site

Autor: Bruno

  • Fidelidade perfeita, humilde e despretensiosa

    Fundador, doutor e grande escritor, Santo Afonso atingiu os píncaros da sublimidade na inação, na oração e na dor. Não somente na dor física, mas sofrendo pelas aflições, tristezas e desmoronamentos que se operavam na Igreja Católica. Ele media bem o inconveniente terrível dos inimigos internos da Igreja, e não hesitava em chamá-los de Judas. Santo Afonso é um exemplo de fidelidade perfeita e sem jaça, sem esmorecimento, nem conformes, abnegada, humilde, despretensiosa!

     

    No primeiro dia de agosto a Igreja comemora a festa de Santo Afonso Maria de Ligório, Bispo e Doutor da Igreja. Consideremos alguns dados a respeito de sua vida (1).

    Uma preciosa existência coroada por uma morte prolongada sobre a cruz

    De nobre família, foi grande devoto da Bem-Aventurada Virgem Maria. Doutor por excelência da Moral católica, que fora falseada pelo jansenismo. Fundador da Congregação do Santíssimo Redentor, viu-se excluído dela pela Santa Sé mal informada.
    Os últimos anos de sua vida Santo Afonso Maria passou-os em casa dos redentoristas em Nocera. Desde então, sua vida foi apenas uma morte prolongada sobre a cruz. Estava velho, enfermo, sofrendo tentações violentas. Sua grande devoção era ao Santíssimo Sacramento e também à Virgem Mãe de Deus. Até então tinha pregado todos os sábados ao povo as virtudes de Maria, mas foi proibido de continuar pelo seu médico e seu confessor.O que mais o preocupava era a glória de Deus e os males da Igreja. Muitas vezes se oferecia em sacrifício por uma e por outra intenção. Tendo sabido que os jesuítas tinham se estabelecido na Rússia e na Prússia, não deixava de dar graças a Deus. “Afirma-se que eles [jesuítas] são cismáticos, dizia, mas não é justo. Sei que o Papa os reconhece como membros da Igreja e os protege. Roguemos a Deus por estes santos religiosos, porque o seu instituto é uma obra favorável ao bem das almas e da Igreja. Cismáticos, cismáticos, o que é isso? O Papa Ganganelli foi instrumento de Deus para os humilhar, e Pio VI é também instrumento para os exaltar. Roguemos a Deus e ele não os deixará de abençoar.”

     

    Ficava profundamente emocionado quando sabia que alguns espíritos se mostravam incrédulos ou dispostos a se tornarem tais. Seu pesar era ainda maior ao saber do triunfo dos jansenistas. “Pobre sangue de Cristo, calcado aos pés e desprezado – repetia ele – e, o que há de pior, desprezado por pessoas que se dizem chamadas a restaurar a pureza da doutrina e o fervor dos primeiros fiéis. Por um beijo, Judas entregou Jesus Cristo, e também por um beijo eles traem Jesus e as almas. É um veneno oculto, dão a morte antes que se perceba.”

     

    Introduzido na glória celeste com uma vida carregada de méritos

    Quantos ensinamentos dentro desta ficha! Em primeiro lugar, o estado sacrifical de Santo Afonso de Ligório. Um fim de vida que era aflição e miséria, ele não podia mais fazer outra coisa senão sofrer, e esta foi provavelmente a parte mais preciosa de sua existência. Ele que tinha sido fundador, doutor, grande escritor, sublimava sua vida morrendo pregado na cruz para nos ensinar que a oração e o sofrimento valem incomparavelmente mais do que todas as obras, e quando um homem vive para rezar e sofrer, ele tem uma vida fecundíssima inteiramente justificada; enquanto que alguém, embora faça toda espécie de obras, mas não reza e não sofre é um homem inútil e, como tal, nocivo. É este o ensinamento que daí se desprende.
    É claro que Nossa Senhora quis que esse grande Santo continuasse vivo para a sua alma chegar aos píncaros da sublimidade, e que esses píncaros fossem atingidos na inação, na oração e na dor. Não somente dor física, mas a que tanto devemos pedir: a dor pelas aflições, tristezas, pelos desmoronamentos que se operam na Igreja Católica.

    Naquele tempo, a Santa Igreja estava sendo preparada para uma convulsão, a Revolução Francesa, e era necessário que o Corpo Místico de Cristo evitasse essa catástrofe ou pelo menos se preparasse convenientemente para ela. E Santo Afonso de Ligório, de seu leito de dor, comentando cada apostasia, sondando e lamentando as devastações perpetradas pelos jansenistas, mais preocupado com as chagas da Igreja do que com as suas próprias feridas, considerava essa real e trágica situação.
    Quando sua alma chega à inteira crucifixão, dá-se com ele o que ocorreu com Nosso Senhor Jesus Cristo: o momento do consummatum est. Santo Afonso então foi chamado e entrou para a glória celeste com a vida carregada de méritos. Isto é viver, isto é morrer!

    Quantos Judas temos em torno de nós?

    Ele media bem o inconveniente terrível dos inimigos internos da Igreja, e não hesitava em chamá-los de Judas, considerando que eles combatem a Igreja por dentro, atraiçoando-a como Judas traiu o Divino Mestre; e Santo Afonso gemia por causa dessa traição.
    Quantos Judas temos em torno de nós? Em outros tempos, poder-se-ia afirmar que os dedos da mão bastavam para contar os Judas que eram conhecidos. Entretanto em nossos dias devo dizer outra coisa: os dedos da mão, em determinados setores, talvez fossem demasiados para contarmos quem não é Judas. Esta é a realidade, ao menos por omissão, superficialidade de espírito, falta de generosidade, de dedicação.
    Nesta situação, como nós devemos ter uma dor maior pelo mal que padece a Igreja Católica do que teve Santo Afonso Maria de Ligório! Se ele, com muito menos, sofreu tanto, que direito tenho eu de, por exemplo, considerar como o grande acontecimento do dia tal coisinha que se passou comigo, e ferver, arder, aborrecer-me? O que é isso em comparação ao sofrimento da Igreja? Não é nada. Se eu elevasse a minha alma até a consideração das dores da Igreja Católica, eu passaria sobre tudo isso desapegado, desprendido, aceitando tudo o que fizessem contra mim, ainda que os outros não tivessem razão.
    Mas tal é a debilidade da natureza humana que muitas vezes isso não é assim, e nós devemos preparar nossas almas para que sejam cada vez mais desse modo, dispostos a toda humilhação, a toda incompreensão, a aceitar o incompreensível se for preciso, para num ato de suprema lucidez conformarmo-nos com tudo e cumprirmos nosso dever de todos os modos. É isto que Nossa Senhora pede de nós.

    Embora fracos, sejamos fiéis!

    Por outro lado, vemos como Santo Afonso Maria de Ligório se condoía com o Sangue que Nosso Senhor Jesus Cristo derramou inutilmente. Há uma frase no Antigo Testamento, mas que se refere profeticamente ao Divino Redentor: Quæ utilitas in sanguine meo? – Qual a utilidade de meu sangue? (Sl 29, 10). Como se Ele dissesse: “Eu derramei todo o meu Sangue, e até o que restava de água e Sangue em meu Coração, mas afinal de contas por utilidade de quem? A quem aproveita, quem deseja isto?” Então Santo Afonso tem esta expressão: “Pobre Sangue de Cristo!” Quando presenciamos as abominações que se veem hoje, somos também chamados a dizer: “Pobre Sangue de Cristo…”

    Para nós só há uma consolação: a de termos, pelo menos, a possibilidade de utilizar o Sangue de Cristo e as lágrimas de Maria em nosso favor, pedindo que Eles tenham pena de nós e façam com que nossa generosidade seja uma reparação a tantos ultrajes. De maneira que do alto do Calvário Jesus e Maria nos sorriam e encontrem alguma alegria na nossa fidelidade. E, embora fracos, sejamos fiéis de uma fidelidade perfeita e sem jaça, sem esmorecimento, nem conformes, nem condições, abnegada, humilde, despretensiosa! Eis o que devemos ser, mais do que nunca, nesta hora. É este espírito de fidelidade que nós precisamos pedir a Santo Afonso Maria de Ligório.v

    (Extraído de conferência de 2/8/1967)

    1) Não dispomos dos dados bibliográficos da obra citada.

  • Escudo da Igreja e gládio contra os demônios

    Suscitado por Deus para precipitar no inferno os demônios, proteger a Igreja e os homens contras as investidas diabólicas, São Miguel Arcanjo, cavaleiro arquetípico da milícia celeste, é escudo e gládio em defesa dos planos divinos.

     

    A respeito de São Miguel Arcanjo temos uma pequena nota:
    São Miguel, Príncipe da milícia celeste, na batalha que houve no Céu combateu os anjos rebeldes. Compete-lhe continuar essa luta para nos livrar do demônio. Dele dependem os Anjos da Guarda. É o Anjo protetor da Igreja e o que apresenta ao Padre Eterno a oblação eucarística.

