Vale de lágrimas no meio de montanhas cujos picos tocam no Paraíso – I

Deveria haver uma educação pela qual a pessoa compreendesse que esta vida é um vale de lágrimas, porém colocado no meio de montanhas cujos picos tocam no Paraíso. Ou seja, existe a possibilidade de altas felicidades, compradas a custo das lágrimas e do sangue. Não se trata de êxtases ou revelações, mas dos gáudios da união com Deus, prefigura da visão beatífica.

 

Como todos sabem, eu nasci na “Belle Époque”(1). Minha adolescência e mocidade transcorreram no período denominado “entre deux guerres”(2), no qual havia uma convalescença que não chegou a se consumar, um meio-termo entre a saúde e a doença, com algo do peso, mas também da alegria da convalescença, porquanto esta é um sair do estado doentio e um caminhar para a saúde que se aproxima.

Sem nenhuma complacência com o ilícito, Dr. Plinio apreciava o lícito material

Houve um período primevo no qual a minha inocência me dava muito o desejo de coisas extraordinárias, não expressas, mas nas quais entrava a graça. Porém pouco mais tarde a minha atenção foi, não inteira, mas fortemente, desviada desse campo de cogitação para os problemas referentes à minha perseverança, à interlocução e polêmica com o pensamento revolucionário, à necessidade de me agarrar na minha fidelidade para não me deixar levar e, portanto, para a luta.

Assim, essas cogitações superiores saíram um tanto de minha atenção, sem que jamais eu as recusasse. Mas era como se não coubesse na minha mente tanta coisa para pensar ao mesmo tempo. Então, isso ficou um pouco de lado como um quadro que se tem dentro de casa, do qual se gosta muito, mas que a vida cotidiana obriga a não estar prestando atenção sempre nas excelências do quadro. Assim também era isso dentro da minha alma.

Eu tinha a ideia de que dia viria no qual teria tempo de cogitar e de somar o que ia conquistando na luta, na polêmica, na concepção da sociedade temporal com aquelas alcandoradas e anteriores elucubrações, percepções, conaturalidades, apetências naturais elevadas, etc. A isso juntou-se o fato de que, ao começar a frequentar o mundo do “entre deux guerres”, ele me oferecia, mesmo dentro do lícito, muitas delícias. E eu, “truculento” em tudo, embora negando-me categoricamente qualquer complacência com o ilícito, era muito apreciador do lícito material: o luxo, a boa comida, o conforto, a vida agradável. Essas coisas passaram a se representar para mim como muito desejáveis e criavam a ilusão, mais ou menos implícita, de que o homem, possuindo virtude, prestígio e grande luxo, teria atingido o teto do que esta vida pode dar. Até certo ponto, isso projetava a poeira de um olvido sobre as apetências alcandoradas de outrora.

As felicidades apresentadas pelo mundo eram festivais do demônio

Nos primeiros cinco anos do que eu poderia chamar minha conversão, caiu-me nas mãos uma biografia de Santa Teresa de Jesus, em dois volumes, escrita por uma carmelita de Caen, na França. A descrição dos êxtases deliciosíssimos feita pela autora, acrescida ao fato de que eu estava numa fase onde nadava nas consolações muito mais deleitáveis do que o prestígio, conforto e luxo dentro da virtude, isso tudo me levou a compreender que havia outra gama de felicidade para a qual a minha alma estava desatenta, em virtude do curso das coisas.

Comecei, então, a procurar o que era isso. Para Santa Teresa de Jesus gostar tanto daqueles êxtases fantásticos, deveria haver na alma dela uma aptidão natural, que o sobrenatural satisfazia.

Fazendo a introspecção de mim mesmo, eu notava uma violentíssima vontade de degustar aquilo porque era a união com Deus, mas também – devo dizer – e muito, pelo gáudio inseparável dessa união. Quer dizer, essa união em si mesma, e salvo as noites escuras e provações, é cheia de gáudio como uma esponja pode estar cheia de água.

Então me perguntava: onde existe na minha alma uma apetência dessas coisas, tão dormente que eu não percebia, mas tão viva que, posto diante da descrição, levanto-me inteiro como que num bramido?

Muitos anos depois, lendo fragmentos de literatura grega, em geral, um pouco de Platão e, depois, Padres do Oriente, percebi que a alma deles se movia numa atmosfera de delícias do espírito. Nos gregos, eram delícias naturais, mas andando na linha da transesfera(3); nos Padres gregos, eram sobrenaturais e também naturais, visto que eles eram algum tanto herdeiros da cultura grega.

