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Autor: Bruno

  • O homem-saúva

    O homúnculo luta contra todas as formas de luta. Ele trava uma batalha cedendo, fugindo, capitulando, deixando-se esmagar. A esta família de almas pertencem os incondicionais do ecumenismo. Temendo as disputas entre as religiões, querem fundir todas numa só pan-religião. Quanto mais igualdade melhor, para lá vão seus anelos pacifistas, rumo ao comunismo ou ao anarquismo.

     

    Conheço o caso de um antigo fazendeiro paulista, senhor de vastos cafezais e de uma espaçosa mansão: quadrilátero com dois andares, porta ao centro e janelas de guilhotina iguais ao longo de toda a fachada. Ornamento externo nenhum. O fazendeiro, segundo o estilo tradicional, era também advogado e político.

    Ruína de um laborioso fazendeiro

    Família unida, títulos de propriedade seguros, terra roxa, casa firme, colonos submissos, vizinhos pacíficos, nada faltava ao sossego daquele laborioso fazendeiro. Mas um adversário inopinado atacou, no cerne, o feudo tão sólido. No cerne, digo, pois irrompeu inopinadamente dentro da própria casa. E, mais surpreendente ainda, esse adversário vinha de baixo para cima.

    Um só adversário? Mais exatamente milhares, talvez milhões. Pequenos, conquistando terreno aos milímetros, no silêncio, despercebidos, dominaram o subsolo, enquanto em cima, na casa, o fazendeiro e sua família trabalhavam, comiam, bebiam, dormiam e se divertiam.

    Um belo dia, uns poucos irromperam na copa. O fazendeiro os matou e ordenou uma investigação. E percebeu que já eram numerosos a ponto de ser inútil qualquer resistência. As saúvas – pois eram elas – haviam construído por todo o subsolo um labirinto tão vasto que inútil seria destruí-lo.

    Para resumir a história, o fazendeiro mudou-se, a casa ficou abandonada, o cafezal começou a ser invadido. Esse fazendeiro, que julgava nada ter a temer de qualquer potentado, foi arruinado por essas miríades de adversários pequenos, escuros e silenciosos.

    Os vastos e obscuros porões da mediocridade

    Lembrei-me disto quando comecei a escrever o presente artigo. Pois o tema sobre o qual queria escrever era o triunfo dos homúnculos na sociedade moderna. Por homúnculos entendo aqui os homens de espírito pequeno, que cabem, cada qual por inteiro, em um dos mil alvéolos da vida cotidiana, os que querem uma vida feita pela banalidade de cada dia, para os quais ontem foi incolor, inodoro e insípido, como hoje e como amanhã. O oxigênio que respiram é a banalidade, e o prazer das coisas está essencialmente na repetição.

    Para homúnculos assim, incômodo é tudo quanto é grande, venerável pela antiguidade ou magnífico pelo futuro que abre; tudo, enfim, que sai das dimensões cotidianas: holocausto, valentia, genialidade, delicadeza, excelência, infortúnios trágicos, e tantas outras coisas. É preciso acabar com tudo isto, com todos os que são assim, ou que algo disso refletem em seu espírito, em suas maneiras, sua linguagem, seu modo de ser ou sua conduta.

    As incontáveis mudanças ocorridas em nosso século, em quase todos os domínios da vida, constituem vitórias dos homúnculos, pois elas sempre diminuem algo ou alguém. A sociedade humana se vai afeiçoando cada vez mais ao gosto das almas-saúva. O que tem como consequência que as almas grandes se sentem, neste mundo minado em torno delas, como o meu fazendeiro. Quem hoje aspira a qualquer forma de grandeza, máxime a da virtude, ou se disfarça ou sobre ele se precipitam imediatamente as saúvas saídas dos vastos e obscuros porões da mediocridade. E o expulsam para as regiões da incompreensão, da indiferença e do isolamento, nas quais a mediocridade reduz a viver quantos não cabem nos padrões dela.

    Os incondicionais do ecumenismo

    Vejo neste gigantesco fenômeno sociopatológico, nessa insurreição universal dos homúnculos contra os que os sobrepujam, uma das causas do entreguismo do Ocidente. O homúnculo, o homem-saúva, detesta a luta mais do que tudo. Esta acarreta grandes esforços, só entusiasma as grandes almas, ocasiona a fulguração de grandes infortúnios. O homem-saúva luta, por isso, contra todas as formas de luta. Singular batalha que ele trava cedendo, fugindo – para baixo, bem entendido –, capitulando, deixando-se esmagar até, se não houver outra solução.

    A esta família de almas pertencem os incondicionais do ecumenismo. Temendo o aceso das disputas entre as religiões, o homem-saúva quer fundir todas numa só pan-religião, aliás mais ou menos ateia. Para o homem-saúva, todas as crenças e todas as descrenças devem confundir-se no mesmo ralo do ecumenismo.

    Pela mesma razão, o homem-saúva está pronto a dar de barato sua pátria, como faz com suas crenças. O inimigo, ele prefere não o ver. Se é obrigado a vê-lo, imagina-o em vias de conversão, “desestalinizado”1, de face humana, transformado em pacato – e ambíguo… – socialismo.

    Se o inimigo penetra nos setores políticos do país, ele lhe sorri e o rotula de “pra-frente” e “no vento”. Se se infiltra nos meios católicos, qualifica-o analogamente de “progressista”. Quando o inimigo cresce tanto que se torna ameaçador, o homem-saúva proclama irreversível o perigo, e tenta, como meio-termo, uma estratégia de “convergência”, inspirada no lema “vão-se os anéis e fiquem os dedos”. E, por fim, se o inimigo, depois de tomados os anéis, exige os dedos, o homem-saúva sussurra “vão-se os dedos e fique a vida”.

    Mas todas essas concessões, o homem-saúva só as faz à esquerda. Toda a sua ação silenciosa e inexorável, de infiltração, de corrosão, de erosão, ele a faz na direita e no centro, onde costuma instalar-se. E então não cede, não foge, não converge, ele mina.

    Por quê? Detestando tudo quanto é elevado, nobre e harmoniosamente desigual, para o homem-saúva, quanto mais igualdade melhor. E para uma igualdade totalmente rasa, totalmente plana, para lá vão seus anelos pacifistas. Rumo ao comunismo ou ao anarquismo.

    Vivemos numa época de revolução. É banal dizer-se. Sim, da revolução dos homens-saúva contra tudo quanto tenha qualquer grandeza…      v

     

    Plinio Corrêa de Oliveira (Transcrito de A Folha de São Paulo, 11/7/1981)
    Revista Dr Plinio 268 (Julho de 2020)

     

    1) Sem os excessos de Stalin.

     

  • Equilíbrio por excelência

    Comentando, a pedido de seus jovens discípulos, uma das últimas fotografias de Dona Lucilia, Dr. Plinio analisa um marcante e fundamental traço da personalidade de sua extremosa mãe: o equilíbrio.

     

    O misto de seriedade, de gravidade, de bondade e até de meiguice que se exprimem na fisionomia dela são qualidades que existem nela de um modo tão excelente, e que se combinam para formar um todo tão agradável de ver no seu conjunto, que se fica com a vontade de olhar indefinidamente.

    Profunda diferença entre Dona Lucília…

    Combinam-se aí algumas qualidades que são difíceis de combinar porque têm qualquer coisa de antitético. Não é de contraditório, mas que poderia parecer à primeira vista. Qualquer coisa que, por outro lado, o espírito moderno recusa profundamente, mas que por causa disso mesmo agrada nossos espíritos também profundamente. Nós vemos nela uma espécie de corretivo para o espírito moderno; há qualquer coisa de equilibrado, de tal maneira que não se saberia dizer que pudesse ser maior nela.

    Essa fisionomia é a do equilíbrio por excelência. Não há – pela graça de Deus, porque essas não são qualidades meramente humanas – nenhum perigo de sair, diante de um fato que a choque muito, uma palavra desequilibrada.

    Digamos, por exemplo, uma coisa que a qualquer mãe chocaria no auge: imaginem que, estando ela numa sala de sua casa, entrasse uma pessoa e lhe dissesse:

    — Dona Lucília, o Dr. Plinio acaba de ser assassinado aqui na sala ao lado.

    Seria um choque imenso, ela era capaz de morrer. E o indivíduo acrescentasse:

    — Quem o matou fui eu.

    Ela poderia ter qualquer reação, menos a de insultar o assassino.