    Cavaleiro leal, forte, puro e vitorioso

    Eu chamo a atenção para o fato de que São Miguel comandou a luta contra o demônio e o precipitou no inferno e, além disso, é o chefe dos Anjos da Guarda dos indivíduos e das instituições. Ademais, é ele mesmo o Anjo da Guarda da Instituição das instituições, que é a Santa Igreja Católica Apostólica Romana.
    Ele tem, portanto, uma função tutelar a respeito da qual podemos nos perguntar que relação há entre a sua missão, derrubando no inferno os que se levantavam contra Deus Nosso Senhor, e a proteção por ele dispensada à Igreja e aos homens neste vale de lágrimas, nesta arena que é a vida.
    Estas duas missões se concatenam. São Miguel defendeu a Deus que quis servir-Se dele como seu escudo contra o demônio, e quer que ele seja também o escudo da Santa Igreja e dos homens contra as investidas diabólicas. Porém, um escudo que é, ao mesmo tempo, um gládio. Portanto ele não se limita a defender, mas derrota e precipita no inferno. Eis a dupla missão de São Miguel.
    Por causa disso São Miguel era considerado na Idade Média como o primeiro dos cavaleiros, o cavaleiro celeste. Ideal e perfeitamente leal, forte, puro, vitorioso como um cavaleiro deve ser, pondo toda a sua confiança em Deus e em Nossa Senhora.

    É, portanto, esta figura admirável de São Miguel que, vista assim, devemos considerar enquanto sendo nosso aliado natural nas lutas, porque não queremos ser outra coisa senão homens que executam, no plano humano, a tarefa de São Miguel Arcanjo, ou seja, defender a honra de Deus, a glória de Nossa Senhora, a Igreja Católica, a Civilização Cristã, mas em nível de contraofensiva, de maneira a prostrar no chão o império do demônio e a estabelecer nesta Terra o Reino de Maria.
    Há, por conseguinte, uma afinidade enorme com nossa missão e procedem muito bem aqueles dentre nós que queiram constituir São Miguel Arcanjo seu especial patrono.

    “Para a frente, não esmoreçam, ataquem!”

    Em Anna Catarina Emmerich1, Visões e Revelações completas, encontramos os seguintes dados a respeito de São Miguel:
    Vi novamente a Igreja de São Pedro com sua grande cúpula. Sobre ela resplandecia o Arcanjo São Miguel vestido de cor vermelha, tendo uma grande bandeira de combate nas mãos.
    A Terra era um imenso campo de batalha.
    Os verdes e azuis lutavam contra os brancos. Estes, sobre os quais reluzia uma espada de fogo, parece que iam sucumbir.
    Nem todos sabiam por qual causa combatiam.
    A Igreja era de cor sangrenta como a roupa do Arcanjo.
    Ouvi que me diziam: “Terá um Batismo de sangue. A Igreja vai ser purificada no sangue do martírio e da perseguição.” Quanto mais se prolongava o combate, mais se apagava a viva cor vermelha da Igreja e se tornava mais transparente.
    A purificação ia fazendo dela algo de diáfano, de puro.
    O Anjo desceu e se aproximou dos brancos. Estes adquiriram grande coragem sem saber de onde lhes vinha. O Anjo derrotou os inimigos que fugiram em todas as direções. A espada de fogo que estava sobre os brancos desapareceu.
    Era uma espécie de ação diabólica, de maldade, uma coisa assim que oprimia os brancos.Em meio ao combate, aumentava o número dos brancos. Grupos de adversários passavam para eles. E numa ocasião passaram em grande número. Sobre o campo de batalha havia, no espaço, legiões de Santos que faziam sinais com as mãos, diferentes uns dos outros, porém animados do mesmo espírito.

    São sinais que exortavam: “Para a frente, avancem, não esmoreçam, ataquem!”, enquanto os bons combatem embaixo sob esse sopro. É, portanto, o Céu inteiro aberto para os bons, e estes vencendo os maus para a implantação do Reino de Maria.

    Senso da bem-aventurança

    Temos também uma ficha de Dom Guéranger a respeito da vocação contemplativa dos Anjos:
    Assim, a Igreja considera São Miguel como o mediador de sua prece litúrgica. Ele se mantém entre a humanidade e a divindade. Deus que distribui, com uma ordem admirável, as hierarquias visíveis e invisíveis, emprega por opulência, para louvor de sua glória, o ministério desses espíritos celestes que contemplam sem cessar a face adorável do Pai, e que sabem, melhor do que os homens, adorar e contemplar a beleza de suas perfeições infinitas.
    Mi-Ka-El: quem como Deus? Este nome exprime por si só, em sua brevidade, o louvor mais completo, a adoração mais perfeita, o reconhecimento mais inteiro da transcendência divina e a confissão mais humilde do nada da criatura.
    Modelo, portanto, de humildade. Porque quem exclama que ninguém é como Deus, afirma que não é nada. E esta é a humildade perfeita.
    A forma de humildade própria do cavaleiro é esta: Deus é tudo e ninguém é nada. Agora, a partir disto vamos conversar.

    Também a Igreja da Terra convida os espíritos celestes a bendizer o Senhor, cantá-Lo, louvá-Lo e bendizê-Lo sem cessar. Esta vocação contemplativa dos Anjos é o modelo da nossa, como nos faz lembrar o belo prefácio do Sacramentário de São Leão: “É verdadeiramente digno render graças a Vós, que nos ensinais por vosso Apóstolo que nossa vida é dirigida aos Céus; que com benevolência quereis que nos transportemos em espírito ao lugar onde servem esses que veneramos, especialmente dirigirmo-nos para essas alturas na festa do Bem-Aventurado Miguel Arcanjo.”
    Aqui está um traço da devoção aos Anjos que é preciso muito notar. Os Anjos são habitantes da corte celeste, onde vivem na eterna contemplação de Deus face a face. E as visões de todos os grandes místicos nos referem as festas que há no Céu e que são verdadeiras solenidades. Não são imagens ou quimeras, mas autênticas festas em que Deus vai manifestando sucessivamente suas grandezas e eles aclamam com triunfos novos, que não terminam jamais.
    Há uma felicidade celeste, um senso de que é a pátria de nossa alma e propriamente a ordem de coisas para a qual fomos criados, que corresponde de modo pleno a todas as nossas aspirações. Algo desse senso da bem-aventurança celeste pela contemplação face a face de Deus, que é a perfeição absoluta de todas as coisas, pode e deve passar para a Terra. Nas épocas de verdadeira Fé alguma coisa dessa felicidade filtra, algo dessa piedade é sentida e comunicada pelas almas mais notavelmente piedosas, como um tesouro comum para toda a Igreja.

    Desejo das coisas celestes

    É isto que tanto falta hoje em dia, de maneira que não se tem a ideia de uma felicidade celeste. E sem essa ideia não se possui apetência do Céu, e as pessoas se chafurdam na pura apetência dos bens terrenos. Mas se pudessem compreender por um instante o que é uma consolação, uma graça do Espírito Santo, esse tipo de felicidade que a consideração dos bens celestes comunica, então começaria o desapego dos bens da Terra, viria a compreensão de como tudo é transitório, como há valores que estão acima das coisas terrenas e que tornam a Terra toda um pouco de poeira.
    É exatamente isso que os Santos Anjos podem nos obter, eles que estão inundados dessa felicidade, a qual de vez em quando se comunica sob esta forma aos Santos. Há um modo de fenômeno místico que se manifesta como um concerto muito longínquo, de uma harmonia maravilhosa e extraterrena. Santa Teresinha do Menino Jesus teve isto e ela até menciona na História de uma alma. É um pouco do eterno cântico dos Anjos que chega, por esta forma, aos ouvidos dos homens para lhes dar a apetência das coisas do Céu.
    Em nossa época esta apetência falta fabulosamente. As pessoas só se interessam e se empolgam pelas coisas da Terra, pelo dinheiro, pela politicagem, pelo mundanismo, pelas trivialidades do noticiário de todos os dias, mas não se empolgam pelos assuntos elevados, doutrinários e, menos ainda, pelas coisas especificamente celestes.
    Vamos pedir aos Anjos que nos comuniquem o desejo das coisas celestes de que eles estão inundados. Esta é uma excelente intenção para ser apresentada na festa de São Miguel Arcanjo, junto com o pedido de que ele nos faça seus imitadores, perfeitos cavaleiros de Nossa Senhora nesta Terra.v

    (Extraído de conferência de 28/9/1966)

    1) Anna Catarina Emmerich (*1774 – †1824), terciária agostiniana alemã, beatificada em 2004. Recebeu os estigmas da Paixão e foi favorecida por muitas revelações místicas sobre Nosso Senhor Jesus Cristo, Maria Santíssima e outros temas religiosos.

  • Vítima expiatória

    Santa Teresinha era singularmente bela, de traços regulares, olhar luminoso e vasto, porte firme e semblante resoluto; sua fisionomia deixa transparecer qualidades que parecem opostas – ao menos segundo a mentalidade revolucionária –, como a bondade e a firmeza, a distinção e a simplicidade, o perfeito e absoluto domínio de si e a mais atraente naturalidade.

