Senhora:
    Senhor, após o cumprimento, por vossa bondade, do mistério oculto há tantos séculos e tantas gerações, viestes com vossos discípulos ao Monte das Oliveiras. Tínheis convosco Aquela que vos colocara no mundo, Vós, o Criador e Artífice de todas as coisas.

    Não convinha, na verdade, que Aquela que em sua condição de Mãe sofrera mais do que qualquer outro quando de vossa Paixão, usufruísse de uma alegria que ultrapassa qualquer outra alegria, na glória de vossa carne?

    Tomando parte também nessa alegria, glorificamos na vossa Ascensão ao Céu o grande benefício que Vós nos fizestes.
    No Horto das Oliveiras, onde Nosso Senhor subiu, Nossa Senhora estava presente. A presença d’Ela era a primeira junto d’Ele na hora da glória porque tinha sido a primeira junto a Ele na hora da dor. Essa glorificação e alegria é algo pelo qual todos nós devemos dar graças, e não apenas Nossa Senhora.
    A oração continua:
    Colocastes no mundo, ó Soberana Imaculada, o Senhor de todas as coisas, o qual escolheu uma Paixão voluntária e subiu ao Pai, do qual não Se afastara ao Se encarnar. Ó maravilha inconcebível! Como, Vós que sois cheia de graça divina, contivestes em vosso seio o Deus incompreensível, Aquele que mendigou uma carne e que neste dia sobe aos Céus no meio de uma tão grande glória? E que deu a vida aos homens?
    Essa oração glorifica Nossa Senhora, porque Ela deu a carne a Nosso Senhor, o qual, com a carne dada por Ela, sobe aos Céus. E isso torna-se para Ela, como Mãe d’Ele, uma glória incomparável.
    Eis que vosso Filho, ó Mãe de Deus, após ter vencido a morte por sua Cruz…
    Nosso Senhor, morrendo na Cruz venceu a morte do pecado.
    …ressuscitou ao terceiro dia e, após ter aparecido aos discípulos, retomou o caminho para os Céus. Nós nos unimos a Ele em nossa veneração e vos cantamos e glorificamos em todos os séculos.

    Esta frase foi o pensamento de todos os católicos que estavam no momento da Ascensão, depois de Nosso Senhor desaparecer e dos Anjos virem anunciar a volta d’Ele.

    Salve Mãe de Deus, Mãe de Cristo Deus, Aquele que destes ao mundo, Vós O glorificais vendo-O neste dia elevar-Se da terra com os Anjos.
    Maria Santíssima viu Nosso Senhor subir ao Céu por poder próprio, mas seguido de uma revoada de Anjos. Quem O tinha dado ao mundo, contemplava-O, naquele momento, sendo objeto de uma tão imensa glória! Podemos afirmar que a maior, a mais magnífica das meditações sobre a Ascensão foi feita por Nossa Senhora.v

    (Extraído de conferência
    de 18/5/1966)

    1) A luz primordial é a virtude dominante que uma alma é chamada a refletir, imprimindo nas outras virtudes sua tonalidade particular.
    2) Não dispomos dos dados desta ficha.

  • Nota de Pesar e de Homenagem da TFP pelo falecimento de Bento XVI

    NOTA DE PESAR E DE HOMENAGEM DA TFP
    PELO FALECIMENTO DE BENTO XVI

           No último dia de 2022, quis a Providência Divina chamar à eternidade o Papa Emérito Bento XVI, aos 95 anos de idade, selando sua vida e o conturbado ano com marca indelével.

           Sem a pretensão de traçar uma síntese biográfica – entre tantas outras mais autorizadas já existentes -, alguns aspectos da longa e profícua trajetória do Pontífice podem ser aqui destacadas sem demérito para tantos outros, os quais seria impossível elencar em uma nota necessariamente breve.

           Nascido em 1927, numa pequena cidade alemã, Joseph Ratzinger recebeu, aos 24 anos, a ordenação sacerdotal em 1951 e ainda muito jovem doutorou-se em Teologia, logo alcançando grande destaque, tornando-se, anos depois, um dos mais influentes teólogos do Concílio Vaticano II.

           Em 1977 foi nomeado arcebispo de Munique e, logo a seguir, recebeu o chapéu cardinalício. Em 1981, foi nomeado Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, pelo Papa João Paulo II, cargo que exerceu até 2005, ano do falecimento daquele Sumo Pontífice.

           Nesse mesmo ano foi eleito Papa, adotando o nome de Bento XVI, exercendo o Pontificado Romano até sua inesperada renúncia, em fevereiro de 2013.

           Sua atuação como Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé notabilizou-se pelo grande cuidado com a manutenção da pureza doutrinária no seio da Igreja Católica, marca essa que conservou também em seu Pontificado.

           Dentre seus inúmeros empreendimentos à frente daquela que é a mais antiga das Congregações romanas, vale destacar o monumental Catecismo da Igreja Católica, cuja elaboração presidiu.

           Trata-se de uma obra que resume toda a Teologia Dogmática e Moral, repleta de citações das Sagradas Escrituras, de documentos conciliares e papais, bem como de excertos de Padres da Igreja e dos grandes Doutores, como Santo Agostinho e São Tomás de Aquino e de muitos outros santos e mestres da espiritualidade, como Santa Teresinha do Menino Jesus.

           Posto em vigor em 1992, por São João Paulo II, recebeu depois o Cardeal Ratzinger a incumbência de presidir a redação de uma versão resumida, denominada Compêndio do Catecismo da Igreja Católica, a qual foi aprovada e posta em vigor, em junho de 2005, por ele mesmo, já como Sumo Pontífice recém-eleito.

           Esse Compêndio é uma versão mais acessível ao público em geral, porém resume fielmente o conteúdo do Catecismo, retomando, todavia, a forma de exposição da matéria adotada nos antigos catecismos, por meio de perguntas e respostas.

          Conhecido por sua discrição – a qual muitos confundiam com timidez -, atraiu multidões, algumas delas jamais vistas, em suas viagens como Sumo Pontífice, fato esse que ocorreu, por exemplo, em sua vinda ao Brasil no ano de 2007, o mesmo se verificando nas audiências papais e celebrações litúrgicas.