    Qual seria a reação dela? Ela poderia ficar algum tempo desmaiada, chorar com um pranto muito longo e dolorido e até gemer alto:

    — Ai, meu filho!

    Poderia dizer ao homem:

    — Mas, por que o senhor fez isso com o meu filho?

    E como as mães são todas tendentes a se iludir com o filho, ela poderia acrescentar para ele:

    — Ele era tão bom. Por que o senhor o matou?

    …e muitas mães imbuídas da mentalidade moderna

    Entretanto dizer a ele: “Cachorro! Bandido! Ponha-se fora daqui!”, não saía. Pegar um objeto e atirar nele, não tinha possibilidade; a reação seria equilibrada.

    Mas digamos que o assassino quisesse, numa dessas atitudes desequilibradas de facínora, chegar perto dela para agradá-la e consolá-la. Ela tiraria o corpo, profundamente desagradada e afirmaria:

    — Não toque em mim!

    Infelizmente há muitas mães, imbuídas da mentalidade moderna, que agiriam com desequilíbrio nessa ocasião. Uma primeira atitude desequilibrada poderia ser de sentir pouco a morte do filho.

    — Mataram? Mas o corpo dele onde está? Precisa avisar à polícia. Vamos arranjar, então precisa vestir o cadáver…

    E a coisa iria por aí.

    Poderia ocorrer – se fosse uma senhora com um feitio mais tradicional, mas dentro do desequilíbrio moderno – que ela pegasse um objeto e jogasse em cima do sujeito. Infelizmente, não estaria excluída a hipótese de ela falar um palavrão.

    Dona Lucília poderia dizer ao indivíduo:

    — Saia de minha casa já! Não a polua com a sua presença. Eu me arranjo na pior dor da minha vida. Saia!

    Porém se o assassino dissesse, contrito:

    — Minha senhora, eu não sou digno de estar na sua casa, mas lembre-se de que tive uma mãe que me quis bem como a senhora amou seu filho, e tenha pena de mim.

    Ela era capaz de não chamar a polícia. Se alguém quisesse fazê-lo, ela não se oporia, mas ela poderia não chamar.

    Ao cabo de um ano, digamos, depois desse episódio, mamãe estaria ainda “sangrando” pelo que acontecera nesse dia. Mas ao contar o fato e se referir ao assassino, poderia dizer “infeliz” ou “miserável”. Mas chamá-lo de cachorro, monstro, etc., não faria. Havia um equilíbrio, um limite para cada coisa.

    Perda do patrimônio devido à omissão de um parente

    De outro lado nota-se nela um fundo de tristeza. Mas não é uma tristeza que arranque dela expressões de revolta, nem de inconformidade com os causadores dessa tristeza. Ela está olhando para o passado, medindo mais uma vez o que foi feito e que não deveria ter sido realizado, e está chorando no interior de sua alma. Mas, no fundo, ela possui a calma de uma pessoa que almoçou e está descansando um pouco, depois da refeição. É o equilíbrio! O equilíbrio no bem, na verdade, no dever, mas sempre o equilíbrio. Este era o traçado contínuo da vida de Dona Lucília: em tudo e por tudo, em todos os aspectos da sua vida, acontecesse o que acontecesse, a atitude dela era de equilíbrio.

    Passou-se com minha mãe o seguinte fato: Durante uma viagem que meu pai teve que fazer a Pernambuco, ele a aconselhou, e ela aceitou: dar uma procuração a um parente dela, para que este tomasse conta dos seus bens. Esse parente, entre outras “maravilhas”, fez a seguinte: ele devia renovar o seguro do edifício contra incêndio, mas deixou esgotar o prazo e o resultado foi que, no dia seguinte ao vencimento do seguro, o prédio pegou fogo e ela perdeu o patrimônio.

    É ou não é verdade que os senhores conhecem senhoras que teriam atitude de desequilíbrio nesse caso? A começar por um conselho para o parente: “Não apareça tão cedo aqui!” E podia ser em termos muito mais quentes do que esses…

    Dona Lucilia, na noite do próprio dia em que aconteceu isso, quando ela ainda estava “digerindo” a péssima notícia, ele aparece e a cumprimenta. Ela disse boa-noite para ele, com calma, com normalidade, fê-lo sentar e pediu:

    — Fulano, explique-me um pouco como foi isso, porque eu não entendi bem.

    Ele deu a explicação, e ela depois me contou:

    — Coitado desse nosso parente, passou por um grande desgosto.

    Uma outra pessoa diria:

    — Que me importa o desgosto dele? Foi um relaxado. Se há uma coisa que um homem que tem uma procuração não pode fazer é deixar passar o prazo de vigência de um seguro contra incêndio. Ele está gravemente responsabilizado por isso, e agora deve entrar com o dinheiro dele para ressarcir o mal que me causou.

    Mas a resposta de mamãe seria:

    — Oh! coitado, ele tem muitos filhos. Nós podemos viver menos bem sem isso. Não vamos escangalhar a vida dele.

    Sofrer na Terra para chegar ao Céu

    É um equilíbrio com bondade, onde entra muito o coração, não um equilíbrio metálico; mas que não leva a bondade a dominar a justiça. Se esse procurador tivesse lesado terceiros em benefício dela, ela teria exigido que esse homem restituísse para a pessoa lesada tostão por tostão, inclusive com os juros devidos. Sem nenhuma dúvida.

    Assim eu poderia contar cem episódios, se houvesse tempo e se não tratasse de pessoas às quais alguém que tome conhecimento desses fatos possa vir a identificar, pois não quero estar difamando ninguém. Tenho certeza de que no Céu, onde ela se encontra, mamãe está aprovando a minha conduta.

    Vê-se, nesta fotografia, que é uma senhora que atingiu uma idade extrema. Ela estava com noventa e dois anos nessa ocasião, idade em que falecem os que morrem tarde. Foi uma pessoa que não exerceu nenhuma profissão. Entretanto percebe-se que ela carrega consigo um grande cansaço. Cansaço do quê? Em parte é o que nós poderíamos chamar o cansaço do equilíbrio.

    Cansa estar procurando o equilíbrio em tudo, e cumprindo a justiça em tudo. Levar uma vida inteiramente dentro dos Mandamentos é preparar-se para o Céu, mas ainda não é o Céu. Pelo contrário, é o sofrer na Terra para chegar até lá.

    Vemos aí o extremo cansaço de inúmeras dores, de incontáveis deveres cumpridos, de situações difíceis enfrentadas e vencidas sem a menor pretensão. Ninguém, olhando para ela, diria o seguinte: “Essa senhora se considera um colosso.” Nada, nem um pouco, nem passa pela cabeça dela isso. Por quê? Equilíbrio.        v

     

    Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 12/1/1994)
    Revista Dr Plinio 268 (Julho de 2020)

  • Prece contra o individualismo

    Ó minha Senhora e minha Mãe, por esta súplica desejo obter de vossa maternal e insondável misericórdia as graças necessárias para corrigir um defeito que tanto lamento ter.

    Considerando como o individualismo é uma atitude de alma oposta aos adoráveis ensinamentos e exemplos de vosso Divino Filho, e quanto ele se opõe a vossas sublimíssimas virtudes; ponderando que esse defeito já esteve gravemente presente na primeira Revolução eclodida nos altos páramos celestes, ao brado diabólico de “Non serviam”; tendo em vista que ele é profundamente oposto à doutrina e ao espírito da Santa Igreja Católica Apostólica Romana, única Igreja verdadeira, e, pelo contrário, característico da doutrina e do espírito de tantas heresias e movimentos revolucionários; suplico-Vos, Senhora e Mãe, do mais fundo da alma – pelos méritos do Sangue infinitamente precioso vertido por vosso Divino Filho em sua Paixão e Morte para resgatar o gênero humano, e pelos merecimentos insondáveis das lágrimas corredentoras que vertestes ao pé da Cruz, no alto do Gólgota –, que me alcanceis a força necessária para odiar com toda a alma o individualismo, o qual constitui o requinte desregrado do amor de si mesmo, levando o homem a sobrestimar loucamente suas próprias qualidades e a fechar orgulhosamente os olhos às suas carências.

    Nessas condições, a pessoa se deixa dominar pela ilusão de bastar-se a si própria e não precisar de Deus, nem de Vós, para combater vitoriosamente o extravio de sua inteligência, vontade e sensibilidade, e para levar a cabo a luta contra os adversários da Igreja e da Civilização Cristã. Por esse defeito, o homem aborrece o convívio de seus semelhantes e até de seus irmãos de vocação, sempre que este não se destine a lhe cantar continuamente as falsas glórias, e sente-se diminuído, humilhado e até combatido quando alguém lhe aponta faltas e dá santos conselhos para a conversão e a emenda.