    Santa Teresinha do Menino Jesus é, a bem dizer, uma Santa de nossos dias. Celebraremos daqui a pouco o cinquentenário de sua morte, e muitas das pessoas que ainda temos a ventura de possuir entre nós são absolutamente contemporâneas da jovem carmelita que expirou aos vinte e quatro anos.

    Procuraram ocultar o sentido profundo, admirável, heroico de sua existência

    Felizmente, a fotografia já estava inventada em dias dela, pelo que conservamos o retrato autêntico da grande Santinha: singularmente bela, de traços regulares, olhar luminoso e vasto, porte firme e semblante resoluto, sua fisionomia deixa transparecer qualidades que parecem opostas entre si – ao menos segundo a mentalidade liberal –, como a bondade e a firmeza, a distinção e a simplicidade, o perfeito e absoluto domínio de si e a mais atraente naturalidade.
    Se não possuíssemos fotografias da “Santa rosa do Carmelo”, que ideia teríamos dela? A que nos apresentam muitas de suas imagens: doce, de uma doçura sentimental e quase romântica; boa, de uma bondade puramente humana e sem o menor sopro de sobrenatural; enfim, uma jovem de boas inclinações, embora exageradamente sensível, nunca uma autêntica e genuína Santa, um luzeiro cintilante no firmamento espiritual da Igreja do Deus Verdadeiro. Certa iconografia, sem alterar os traços da Santa, alterou, contudo, sua fisionomia.

    Certa literatura sentimental-religiosa, sem adulterar propriamente os dados biográficos de Santa Teresinha, encontrou meios de interpretar tão unilateral e superficialmente determinados episódios de sua vida, que chegou a desfigurar de algum modo seu significado. As deformações iconográficas e biográficas se fizeram todas em uma mesma direção: ocultar o sentido profundo, admirável, heroico da existência da imortal Santinha.
    No cinquentenário de sua morte alguém que muito e muito lhe deve procurará saldar com respeitoso amor parte desta dívida, fazendo um comentário doutrinário à sua vida.

    O tesouro da Igreja

    O pecado original cometido por Adão e os pecados posteriormente praticados pela humanidade constituem ofensas a Deus. Para resgatar essas ofensas e aplacar a ira divina era preciso que a humanidade expiasse. Esta expiação era como que o pagamento de um preço que compensasse a falta cometida. Há nisto, de certo modo, uma restituição. Pelo pecado, o homem como que se apropriou indebitamente de prazeres, vantagens, deleites a que não tinha direito. Para reparar a justiça, era preciso que ele abandonasse, imolasse, sacrificasse tudo isto. O sacrifício reparador toma, assim, o aspecto de um preço de resgate pelo qual se repara a falta cometida. Para resgatar esses pecados, a Santa Igreja dispõe de um tesouro. Vejamos de que natureza ele é.
    Evidentemente, não se trata de um tesouro de riquezas materiais. É moral e espiritual, como exige a natureza moral das faltas que se trata de resgatar. Ele se compõe, antes de tudo e essencialmente, dos méritos infinitamente preciosos de Nosso Senhor Jesus Cristo, que no momento da Santa Morte do Salvador foram aceitos por Deus e produziram a Redenção da humanidade. Os sofrimentos, as virtudes, as expiações dos homens pecadores seriam totalmente incapazes de aplacar a cólera divina. O Santo Sacrifício do Homem-Deus bastaria plenamente para tal. Mais ainda: uma simples gota do precioso Sangue bastaria para redimir a humanidade inteira.
    Contudo, por desígnios insondáveis da Providência Divina, de fato a Redenção não se operou no momento em que se verteu o primeiro Sangue do Redentor, mas só quando ele expirou por nós na Cruz, depois de um dilúvio de tormentos. Por uma disposição igualmente misteriosa, Deus não Se contenta com o sacrifício superabundantemente suficiente do Redentor. A humanidade está redimida, e em si mesma a obra da Redenção está concluída, mas para salvar os pecadores, para expiar seus pecados atuais, para que as almas transviadas aproveitem o Sacrifício do Homem-Deus é necessário que também nós alcancemos méritos.

    Papel da graça divina

    O tesouro da Igreja se compõe, pois, de duas parcelas. Uma, infinitamente preciosa, superabundantemente suficiente e eficaz: é a dos méritos de Nosso Senhor Jesus Cristo. Outra pequeníssima, insignificante: é a dos méritos dos homens, adquiridos ao longo da vida multissecular da Igreja. A parte pequena só vale em união com a parte infinita. Mas – mistério de Deus –, apesar de perfeitamente dispensável em si mesma, esta parte é indispensável porque Deus o quis: “Quem te criou sem ti, não te salvará sem ti”, diz Santo Agostinho. Deus nos criou sem nossa cooperação, mas para nos salvar Ele quer nossa cooperação. Cooperação de apostolado, sim, mas também na prece e no sacrifício. Sem os méritos dos homens, o tesouro da Igreja não estará completo e a humanidade não aproveitará inteiramente os frutos da Salvação.

    Visto o assunto de outro ângulo, devemos lembrar o papel da graça para a salvação. Nenhum homem é capaz do menor ato de virtude cristã sem que seja chamado a isto pela graça de Deus, e por ela ajudado. Em outros termos, a primeira ideia, o primeiro impulso, toda a realização do ato de virtude sobrenatural se faz com o auxílio da graça. Isto de tal maneira que ninguém poderia praticar o menor ato de virtude cristã – nem sequer pronunciar com piedade os Santíssimos Nomes de Jesus e Maria – sem o auxílio sobrenatural da graça. Tudo isto é verdade de Fé, e quem o negasse seria herege. Nossa vontade coopera com a graça, e sem o concurso dela não há virtude possível, mas por si só, sem a graça, ela é absolutamente incapaz de praticar a virtude sobrenatural.

    Ora, como sem virtude ninguém agrada a Deus nem se salva, sendo a graça necessária para a virtude, é fácil perceber que ela é necessária para a salvação.

    Todos os homens recebem graças suficientes para se salvar. Também esta é uma verdade de Fé. Porém, de fato, pela maldade humana, que é imensa, muito poucos seriam os homens que se salvariam só com a graça suficiente. É preciso que a graça seja abundante para vencer a maldade do abuso do livre-arbítrio humano. A abundância dessa graça, como obtê-la de Deus, justamente irado pelos pecados dos homens? Evidentemente com o tesouro da Igreja.
    Entretanto, como vimos, esse tesouro se compõe de duas parcelas, uma das quais perfeita e imutável, a de Deus, e outra mutável e imperfeita, a dos homens. Quanto mais a parte humana do tesouro da Igreja for deficiente, tanto menos abundantes serão as graças. Quanto menos abundantes forem as graças, tanto menos numerosas serão as almas que se salvam. De onde decorre que um elemento capital para que as almas se salvem é que o tesouro da Igreja esteja sempre cheio de méritos produzidos pelos homens. Os grandes pecadores são filhos doentes para cuja cura se prodigalizam os tesouros da Igreja. Os grandes Santos são os filhos sadios e operosos, que repõem a todo momento, nesse tesouro, riquezas novas que substituam as que se empregam com os pecadores.
    Tudo isto nos permite estabelecer uma correlação: para grandes pecadores, grandes gastos no tesouro da Igreja. Ou estes grandes gastos são supridos por novos lances de generosidade de Deus e das almas santas, ou as graças se vão tornando menos abundantes, e o número de pecadores aumenta.

    Jamais fazer a vontade própria
    Daí se deduz que nada mais necessário para a dilatação da Igreja do que enriquecer, sempre e sempre, seu tesouro sobrenatural com novos méritos.
    Evidentemente, podem-se adquirir méritos praticando a virtude por toda parte. Mas há no jardim da Igreja almas que Deus destina especialmente a este fim. São as que Ele chama à vida contemplativa, em conventos reclusos, onde certas almas de escol se dedicam especialmente em amar a Deus e a expiar pelos homens. Estas almas corajosamente pedem a Deus que lhes mande todas as provações que quiser, desde que com isso se salvem numerosos pecadores. Deus as flagela sem cessar, de um modo ou de outro, colhendo delas a flor da piedade e do sofrimento, para com estes méritos salvar novas almas. Consagrar-se à vocação de vítima expiatória pelos pecadores: nada há de mais admirável. E isto tanto mais quanto muitos há que trabalham, muitos que rezam; mas quem tem a coragem de expiar?

    Este é o sentido mais profundo da vocação dos trapistas, das franciscanas, dominicanas e carmelitas entre as quais floriu a suave e heroica Teresinha.