           Quer na sua atuação como Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, quer como Pontífice Romano, empenhou-se em pôr em prática a pastoral de São João Paulo II relativa aos movimentos leigos, também conhecidos como novos movimentos religiosos,  apontando-os, ambos os Pontífices, como instituições com as quais o Espírito Santo enriquece a santidade da Igreja, com novas formas de espiritualidade e novos instrumentos para indicar os caminhos ao Povo de Deus.

           É o que exprime São João Paulo II, por ocasião do IV Congresso Mundial dos movimentos eclesiais e das novas comunidades em Roma, em 1998: “[Os movimentos leigos]são uma resposta providencial, suscitada pelo Espírito Santo para estes dramáticos desafios atuais. Vocês são esta resposta providencial”.

           Pensamento esse que Bento XVI reitera, em discurso aos Bispos no encontro em Rocca di Papa (2008): “Os movimentos eclesiais e as novas comunidades não são um problema ou um risco a mais, que se soma às nossas já gravosas incumbências. Não! São um dom do Senhor, uma reserva preciosa para enriquecer com os seus carismas toda a comunidade cristã. Por isso não deve faltar um acolhimento confiante que lhes dê espaços e valorize a sua contribuição na vida das Igrejas locais.”

            Por fim, um aspecto do qual certamente ainda a História se ocupará e terá muito a aprofundar é o das relações de Bento XVI com a Virgem Maria e, em especial, com as revelações dadas por Ela ao mundo em Fátima.

            Com efeito, ainda no pontificado de João Paulo II, o cardeal Ratzinger teve o encargo ímpar de divulgar a parte das revelações de Fátima que ainda era mantida em sigilo, conhecida como terceiro segredo de Fátima.

            No entendimento equivocado de alguns, essa divulgação teria encerrado a missão das revelações de Nossa Senhora de Fátima. Entretanto, o próprio Bento XVI encarregou-se de esclarecer a questão refutando tais interpretações incompletas: “Iludir-se-ia quem pensasse que a missão profética de Fátima esteja concluída”. (…) Possam os sete anos que nos separam do centenário das Aparições apressar o anunciado triunfo do Coração Imaculado de Maria para glória da Santíssima Trindade” (homilia de Bento XVI em 13/5/2010).

            A inesperada renúncia com a qual Bento XVI pôs término a seu pontificado deu origem a uma série de eventos, por assim dizer inéditos, entre os quais o que vivemos no presente momento, quando temos a insólita oportunidade de contemplar o passamento de um Papa não reinante. 
 Que outras surpresas nos reservará o ano que assim se inicia? Diante de tais perplexidades, esclarecedoras são estas palavras de nosso Fundador, Professor Plinio Corrêa de Oliveira, ao final de seu livro “Revolução e Contra-Revolução”:

           “Incertos, como todo o mundo, sobre o dia de amanhã, erguemos em atitude de prece os nossos olhos até o trono excelso de Maria, Rainha do Universo. E ao mesmo tempo nos sobem aos lábios, adaptadas a Ela, as palavras do Salmista dirigidas ao Senhor:

            “Levanto meus olhos para ti, que habitas nos céus. Assim como os olhos dos servos estão fixos nas mãos dos seus senhores, e os olhos da escrava nas mãos de sua senhora, assim nossos olhos estão fixos na Senhora, Mãe nossa, até que Ela tenha misericórdia de nós (Ps. 122, 1-2).

            “Sim, voltamos nossos olhos para a Senhora de Fátima, pedindo-Lhe quanto antes a contrição que nos obtenha os grandes perdões, a força para travarmos os grandes combates, e a abnegação para sermos desprendidos nas grandes vitórias que trarão consigo a implantação do Reino d’Ela. Vitórias estas que desejamos de todo coração, ainda que, para chegar até elas, a Igreja e o gênero humano tenham de passar pelos castigos apocalípticos – mas quão justiceiros, regeneradores e misericordiosos – por Ela previstos em 1917 na Cova da Iria.

            “Estamos nos lances supremos de uma luta, que chamaríamos de morte se um dos contendores não fosse imortal, entre a Igreja e a Revolução. (…) A mediação universal e onipotente da Mãe de Deus é a maior razão de esperança dos contra-revolucionários. E em Fátima Ela já lhes deu a certeza da vitória, quando anunciou que, ainda m
    esmo depois de um eventual surto do comunismo no mundo inteiro, por fim o seu Imaculado Coração triunfará”.

    A TFP se une em oração a todo o orbe católico – e conclama os leitores a fazerem o mesmo – pela alma de Bento XVI, bem como pela Santa e Imaculada Igreja Católica Apostólica e Romana.

    Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade – TFP

    www.tfp.org.br

  • Sorrisos do alto da Cruz

    Que Vos levaria, Senhor, a sorrir do alto da Cruz?
    Vós vedes Maria. E ao lado da Virgem fiel, vedes os heróis da fidelidade: o Apóstolo virgem, as Santas mulheres, a fidelidade da inocência, e a fidelidade da penitência. Vosso olhar, para o qual tudo é presente, vê mais, pois se alonga pelos séculos, e Vos faz ver todas as almas fiéis que hão de Vos adorar ao pé da Cruz até o dia do Juízo. Vedes a Santa Igreja Católica, vossa Esposa. E por tudo isso sorris com o sorriso mais triste e mais jubiloso, o mais doce e mais compassivo sorriso de toda a História.
    Entre as miríades de almas que seguindo a Maria estão ao pé da Cruz, e para as quais sorris, também está a minha, Senhor?
    Humilde, genuflexo, sabendo-me indigno, entretanto eu Vos peço que sim. Vós que não expulsastes do Templo o publicano (cf. Lc 18, 6-20), pelas preces de Maria não rejeitareis para longe de Vós um pecador contrito e acabrunhado. Dai-me, do alto da Cruz, um pouco de vosso sorriso inefável, ó bom Jesus.
    (Catolicismo, n. 148, abril de 1963)