    Tende pena, Mãe de Misericórdia, desse vosso pobre filho em cuja alma se instalou tão grande e repugnante miséria, e cravai profundamente em sua alma o ensinamento do Divino Redentor: “Aprendei de Mim que sou manso e humilde de coração, e encontrareis paz em vossas almas!” Dai-me essa paz, humildade e mansidão que caracterizam os verdadeiros combatentes nos séculos de Fé: os cruzados e a sublime guerreira que foi a virginal mártir Santa Joana d’Arc.

    Assim seja.

    Plinio Corrêa de Oliveira (Composta em 25/9/1991)
    Revista Dr Plinio 268 (Julho de 2020)

  • Homem da destra de Deus

    Santo Olavo II teve uma longa e acidentada existência, como a de outros Santos, fundadores da Idade Média. Foi um desses homens da destra de Deus, a quem a Providência faz mercê de uma força especial para realizarem obras de caráter extraordinário.

    Este Santo Rei da Noruega tornou-se o defensor da independência nacional, movido não por um patriotismo comum, mas por desejar a liberdade de seu país para a glória da Igreja, fazendo todo o possível para que sua nação fosse profundamente católica, aspirando aos bens temporais como meio para a glória de Deus e vitória dos interesses da Santa Igreja Católica.

    Se, como devemos esperar, a Noruega voltar algum dia ao grêmio da Igreja Católica, as tradições, o exemplo, as orações e o sangue de Santo Olavo terão, por certo, uma relação muito grande com essa conversão.

    Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 29/7/1965)
    Revista Dr Plinio 268 (Julho de 2020)

  • Igreja audaciosa, cheia de Fé, batalhadora

    A grande batalha dos povos não se trava fora das fronteiras da Igreja, mas dentro delas. Quando a Igreja está ereta, audaciosa, cheia de Fé, batalhadora, os adversários não são nada. Podem ter o ouro e o domínio que quiserem, podem inclusive matar os que são fiéis, não tem importância, se eles tiverem fervor, tudo vai para a frente.

    Todos os mártires romanos, desde a chegada de São Pedro à cidade eterna até o decreto de Constantino dando liberdade à Igreja Católica – portanto, séculos de martírio –, poderiam subscrever estas minhas palavras. Eles foram perseguidos, caluniados, calcados aos pés, enfim, fizeram de tudo contra eles. Porém houve fervor, vida interior, a Santa Igreja continuou, tornou-se invencível e o Império Romano ruiu pelo chão.

    Plinio Corrêa de Oliveira
    Revista Dr Plinio 267 (Junho de 2020)

  • O verdadeiro título de glória

    Além de ser pobre, escrofulosa, magérrima, com a mão direita deformada, Santa Germana Cousin era desprezada pelo pai e perseguida pela madrasta. Apesar disso, ela enfrentou todas as dificuldades com extrema dignidade porque estava segura de ter um valor: ser filha da Igreja Católica Apostólica Romana. O título “católico” é o que realmente tem importância; todos os outros são secundários.

     

    No dia 15 de junho a Igreja celebra a memória de Santa Germana Cousin. A síntese biográfica dela que vamos comentar é tirada de Louis Veuillot(1).

    Sua casa era um lugar de martírio e não de repouso

    Germana Cousin nasceu em 1579, em Vibrac, Toulouse, na época em que a França era assolada pelas guerras de religião.

    Uma época, portanto, de muita pobreza porque as guerras de religião impediam, naturalmente, o desenvolvimento da agricultura, e a escassez de víveres era muito grande.

    Era filha de Leôncio Cousin, pobre lavrador, e desde criança, quando perdeu sua mãe, sua vida foi um sofrimento constante. Magra, desnutrida, escrofulosa, tinha, além disso, a mão direita deformada. Sua aparência levou-a a ser rejeitada pelo pai, que nunca lhe manifestou o menor carinho e nunca impediu a cruel perseguição que sua segunda esposa movia à enteada. A casa paterna de Germana, portanto, para ela era um lugar de martírio e não de repouso. Sua madrasta repreendia-a constantemente, obrigando-a a dormir num estábulo sobre duras enxergas. Proibiu-a também de aproximar-se de seus oito irmãos.

    Germana, sem se incomodar, amava as crianças com carinho especial, servindo-as sempre que podia. Deus inspirou-lhe o amor ao sofrimento e por isso aceitava com alegria essas humilhações, acrescentando-lhe outras austeridades. Em toda a sua vida só se alimentou de pão e água.

    Aqui está um conjunto de dados que incutem muito respeito e admiração. Há determinadas figuras que nasceram para nos dar o exemplo da segurança sobrenatural em si mesma e não da segurança natural. Porque elas são, por desígnios da Providência, de tal maneira marcadas pela deformidade, por toda espécie de títulos que as colocam abaixo de todo mundo na ordem humana de valores, que bastariam para essas pessoas abrirem um buraco no chão e sumirem.

    Assim vemos uma pobre coitada, órfã de mãe, escrofulosa, magérrima, com a mão direita deformada, uma coisa que de si desfigura qualquer pessoa, mas que ainda prejudica mais quando ela é pobre e tem que trabalhar com suas próprias mãos, torna-se mais ou menos inútil.

    Extrema dignidade, sem nenhuma revolta

    Essa pessoa mora, então, na casa de seu pai. E, sinal supremo do desprezo que todo mundo tem a ela, o seu próprio progenitor como que não a reconhece por filha, não lhe dispensa carinhos como a uma filha e a entrega à sanha e ao desprezo dessa megera. Ela vivia como uma criada na casa do pai, dormindo numa dependência sobre dura enxerga e fazendo o papel de pastora.

    Ela podia, portanto, levada pela vergonha, pelo acanhamento, procurar fugir ou tornar-se uma revoltada. Não, ela se porta com extrema dignidade, aceita a situação em que está, não se revolta, procura agradar as crianças, filhos daqueles que a perseguem, e leva sua vida com simplicidade, segura de que ela tem um valor.

    É criatura humana batizada e, portanto, filha de Deus. E sendo filha de Deus não precisa mais nada para conduzir a paz bem alto diante de todos os outros. Ei-la, portanto, com modéstia e naturalidade diante desse dilúvio de manifestações de pouco caso, conduzindo tudo com espírito sobrenatural e superior à sua vida.

    Isso eu considero um lindo exemplo para nós compreendermos bem que não precisamos de títulos humanos para estar nos impondo ao respeito dos outros. Ainda quando nos desprezam, nós temos estes títulos: somos filhos de Deus, da Santa Igreja Católica e, a título especial, filhos de Nossa Senhora.

    Deus, em sua grandeza infinita, sente-Se agradado com nosso louvor. Ele deseja nosso amor, aceita-o e corresponde a ele. Isso basta. Todo o resto não é nada, não tem importância. O título de filho de Deus basta para tudo.

    Ufania de ser católico

    Conta-se o caso de uma filha de Luís XV que, se sentindo mal atendida por uma criada, disse-lhe com energia:

    — Você se esquece de que eu sou filha do Rei?

    A criada, a qual achava que a Princesa não estava com a razão, afirmou:

    — Vossa Alteza se esquece de que eu sou filha de Deus?

    É uma linda lição! Uma resposta que indica bem a segurança e a altaneria da pessoa a quem basta a sua posição de católica. Eu sou católico, achem dessa posição o que quiserem, riam como entenderem, admirem como desejarem, nada se acrescenta nem se tira à enorme segurança que tenho, à alegria fundamental que sinto, à ufania que experimento em ser filho da Santa Madre Igreja Católica Apostólica Romana.

    Não preciso mais nada. Isso me dá o título para eu me apresentar aos olhos de qualquer um com sobranceria. Não é necessário ser rico, inteligente, agradável, nem nobre ou qualquer outra coisa. Para eu ter a sensação da minha dignidade basta ser filho da Igreja Católica Apostólica Romana.

    É claro que se, além disso, eu tiver outros títulos melhor será. Mas não colocarei nenhum título ao lado deste. É melhor ser lixeiro católico do que rei protestante, ser mendigo escrofuloso, com a mão direita ou todo o corpo deformado, mas católico, do que o homem mais rico do mundo, o qual não pertence à Religião Católica. Quer dizer, o nosso grande título, a grande razão de nossa ufania é sermos filhos da Santa Igreja Católica Apostólica Romana.