    Seu método foi especial. Praticando a conformidade plena­ com a vontade de Deus, ela não pediu sofrimentos, nem os recusou. Deus fizesse dela o que entendesse. Jamais pediu a Deus ou a suas superioras que dela afastassem qualquer dor, qualquer mortificação. Submissão plena era o seu caminho. E, em matéria de vida espiritual, plena submissão equivale à plena santificação.
    Seu método se caracteriza ainda por outra nota importante. Santa Teresinha não praticou grandes mortificações físicas. Ela se limitou simplesment

    e às prescrições de sua Regra. Mas esmerou-se em outro tipo de mortificação: fazer a toda hora, a todo instante, mil pequenos sacrifícios. Jamais a vontade própria. J

    amais o cômodo, o deleitável. Sempre o contrário do que os sentidos pediam. E cada um destes pequenos sacrifícios era uma pequena moeda no tesouro da Igreja. Moeda pequena, sim, mas de ouro de lei: o valor de cada pequeno ato consistia no amor de Deus com que era feito.

    E que amor meritório! Santa Teresinha não tinha visões, nem mesmo os movimentos sensíveis e naturais que tornam, por vezes, tão amena a piedade. Aridez interior absoluta, amor árido, mas admiravelmente ardente, da vontade dirigida pela Fé, aderindo firme e heroicamente a Deus, na atonia involuntária e irremediável da sensibilidade. Amor árido e eficaz é sinônimo, em vida de piedade, de amor perfeito.
    Grande caminho, caminho simples. Não é simples fazer pequenos sacrifícios? Não é mais simples não ter visões, do que as ter? Não é mais simples aceitar os sacrifícios em lugar de os pedir?
    Caminho simples, caminho para todos. A missão de Santa Teresinha foi de nos mostrar uma via em que pudéssemos todos trilhar. Oxalá ela nos auxilie a percorrer esta estrada real que levará aos altares não apenas uma ou outra alma, mas legiões inteiras.

    (Extraído de O Legionário
    n. 790, 28/9/1947)

  • Minha Mãe, por vossa bondade, salvai-me!

    Ó clemente, ó piedosa, ó doce sempre Virgem Maria! Vós fostes concebida sem pecado original e nunca tivestes a menor falta, jamais deixastes de progredir inteiramente
    em tudo quanto estava nos desígnios divinos.
    Sois a Virgem por respeito a cuja virgindade o Onipotente operou este milagre estupendo: quis que fôsseis ao mesmo tempo Mãe d’Ele e Virgem antes, durante e depois do parto;
    de tal maneira vossa virgindade é insondavelmente valiosa.
    Mãe de Deus Filho, sois também a Filha amadíssima do Pai Eterno, e o próprio Espírito Santo é vosso Esposo que em Vós gerou o Menino Jesus. Tendes, assim, tudo para serdes atendida.
    Ademais, sois cheia de misericórdia para com os pecadores. Ora, um pecador sou eu…
    Venho, pois, de joelhos Vos pedir: Perdoai-me, não olheis para os meus pecados, mas sim
    para a vossa bondade. Considerai o Sangue que vosso Divino Filho derramou, pensai nas lágrimas que Vós mesma vertestes para que eu fosse salvo.
    Minha Mãe, não por meus méritos, mas por vossa bondade, salvai-me!
    (Composta em 29/11/1992)

  • Cantou com Nossa Senhora e os Anjos

    No convento do qual São Félix de Valois era Superior, certa madrugada um irmão esqueceu de soar Matinas. O varão de Deus foi, então, ao coro para fazer os arranjos necessários e viu Nossa Senhora sentada num trono magnífico, e os Anjos nas estalas. Todos trajavam o hábito de sua Ordem e começaram a cantar. Com serenidade, ele mesclou o seu canto com aquelas vozes celestes.

    São Félix de Valois, da família real francesa, fundou com São João da Matha a Ordem dos Trinitários para resgate dos cativos. O modo em que viviam e eram tratados os cativos nos explica bem porque uma Ordem religiosa foi fundada especialmente para essa finalidade.

    Libertar os cativos visava resgatar principalmente os irmãos na Fé

    Um reino maometano não era, propriamente, um Estado organizado como nós o concebemos. Quem vê aqueles palácios, como Alhambra por exemplo, pensa que moravam ali reis com um mínimo de decência da praxe inerente a todo Estado organizado, com uma sucessão dinástica regular.

    Ora, na realidade, tratava-se de uma espécie de Estado-bandido vivendo, como os bárbaros, numa luta habitual de saques e pilhagens contra quem não fosse eles, e muitas vezes contra eles mesmos também.
    De maneira que cada um daqueles reinos, como o de Granada, não possuía uma verdadeira elite e constituía, até certo ponto, uma espécie de antro de bandidos que viviam de pirataria no mar e em terra, roubando como uma fonte habitual de renda e apoderando-se de cativos como um modo costumeiro de conquistar mão de obra e de incutir terror no adversário.
    Notem o paralelismo: do lado católico o prisioneiro de guerra era muito melhor tratado do que do lado muçulmano. Assim, quando estavam em guerra, os católicos lutavam em inferioridade de condições, porque os mouros tinham menos medo de ser presos do que os cristãos, os quais, se fossem capturados, seriam pessimamente tratados ao chegarem à zona maometana. Por vezes, prisioneiros importantes eram desfigurados, horrorosamente maltratados, mortos e, com muita frequência, corrompidos moralmente. Era, portanto, uma situação miserável também do ponto de vista moral.
    Então, a ideia de libertar os cativos visava resgatar os irmãos na raça, mas principalmente os irmãos na Fé. Era muito mais para salvar dos perigos da alma do que dos tremendos riscos do corpo. Pairava em toda a população uma preocupação: a perdição eterna daqueles que tinham sido aprisionados pelos maometanos.

     

    Miséria do mundo atual: pactuar com os regimes perseguidores dos católicos

    Muitas vezes, libertar os cativos era uma das razões das expedições católicas contra os muçulmanos. Os cristãos que delas participavam punham em risco suas vidas, sua liberdade e, de algum modo, sua própria salvação eterna, porque também eles podiam ser presos ao tentarem resgatar seus irmãos na Fé.
    Havia alguns que não partiam em expedição, mas pediam esmolas para pagar o resgate dos cativos. Enfim, trabalhava-se constantemente com essa intenção de libertar os cristãos capturados pelos mouros.
    A ideia de que uma parte da Cristandade estava sujeita ao regime pagão, a todos os sofrimentos e perigos do cativeiro entre os pagãos, gerava nos católicos uma imensa compaixão, um enorme zelo pela salvação daquelas almas, um grande senso de honra cristã.
    Como sempre aconteceu na História da Igreja, quando há uma grande necessidade da Esposa Mística de Cristo a Providência suscita uma Ordem religiosa para socorrê-la, a qual é, ao mesmo tempo, uma família de almas e um instrumento de ação novo.
    São Félix de Valois surgiu, portanto, como um dos Santos que encarnaram esse ideal, que sentia o problema com toda a energia das graças sobrenaturais que ele recebeu para isso e, por assim dizer, polarizou essa preocupação disseminada por todo o corpo social, chamando a si o encargo da fundação dessa Ordem.
    A Ordem da Santíssima Trindade tornou-se famosa e realizou um trabalho prodigioso, atuando até o fim do século XVIII. As nações árabes do Norte da África perderam qualquer possibilidade de fazer novos cativos, e essa Ordem religiosa encheu-se de glória.
    Chamo a atenção para o contraste entre a atitude dos católicos do tempo de São Félix de Valois em face dos cativos, e a indiferença reinante em nossos dias diante dos milhares de católicos que sofrem perseguição – muitas vezes tão brutal como outrora – por quererem permanecer fiéis à sua Fé.
    Quase ninguém se incomoda com isso. Não se tem zelo nem vontade de combater. Pior ainda, há uma espécie de apetência de ceder, de pactuar com os regimes que promovem essa perseguição. Compreendemos, então, a miséria que se apoderou da Cristandade.

    Ressuscitou um jovem príncipe

    A respeito de São Félix de Valois, temos os seguintes dados biográficos extraídos do livro Vida dos Santos, do Abbé Daras:
    São Félix de Valois foi grande por seu nascimento e maior ainda por suas virtudes. Seu pai era Conde de Vermandois e de Valois, filho do Duque de França e neto de Henrique I, Rei de França. Sua mãe era filha de Thibaud III, chamado o Grande, Conde de Blois e de Champagne.
    Quando de sua gestação, sua mãe fez uma novena a São Hugo, Bispo de Rouen. No último dia da novena, estando de joelhos diante do altar do santo prelado, ela adormeceu e viu em sonho a Bem-aventurada Virgem Maria segurando seu Divino Filho em seus braços. Ao seu lado estava uma outra criança, bela e graciosa. Nosso Senhor levava uma cruz nos ombros, e a outra criança segurava uma coroa de flores nas mãos. Então fizeram uma troca: Nosso Senhor deu sua cruz à criança, que Lhe entregou a coroa.
    A princesa procurava entender o sentido da visão quando São Hugo apareceu e lhe disse: “Esta criança que tu não conhecias é teu filho, que trocará as flores-de-lis de França pela cruz de Jesus Cristo, e ele a dividirá contigo para que ambos se assemelhem a Jesus Crucificado.”
    Com efeito, o menino dividiu a cruz em duas partes, dando uma a sua mãe e guardando outra consigo.
    Após a morte de sua mãe, São Félix foi chamado à corte onde tomou a cruz para acompanhar o rei numa Cruzada. Um dia em que se exercitava num torneio com o príncipe, este caiu do cavalo vindo a falecer. O Santo correu ao local, tomou a mão do cadáver e lhe disse: “Em nome da Trindade Santa, levanta-te!” No mesmo instante, o jovem levantou-se curado.