  • Intimidade eucarística

    Nunca seremos tão íntimos de alguém como de Jesus na Sagrada Eucaristia. Nem os mais altos Anjos do Céu têm com Ele a forma de união que nós, homens, temos recebendo a Comunhão. Um Anjo não pode comungar, pois não possui corpo. Ele goza da visão beatífica, está inundado de todas as graças do Céu, mas a Sagrada Eucaristia ele não recebe.
    Aquele que é a Santidade condescende em vir até nós nas Sagradas Espécies. Que dom formidável permanecer trancado no sacrário o Homem-Deus, até o momento em que chegamos para comungar! Numa hora por nós escolhida, do modo como queremos, Ele vem e nos visita, mais intimamente do que a residência de Betânia, enquanto estava vivo na Terra. Porque naquela ocasião Nosso Senhor entrava na casa, mas não em Lázaro, Marta e Maria. Na Eucaristia, porém, Ele entra em nós.
    Apesar da tibieza dos Apóstolos, que naquela mesma noite iriam abandoná-Lo, o Divino Redentor deu com alegria essa prova suprema de amor, e disse: “Desejei ardentemente comer esta páscoa convosco” (Lc 22, 15). Então, quando formos comungar, devemos pensar: “No sacrário, Nosso Senhor está desejando ardentemente ser recebido por mim, apesar de todas as minhas imperfeições. Com confiança irei para a Comunhão.”
    (Extraído de conferência de 15/9/1973)

  • As virgens fiéis e as virgens loucas

    As virgens loucas não se prepararam. As fiéis, sim. Desde quando estavam preparadas? A Parábola não o diz. Suponhamos que algumas o estivessem desde o primeiro instante e se foram quintessenciando até a chegada do Esposo. Oh, bem-aventuradas!
    Algumas, de outro lado, se atrasaram? Certamente. Como, então, estavam prontas quando o Esposo chegou? A misericórdia baixou sobre elas; e porque estavam humilhadas e arrependidas, o azeite se renovou em suas lâmpadas.
    Nossa Senhora dos humilhados e contritos!
    Nossa Senhora dos confiantes filiais!
    Nossa Senhora, Mãe de Misericórdia!
    Rogai por nós!
    (Anotações de Dr. Plinio. Domingo da Paixão de 1981)

  • Comungar em união com Nossa Senhora

    Em virtude de uma extraordinária analogia, Nossa Senhora é o modelo de quem comunga porque, quando recebemos Nosso Senhor na Sagrada Eucaristia, passamos a ser, enquanto durar em nós a presença real, tabernáculos vivos do Santíssimo, como Maria o foi do Verbo Encarnado. Isto nos eleva a uma inimaginável dignidade.
    Portanto, ao nos prepararmos para a Comunhão, devemos pedir à Santíssima Virgem que disponha nossos corações a receber convenientemente o Senhor Sacramentado: “Minha Mãe, vinde à minha alma, entrai em meu espírito e preparai-o para a visita de vosso Divino Filho! Concedei-me as disposições necessárias para comungar bem, ainda que de modo árido e insensível.”
    Em seguida, peçamos que Ela esteja presente conosco no momento de oferecermos a Nosso Senhor Eucarístico os quatro atos de culto: adoração, ação de graças, reparação e petição. Que dizer a Jesus por meio de Maria? Por exemplo, isto: “Meu Senhor e meu Deus! Eu quereria vos amar muito mais do que vos amo; desejaria receber-vos neste instante com os faustos de um amor inexprimível, do qual, infelizmente, não sou capaz. Entretanto, como há em mim, ao menos, o pesar de não ser assim, peço-vos que aceiteis as adorações de vossa Mãe Santíssima como se minhas fossem. Eu A convidei à minha casa para que Ela vos recebesse em meu lugar. Portanto, sou eu que, de algum modo, vos recebo e pelos lábios de Maria vos adoro.”
    E assim devemos proceder na ação de graças, na reparação e na petição, oferecidas a Jesus por intermédio da Santíssima Virgem. Deste modo faremos, com certeza, uma excelente Comunhão. Porque, ao entrar em nossa alma, Nosso Senhor encontrará, pelo menos, a lembrança de sua Santíssima Mãe, e o desejo de O receber em união com Ela. Este desejo e esta lembrança são imensamente eficazes para que Jesus se sinta bem acolhido. Porque Ele está bem onde se encontra Maria.
    Este método de receber a Sagrada Eucaristia em íntima união com Nossa Senhora põe ao alcance de quem comunga todas as graças que Jesus Sacramentado proporciona a seus devotos sinceros.

    (Extraído de conferência de 1/10/1966)

  • Jesus bebeu o cálice da morte gota a gota

    Em sua Paixão, Nosso Senhor Jesus Cristo passou por todas as formas e graus de dor, e entrou nelas com passo digno, sereno, firme e sem hesitação, caminhando para a Cruz como um rei caminharia ao trono de sua coroação.

    Quando analisamos cada lance da Paixão, seja física ou espiritual, notamos não ter sido poupado nada de Nosso Senhor. Ele entrou no abismo mais profundo da dor com passo de herói, assumiu todos os padecimentos possíveis e Se apresentou resplandecente de sofrimento ante a justiça do Padre Eterno. E assim salvou o gênero humano.

    Multidões do povo eleito afluíam a Nosso Senhor

    É interessante examinar, ponto por ponto, o anoitecer, o “Ofício de Trevas” dentro de Nosso Senhor, considerado no plano da sua humanidade santíssima.
    Jesus teve no primeiro ano de sua vida pública a alegria, o bom êxito, a correspondência de amor das multidões do povo eleito afluindo a Ele. Entretanto, sabia que isso tudo – vejam a amargura! – daria um número pequeno de conversões e excitaria os fariseus a determinarem a sua morte.
    Se Nosso Senhor tivesse muito menos adeptos, poderia não ter sido morto. Mataram-No por causa do sucesso desse primeiro ano. E nas multidões que O adoravam, Ele via o êxito como o primeiro passo do degrau o qual ia levá-Lo ao alto do patíbulo. Os Apóstolos e as outras pessoas não sabiam. Ele sim.
    Mais ainda. O Redentor via esse, aquele, aquele outro na plenitude momentânea da vocação, da alegria, e cuja beleza de alma O encantava. Entretanto, Ele sabia que um deles ia apedrejá-Lo, um outro havia de abandoná-Lo, outro ainda caluniá-Lo, dar risada ao denegri-Lo, insinuando ser verdadeira aquela calúnia. Nosso Senhor tinha tudo isso presente e, portanto, carregava diante de Si a enormidade desses tormentos.
    Tenho a impressão de que as calúnias só começaram a se espalhar depois de um certo trabalho do sinédrio junto aos que O seguiam, entibiando alguns e pondo outros contra Ele, de maneira àquela multidão se apresentar frouxa e desunida. E Jesus viu o crepúsculo da frouxidão baixando, à medida do aumento do número dos milagres.