    Vemos aqui a segurança, a paz, a tranquilidade feita de Fé de Santa Germana, diante de uma situação que dava para ela se acabrunhar.

    Eu creio que outra Santa que nos deu um grande exemplo disso foi Santa Joana de Valois. Também desprezada pelo pai, por todo mundo, e por fim repudiada pelo marido. Mas ela conduziu a vida com dignidade e serenidade. Fundou uma Ordem religiosa, governou muito bem o feudo que obteve depois de sua separação, morreu e recebeu a honra dos altares. Apesar de tudo quanto pudessem dizer dela, sendo católica bastava. Para a sua segurança, seu cartão de visita estava pronto: católica apostólica romana.

    É um título lindíssimo e essa ufania de ser católico é a raiz daquilo que Camões chamava “cristãos atrevimentos”. Quando tem essa ufania de ser católico, a pessoa se atreve, se lança, avança. Por quê? Não porque é mais na ordem humana das coisas; até talvez seja menos do que alguns. Mas o que tem importância é ser católico, ter recebido o sinal do Batismo na fronte. O resto é acessório, secundário.

    Agora, veremos os esplendores que a Divina Providência fazia para recompensar essa serva, a qual tanto se ufanava da sua dignidade de filha de Deus.

    Enquanto ela vai rezar, os Anjos cuidam do rebanho

    Germana era pastora.

    Pastor é um ofício poético, mas na Europa considerado como uma ocupação muito humilde. É propriamente tomar conta de bicho, não tem nada de técnico, veterinário. É apenas uma espécie de guarda de burros, vacas, carneiros, cabras. Embora perseguida pelos familiares, ela zelava com verdadeiro desvelo pelos seus carneiros.

    Conta-se que para ir à igreja deixava-os aos cuidados da Providência. Nunca nenhum animal extraviou-se ou ultrapassou os limites que ela estabelecia, marcando o chão com seu cajado; também nunca foram atacados por lobos.

    Vejam que cena linda: a pastora feia, trôpega e deformada, mas que tem contato direto com o Céu; Deus, Nossa Senhora e seu Anjo da Guarda falam com ela. Em certas ocasiões ela tem vontade de rezar e, por uma inspiração interior – porque sem uma inspiração isso não se compreende –, vai com o cajado e traça os limites exatos. E depois com certeza avisa: “Olhem, vocês não saiam daqui.” Quando ela volta, estão todos lá. Mas há também uma proibição para os lobos entrarem, e de fato nenhum lobo entra. Os Anjos ficam zelando pelo rebanho, enquanto ela vai rezar e agradar a Deus Nosso Senhor.

    A desprezada, a pisada, a humilhada vai à igreja e Deus opera um milagre. É hábito do Criador realizar milagres.  Entretanto Ele, na sua felicidade celeste inacessível, alegrar-Se com a companhia dessa pastora humilhada e desprezada por todo mundo causa-nos admiração.

    Notem quanto vale uma pessoa desprezada por um título injusto, mas que sabe carregar bem o seu desprezo.

    Vivia na pobreza, mas ajudava os pobres

    No campo, Germana estava sempre em união com Deus. O terço era sua oração constante, assim como a saudação angélica. Grande era sua devoção à Santíssima Virgem, à qual pedia coragem para levar avante sua vida tão difícil.

    Realmente é muito árduo levar avante uma vida assim. Porque é muito bonito pensar: “Ah, que beleza os carneirinhos, estou rezando as Ave-Marias, depois eu vou para o meu pobre catre.” Mas na hora de deitar no catre, sentir o frio, comer alimento ruim, aguentar a cara da megera quando, mentindo, contar para o pai que Germana tinha perdido uma ovelha, e o progenitor dar-lhe uma punição injusta, receber bem tudo isso e ainda agradar os filhinhos da megera, isso é muito poético, mas absolutamente não é fácil. É preciso ter força e ela sabia onde procurá-la: na oração, aos pés de Nossa Senhora. Porque exatamente na oração está a fonte de toda força.

    Ensinava o Catecismo às crianças da vizinhança e era a protetora dos pobres, para quem levava os restos de sua casa.

    Na realidade, aqueles que mais entendem de fazer esmola, em geral, são os pobres. As pessoas muito ricas dificilmente são esmoleres. As de fortuna média ou os pobres dão esmola.

    Eu conheço o caso curioso de uma senhora riquíssima. Ela possuía uma casa que ocupava um quarteirão inteiro num bairro importante de São Paulo, e na qual ela morava. Essa senhora mantinha boas relações com o ramo pobre de sua família.

    Entretanto, dois genros péssimos arruinaram a fortuna dela, fazendo-a cair numa pobreza igual ou maior que a dos seus parentes pobres. Então ela teve este comentário interessante: “Engraçado, não pensei que me tornando pobre fosse mudar tanto. Se eu soubesse que vocês estão passando as privações que hoje passo, quando tinha dinheiro teria ajudado vocês.” Isso diz muita coisa…

    Santa Germana era pobre, mas encontrava jeito de ajudar os pobres. Então levava víveres, restos da casa para socorrer os mais necessitados.

    Os pães se transformaram em flores

    Com essa pobre pastora reproduziu-se um dia o mesmo milagre de Santa Isabel de Portugal. Sua madrasta perseguiu-a, julgando que houvesse furtado alimentos da despensa.

    Podem imaginar que vida! Uma pessoa honestíssima e a megera:

    — Você roubou a rosca?

    — Não, não roubei.

    — Roubou! Onde é que está?

    Ao abrir seu avental, ao invés de pão, como previa, só encontrou flores raras, nunca vistas e de inigualável perfume.

    Aqui se faz referência ao famoso milagre de Santa Isabel. Ela não podia contar ao marido que estava ajudando os pobres. Um dia ele aproximou-se e perguntou: “O que você leva aí?” Ela disse que eram flores. Abriu o avental e os pães estavam transformados em rosas.

    Aqui se deu a mesma coisa para proteger Santa Germana contra a cólera da megera. É um fato de uma grandeza! Ela fica alta como uma estrela, toca com a mão nos astros, e a megera do tamanho de uma formiguinha enfezada e feia.

    Humilde, modesta e combativa

    Uma manhã Santa Germana não saiu, como de costume, para guardar seu rebanho. O pai foi encontrá-la morta sobre seu pobre leito. Era o ano de 1601, quando ela completava 22 anos.

    Agora vem a glorificação.

    O povo acorreu em massa ao seu enterro, pois histórias sem conta corriam a seu respeito.

    Dentro de casa, relegada a dormir num catre, sob a cólera da megera e o desprezo do pai. Gloriosa em toda a região e pisada entre os seus.

    Quarenta e quatro anos após sua morte seu corpo foi encontrado intacto, sendo reconhecida sua autenticidade pela mão deformada.

    Isso é muito bonito. Encontrar o corpo intacto é um dos elementos que favorecem o processo de canonização. Portanto, o caminho para a glória dos altares foi aberto para ela através da mão deformada, símbolo de sua aceitação da vontade divina. É uma lição muito bonita que está expressa nesse fato.

    Canonizada em 1867, no ano de 1901 iniciou-se em Pibrac a construção de uma grande basílica em sua honra.

    Que Santa Germana nos dê a graça de ter essa enorme segurança de que nosso verdadeiro e único título de glória é sermos filhos da Santa Igreja Católica Apostólica Romana. Que esta Santa pastora nos alcance esse amor à Igreja pelo qual não façamos questão de mais nada nesta vida a não ser pertencer à Igreja Católica.

    Ademais, peçamos que nos alcance a combatividade que ela certamente teve. Ela tão humilde, tão modesta, tão apagada, parece o contrário da combatividade. Mas sempre que alguém tem uma virtude extrema, possui também no outro extremo a virtude oposta. Só as pessoas assim são verdadeiramente combativas. Como só são pessoas verdadeiramente combativas aquelas que na hora da compaixão sabem também se compadecer.

    Então, vamos pedir-lhe que nos dê as virtudes necessárias para nosso estado, assim como ela teve as necessárias para o estado dela.       v

     

    Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 15/6/1967)
    Revista Dr Plinio 267 (Junho de 2020)

     

    1) Não dispomos dos dados bibliográficos da obra citada.