    União da coragem militar à modéstia do religioso

    ostras do seu valor e virtude. Mantinha, no meio do campo de luta, a vida austera de Claraval, unindo ao ardor e coragem militar a modéstia e discrição do religioso. Distinguiu-se em todas as batalhas das quais tomou parte e, quando voltou a Paris, quis se dar a Deus.
    Embora fosse um dos mais próximos herdeiros do rei, trocou realmente a flor-de-lis pela cruz e fez-se religioso.
    Após a fundação da Ordem dos Trinitários para a redenção dos cativos, São Félix foi encarregado da direção de um convento. Instruídos por sua palavra e seus exemplos, os religiosos levavam vida exemplar, de tal forma que a Santíssima Virgem e os Anjos dignaram-se honrar com sua presença esse mosteiro.
    Em certa véspera da natividade de Nossa Senhora, tendo o sacristão esquecido de soar as Matinas, São Félix desceu ao coro para preparar o que era necessário. Mas ele já o encontrou ocupado pelos Anjos, vestidos com o hábito de sua Ordem. A Santíssima Virgem, também de hábito, sentada sobre um trono, presidia essa assembleia. Parecia que esperavam o Santo para começar as Matinas, porque logo que este entrou a Santíssima Virgem entoou a antífona, a qual foi continuada pelos Anjos com uma harmonia incomparável. E São Félix cantou com os Anjos. Quando a visão desapareceu, ficou em sua face extraordinário esplendor.

    A Santíssima Virgem entoou a antífona

    Que cena maravilhosa! Um convento com tanto fervor, onde se dá tal glória a Deus que, num dia, por um desígnio divino, um irmão esquece de soar Matinas e a Providência faz isso para operar uma maravilha maior!
    Os Anjos vestidos de religiosos enchem as estalas do coro, Nossa Senhora, sentada num trono magnífico, entoa a antífona e todos os espíritos celestes cantam! São Félix de Valois chega ali e, em vez de se espantar e perder a cabeça, mistura o seu canto com o dos Anjos e da Santíssima Virgem!
    Esse foi um ponto-ápice da vida desse príncipe, toda ela constante de uma série de fatos tão bonitos que davam para se fazer com eles um verdadeiro colar constituído de placas de esmalte, em que cada uma reproduzisse um desses episódios. Teríamos, assim, um dos mais belos colares da História, de tal maneira essa vida é maravilhosa.
    Deparamo-nos, nesta narração, com o mistério da predestinação. Antes de o príncipe nascer, a Providência tinha resolvido fazer dele uma verdadeira maravilha. Donde aquele sonho admirável que sua mãe teve, no qual aparece o príncipe, o Menino Jesus e Nossa Senhora, e as relações que haveria entre o Divino Infante e São Félix são explicadas para a mãe.
    Mais tarde vemo-lo como lutador, como grande guerreiro, e depois como religioso que renuncia a todas as coisas da Terra para se ocupar só com a Ordem religiosa. Afinal de contas, essa espécie de glorificação na Terra, que é a entrada de Maria Santíssima e dos Anjos no seu convento para junto com ele glorificarem a Deus.

     

    O Reino de Maria será mil vezes mais esplendoroso

     

    ria fazer uma iluminura ou um esmalte maravilhoso, constituindo-se uma biografia das mais bonitas que se possa conceber.
    Em última análise, essa biografia significa o seguinte: a Idade Média dando muita glória a Nossa Senhora que, contente com essa era histórica, multiplica os prodígios para manifestar o quanto Ela estava satisfeita. Este é um desses gêneros de prodígios em série, feitos para exprimir a alegria de Maria Santíssima.
    Devemos nos deter embevecidos na contemplação desses fatos, porque assim compreendemos o que é a misericórdia de Deus e de quantos esplendores a Civilização Cristã é capaz. Se esses episódios se passaram na Idade Média, que maravilhas veremos no Reino de Maria, o qual vai ser ainda superior àquela era histórica?
    Assim, compreendemos que todo suor, sangue e lágrimas que vertemos atualmente para instaurar o Reino de Maria na Terra, estão muito bem recompensados. Quando contemplarmos essa época histórica vindoura e descobrirmos coisas ainda mais bonitas que as de outrora, e pensarmos que a Providência quis servir-Se de nós a fim de fazer cessar estes horrores contemporâneos para vir a era dessas maravilhas, então poderemos dizer, parafraseando Jó: “Bendito o dia que me viu nascer, benditas as estrelas que me viram pequenino, bendito o momento em que minha mãe disse: nasceu um homem!”
    Realmente, cada um de nós poderá dizer isso, pois teremos, pela força de Nossa Senhora, derrubado toda a cidade da iniquidade e feito nascer o Reino de Maria, mil vezes mais esplendoroso do que esses esplendores que acabamos de considerar.v

    (Extraído de conferências de 20/11/1964 e 19/11/1965)

     

  • Mártir da liberdade da Igreja

  • Admirável Lição de confiança

    Estamos vivendo uma terrível hora de castigos, mas também uma admirável hora de misericórdia. A condição para isto é olharmos para Maria, a Estrela do Mar, que nos guia em meio às tempestades.

    Durante mais de cem anos, movida de compaixão para com a humanidade pecadora, a Santíssima Virgem, em Lourdes, tem nos alcançado os mais estupendos milagres. Esta piedade se terá extinguido? Têm fim as misericórdias de uma Mãe, e da melhor das mães? Quem ousaria afirmá-lo? Se alguém duvidasse, Lourdes lhe serviria de admirável lição de confiança. Nossa Senhora há de nos socorrer.

    Revista Dr. Plinio 275 (Extraído de Catolicismo n. 86, fevereiro de 1958)

  • Flor e glória da Cristandade – II

    O cavaleiro era o varão católico destinado a viver para o emprego da força em defesa da Cristandade. Piedoso, humilde, generoso, previdente e casto, era o terror dos maus e o encanto dos bons. Seu amor a Deus e ao próximo se exteriorizava pelos modos de ser, que o tornavam gentil, distinto, apreciador do cerimonial. Tudo isso define o perfil de quem, em nossos dias, é contrarrevolucionário do fundo da alma.

     

    O cavaleiro, tal como existiu na Idade Média, é o varão católico apostólico romano destinado a viver para o emprego da força em defesa da Cristandade. Para melhor compreendermos esse papel do cavaleiro, consideremos alguns dados históricos.

    Um alicate gigantesco: mouros e bárbaros

    Na Chanson de Roland – obra lendária, épica, mas que retrata uma situação histórica –, chama-nos a atenção e comove notar que se fala dos doze pares de Carlos Magno com admiração, canta-se a glória deles como sendo grandes guerreiros, mas não há uma referência aos filhos do grande Imperador, pois estes eram uns songamongas, incapazes de carregar o fardo glorioso do Império que o pai deles tinha sabido estabelecer.

    Resultado: a partir de sua divisão em três reinos, correspondentes aos três filhos de Carlos Magno, iniciou-se o esboroamento do Império. Somava-se a isso a precariedade das estradas, tornando tão difíceis as comunicações entre o poder central e as grandes propriedades rurais que, embora cada proprietário rural ainda obedecesse teoricamente ao monarca, na prática constituía-se à maneira de um reizinho do local. Assim, o Império se esmigalhou, no sentido etimológico da palavra.

    Consideremos que esse Império estava sob a pressão, à maneira de um alicate gigantesco, das invasões dos mouros, dos hunos e outros bárbaros. Portanto, assim esboroado, tinha ainda que oferecer resistência a essas hordas de invasores.

    Consequentemente, os homens mais poderosos começaram a construir, em torno de suas terras, muralhas para abrigar sua família, seus trabalhadores, seu gado, suas colheitas e, sobretudo, a capela com o Santíssimo Sacramento, imagens e relíquias. Quando ouviam falar que, de longe, vinha o adversário, todos se refugiavam atrás das muralhas, de onde passavam a combater o inimigo.

    À medida que o invasor encontrava em seu caminho essas fortificações, ia se tornando enfraquecido. Ainda quando não fosse esmagado diretamente, avançava mais ou menos como um touro cada vez mais crivado de banderillas. Em determinado momento, ele caía e morria. Era um modo jeitoso de cada proprietário, defendendo a si e aos seus, proteger a todos.

    Constituiu-se, assim, uma situação singular: o proprietário rural, que era como um fazendeiro de hoje, ficou com a incumbência de construir as muralhas e dirigir a guerra. Por conseguinte, deveria dar o exemplo sendo o guerreiro por excelência que ia montado a cavalo, de espada em punho; o mais corajoso tinha de ser ele. Depois, vinham seus filhos e sua parentela. Só mais para trás estavam os camponeses. Porque os primeiros do lugar deveriam ser os primeiros na luta e no sacrifício.