    A ressurreição de Lázaro

    No segundo ano, quando Nosso Senhor tinha acumulado o castelo das suas maravilhas, Ele entra numa espécie de duelo com a frouxidão, porque a multidão procura escapar das suas mãos. Ele busca retê-la fazendo maravilhas maiores. E fica colocado diante dessa situação humanamente insolúvel: quanto mais Ele faz maravilhas, tanto mais a multidão vai se tornando insensível e indiferente.

    Um indivíduo poderia comentar: “Ele ressuscitou um morto; essa foi a última coisa que fez?” E riria como quem diz: “Eu estou farto disso, desejo voltar para minha vidinha; maravilhas afastai-vos de mim, quero a banalidade!” E quando Jesus levou ao auge seus milagres, teve conhecimento da sentença de morte. Na ressurreição de Lázaro, Ele soube que resolveram matá-Lo. Ele conhecia tudo e, quando foi para a casa de Lázaro festejar a ressurreição, de fato comemorava a morte, porque a ressurreição de Lázaro foi o começo da morte d’Ele.

    Não sei se notam quanto tudo isso é pungente do ponto de vista da tristeza. Para usar uma expressão errada, mas que significa um pouco o que eu quero dizer, envenenava, metia o sabor amargo nas mais legítimas e esplendorosas alegrias.
    Imaginem o ambiente da casa de Lázaro, na qual Ele gostava de estar, logo após sua ressurreição. Os Apóstolos, a família de Lázaro, pessoas do lugar que vinham, O adoravam. Nosso Senhor sabia que a maior parte daquelas coisas todas ia dar em nada. E Ele, para o bem daquelas almas, comia o festim e Se alegrava. Entretanto, no íntimo do seu Coração, Ele chorava porque compreendia o que estava acontecendo. Só esse episódio daria um drama do outro mundo. O drama de tragédia grega não seria nada em comparação com isso.
    Ele devia sentir também a reação dos que lá estavam: já não era a mesma de outrora, com exceção de Nossa Senhora e de algumas santas mulheres.
    Os acontecimentos vão se sucedendo e Jesus alcança um triunfo, contudo, percebe o bafo desse triunfo. Quer dizer, o povinho queria aclamá-Lo, porém não em termos de romper com os fariseus, esperava que estes O entronizassem. Se os fariseus não o fizessem, o povinho seguiria a eles. E fizeram para Nosso Senhor aquela comemoração – a festa da ingenuidade, não do inocente, ingenuidade do mole, tão diferente da do inocente. E Ele, passando no meio daqueles hosanas, percebia perfeitamente o que vinha depois.

     

    Losango da dor

    Em todos esses passos, é preciso dizer desde já, impressiona notar Nosso Senhor, por desígnio do Padre Eterno, sofrendo aquela dor e não consentindo apenas que o sofrimento caísse sobre Si, mas indo de encontro a ele. Jesus Se afundava no vértice baixo, mais terrível, do losango da dor.
    A vida humana pode ser comparada a um losango com duas pontas, a de baixo a dor, a do alto o gáudio. Nosso Senhor desceu ao mais fundo do losango da dor, em cada um desses casos concretos, com uma probidade, uma integridade e uma obediência que lembram o Ecce ancilla Domini, fiat mihi secundum verbum tuum (Lc 1, 38)1. Ele foi até o fim, de cabeça alta, na atitude que nós O vemos no Santo Sudário. Assim Jesus caminhou.
    Isso se torna mais pungente na Quinta-Feira Santa, em que se festeja o ápice da obra d’Ele. O Divino Salvador institui a Missa, a Eucaristia, o Sacramento da Penitência, e com isso o edifício da Igreja fica, em certo sentido da palavra, concluído.

    O povo judaico estava todo em festa, comemorando a passagem do Mar Vermelho, a Páscoa. E Nosso Senhor, nesse ambiente de gáudio geral, via com certeza os Apóstolos participarem daquela alegria. Ele faz a festa e completa a sua obra sem desfalecer. Podemos conjecturar o misto de sua alegria e tristeza, pois sabia que dali a algumas horas a grande tragédia deveria começar.
    Imaginemos a tristeza do Redentor lavando os pés de Judas, São Pedro, São João, pensando no que fariam em seguida. Depois distribuindo a Eucaristia e passando a ter Presença Real dentro de cada um deles, tão pífios, tão abaixo da tarefa… São Pedro, o Príncipe da Igreja d’Ele, haveria de fazer o que fez!

     

    Inflexibilidades do Pai Celeste

    Terminado o festim, todas as dores grandes e pequenas confluíram. Começou a agonia terrível, na qual Ele teve a representação de tudo o que sucederia e, na sua inteligência, na sua Alma santíssima, o quis com uma tal integridade que sofreu a desproporção entre a dor que vinha e as forças que possuía. Ele sentiu-Se esmagado. Apesar disso, fez um ato de submissão. Ele suou Sangue e pediu ao Padre Eterno: “Faça-se a vossa vontade e não a minha!” (Cf. Lc 22, 42).
    Nosso Senhor possuía uma força divina que não tem nada de comum com a fraqueza, porém teve a aparência da fraqueza. Ele disse “Faça-se a vossa vontade e não a minha”, como quem intuía ou conhecia que a vontade do Pai Celeste tinha inflexibilidades; Jesus estava esbarrando numa delas, na qual Ele Se esmagaria. Vem um Anjo e Lhe dá uma força que não era um consolo para sofrer menos, mas uma capacidade para padecer mais. Há, então, o abandono dos Apóstolos, etc.
    Em cada passo, vemos o horror alcançando o inimaginável. Ele entra nesse horror, reveste-Se dele e bebe o cálice da dor. E isso a cada minuto. Por exemplo, tiram-Lhe a túnica, toda empapada de Sangue já seco em alguns lugares e, portanto, colada às feridas. Na hora de puxá-la, uma dilaceração sem nome! Estou certo de que um homem, sem as forças que Ele teve, ficaria louco, morreria de dor.
    Essa túnica presumivelmente foi jogada no chão e o Sangue precioso começou a secar ali.
    Imaginem se tivéssemos uma camisa ensanguentada com o nosso próprio sangue e este esfriasse, coagulasse, e depois precisássemos vesti-la sobre a carne viva. É verdade que não há nada na Terra comparável ao Sangue d’Ele, contudo se compreende o que quero ponderar.
    Deram pontapés, cuspiram, pisaram na túnica. Deve ter sucedido o inimaginável. Ora, dentro do conjunto de tormentos pelos quais Ele passou, isso é uma bagatela.
    Em cada um desses passos aconteceu o pior previsível. Ele os tomou por inteiro sem um minuto de adiamento. Em nenhum instante da Paixão o Redentor pede para terem pena d’Ele e adiarem um pouco para poder respirar.