     

  • A História gira em torno dos eleitos

    Há um jogo das almas fiéis e infiéis, inclusive das vítimas expiatórias, que conservam ou degeneram as instituições. Em vista disso, Deus vai criando outras almas, suscitando vocações, dando graças para realizar seu plano, porque em sua infinita bondade Ele concedeu a algumas almas a honra de marcarem o rumo da História.

     

    Muitas pessoas, por causa do abuso da noção de misericórdia, formam uma ideia de vida espiritual completamente diferente do que ela é realmente. O que a vida espiritual tem de mais interno é a vida da graça em nós, uma participação criada na própria vida de Deus, recebida pelo Batismo. Esta é a graça santificante, perdida apenas pelo pecado mortal.

    Tanques de guerra e gases que vivificam ou matam

    Há também incontáveis graças atuais, dentro de toda uma escala de intensidades – desde as suficientes até as superabundantes –, por onde a pessoa recebe graças ora em maior, ora em menor profusão, seja por um efeito da justiça ou da misericórdia divina.

    Quando Deus resolve realizar suas grandes intervenções na História, as graças mais assinaladas e marcantes não são como esses favores comuns que Ele concede para cada indivíduo todos os dias, mas o Criador destina algumas pessoas que, por vezes, são até modeladas naturalmente para a tarefa à qual Ele as destina.

    Em atenção ao amor que Deus tem a essas pessoas – antes mesmo de tê-las criado, porque representam, dentro da sabedoria d’Ele, um papel especial nos planos divinos –, seja em virtude das atitudes delas mesmas, seja da correspondência ou incorrespondência daqueles chamados a rezar e a sacrificar-se por elas, essas pessoas podem estar dotadas de uma força de impacto na História que a leva avante.

    Para usar duas imagens bélicas, seria como um tanque de guerra que avança sobre um muro e o derruba, podendo atravessar até todo um quarteirão em linha reta. Essas pessoas são os tanques da História. Ou como os gases que, uma vez soltos, não há arma nem vedação que os detenha. Eles entram por todas as frestas, se insinuam e, neste caso, vivificam ou matam: destroem as instituições que não deveriam existir e vivificam as pessoas.

    Os eleitos são o eixo do amor de Deus…

    Então, Deus tem planos imutáveis que Ele realiza, pequem os homens quanto pecarem ou pratiquem os atos de virtude que praticarem; são planos que Ele traçou e executa. Os antigos sentiram esses planos e chamavam isso de fatalidade.

    Mas depois há planos que dificilmente Deus modifica. E se os modifica, fá-lo nos acidentes em parte, mas não no todo.

    Por fim, há planos que Ele de todo em todo abandona, por assim dizer entrega ao próprio destino. Isso tudo se entrecruza e se mistura dentro de uma aparente desordem, e precisa ser visto mais ou menos como no urbanismo, em que existem algumas avenidas que, dada a topografia, são necessárias à cidade, outras podem adaptar-se às circunstâncias, e outras são totalmente supérfluas.

    Tudo em função da glória de Deus e dos eleitos que, como um corpo, dizem respeito à glória d’Ele mais especialmente.

    Há dois modos de alguém demonstrar que tem um plano. Um é seguir no rumo retilíneo e chegar até o fim. Outro é, atravessando os piores e mais variados obstáculos, dirigir-se invariavelmente para o mesmo rumo. É uma forma de força do plano.

    Deus combina os dois métodos, às vezes aquinhoando regiamente de obstáculos alguns, para depois fazê-los brilhar mais esplendidamente, quase como sendo os autores do plano que realizaram.

    Entretanto o arqui-plano de Deus consiste em auferir do curso das coisas – para falar em linguagem humana – uma determinada quota de glória. Compreendendo bem que uma vez que o Onipotente criou seres inteligentes e livres em número incontável, dentre essas criaturas muitas haveriam de fazer o contrário do que Ele quer.

    Logo, estava na índole das coisas que aconteceria muito do que Deus não quer, como condição, por assim dizer, para haver Criação. E dentro da quota sem a qual a Criação ficaria sem seriedade, Ele teria que deixar a esse jogo uma flexibilidade maior ou menor, tirando dessa própria flexibilidade uma espécie de super-glória para os eleitos que são o eixo do amor d’Ele e o centro do plano. De maneira que, da existência do mal e da maldade que se efetuou, redunda um aumento de glória, quer para Ele, quer para os eleitos.

    …mas seus pecados pesam muito para que Ele modifique seus planos

    Por exemplo, tudo quanto aconteceu a São Miguel Arcanjo redundou para Deus num aumento de glória. E como as nossas coisas estão postas dentro do tempo, elas não são fulgurantes como as de São Miguel Arcanjo, mas se entrelaçam mantendo sempre uma constante: para os eleitos, os mais bem-amados de Deus, isso dá numa redundância de glória a Ele, de um jeito ou de outro.

    Sem dúvida, todos foram destinados ao Céu. Contudo, alguns têm uma vocação específica, uma providência especial e são diletos particularmente. Entretanto, se a pessoa dileta não enfrentar os obstáculos, dependendo dos desígnios divinos, da gravidade do pecado, caso não seja confirmada em graça, ela pode perder-se. Embora Deus possa ter pena dela e salvá-la “in extremis”.

    No entanto, se essa alma eleita recusar e se perder, Deus suscita – estou falando em linguagem antropomórfica – dentro da História outras almas que de algum modo compensam com vantagem. Quer dizer, nunca acontecerá que o poder de Deus para suscitar almas eleitas seja liquidado pelo adversário.

    Os eleitos, no sentido em que o foi o povo eleito e o é a Igreja Católica, ocupam um lugar muito importante nos planos de Deus, mas as ofensas por eles cometidas têm na justiça divina um papel muito grande. Deus é misericordioso com eles, mas seus pecados O ofendem especialmente e pesam muito para que Ele modifique seus planos.

    Às vezes, Deus suscita um vingador que destroça a confusão

    Então, a História toda gira em torno das gratidões e ingratidões dos eleitos. Muitos dos sinais sinuosos, espantosos da História, inclusive com o afundamento ou aparentes soçobros de instituições, estão relacionados com pecados cometidos nas próprias instituições, as quais, conforme sua correspondência ou incorrespondência à graça, ficam com uma certa liberdade, concedida por Deus, de traçar os planos da História, pairando sobre elas uma glória ou uma culpa extraordinária pelos rumos da humanidade.

    A Providência, de vez em quando, suscita um vingador dos planos divinos malbaratados, que não é necessariamente aquele que castiga, mas quem destroça a confusão. Esse, então, restabelece a clareza do rumo e as almas andam.

    Há, portanto, todo um jogo das almas fiéis e infiéis, inclusive das vítimas expiatórias, que conservam ou degeneram as instituições, e um conjunto de misericórdia e justiça do qual só Deus tem conhecimento. Então, Ele vai criando outras almas, suscitando vocações, dando graças para realizar um plano, porque em sua infinita bondade Ele concedeu a algumas almas a honra de marcarem o rumo da História junto com Ele.    v

    Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 26/1/1980)

     

  • A graça que habita a criança batizada

    Quando a criança é batizada, torna-se templo do Espírito Santo. À medida que vai amadurecendo, Deus acompanha o desabrochar de sua inteligência, vontade e sensibilidade. Já nos primeiros lampejos da razão começa a existir algo da noção de culpa e a possibilidade de um pecado, pois ela já tem livre-arbítrio e responsabilidade moral. Inicia-se, então, certa luta dentro da criança, que é a batalha travada por Deus com o demônio.

     

    Evidentemente, quando fui batizado eu não possuía consciência de mim mesmo, de maneira que não tenho a menor sombra de recordação do meu Batismo. Devo, como todas as crianças, ter chorado muito, e estou certo de que recebi a graça batismal porque todos a recebem quando são batizados. Isso é de Fé, de maneira que não tenho dúvida a esse respeito.

    A felicidade do Limbo e a do Céu

    A Doutrina Católica aconselha que a criança receba o sacramento do Batismo o mais cedo possível, entre outras razões porque pode acontecer que ela morra de um modo inopinado. Ainda que seja uma criança bem constituída e forte, ela pode falecer, por exemplo, devido a uma sufocação. E, se morrer sem ser batizada, não irá para o Céu, mas para o Limbo, que é um lugar de uma felicidade inteira, porém de segunda ordem.