    Desta maneira, estabeleceu-se uma espécie de identificação pela qual a classe dos proprietários rurais era a dos guerreiros, dispostos a dar a vida por aqueles a quem governavam. Sendo pequenos “reis” locais, eles compunham a nobreza – o barão, o conde, o marquês – sob a direção de outro “rei” maior, que era o duque, o qual, por sua vez, estava sob as ordens do rei propriamente dito. Constituía-se, assim, a hierarquia feudal.

    Havia, portanto, uma classe dos homens mais ricos, poderosos e nobres, que eram também os mais corajosos e guerreiros, aos quais os outros deviam obediência, mas os primeiros tinham uma dedicação como raras vezes um pai possui em relação a seu filho. Era o equilíbrio social estabelecido, com uma sabedoria extraordinária, em função das condições militares e políticas do tempo.

    Guerreiros descendentes de bárbaros, mas civilizados pela ação da Igreja

    Esses guerreiros eram descendentes de bárbaros como, por exemplo, os germanos, cujo perfil os romanos deixaram descrito para a História. Eram tipos louros de olhos azuis, mas como quase todos sofriam de oftalmia, aquele azul ficava banhado num mar de sangue das oftalmias mal curadas, o que, juntamente com a melena loura suja, mal cuidada, caída para trás, lhes davam um aspecto monstruoso. Avançavam brandindo armas e se despejando em cima das populações com uma ferocidade medonha, matando os homens, despedaçando os cadáveres, quebrando objetos e monumentos preciosos, tomando conta das cidades e reduzindo os romanos moleirões a servos, de maneira que eles – imundos e broncos – ficavam mandando nos homens cultos, finos, numa inversão completa de valores.

    Conta-se que, antes das batalhas, eles passavam a noite no alto das montanhas bebendo e cantando para se adestrarem para o combate. Ao amanhecer, desciam em hordas silvando, uivando como bichos, com uma parte do corpo nua e toda pintada, tendo amarrados por cima da cabeça crânios de animais. Era o uso da força no que ela tem de mais hediondo e brutal. Enquanto os homens desciam as encostas da montanha, as mulheres ficavam em cima, bebendo e cantando canções guerreiras para estimulá-los.

    Os funcionários do Império Romano fugiam todos para o Sul, onde os bárbaros ainda não tinham chegado. Havia, entretanto, quem não fugisse: a Santa Igreja Católica Apostólica Romana. Os padres e os bispos permaneceram em meio à barbárie e começaram a converter os bárbaros nos quais, após várias gerações de gente batizada, entrou a doçura de Nosso Senhor Jesus Cristo. Desses bárbaros batizados nasceram os cavaleiros, herdeiros daquela força, daquele senso da luta, daquele gosto pelo combate e pela aventura que, quando bem entendidos, devem caracterizar o homem.

    Por outro lado, uma vez convertidos, esses guerreiros se tornaram verdadeiros artesãos da paz porque não empregavam a força para fazer mal, mas a fim de se defenderem do mal que os outros iam lhes fazer. E se promove a paz quem não faz mal a ninguém, também é um promotor da paz aquele que defende a ordem por meio da força, se necessário for. Pois se, como vimos, a paz é a tranquilidade da ordem, quando alguém luta para restabelecer a ordem e a tranquilidade está defendendo a paz. Assim, quando em seus castelos eles defendiam as suas populações, suas riquezas honestamente acumuladas e, sobretudo, o Santíssimo Sacramento, agiam enquanto guerreiros da paz.

    Sendo a paz um bem, deve ser amada com amor maior do que a paixão desregrada com que o celerado se entrega ao mal; eles precisariam ser ardentíssimos defensores da paz, guerreiros mais ferozes no combate pelo bem do que os outros eram na luta pelo mal.

    O perfil moral do cavaleiro…

    Vai surgindo, assim, a figura do cavaleiro: um guerreiro tremendo, que metia medo no adversário, mas sem ódio individual. O verdadeiro cavaleiro católico não podia matar por ódio pessoal. São Bernardo diz na regra dos Templários, da qual ele foi o autor, que o cavaleiro deve ser sereno e sem ódio individual, sem nenhuma dessas paixões que degradam tanto o homem quando ele fica com os furores do egoísmo; mas precisa ser terrível para fazer prevalecer a ordem que o Criador quer na Terra, os direitos de Deus contestados.

    Por isso o cavaleiro, terror dos maus, é um encanto dos bons. Termina a batalha, o cavaleiro volta para o seu castelo, sua presença é a alegria de todos, porque ele afaga, é bom, não é vaidoso, recebe as homenagens que lhe são devidas, mas tem gosto de exaltar o valor dos outros: “Aquele combateu muito bem… Fulano, você foi um herói, eu lhe dou um título e tal parte de minhas terras…” Recompensas aceitas pelos outros, não por egoísmo, mas por encantamento. “Como é bom o senhor! Como ele é generoso! Como é grande! Que encanto sua presença no castelo! Lá fora ele era o terror, aqui é a flor do castelo!”

    Então aparece outro lado do cavaleiro: herói por amor a Deus, piedoso antes de tudo. Acaba a batalha, ele entra na capela do castelo, ajoelha-se e dá graças por ter escapado ileso. Agradece, sobretudo, por ter conseguido afugentar o bárbaro ou o maometano e levar à vitória os fiéis, fazendo brilhar a glória de Deus sobre o adversário. Diante de uma imagem de Nossa Senhora, ele reza especialmente agradecido, enternecido. Todos cantam juntos. Seria uma das maneiras como se poderia imaginar a celebração da vitória.

    No dia seguinte recomeça o trabalho. Todos já estão saindo da fortaleza, levando para suas casas seus pertences, as famílias vão se reinstalando, as mulheres retomam seus afazeres domésticos, os homens voltam a cuidar da agricultura. Enquanto isso, o castelão está tomando providências: “A fortaleza ficou quebrada em tal ponto, devemos consertar depressa, porque ninguém sabe quando o adversário vem. Quantas armas perdemos? Precisamos mandá-las refazer logo. A experiência atesta que tal arma tem melhor efeito se elaborada de tal maneira…” Então, ele dá ordem para fabricar as novas armas daquele modo. Quando o castelo é grande, tem no seu interior uma verdadeira aldeiazinha de carpinteiros, ferreiros e artesãos que vão preparando todo o necessário para o próximo combate. Porque o descanso é apenas a respiração entre duas batalhas.

    Vemos, então, mais dois traços do cavaleiro: ele é piedoso, humilde, gosta de se curvar diante de Deus, é generoso, sente prazer em dar, elevar os outros, dignificar os talentos alheios, sua alegria está não em ser o único, mas o chefe de gente que tem valor. Outro traço: ele é previdente e já se prepara para a próxima guerra.

    Tudo isso vai constituindo o perfil moral do cavaleiro. Ele é doce, afável, bondoso, mas essa afabilidade, esse amor cristão que o cavaleiro tem ao próximo se traduz nas boas ações, como também nas boas maneiras, que são o modo de exteriorizar a bondade interior. O cavaleiro é gentil, distinto, trata as pessoas bem. Por ser filho da paz, ele quer a ordem, e esta prescreve que cada um seja tratado de acordo com a sua categoria. Assim, o cavaleiro acolhe cada um segundo a respectiva categoria, mas quer que o respeitem. E se alguém lhe faltar com o respeito, vem a repreensão e, conforme for, a punição. É natural.

    …define o perfil do autêntico contrarrevolucionário

    Em torno dele vai se constituindo um cerimonial, ao qual gradualmente são incorporadas sua família e pessoas dos outros castelos, que são como ele e com ele convivem, e vão formando uma classe onde a educação é mais excelente, o palavreado mais elevado, mais florido e bonito, a distinção dos trajes e das maneiras floresce e surge a cortesia, a distinção própria dos cavaleiros.

    Essa classe não rebaixa as outras, ela vai subindo mais ou menos como um balão que, ao elevar-se, fosse levando toda a população consigo. A ascensão dos cavaleiros era a ascensão da nação inteira. Com os cavaleiros, os outros mais chucros aprimoravam a linguagem, a educação, iam se cultivando e acabando de se desbarbarizar.

    O cavaleiro era sinônimo de nobre? Todo nobre era cavaleiro, e todo cavaleiro era nobre? Não era tanto assim. Concebiam-se, numa situação excepcional, certos plebeus se tornarem cavaleiros, bem como determinados nobres não serem cavaleiros, mas não era o normal. A maioria dos cavaleiros era nobre, e muitos dos plebeus que se tornavam cavaleiros pela sua coragem ascendiam à nobreza. A fonte do recrutamento da nobreza era principalmente a Cavalaria.

    Temos, então, o sentido do cavaleiro em nossos dias. Por que a palavra é tão respeitada, bela e significa tanta coisa? É por ser esse tipo ideal do católico posto na sociedade temporal e que tem como um dos traços mais preponderantes de sua alma a combatividade, não a serviço de seus interesses, mas de Deus, da Igreja, da Cristandade.