     

    Até o Padre Eterno e o Espírito Santo O abandonaram

    Quando Ele cai debaixo da Cruz é porque as forças não aguentavam. Logo que pôde levantou-a e continuou, sofrendo tudo com serenidade única, como se não estivesse padecendo nada. Acredito que Pilatos, de dentro das banhas, do conforto dele, tenha tido inveja do bem-estar de Nosso Senhor.
    Nosso Senhor é obrigado a esta ação atroz de caminhar carregando a sua própria Cruz para o lugar onde o tormento chegaria ao auge. Quer dizer, cada passo dado Ele não era para a própria libertação. Porque se Lhe dissessem “Se subires esse morro, no alto estarás liberto”, teria um alívio. Ao contrário, os algozes como que afirmavam “Sobes esse morro e quando chegares ao cume terás o pior. Agora anda!” Ele sobe e em seguida começa a crucifixão.
    Tem-se a impressão de isso não ser nada em comparação com o que veio depois, ou seja, todo o demorado processo mortal da crucifixão. Ele podia morrer de uma apoplexia, de um momento para outro. Não. Jesus não bebeu o cálice da morte de um trago só, mas gotinha por gotinha, tomando-lhe todo o sabor. Ele sentiu-Se morrer aos milímetros, sendo cada um deles uma pequena morte.
    Nosso Senhor transpôs cada milímetro até o fim, e quis que o mundo soubesse não ter tido Ele consolação nenhuma até no gemido final. O Padre Eterno e o Divino Espírito Santo O abandonaram.
    A Humanidade santíssima de Jesus ficou abandonada. A Divindade – unida à Humanidade na união hipostática – tornou-se fechada para Ele. E o que no Redentor havia de natureza humana permaneceu na noite mais completa e escura, a ponto de arrancar aquele brado indicativo de duas coisas lindas: a pungência tremenda da dor e, de outro lado, tudo quanto de força restava ainda naquele Homem. “Iesus autem iterum clamans voce magna…” – “Jesus clamou de novo em alta voz…” E depois: “…emisit spiritum.”2 (Mt 27, 50).
    É o auge da dor previsto e aceito de longe por uma preparação da Alma para isso.

    Ajuda da graça

    Para fazer uma meditação sobre Nosso Senhor Jesus Cristo é preciso tomar em consideração tudo isso. Como pode falar em Contra-Revolução quem não tem a alma bem ajustada nesse ponto?
    Concretamente, consiste em compreender algo paradoxal: essa vida é a mais terrível que se possa imaginar… exceto a do pecador. Porque é duríssima, mas a pessoa tem forças, tranquilidade, estabilidade, limpezas de alma que já são nesta Terra pelo menos algo do cêntuplo do que ela irá receber.
    Como Pilatos deve ter invejado a felicidade de Nosso Senhor! O pecador inveja a pessoa que vive assim, e é injusto porque está pronto a caluniá-la. Essa pessoa é o seu remorso em pé diante dele, e ele calunia seu próprio remorso para ter sossego. Sabe porém ser um desgraçado, e a felicidade existente nesta Terra é aquela.
    A dor de encontro à qual a pessoa caminha com passo firme de algum modo diminui. Quando nos esquivamos, ela vai crescendo à medida em que fugimos. Com isso vamos minguando, e na hora de ela nos estraçalhar não somos nada.
    Quanto mais o indivíduo previr de longe a dor, tanto menos ela lhe doerá. E a verdadeira ascese consiste na longa previsão, colocando-se nas mãos da Providência. Não tem outro remédio. E, paradoxalmente falando, nós temos aí o nosso cálice do Horto das Oliveiras, quer dizer, o líquido que nos dá força. Isso supõe não dizer “Na hora do drama serei um herói”, mas “na hora do draminha serei um herói”. Nas pequenas coisas da vida cotidiana deverei ser um herói também.

     

     

     

     

     

     

     

     

    Moisés no alto do Monte Nebo

    Isto não tem a seguinte conclusão: cada vez que se apresenta a perspectiva de uma dor para nós, não devemos pedir o afastamento dela. A oração pode distanciar sofrimentos de nós. Assim como a Providência não só permite, mas quer – e a doutrina da Igreja estimula – que diminuamos as dores das almas no Purgatório, também, como muitas pessoas recebem uma parte desse tormento nesta Terra, é legítimo rogar que seja livrado isso delas. E muitas vezes a Providência de modo misericordioso as liberta. De maneira que não estou pregando a atitude do Múcio Scevola3 com a mão em cima do braseiro. A nota católica consiste em tudo isso, porém com os olhos postos nas misteriosas inflexibilidades de Deus.
    Recentemente eu estava falando a respeito do modo de Deus agir com Moisés. O Profeta levou o povo eleito até às proximidades da Terra Prometida, e o Criador lhe disse que ali morreria em castigo de uma infidelidade. Moisés rogou a Deus com insistência para poder entrar na Terra Prometida, a fim de vê-la. O Criador não achou o pedido estúrdio, julgou razoável e até o levou ao cimo do Monte Nebo, de onde pôde contemplar toda a Terra Prometida.
    Moisés havia insistido no pedido, mas Deus lhe disse: “Basta!” São das tais inflexibilidades, as quais são adoráveis. De um modo ou doutro, a alma sente isso e deve estar pronta para todos os élans de esperança e de confiança, e também de resignação.
    Morre Moisés, o homem fiel entre todos, a bem dizer condenado à morte por Deus. É uma coisa espantosa! O Criador o amava tanto que escondeu o seu corpo; ninguém sabe onde se encontra. O olhar de Deus pousa sobre esse corpo até a ressurreição dos mortos. Moisés esteve presente na Transfiguração, contudo aguentou milênios de Limbo. Um decreto inexorável sobre ele se abateu. E Moisés adorou esse decreto divino.