    Para termos ideia do que seja essa felicidade, imaginemos o seguinte: uma pessoa vai morar em Versailles, no melhor dos apartamentos, no auge do luxo, do conforto, da boa mesa, e privando com o rei continuamente. Essa pessoa pode-se dizer que reuniu em torno de si vários elementos de felicidade. Não é uma felicidade perfeita, porque na Terra ela não existe.

    Mas podemos supor uma pessoa que, por desígnio de Deus, gozasse em Versailles de uma felicidade suprema: tivesse uma inteligência perfeita, uma vontade de ferro, uma sensibilidade muito proporcionada, harmoniosa, bem como todas as qualidades que tornam uma pessoa atraente e agradável. Ela seria, portanto, com exceção do rei, o centro da corte, que atrairia todo mundo em torno de si.

    Havia pessoas assim tão apreciadas na corte que ultrapassavam o monarca. O Rei Luís XIV, por exemplo, tinha um primo relativamente próximo que possuía o dom da conversa fascinante; chamava-se Príncipe de Conti. Quando o Monarca estava numa sala e entrava esse Príncipe, pelo protocolo ele precisava dirigir-se ao Rei e fazer uma profunda reverência, à qual o soberano respondia com um cumprimento superior e mais discreto. E se o Rei não lhe dirigisse a palavra, ele ia para qualquer canto da sala a fim de conversar com outras pessoas. Em pouco tempo Luís XIV estava quase sem gente em torno de si, porque o Príncipe de Conti sabia conversar de tal modo que as pessoas deixavam simplesmente o Rei e iam ouvi-lo falar.

    Uma das coisas que torna a nossa vida agradável é nos sentirmos agradáveis aos outros. O fato de as pessoas se regalarem com o Príncipe de Conti, desejarem e preferirem sua presença à do próprio “Rei Sol”, é mais do que ser Luís XIV, no meu modo de entender.

    Esse ramo da família real era muito capaz. Os Conti construíram um castelo para eles próprios, a uma distância não muito grande do Palácio de Versailles. O castelo foi ficando tão bonito que Luís XIV mandou um recado: “Proíbo-lhes aumentar o castelo ou pôr enfeites, porque deixa Versailles na sombra.” Vemos assim como eles sabiam fazer as coisas.

    Então, imaginemos um homem que, além de tudo quanto descrevi acima, tivesse o dom da conversa que o Príncipe de Conti possuía. Enfim, com um homem assim poder-se-ia imaginar um pouco o que seria a felicidade existente no Limbo.

    Mas a felicidade do Céu deixa o Limbo a anos-luz de diferença, porque no Paraíso Celeste a pessoa vê face a face a Deus que é infinito e, por assim dizer, dialoga sem cessar com cada um dos habitantes do Céu. Então, é uma felicidade perfeita, infinita, que com nada se pode comparar.

    Começa uma batalha no interior da criança

    Não se pode, por relaxamento, adiar o Batismo. Compreendemos, portanto, que uma criança, logo que foi batizada até iniciar o uso da razão, não se lembre de nada. Embora seja um templo perfeito do Espírito Santo, ela não começou ainda a ter aquela consciência da graça que adquire à medida que for amadurecendo e compreendendo melhor esse dom divino.

    Tal é o valor da graça que habita uma criança batizada, que houve um Santo – cujo nome não me lembro, e creio terem existido outros Santos que faziam isso –, o qual, encontrando uma criancinha recém-batizada, costumava osculá-la no peito, porque, dizia ele, era o tabernáculo do Espírito Santo.

    À medida que a criança vai amadurecendo, Deus acompanha o desabrochar da inteligência dela, bem como de sua vontade e sensibilidade. Nos primeiros lampejos da razão, já começa a existir alguma coisa da noção de culpa ou não culpa. E como tal, a possibilidade de um pecado, pois ela já tem livre-arbítrio e responsabilidade moral.

    Começa então certa batalha dentro da criança, que é a batalha travada por Deus com o demônio dentro de cada um de nós.

    Digamos, por exemplo, que uma criança esteja brincando em seu quarto. Sua mãe, que é extremamente carinhosa, bondosa, entra no cômodo, mas a criança está com mais vontade de brincar do que receber as carícias da mãe. Notando que seu filho tem pouco desejo de estar com ela, a mãe agrada-o ainda mais para ver se o atrai.

    A criança pode ter um pequeno ato de má vontade em relação à mãe, que é o ponto de partida de uma série de implicâncias que continuam até a morte.

    Pelo contrário, se a criança se vence, passa os braços em torno do pescoço da mãe, diz: “Oh, mamãe!” e beija-a, ela quebrou em algo uma unha do demônio que este queria cravar nela.  E, desta forma, ela começou a tomar uma atitude enérgica contra seus próprios defeitos, que pode ir até o extremo da velhice. Portanto, nos primórdios da vida espiritual já está presente alguma coisa que puxa a pessoa para o bem ou para o mal. Em geral, se prestarmos atenção, notaremos que toda a vida da criança é cheia de coisas dessas.

    Minha alma estava como que colada à alma de Dona Lucilia

    Recordo-me de que, sendo criança, restabelecendo-me de uma enfermidade, certo dia o médico disse à minha mãe:

    — Ele não está mais doente, mas deve ficar na cama para se preservar um pouco e recuperar forças – eu era um menino muito fraco. A senhora alimenta-o quanto puder, dê-lhe tais e tais remédios e amanhã ou depois ele estará bom. Mamãe ficou naturalmente contentíssima.

    Em minha infância, acompanhei isso a ponto de poder contar pormenores; eu tinha minha alma por assim dizer colada na alma dela. Não eram raciocínios que eu fazia, mas agia razoavelmente.

    Quer dizer, a retidão que o Batismo pôs em mim levava-me a querer o carinho de mamãe e a dedicar-me a ela como ela se dedicava a mim. Eu sentia uma alegria em estar com ela, como não tinha com ninguém. E, embora eu estivesse ainda abalado, se me dissessem: “Você ficando bom, Dona Lucilia vai fazer uma viagem”, eu preferia permanecer de cama me restabelecendo, e que ela não viajasse.

    Nessas circunstâncias, havia uma porção de atos de carinho dela para comigo, aos quais de um modo geral – não a cada um deles – eu deveria corresponder com afeto amoroso. De maneira que quanto mais ela se dava, mais eu me entregava a ela e a união de nossas almas começasse perfeitamente nesta ocasião, embora eu fosse um menininho.

    E posso dizer que se não andei perfeitamente – não me lembro de nenhuma falta, mas pode ter havido –, andei quase perfeitamente. Isso me ajudou muito a que, mais tarde, quando fui posto diante do fenômeno religioso na Igreja do Coração de Jesus, a minha alma estivesse retamente aberta para aceitar aquela temática, mais ou menos como uma planta que respira o ar bom e disso ela vive.

    Essa retidão preparou uma retidão muito maior: diante do Sagrado Coração de Jesus, do Coração Imaculado de Maria, da Liturgia católica, da Missa, do órgão, da Santa Igreja. Assim, passo a passo, Nossa Senhora me ajudou e me dispôs de maneira a que eu chegasse a ser, melhor ou pior, quem sou hoje.

     

    Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 25/6/1994)
    Revista Dr Plinio 267 (Junho de 2020)

  • O Redentor espera-me com um sorriso

    Considerem a mais santa das Comunhões havidas sobre a face da Terra: a Comunhão de Nossa Senhora. Ela estava abrasada no desejo de comungar. No entanto, o anseio d’Ela de receber Nosso Senhor era infinitamente menor do que o d’Ele de ser recebido por Ela, de tal maneira o amor divino é superior ao da criatura.

    Portanto, não devemos ir à Comunhão como quem vai submeter Nosso Senhor a um tormento, pensando: “Oh, Ele vai entrar na minha alma indigna!”

    De fato é indigna, e eu me confundo. Mas, de outro lado, maravilho-me pensando que, dentro do sacrário, o Divino Redentor está à minha espera com um sorriso; e que nesta minha alma Ele entra com verdadeira delícia, porque, apesar de indigna, ela se encontra em estado de graça. “Minhas delícias consistem em estar com os filhos dos homens” (Pr 8, 31).

    Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 5/1/1974)
    Revista Dr Plinio  267 (Junho de 2020)

  • Admiração desinteressada e inocente

    Precisamos admirar o que é superior a nós para sermos contrarrevolucionários. Se tivermos uma admiração verdadeiramente desinteressada, do fundo de nossas almas seremos solidários com a ordem reta das coisas e, portanto, com a homenagem que se deve a Deus. Ver alguém ser contrário a isso nos afeta mais do que se nos tivesse dito um desaforo. O suprassumo de nós mesmos é aquilo que amamos sem interesse mesquinho.