    Ora, é isso que propriamente define o perfil de quem, em nossos dias, é contrarrevolucionário do fundo da alma. Este é corajoso, terrível, admirável, bondoso, gentil, acolhedor. Sua palavra vale como escritura pública, porque um cavaleiro não peca e, portanto, não mente nunca. Ele é casto, porque a impureza é o contrário da Cavalaria.

    No cavaleiro reluziam todas as qualidades do verdadeiro católico

    Na Idade Média, era normal que os cavaleiros que não entrassem para uma Ordem Religiosa de Cavalaria se casassem. O cavaleiro era o homem virgem que se casava com a dama virgem; Cavalaria e virgindade eram complementares. A força dele era a do homem casto, puro, não a do cafajeste frequentador de botequins.

    No cavaleiro reluziam, com o brilho do aço, todas as qualidades do verdadeiro católico.

    Tanto quanto me lembre, os meus primeiros encontros com a Cavalaria foram saboreando esta palavra, e compreendendo que ela era como uma misteriosa pedra preciosa que não brilhava com a luz vinda de fora, mas com um fulgor proveniente de dentro. As palavras “Cavalaria” e “cavaleiro” pareciam-me ter em si mesmas uma beleza, uma dignidade, uma distinção extraordinárias. Eram como um brilhante ou um rubi que rutilava por si mesmo.

    Nos remotos anos de minha infância, usava-se a palavra “cavalheiro” um pouco mais do que hoje, e ela teve um importante papel em minha formação. Algumas vezes, recebi de minha governanta a recomendação de ser um cavalheiro.

    Por exemplo, fui educado junto com minha irmã e uma prima, e com certa frequência fazíamos passeios a pé para exercitar. As regras de educação, com vagos restos da Cavalaria, prescreviam que o cavalheiro deveria dar atenção e precedência à dama por esta ser mais frágil. E as duas meninas, às vezes, deixavam cair alguma coisa.

    Eu, perpetuamente distraído, começava por não notar aquele objeto jogado no chão. Primeira repreensão da Fräulein Mathilde: “Quem está com senhoras – imaginem menininhas de quatro, cinco anos… – deve prestar contínua atenção nelas para ver se não estão precisando de qualquer coisa. É assim que age um cavalheiro. Você não procedeu como um cavalheiro porque não estava com sua atenção fixa nelas para saber que cortesia deveria fazer. Agora vá e apanhe o objeto.”

    Eu pensava: “Vai me dar menos trabalho apanhar esse objeto do que brigar com essa alemã. Vou pegar para não ter amolação.” Pegava e dava para a menina que o tinha deixado cair. Mas a governanta continuava:

    “Não senhor, sorria! Na hora de entregar, precisa mostrar sua alegria por ter prestado serviço, sorria!”

    Além disso, por vezes as crianças tendem a ser descuidadas quando estão à mesa, deixando cair comida, o que não é bonito. Quando isso se dava, logo vinha a recomendação: “Cavalheiro não deixa cair grãos de arroz, entretanto se acontece recolhe-os não com seu dedo, mas com uma colher…” E assim tantas outras regras de educação. “Cavalaria” foi para mim uma palavra que tinha um som de ouro, mas batia como uma chicotada, e isso me fez extraordinariamente bem.             v

     

     

    (Extraído de conferência de 26/5/1984)

  • O verdadeiro título de glória

    Além de ser pobre, escrofulosa, magérrima, com a mão direita deformada, Santa Germana Cousin era desprezada pelo pai e perseguida pela madrasta. Apesar disso, ela enfrentou todas as dificuldades com extrema dignidade porque estava segura de ter um valor: ser filha da Igreja Católica Apostólica Romana. O título “católico” é o que realmente tem importância; todos os outros são secundários

     

    No dia 15 de junho a Igreja celebra a memória de Santa Germana Cousin. A síntese biográfica dela que vamos comentar é tirada de Louis Veuillot1.

    Sua casa era um lugar de martírio e não de repouso

    Germana Cousin nasceu em 1579, em Vibrac, Toulouse, na época em que a França era assolada pelas guerras de religião.

    Uma época, portanto, de muita pobreza porque as guerras de religião impediam, naturalmente, o desenvolvimento da agricultura, e a escassez de víveres era muito grande.

    Era filha de Leôncio Cousin, pobre lavrador, e desde criança, quando perdeu sua mãe, sua vida foi um sofrimento constante. Magra, desnutrida, escrofulosa, tinha, além disso, a mão direita deformada. Sua aparência levou-a a ser rejeitada pelo pai, que nunca lhe manifestou o menor carinho e nunca impediu a cruel perseguição que sua segunda esposa movia à enteada. A casa paterna de Germana, portanto, para ela era um lugar de martírio e não de repouso. Sua madrasta repreendia-a constantemente, obrigando-a a dormir num estábulo sobre duras enxergas. Proibiu-a também de aproximar-se de seus oito irmãos.

    Germana, sem se incomodar, amava as crianças com carinho especial, servindo-as sempre que podia. Deus inspirou-lhe o amor ao sofrimento e por isso aceitava com alegria essas humilhações, acrescentando-lhe outras austeridades. Em toda a sua vida só se alimentou de pão e água.

    Aqui está um conjunto de dados que incutem muito respeito e admiração. Há determinadas figuras que nasceram para nos dar o exemplo da segurança sobrenatural em si mesma e não da segurança natural. Porque elas são, por desígnios da Providência, de tal maneira marcadas pela deformidade, por toda espécie de títulos que as colocam abaixo de todo mundo na ordem humana de valores, que bastariam para essas pessoas abrirem um buraco no chão e sumirem.

    Assim vemos uma pobre coitada, órfã de mãe, escrofulosa, magérrima, com a mão direita deformada, uma coisa que de si desfigura qualquer pessoa, mas que ainda prejudica mais quando ela é pobre e tem que trabalhar com suas próprias mãos, torna-se mais ou menos inútil.

    Extrema dignidade, sem nenhuma revolta

    Essa pessoa mora, então, na casa de seu pai. E, sinal supremo do desprezo que todo mundo tem a ela, o seu próprio progenitor como que não a reconhece por filha, não lhe dispensa carinhos como a uma filha e a entrega à sanha e ao desprezo dessa megera. Ela vivia como uma criada na casa do pai, dormindo numa dependência sobre dura enxerga e fazendo o papel de pastora.

    Ela podia, portanto, levada pela vergonha, pelo acanhamento, procurar fugir ou tornar-se uma revoltada. Não, ela se porta com extrema dignidade, aceita a situação em que está, não se revolta, procura agradar as crianças, filhos daqueles que a perseguem, e leva sua vida com simplicidade, segura de que ela tem um valor.

    É criatura humana batizada e, portanto, filha de Deus. E sendo filha de Deus não precisa mais nada para conduzir a paz bem alto diante de todos os outros. Ei-la, portanto, com modéstia e naturalidade diante desse dilúvio de manifestações de pouco caso, conduzindo tudo com espírito sobrenatural e superior à sua vida.

    Isso eu considero um lindo exemplo para nós compreendermos bem que não precisamos de títulos humanos para estar nos impondo ao respeito dos outros. Ainda quando nos desprezam, nós temos estes títulos: somos filhos de Deus, da Santa Igreja Católica e, a título especial, filhos de Nossa Senhora.

    Deus, em sua grandeza infinita, sente-Se agradado com nosso louvor. Ele deseja nosso amor, aceita-o e corresponde a ele. Isso basta. Todo o resto não é nada, não tem importância. O título de filho de Deus basta para tudo.

    Ufania de ser católico

    Conta-se o caso de uma filha de Luís XV que, se sentindo mal atendida por uma criada, disse-lhe com energia:

    — Você se esquece de que eu sou filha do Rei?

    A criada, a qual achava que a Princesa não estava com a razão, afirmou:

    — Vossa Alteza se esquece de que eu sou filha de Deus?

    É uma linda lição! Uma resposta que indica bem a segurança e a altaneria da pessoa a quem basta a sua posição de católica. Eu sou católico, achem dessa posição o que quiserem, riam como entenderem, admirem como desejarem, nada se acrescenta nem se tira à enorme segurança que tenho, à alegria fundamental que sinto, à ufania que experimento em ser filho da Santa Madre Igreja Católica Apostólica Romana.

    Não preciso mais nada. Isso me dá o título para eu me apresentar aos olhos de qualquer um com sobranceria. Não é necessário ser rico, inteligente, agradável, nem nobre ou qualquer outra coisa. Para eu ter a sensação da minha dignidade basta ser filho da Igreja Católica Apostólica Romana.

    É claro que se, além disso, eu tiver outros títulos melhor será. Mas não colocarei nenhum título ao lado deste. É melhor ser lixeiro católico do que rei protestante, ser mendigo escrofuloso, com a mão direita ou todo o corpo deformado, mas católico, do que o homem mais rico do mundo, o qual não pertence à Religião Católica. Quer dizer, o nosso grande título, a grande razão de nossa ufania é sermos filhos da Santa Igreja Católica Apostólica Romana.