Perguntando-me qual o suporte dessas coisas, cheguei à conclusão de que aqueles arroubos da infância indicavam a zona natural da alma voltada para o desejo dessas graças, e na qual, entrando a graça, aquilo se desenvolve.

Deveria, pois, haver uma educação na qual a pessoa compreendesse o seguinte: esta vida é um vale de lágrimas, é verdade, mas um vale de lágrimas no meio de montanhas cujos picos tocam no Paraíso. Portanto, existe a possibilidade de altas felicidades nesta vida, compradas a custo das lágrimas e do sangue, mas existe. Essas felicidades não são as da “Belle Époque”, do “entre deux guerres”, nem do que se lhe seguiu – que eram festivais do demônio –, mas são felicidades presentes nessa zona da alma.

Ponto de inserção do amor de Deus na alma

O homem fica um imbecil, cego, tartamudo e coxo se ele não vive em função disso. A meu ver, sem isso a pessoa tem condições dificílimas para praticar a Religião Católica e perseverar nela, porque o ponto de inserção do amor de Deus na alma é esse. Essa é a zona de nossa alma mais voltada para Deus, e é nas felicidades dessa zona que a pessoa encontra parte de sua motivação para não querer o vício, que é o obscurecimento e a renúncia a essas altas felicidades. De outro lado, é essa zona da alma que dá coragem para as renúncias impostas pela virtude.

Para ser implantado o Reino de Maria seria necessário que a graça criasse um ambiente em consequência do qual as almas ficassem assim, e as virtudes fossem preservadas pela educação e por tudo, constantemente nessa direção. Aliás, aí está a temperança. Sem isso essa virtude é uma espécie de ascese e ginástica.

Entretanto é preciso notar que aqui, sem que nós tenhamos percebido, se encontra um dos pontos mais delicados da fidelidade à nossa vocação. Porque o thau(4), quando está no seu florescimento primeiro, abre um caminho para isso. Há um determinado momento em que os atrativos sensíveis deste caminho deixam de reluzir, e a fidelidade ao thau passa a ser mais ou menos como a fidelidade conjugal num casal em que o esposo e a esposa perderam a graça um para o outro, mas aguentam porque é preciso. Com efeito, há uma espécie de segunda etapa matrimonial com o thau – se ousássemos nos exprimir assim – que é despida dessas coisas. Tenho a impressão de que não seria tão despida, mesmo na maior noite escura, se esse senso tivesse prevalecido, por onde a decadência equivale sempre a um determinado momento em que a pessoa quis fechar os olhos aos esplendores do thau para prestar atenção nas coisas da Terra. São as vaidades e aflições de espírito que levam a isso.

Se para nós a perseverança é dura e penosa, a vida é fatigante e cheia de abrolhos, isso tudo tomará um caráter de suportabilidade e até de alegria – não a da fruição, mas dessas alegrias que chamam para Deus –, na medida em que conseguirmos recompor na nossa alma essa forma de amor de Deus, que corresponde a ter sentido, conhecido e degustado a semelhança de certas coisas com Ele, e nisto ter degustado a Ele.

Não me refiro a coisas materiais, mas às internas da alma, prefigurações da visão beatífica. Não se trata de êxtases, visões, mas é natureza e graça. Isto recompõe as nossas almas e nos faz andar.                v

(Continua no próximo número)

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 9/5/1984)
Revista Dr Plinio 262 (Janeiro de 2020)

 

1) Período de cultura cosmopolita na História da Europa que começou no fim do século XIX (1871) e durou até a eclosão da Primeira Guerra Mundial, em 1914.

2) Período compreendido entre o fim da I Guerra mundial (1919) e o início da II Guerra (1939). A primeira metade deste período chamou-se “les années folles” (os anos loucos), devido essencialmente às rupturas que se verificaram no relacionamento social.

3) Termo criado por Dr. Plinio para significar que, acima das realidades visíveis, existem as invisíveis. As primeiras constituem a esfera, ou seja, o universo material; e as invisíveis, a transesfera.

4) Denominação da última letra do alfabeto hebraico, a qual tinha a forma de uma cruz. Baseando-se no capítulo 9 da profecia de Ezequiel, Dr. Plinio empregava esse termo a fim de indicar um sinal marcado por Deus nas almas das pessoas especialmente chamadas a rezar e agir pela derrota da Revolução, vitória da Igreja e implantação do Reino de Maria.

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