    Papel da confiança

    Assim também há no que estou dizendo um claro-obscuro. Primeiro, a ajuda de Nossa Senhora para nós conseguirmos ter força. Não acredito que algum homem, sem o auxílio da Santíssima Virgem, possa fazer isso.
    De outro lado, as exorabilidades adoráveis de Deus, ainda mais quando se suplica como intermediária a Mãe d’Ele, a gloriosa intercessio Beatæ Mariæ Virginis. E se podem conseguir coisas espantosas, porém sempre fica este ponto: uma inexorabilidade poderá baixar sobre nós. Nesta hora devemos saber fazer como Moisés: ele morreu sereno nas mãos de Deus.
    Se quisermos meditar com seriedade a Paixão, encontramos isso. E, quanto a Nossa Senhora, não se pode imaginar que a uma mera criatura seja pedido tanto quanto foi rogado a Ela.
    Imaginem o cuidado e carinho da Virgem Maria a Jesus enquanto menino, depois enquanto mocinho, moço, com que afeto Ela bordou a túnica inconsútil! E aquele Corpo o qual Nossa Senhora havia amado tanto, aquela Alma que Ela procurara encher de consolações – e sabia ter enchido – se encontrava naquele mar de tormentos. Ela estava conjugada com o inexorável de Deus e quis que Jesus morresse.
    Não temos ideia do que isso representa. Se devêssemos sentir em nós uma fagulha, morreríamos de dor.
    O papel da confiança é muito bonito nesse ponto. Ela é a virtude pela qual de modo misterioso discernimos o que não é o inexorável e conseguimos fazê-lo recuar em algo. A confiança é tão poderosa, creio que um pouco do próprio inexorável às vezes recua.
    É uma coisa curiosa, mas confiamos que não virão sobre nós as dores as quais sentimos não estarem normalmente em nosso caminho. Cada um de nós tem uma noção confusa de qual é o caminho das nossas dores. Também sentimos quando esbarramos no próprio inexorável. E aí a confiança muda de nome e se chama resignação. Porém, o mais terrível é quando vem a prova axiológica4, porque a pessoa perde a noção do exorável e do inexorável.
    Essa é uma meditação sincera sobre a Semana Santa. Também é preciso dizer: por trás de tudo isso estão as glórias e as esperanças da Ressurreição. Quantas coisas na nossa vida foram à maneira de ressurreição! E virá, sobretudo, a ressurreição final de todos nós. Isto não é, portanto, um horizonte esmagador.
    As palavras de Nosso Senhor no alto da Cruz: “Meu Deus, meu Deus, por que Me abandonastes?” (Mt 27, 46) são o início de um Salmo profetizando a Ressurreição e a vitória.v

    (Extraído de conferência de 31/3/1983)

    1) Do latim: Eis a escrava do Senhor, faça-se em mim segundo a tua palavra.
    2) Do latm: entregou a alma.
    3) Herói da Antiguidade romana que, por ocasião de uma guerra ocorrida em 508 a.C., para dar mostra de sua coragem, queimou sua mão direita diante de seus inimigos.
    4) Axiologia provém do latim axis, is: eixo. Assim, na concepção de Dr. Plinio, a palavra “axiologia” e os seus derivados fazem sempre referência ao “eixo” que deve nortear a vida da pessoa, isto é, o fim para o qual o homem é criado e sua vocação específica, em torno do que devem girar todas as suas ideias, volições e atividades.

  • Presença régia e vitoriosa do Divino Infante

    Como o mundo atual é semelhante àquele no qual viveram os homens nas vésperas do Natal! Tudo parecia ruir, porém almas esparsas pela Terra esperavam por uma restauração. Não virá para nós também um acontecimento que nos liberte de todo o horror dentro do qual estamos?

    Um Menino está para nascer em Belém! O que dizer desse acontecimento?
    Quando o Verbo se encarnou e habitou entre nós, qual era a situação da humanidade? Com certeza, bastante parecida com a de nossos dias.

    Num mundo pagão algumas almas esperavam a restauração

    Apesar do pecado de Adão e Eva, havia uma como que inocência patriarcal das primeiras eras da humanidade, que foi deixando vestígios cada vez mais raros ao longo da História. E uma ou outra pessoa de cá, de lá ou de acolá, ainda refletia essa retidão primitiva. Homens esparsos que não se conheciam, pois não tinham contato entre si, e, em consequência, não formavam um todo, mas saudosos e pensando com nostalgia num passado tão longínquo que talvez nem sequer tivessem dele um conhecimento umbrático; olhavam o estado da humanidade do seu tempo representando uma decadência terrível, confirmada pelo que havia de poderoso e cheio de vitalidade: o Império Romano.
    Ele era o mais quintessenciado, o último e mais alto produto do progresso. Porém, não durou muito tempo, pois caiu por causa de sua devassidão. Assim, coube-lhe o fim inglório de ser calcado aos pés pelos bárbaros, aqueles a quem os próprios romanos desprezavam e consideravam feitos para serem seus escravos. Esses haveriam de tomar conta deles.
    Esse poderoso Império dominara um mundo podre. E se teve tanta facilidade para dominá-lo, em grande parte foi porque ainda era um pouco sadio. Devorando o mundo, o Império engoliu a podridão; e deglutindo a conquista, esta matou o conquistador. Todos os vícios do Oriente escorreram como torrentes em Roma e a tomaram. Assim, transformada numa cloaca, numa sentina, por sua vez, espalhava por toda parte – multiplicada e acrescida – aquela corrupção.
    Entretanto, algumas almas opressas por essa situação sentiam que algo estava por acontecer e compreendiam que, ou o mundo acabaria, ou a Providência de Deus interviria. Essas almas tinham a sua desventura e a sua angústia levadas ao máximo na véspera do dia de Natal. Vivia-se o fim de uma era em seus estertores, mas na aparência da paz, e ninguém tinha ideia de qual poderia ser a saída.
    Eis que, naquela véspera de Natal, tão terrivelmente opressiva para todos, em Belém, numa gruta, havia um casal que possuía uma castidade ilibada, e a Virgem Esposa, entretanto, seria Mãe. E, nessa gruta, em determinado momento, enquanto se rezava em profundo recolhimento, o Menino Jesus estava na Terra!