    Vemos aqui a segurança, a paz, a tranquilidade feita de Fé de Santa Germana, diante de uma situação que dava para ela se acabrunhar.

    Eu creio que outra Santa que nos deu um grande exemplo disso foi Santa Joana de Valois. Também desprezada pelo pai, por todo mundo, e por fim repudiada pelo marido. Mas ela conduziu a vida com dignidade e serenidade. Fundou uma Ordem religiosa, governou muito bem o feudo que obteve depois de sua separação, morreu e recebeu a honra dos altares. Apesar de tudo quanto pudessem dizer dela, sendo católica bastava. Para a sua segurança, seu cartão de visita estava pronto: católica apostólica romana.

    É um título lindíssimo e essa ufania de ser católico é a raiz daquilo que Camões chamava “cristãos atrevimentos”. Quando tem essa ufania de ser católico, a pessoa se atreve, se lança, avança. Por quê? Não porque é mais na ordem humana das coisas; até talvez seja menos do que alguns. Mas o que tem importância é ser católico, ter recebido o sinal do Batismo na fronte. O resto é acessório, secundário.

    Agora, veremos os esplendores que a Divina Providência fazia para recompensar essa serva, a qual tanto se ufanava da sua dignidade de filha de Deus.

    Enquanto ela vai rezar, os Anjos cuidam do rebanho

    Germana era pastora.

    Pastor é um ofício poético, mas na Europa considerado como uma ocupação muito humilde. É propriamente tomar conta de bicho, não tem nada de técnico, veterinário. É apenas uma espécie de guarda de burros, vacas, carneiros, cabras. Embora perseguida pelos familiares, ela zelava com verdadeiro desvelo pelos seus carneiros.

    Conta-se que para ir à igreja deixava-os aos cuidados da Providência. Nunca nenhum animal extraviou-se ou ultrapassou os limites que ela estabelecia, marcando o chão com seu cajado; também nunca foram atacados por lobos.

    Vejam que cena linda: a pastora feia, trôpega e deformada, mas que tem contato direto com o Céu; Deus, Nossa Senhora e seu Anjo da Guarda falam com ela. Em certas ocasiões ela tem vontade de rezar e, por uma inspiração interior – porque sem uma inspiração isso não se compreende –, vai com o cajado e traça os limites exatos. E depois com certeza avisa: “Olhem, vocês não saiam daqui.” Quando ela volta, estão todos lá. Mas há também uma proibição para os lobos entrarem, e de fato nenhum lobo entra. Os Anjos ficam zelando pelo rebanho, enquanto ela vai rezar e agradar a Deus Nosso Senhor.

    A desprezada, a pisada, a humilhada vai à igreja e Deus opera um milagre. É hábito do Criador realizar milagres.  Entretanto Ele, na sua felicidade celeste inacessível, alegrar-Se com a companhia dessa pastora humilhada e desprezada por todo mundo causa-nos admiração.

    Notem quanto vale uma pessoa desprezada por um título injusto, mas que sabe carregar bem o seu desprezo.

    Vivia na pobreza, mas ajudava os pobres

    No campo, Germana estava sempre em união com Deus. O terço era sua oração constante, assim como a saudação angélica. Grande era sua devoção à Santíssima Virgem, à qual pedia coragem para levar avante sua vida tão difícil.

    Realmente é muito árduo levar avante uma vida assim. Porque é muito bonito pensar: “Ah, que beleza os carneirinhos, estou rezando as Ave-Marias, depois eu vou para o meu pobre catre.” Mas na hora de deitar no catre, sentir o frio, comer alimento ruim, aguentar a cara da megera quando, mentindo, contar para o pai que Germana tinha perdido uma ovelha, e o progenitor dar-lhe uma punição injusta, receber bem tudo isso e ainda agradar os filhinhos da megera, isso é muito poético, mas absolutamente não é fácil. É preciso ter força e ela sabia onde procurá-la: na oração, aos pés de Nossa Senhora. Porque exatamente na oração está a fonte de toda força.

    Ensinava o Catecismo às crianças da vizinhança e era a protetora dos pobres, para quem levava os restos de sua casa.

    Na realidade, aqueles que mais entendem de fazer esmola, em geral, são os pobres. As pessoas muito ricas dificilmente são esmoleres. As de fortuna média ou os pobres dão esmola.

    Eu conheço o caso curioso de uma senhora riquíssima. Ela possuía uma casa que ocupava um quarteirão inteiro num bairro importante de São Paulo, e na qual ela morava. Essa senhora mantinha boas relações com o ramo pobre de sua família.

    Entretanto, dois genros péssimos arruinaram a fortuna dela, fazendo-a cair numa pobreza igual ou maior que a dos seus parentes pobres. Então ela teve este comentário interessante: “Engraçado, não pensei que me tornando pobre fosse mudar tanto. Se eu soubesse que vocês estão passando as privações que hoje passo, quando tinha dinheiro teria ajudado vocês.” Isso diz muita coisa…

    Santa Germana era pobre, mas encontrava jeito de ajudar os pobres. Então levava víveres, restos da casa para socorrer os mais necessitados.

    Os pães se transformaram em flores

    Com essa pobre pastora reproduziu-se um dia o mesmo milagre de Santa Isabel de Portugal. Sua madrasta perseguiu-a, julgando que houvesse furtado alimentos da despensa.

    Podem imaginar que vida! Uma pessoa honestíssima e a megera:

    — Você roubou a rosca?

    — Não, não roubei.

    — Roubou! Onde é que está?

    Ao abrir seu avental, ao invés de pão, como previa, só encontrou flores raras, nunca vistas e de inigualável perfume.

    Aqui se faz referência ao famoso milagre de Santa Isabel. Ela não podia contar ao marido que estava ajudando os pobres. Um dia ele aproximou-se e perguntou: “O que você leva aí?” Ela disse que eram flores. Abriu o avental e os pães estavam transformados em rosas.

    Aqui se deu a mesma coisa para proteger Santa Germana contra a cólera da megera. É um fato de uma grandeza! Ela fica alta como uma estrela, toca com a mão nos astros, e a megera do tamanho de uma formiguinha enfezada e feia.

    Humilde, modesta e combativa

    Uma manhã Santa Germana não saiu, como de costume, para guardar seu rebanho. O pai foi encontrá-la morta sobre seu pobre leito. Era o ano de 1601, quando ela completava 22 anos.

    Agora vem a glorificação.

    O povo acorreu em massa ao seu enterro, pois histórias sem conta corriam a seu respeito.

    Dentro de casa, relegada a dormir num catre, sob a cólera da megera e o desprezo do pai. Gloriosa em toda a região e pisada entre os seus.

    Quarenta e quatro anos após sua morte seu corpo foi encontrado intacto, sendo reconhecida sua autenticidade pela mão deformada.

    Isso é muito bonito. Encontrar o corpo intacto é um dos elementos que favorecem o processo de canonização. Portanto, o caminho para a glória dos altares foi aberto para ela através da mão deformada, símbolo de sua aceitação da vontade divina. É uma lição muito bonita que está expressa nesse fato.

    Canonizada em 1867, no ano de 1901 iniciou-se em Pibrac a construção de uma grande basílica em sua honra.

    Que Santa Germana nos dê a graça de ter essa enorme segurança de que nosso verdadeiro e único título de glória é sermos filhos da Santa Igreja Católica Apostólica Romana. Que esta Santa pastora nos alcance esse amor à Igreja pelo qual não façamos questão de mais nada nesta vida a não ser pertencer à Igreja Católica.

    Ademais, peçamos que nos alcance a combatividade que ela certamente teve. Ela tão humilde, tão modesta, tão apagada, parece o contrário da combatividade. Mas sempre que alguém tem uma virtude extrema, possui também no outro extremo a virtude oposta. Só as pessoas assim são verdadeiramente combativas. Como só são pessoas verdadeiramente combativas aquelas que na hora da compaixão sabem também se compadecer.

    Então, vamos pedir-lhe que nos dê as virtudes necessárias para nosso estado, assim como ela teve as necessárias para o estado dela.       v

     

    Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 15/6/1967)

    Revista Dr Plinio 267 (Junho de 2020)

     

    1) Não dispomos dos dados bibliográficos da obra citada.

     

  • Igreja audaciosa, cheia de Fé, batalhadora

    A grande batalha dos povos não se trava fora das fronteiras da Igreja, mas dentro delas. Quando a Igreja está ereta, audaciosa, cheia de Fé, batalhadora, os adversários não são nada. Podem ter o ouro e o domínio que quiserem, podem inclusive matar os que são fiéis, não tem importância, se eles tiverem fervor, tudo vai para a frente.

    Todos os mártires romanos, desde a chegada de São Pedro à cidade eterna até o decreto de Constantino dando liberdade à Igreja Católica – portanto, séculos de martírio –, poderiam subscrever estas minhas palavras. Eles foram perseguidos, caluniados, calcados aos pés, enfim, fizeram de tudo contra eles. Porém houve fervor, vida interior, a Santa Igreja continuou, tornou-se invencível e o Império Romano ruiu pelo chão.

    (Extraído de conferência de 22/5/1987)