     

    Se prestarmos atenção no mundo de hoje, veremos o quanto ele é feito quase exclusivamente de interesse individual. Quando se trata de ser elogiada, a pessoa gosta; mas já não lhe agrada ouvir elogios dirigidos a outro. O mesmo se aplica a ganhar dinheiro, ter saúde, conforto, enfim qualquer vantagem: o indivíduo fica muito contente desde que seja ele o beneficiado.

    A inversão de valores no mundo atual

    Ora, por vezes, quando nos reunimos, embora sejamos de nações, formação cultural e educação tão diversas, vibramos de alegria ao celebrarmos as glórias alheias, considerando a vida e os feitos de diversos personagens históricos. Qual a razão dessa alegria?

    O ser humano foi feito para crescer, tanto na alma quanto no corpo. De maneira tal que do próprio Menino Jesus diz o Evangelho que Ele “crescia e Se fortalecia, enchia-Se de sabedoria” (Lc 2, 40). Ao ler isto, tem-se a impressão do Divino Infante crescendo, florescendo, da infância delicada e sacrossanta do presépio para a adolescência e a força da idade madura, em que Ele iria carregar o lenho.

    Essa transformação gradual, dia a dia, em que Ele cada vez mais se transformava de flor em cruz, de encanto em esplendor de sacrifício, era uma coisa que aumentava a formosura varonil d’Ele cada vez mais; dava-Lhe aquela forma superior de beleza que é o charme, mas o charme do varão forte, varonil, empreendedor, sério, seguro, porém tão delicado, meigo, paterno, de tanta ternura, que quase não se sabia como conciliar uma qualidade com outra. Isso era no Corpo, mas sobretudo na Alma.

    A maior parte das pessoas pensa que a alma é uma espécie de radar feito para captar as necessidades do corpo e atendê-las, que ela existe para o corpo. Segundo esta concepção, o homem vive para fazer negócios bons a fim de comer. Então, a inteligência tem como função encontrar comida.

    Ora, esse faro até cachorro ou um bicho pastando tem também. Para isso não é preciso possuir alma. Entretanto, a grande maioria das pessoas concebe as coisas assim. Formou-se e vai seguir tal carreira para quê? Ganhar dinheiro para poder comer, beber e dormir.

    Então o homem não é senão um bicho mais complicado do que os demais e, enquanto tal, inferior aos outros animais. Porque se um boi, sem diplomas, encontra comida, o homem é apenas um bicho mais complicado do que o boi.

    Nós vemos, então, como é absurdo admitir que o animal é mais do que o homem e a vida do animal mais perfeita do que a humana. O intelecto não pode ter como finalidade principal a manutenção do corpo. Contudo, se analisarmos o papel dado à alma no mundo contemporâneo, qual o interesse da maioria das pessoas pelos bens do espírito e pelas solicitações do corpo, notaremos uma desproporção arrasadora, simplesmente. As pessoas cuidam do corpo e a alma fica completamente de lado. É uma inversão de valores, por onde aquele que deveria ser rei é o servo.

    Alegria do relacionamento entre almas com qualidades diversas

    Pois bem, há um instinto na alma humana profundo, chamado instinto de sociabilidade, que faz com que os semelhantes se procurem. Este instinto também leva o homem a alegrar-se e a relacionar-se quando nota em alguém qualidades aparentemente opostas às dele, mas que o completam harmonicamente.

    Imaginem Carlos Magno preparando os planos para uma invasão em terras de infiéis.

    Sozinho na sua sala, caminhando de um lado para outro com passos firmes e cadenciados, sobre um chão de mármore ou de granito polido, está o Monarca de barba florida. O recinto, ainda com influência românica, possui arcadas que dão para um pátio interno onde há um pequeno chafariz sobre o qual pousa um pássaro que começa a saltitar. O Imperador interrompe seu caminhar, olha o passarinho e sorri amavelmente.

    O passarinho é tão diferente dele! Entretanto Carlos Magno não olhou apenas para a ave, mas sentiu suas próprias vastidões interiores e compreendeu melhor a si mesmo.

    O Imperador senta-se, manda vir um pouquinho de vinho e diz:

    — Chame Alcuíno, meu ministro e conselheiro. Quero expor-lhe os planos de uma universidade e de uma batalha, porque as duas coisas eu resolvi agora.

    O homem se completou.

    Entra Alcuíno, monge famoso que organizou a renovação da cultura católica ocidental como ela se desenvolveu na Idade Média; foi o Carlos Magno da cultura. Podemos imaginá-lo como um homem venerável, de rosto comprido, fino, olhar que fita do fundo de arcadas oculares onde olhos pequenos e pretos dardejam, ou olhos azuis e inocentes sonham.

    Alcuíno se inclina ante Carlos Magno, que faz um gesto e diz:

    — Sentai-vos!

    O sábio Monge pede licença para ficar ajoelhado, ao que o Monarca responde:

    — Sois clérigo. Não é bom que um clérigo se ajoelhe diante de um leigo. Sentai-vos!

    Alcuíno afirma:

    — Por vossa ordem e em obediência a Deus, que deseja que o clero seja reverenciado, senhor, eu me sento.

    Começa a conversa durante a qual Carlos Magno apresenta as metas gerais para uma universidade. Alcuíno ouve embevecido e pensa: “Que largueza de pensamento, que homem! Vejo todo um continente formando-se atrás da fronte desse Imperador. Que felicidade ter conhecido Carlos Magno!”

    Dali a pouco o Monarca vai falando menos e o Monge toma a palavra. Enquanto a voz de Calos Magno lembra espadas e escudos que se entrechocam, a de Alcuíno remonta a sinos que tocam. Diz o douto conselheiro:

    — Senhor, para realizar as vossas imperiais e cristianíssimas intenções, que julgo ter bem apreendido, tenho o intuito de vos propor tais matérias, e tal outra tem tal riqueza…

    De repente é Carlos Magno quem está entrando pelo mundo da cultura e do saber, e pergunta algo a respeito de Aristóteles, Santo Agostinho, São Jerônimo. Depois quer saber alguma coisa sobre o Concilio de Niceia, tal pormenor concernente à virgindade da Mãe de Deus, e tal outro detalhe a propósito da união hipostática. Nesse momento, Carlos Magno está longe… Não pensa mais no passarinho, nem na batalha contra os germanos ou os árabes. Ele tem apenas diante de si o mundo da cultura e a alma de Alcuíno que se desdobra imensa diante dele, sabendo tudo, explicando tudo. Carlos Magno virou passarinho e saltita na cultura de Alcuíno, encantado!

    É natural que isso tenha acontecido desse modo, porque assim é a alma humana. Carlos está diante de quem tem mais cultura do que ele. O passarinho o encantava por ser pequenino, e despertava na alma dele todas as afinidades harmonicamente opostas que o grande tem com o pequeno. Agora é o grande que tem alegria de sentir-se pequeno ao considerar alguém maior do que ele, não absolutamente falando, mas num ponto.

    O grande Monarca tem a alegria de admirar e de crescer à medida que admira, saindo dessa conversa mais elevado de espírito e pensando: “Agora sei tal coisa e tal outra. Hoje não conquistei nenhuma província, mas fiquei conhecendo Santo Agostinho. Quando morrer não conduzirei comigo uma província, mas levarei para o Céu o que eu soube e admirei da ‘Águia de Hipona’. Que grande dia este em que conversei com o Monge Alcuíno!”

    Ao admirar os que lhe são iguais o homem tende à sua plenitude

    Imaginemos agora outra cena que historicamente não se deu, mas poderia ter-se dado: o encontro dos dois imperadores, do Oriente e do Ocidente, em Constantinopla.

    Vendo a cidade maravilhosa na praia do Bósforo, parado num cais o Imperador do Oriente espera a chegada de Carlos Magno.

    Chega a hora em que desce do navio uma passarela com um tapete sobre o qual Carlos Magno caminha. Ambos de coroa na cabeça se cumprimentam, com ar de um rei que saúda outro rei. Nesse aperto de mão de dois monarcas cristãos, Oriente e Ocidente, eles sentem a presença de Jesus Cristo e estreitam a amizade. Carlos Magno vê seu igual como seu irmão. Sua alma cresceu numa outra dimensão. De igual a igual, cada um deles é mais ele mesmo.