    Autêntica adoração

    Os pastores, que relembravam a retidão antiga, vendo aparecer os Anjos cantando e anunciando-lhes a primeira notícia: “Glória a Deus no mais alto dos Céus e paz na Terra aos homens de boa vontade!”, encantaram-se e foram em direção ao presépio, levando seus presentinhos ao Menino Jesus. Foi o primeiro magnífico ato de adoração, o qual bem poderíamos chamar de “ato de adoração da tradição”.
    Eles representavam a tradição da retidão pastoril, daquelas condições de vida puras, perdidas em meio ao mundo depravado e cuidando de pequenos animais. Pastores que, levando uma vida recatada à margem da podridão daquela civilização, foi-lhes anunciado em primeiro lugar o grande fato: “Puer natus est nobis, et filius datus est nobis” (Is 9, 5) – “Um Menino nasceu para nós, um Filho nos foi dado!”
    Pouco depois, no outro extremo da escala social, vinha também uma caravana, era outra maravilha. Uma estrela peregrina no horizonte… e, do fundo dos mistérios pútridos do Oriente, homens sábios, magos, cingindo a coroa real, deslocam-se de seus respectivos reinos.
    Imaginemos que, em determinado momento, esses grandes monarcas se encontraram e se veneraram reciprocamente. Sem dúvida, cada um contou para os outros de onde vinha, e os três se encantaram ao ver que os aliara a mesma convicção, a mesma esperança e o chamado para percorrer o mesmo itinerário. Por fim, chegaram juntos à gruta levando as três culminâncias dos respectivos países: ouro, incenso e mirra, e renderam outra adoração ao Menino Jesus. Aí já não era mais a tradição dos mais humildes, mas sim, a dos mais elevados.
    A tradição tem isso de interessante, de tal maneira ela é feita para todos, que possui um modo próprio de residir em todas as camadas sociais. Na burguesia ela se manifesta simplesmente na estabilidade. Na nobreza, pela continuidade na glória; enquanto no povinho, pela continuidade na inocência. Ora, esses reis, ápices da nobreza de seus respectivos países, traziam junto com a dignidade real, uma outra elevada honra: a de serem magos. Eram homens sábios, tinham estudado com espírito de sabedoria, pois no momento em que eles receberam a ordem: “Ide a Belém, e ali tereis as vossas esperanças realizadas”, seus espíritos encontravam-se preparados por tudo aquilo que conheciam e tinham estudado do passado.

    Logo irrompe a perseguição

    De imediato, desencadeou-se a perseguição. A meu ver, não seria razoável, nestas circunstâncias, meditarmos no Natal sem tomarmos em consideração a matança dos inocentes; essa tragédia que acompanha tão de perto a celeste paz, a serenidade magnífica e toda cheia de sobrenatural, do “Stille Nacht, Heilige Nacht”. Essa cruel matança tingiu de sangue a terra que mais tarde se tornaria sagrada, porque aquele Menino ali verteria seu Sangue Sacrossanto. Apenas Ele se manifestou, a espada assassina dos poderosos se moveu contra Ele. No momento em que essas maravilhas se afirmam, o ódio dos maus se levanta contra elas como uma corja.
    Com frequência, a matança dos inocentes é considerada de um modo humanitário. Não há dúvida de que essa ponderação tem algum cabimento, pois eles eram inocentes e foram mortos, crianças covardemente trucidadas. Porém, essa apreciação justa e de compaixão empana, no espírito moderno e naturalista, a consideração mais importante: aquele massacre era o prenúncio do deicídio, pois tendo recebido a informação de que ali nasceria o Messias, o rei dos judeus teve a intenção de matá-Lo, e para isso mandou assassinar todos os meninos!
    Embora não tivessem plena consciência de ser o Homem-Deus, de um modo ou de outro, a intenção era de atingir, senão Deus, pelo menos o enviado d’Ele. Daí uma série de outros fatos, e a História Sagrada se desenrola diante de nós.

    Ontem e hoje o mundo agoniza

    Como a nossa vida é parecida com a dos homens que viveram na véspera do “Puer natus est nobis, et filius datus est nobis!” O mundo de hoje agoniza como agonizava o das vésperas do nascimento de Nosso Senhor. Tudo é desconcertante, loucura e delírio. Todos procuram aquilo que cada vez mais foge deles, como o bem-estar, a vidinha, o gozo infame, as trinta moedas com as quais cada um vende o Divino Mestre, que implora a defesa e o entusiasmo daqueles a quem Ele remiu.
    É muito provável que nestas condições haja algum homem, pela vastidão da Terra, a gemer por presenciar diante de si o mundo caindo em pedaços; é o descalabro da Cristandade ou, hélas, a terrível crise na Santa Igreja imortal, fundada e assistida por Nosso Senhor Jesus Cristo, de tal maneira em declive que se soubéssemos ser ela mortal, seríamos levados a dizer que está morta.
    Eu me pergunto: não virá para nós um acontecimento enorme, talvez dos maiores da História – embora infinitamente pequeno em comparação com o Santo Natal –, que nos liberte também de todo o horror dentro do qual estamos?

     

    O que dar e pedir ao Menino Jesus?