    Houve interesse nisso? Não, mas houve vantagem. Essa alma tinha necessidade disso para crescer inteiramente. Todo ser vivo tende à sua plenitude, e Carlos Magno ganhou plenitude no que ele tinha de mais essencial nesses três episódios de sua vida. Ele ficou mais pleno, mais ele mesmo.

    Voltando de Constantinopla, algum escudeiro do grande Carlos poderia dizer a alguém que não viu a cena: “Vós não sabeis o que é glória! Vós conheceis um imperador só – Carlos, o Grande – tratando com os que são inferiores a ele. Mas não vistes a glória de nosso Imperador quando ele tratou com um igual. Tinha-se a impressão de um arco-íris que ia de um ponto a outro! Aquilo é glória, quando se viu a soma dessas duas majestades altivas e cordiais entre si. Como é grande isso!”

    Sem dúvida, houve vantagem para quem presenciou isso porque cresceu. Mas é preciso ter um espírito tal que se queira isso ainda que não houvesse vantagem; pela homenagem desinteressada e encantada em relação àquilo que é maior, igual ou menor em relação a nós.

    Quando admiramos algo superior a nós, prestamos um ato de culto a Deus

    Para o mundo contemporâneo esta posição é uma aberração, pois o princípio no qual se baseiam os pressupostos de quase todo mundo hoje em dia é: o que não diz respeito a mim, não me move.

    Ora, o princípio que apresento é o contrário: movo-me para conhecer e admirar algo que não sou eu, mas um outro em relação ao qual me coloco numa posição de alegria porque ele é quem é, independente de pensar em mim.

    Se isso parece absurdo para a mentalidade hodierna, existiu um ser mais inteligente do que todos os homens que houve, há e haverá até o fim do mundo, que também pensou do mesmo modo que a maioria das pessoas de hoje: Lúcifer.

    Com efeito, é próprio à criatura, por não ser ela a fonte de seu próprio ser, viver para quem a fez. Logo, o centro de nosso ser está fora de nós, é o nosso Criador.

    Imaginem que um escultor esculpisse uma estátua e, miraculosamente, desse-lhe a vida. E tão logo ela acabasse de ser esculpida, dissesse ao seu autor:

    — Até logo, vou embora.

    O escultor lhe passava um laço e diria:

    — Sem-vergonha! Eu te fiz, tudo o que há em ti foi dado por mim, e vais embora? Vou te liquidar, não existirás mais.

    Sendo o autor da estátua, o artista tem o direito de servir-se dela. Pois bem, se isso é assim do escultor com a estátua, quanto mais de Deus para conosco. Eu nada era quando Deus resolveu que existisse um Plinio. Ele criou a minha alma; devo, portanto, submeter-me a Ele.

    De fato, quando admiramos algo superior a nós, estamos, no fundo, prestando um ato de culto a Deus. Admirar é a postura normal de nossa alma.

    Os contrarrevolucionários vivem da admiração

    Quando o homem está na postura normal ele sente bem-estar. Mas o bem-estar é um reflexo muito apreciável, porém colateral da ordem que está nele. Por exemplo, um auditório precisa ter cadeiras confortáveis para que os ouvintes se esqueçam do corpo e possam prestar atenção na conferência. Os acolchoados, os braços da cadeira postos a uma altura adequada, o apoio e a distensão que o corpo recebe evidentemente produzem um certo bem-estar. Entretanto, ninguém diria: “Eu vou agora ao auditório para sentar numa cadeira.” A pessoa vai para participar de uma reunião. A posição adequada produz, colateralmente, um bem-estar.

    Assim também a própria felicidade que o entusiasmo produz é, ainda ela, secundária em relação a essa admiração desinteressada e cheia de amor que devemos ter para com Deus.

    Santa Teresa de Jesus exprimiu isso de um modo magnífico, quando disse que queria amar a Deus de tal maneira que “ainda que não houvesse Céu, eu Vos amaria, e ainda que não houvesse Inferno, eu Vos temeria”. Quer dizer, “independente de tudo, por serdes Quem sois, eu Vos amo quanto posso e lamento não ter capacidade de adorar ainda mais.”

    No “Gloria in excelsis Deo”, que se reza na Missa, há um momento em que se diz “Gratias agimus tibi propter magnam gloriam tuam”: nós vos damos graças, ó Deus, por vossa grande glória. Não é minha glória, mas a d’Ele.

    Consequentemente, quando vemos que alguém não dá a Deus a glória devida, não apenas porque não O admira, mas inclusive blasfema contra Ele, nossa alma é atingida no seu cerne. Se tivermos uma admiração verdadeiramente desinteressada, é do próprio fundo de nossa alma que seremos solidários com a ordem reta das coisas e, portanto, com a homenagem que se deve a Deus. Por isso, ver alguém ser contrário a isso é mais do que se nos tivesse dito um desaforo, roubado de nós um objeto ou lançado contra nós uma calúnia. O que foi atingido vale, para nós, muito mais. Não por ser interesse nosso, mas porque o suprassumo de nós mesmos é aquilo que amamos sem interesse mesquinho.

    Há, pois, um entrechoque de revolucionários que se negam a admirar e contrarrevolucionários que vivem da admiração. Entretanto por detrás dessa luta há outra que se trava no interior de cada um de nós entre Deus e o demônio, entre a Virgem e a serpente, de maneira que somos um campo de batalha.

    Para atuarmos nesses combates, tanto o externo quanto o interno, a Divina Providência nos concede auxílios maravilhosos. Um deles é a graça, participação que o homem tem na própria vida de Deus. A graça é uma criatura, mas ela nos faz participar da vida do Criador e confere à alma forças que estão na linha da sabedoria, da energia, da sagacidade e de todo o esplendor divinos. E isso nós aplicamos na luta também. Não é, portanto, apenas a força natural.

    Dentro de nosso campo de batalha interior os Anjos da Guarda são o auxílio poderoso

    Outro auxílio poderoso são os nossos Anjos da Guarda. Embora sejam tão superiores a nós que constituam os nossos arquétipos, nessas batalhas eles estão para nós como os escudeiros em relação aos cavaleiros.

    Por vezes, os Anjos da Guarda são representados naqueles quadrinhos encantadores, onde aparece um Anjo ajudando uma criança a não cair da bicicleta, por exemplo. É verdade, respeito enormemente, mas não é a função primordial do Anjo da Guarda. Sua principal missão é ajudar-nos a vencer a Revolução dentro e fora de nós, e sermos inteiramente contrarrevolucionários. Somos os combatentes, e ele nos dá conselhos e forças enquanto lutamos.

    Quando somos fiéis à graça e à ação angélica, no meio dessa batalha há algo em nossa alma que entra como um coro, uma orquestra de guerra. Por outro lado, se pecamos começa a coaxar um sapo ou grunhir um porco. É o demônio que faz a sua casa naquele que caiu no pecado. E nós, só pelo fato de estarmos em pecado, já passamos a lutar em favor do demônio. Embora nada façamos, o nosso existir em estado de pecado nos inscreve no lado do adversário. Donde a necessidade de, o mais cedo possível, sair dessa situação e voltar ao estado magnífico e diáfano da graça, onde nos transpomos de um exército para outro, e de anjos malditos passamos a ser novamente Anjos benditos.

    Quiçá algumas pessoas colocadas diante das verdades acima expostas terão suas almas divididas em duas zonas opostas. Uma, luminosa, clara, alegre, porque ouvir alguém falar daquilo que merece todo o entusiasmo, ou seja, de Deus, de Nossa Senhora, da Santa Igreja Católica torna a alma límpida, leve, satisfeita.

    A outra zona é obscurecida por interesses mesquinhos: vontade de fazer carreira, de ganhar dinheiro, de aparecer, de ser importante. Isso deixa a alma escura, pesada, abatida, arfando e pensando: “Quando me virão o dinheiro e o prazer que eu quero?” Se vierem, essas pessoas farão o mesmo que realizam todos aqueles que possuem essas coisas: quando a mão está bem cheia, deixam cair no chão porque de nada servia aquilo tudo. Essa é a realidade.

    Peçamos a Nossa Senhora a admiração desinteressada e inocente, ponto de partida invencível de todo o ódio necessariamente fulminante, esmagador e vitorioso contra a Revolução.

     

    Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 27/10/1979)
    Revista Dr Plinio 267 (Junho de 2020)