    Aos pés do Presépio, se Deus quiser, vamos celebrar o Santo Natal, e devemos levar nossos presentes o Menino-Deus como fizeram os Reis Magos e os pastores. Entretanto, o que dar-Lhe? O melhor presente que Ele quer de nós é a nossa própria alma, o nosso coração! O Divino Infante não deseja nenhum outro presente da nossa parte a não ser este.
    Alguém dirá: “Que pífio presente, eu dar a mim mesmo a Ele!” Não é verdade! Se Jesus nos receber em suas mãos divinas, nos transformará em vinho como a água nas bodas de Caná e seremos outros. Digamos a Ele: “Senhor, modificai-nos! Asperges me hyssopo et mundabor: lavabis me, et super nivem dealbabor. Senhor, aspergi-me com hissope e eu ficarei limpo; lavai-me e tornar-me-ei mais alvo do que a própria neve! (Sl 51, 7). Vosso presente, Senhor, é a criatura que vos pede: aspergi-me, purificai-me!”
    Ora, esse presente devemos oferecê-lo pela intercessão de Nossa Senhora, pois, como oferecer algo como nós, a não ser por meio d’Ela? E se tudo fazemos por seu intermédio, por que não pedir um presente a Nosso Senhor também através de sua Mãe? Sem dúvida, o dom fundamental que devemos implorar é o seguinte: “Senhor, mudai o mundo! Ou, se não há outro meio, abreviai os dias cumprindo as promessas e as ameaças de Fátima! Mas, para perseverar pelo menos os que ainda perseveram, Senhor, tende pena deles, abreviai os dias de aflição e fazei vir o quanto antes o Reino de vossa Mãe.”
    Enquanto estivermos cantando o “Stille Nacht, Heilige Nacht” e as demais canções sagradas do Natal, devemos ter bem presente o seguinte: tudo é muito bonito e muito bom na lembrança do fato havido há dois mil anos, sobretudo porque temos a convicção de que Nosso Senhor continua presente na sua Santa Igreja e na Sagrada Eucaristia, e sua Mãe nos auxilia desde o Céu
    Na Terra, porém, é preciso pedir uma presença régia e vitoriosa do Divino Infante! Inclusive, podemos dar a esse pedido uma outra formulação: “Ut inimicos Sanctæ Matris Ecclesiæ humiliare digneris, te rogamos audi nos!” “Senhor recém-nascido, que repousais nos braços de vossa Mãe como no mais esplendoroso trono que jamais houve e haverá para um rei na Terra, nós vos suplicamos: dignai-vos humilhar, abaixar, castigar, tirar a influência, o prestígio, a quantidade e a capacidade de fazer mal, aos inimigos da Santa Igreja Católica Apostólica Romana, a começar pelos mais terríveis; e estes não são os externos, mas os internos!” Em suma, peçamos a forma mais requintada da vitória de Nosso Senhor: o esmagamento dos seus adversários e a vitória de sua Mãe Santíssima!

     

    Lembranças das noites de Natal

    As recordações dos natais da infância fixadas na minha memória se fundiram num só Natal. Todos se repetiram com muito encanto e agrado para mim, sem que eu os deixasse de achar sempre novos. Eu poderia tentar descrever as sucessivas impressões de como se comemorava o Natal na igreja e em casa.
    O Natal na igreja se celebrava com uma Missa, mas não era a do Galo. Nela se adorava a Nosso Senhor, enquanto recém-nascido em Belém, e em seguida, fazia-se uma consideração do Presépio. Por último, o sacerdote pronunciava a bênção.
    Eu tinha uma dupla impressão do Natal. Por um lado, chegava diante do Presépio e me comovia muito, me emocionava, pois me parecia que dele, de fato, emanava paz e tranquilidade. Vendo o Menino deitado de braços abertos, tinha a sensação de estarem abertos para mim e para todos os que O venerassem. Braços acolhedores, afáveis, cheios de simpatia e perdão.
    Assim, eu me tomava com aquela alegria do Natal, toda ela intensa e sobrenatural, mas, ao mesmo tempo, carregada de tristeza. Por quê? Vejam, por exemplo, a imagem do Sagrado Coração de Jesus que se encontra numa das capelas laterais da igreja dedicada a Ele, na cidade de São Paulo. Essa imagem é muito bondosa e vê-se Nosso Senhor imerso na felicidade celeste, mas Ele aponta para o seu Coração num gesto de tristeza, como que repetindo as palavras ditas a Santa Margarida Maria Alacoque: “Eis aqui o Coração que tanto amou os homens e por eles foi tão pouco amado.” Por isso, a devoção ao Sagrado Coração de Jesus tem essa nota reparadora, em que nós devemos atenuar o sofrimento d’Ele pelos pecados dos homens.
    Então, essa serenidade da dor, misteriosamente ligada à alegria natalina, tinha para mim um sabor especial, que não sabia explicar, mas me parecia que a alegria perderia muito sua razão de ser se a dor ali não estivesse presente. Era, de fato o júbilo natalino, mas numa determinada forma que o Natal não apresenta de imediato, ou seja, a alegria da resignação para o que viria no futuro, aceitando-o com bondade e com abertura de alma para a dor.
    Assim como o Divino Redentor sofreu, todos os homens sofrerão. Então, aquele menino que estava festejando o Natal sofreria também. Mas, quando chegasse a hora da dor, ele já deveria ter conquistado uma certa serenidade tranquila, augusta, cheia de paz, a qual faria com que dentro da própria dor, ele tivesse alegria.
    Essa era a mensagem de Natal que se tornava tão clara, no seu sentido religioso, na Missa do dia celebrada na Igreja. Na véspera do Natal não tinha a mesma intensidade. O sentido religioso era claro, mas a festa era feita num ambiente temporal. Na família, célula da sociedade, vive-se o prazer lícito das coisas temporais inocentes, da boa diversão, das crianças contentes pelos dons recebidos de Deus; infantes que ainda não começaram a batalha contra o pecado e se alegram por estarem vivos e existirem no mundo.
    É a alegria que teria uma borboleta ou um passarinho, se pudessem pensar, sentindo seu próprio voo de fruta em fruta ou de flor em flor, debaixo do Sol. Alegria muito boa, sem dúvida, que faz sentir à alma todos os prazeres da virtude, porque o verdadeiro prazer não provém do pecado. Assim, quando vier a tentação roncando, resfolegando e agitando o guizo, a alma humana compreenderá ser aquilo mentira do demônio, pois o que parece prazer é tristeza.
    Eis algumas lembranças da noite de Natal.v

    (Extraído de conferência de 23/12/1983)