Reflexões sobre o Santo Sudário

 

 

  Ao contemplar o Santo Sudáriovemos como, durante sua vida
terrena, naquele Corpo o pensamento
enunciado nos Evangelhos repercutia
na voz, aflorava na fronte, bailava
nos olhos, exprimia-se pelos lábios
e gestos. Assim, a imagem ali
estampada é a prova, não só da
existência, mas da Divindade de Nosso
Senhor Jesus Cristo. É o Homem-Deus!

Analisando o Santo Sudário, parece-me que mesmo tomando
em consideração estar a Sagrada Face um tanto alterada
pelos golpes recebidos – como, por exemplo, o nariz –, ela revela outras
excelências de Nosso Senhor.
É fato que na sua forma nativa, perfeita, a fisionomia de Nosso Senhor
se apresentaria de modo ainda mais excelente. Mas per accidens uma
certa excelência maior aparece devido às próprias deformações que ela
sofreu. Deve-se entender isso como uma espécie de preliminar da análise.

 

Abismo de maldade
que causa assombro

 

Chama a atenção ver como não só o nariz visivelmente recebeu uma pancada e ficou deformado, mas o queixo também caiu um tanto. A
distância entre o ponto mais alto da fronte e a parte mais baixa do queixo é um pouco maior do que seria normalmente.
Isto tem, a meu ver, um efeito
curioso: na harmonia perfeita e divina de Nosso Senhor, sua Face deveria dar uma dupla impressão de uma Pessoa muito entregue ao pensamento, mas nem um pouco tenso. O que é natural, pois o pensamento não Lhe custava o menor esforço. Ele pensava com a facilidade e a abundância próprias à excelência das suas duas naturezas unidas hipostaticamente
na Pessoa d’Ele. Por causa dessa alteração fisionômica provocada pelos golpes, Jesus parece um pouco afanoso no pensar.
E, por uma coincidência feliz, percebe-se também que o seu pensamento versa sobre a dor e a perseguição sofridas por Ele, e a injustiça ali cometida, e também a respeito de tudo quanto Lhe aconteceu, as mais atrozes ingratidões, aberrações que chegaram a um ponto inimaginável. Sendo Ele a vítima, medita sobre os criminosos e o crime, a respeito

do qual qualquer meditação tem como ponto de partida a sua própria
santidade e, portanto, a imensa gravidade do fato de que contra o Santo
dos Santos tenha sido feita a violência das violências.

Por causa do estiramento da Face tem-se certa impressão de ser-Lhe
meio penoso sondar até o fim, pela meditação e pela reflexão, esse abismo
de maldade, o qual não é próprio a Ele estar medindo, pois mais Lhe
compete permanecer com a atenção voltada para as perfeições excelsas
de Deus. E esse abismo de maldade causa uma espécie de assombro expresso
na fotografia do Santo Sudário. E, junto com esse assombro, uma
tomada de atitude em consequência, ou seja, Ele repele totalmente a
atitude das pessoas que fizeram isso e, embora não esteja no momento
emitindo um juízo de quem vai condenar, a condenação já está vindo
no horizonte, inapelável e tremenda.

 

Convicção de que a
Ressurreição virá

 

Notam-se a profundidade, a serenidade, a seriedade da reflexão e a firmeza da consequência da conclusão. O pensamento durante todo o tempo é de uma solidez inabalável, todas as suas impressões foram nítidas e definidas. Tudo quanto Ele viu, rejeitou, pensou ficou para todo o sempre.

Por detrás aparece a Divindade. Porque se percebe que Ele não tem apenas em vista o criminoso, mas a Santíssima Trindade. Noto isso em algo de aveludado, sereno, imperturbável, de sublimemente elevado pelo que Nosso Senhor não desce de corpo inteiro até esse poço de infâmia para sondá-lo, mas tem um padrão do alto do qual Ele mede tudo isso.

A unidade de Pessoa com duas naturezas, a divina e a humana, em União Hipostática é inatingível por tantas ofensas que nem de longe tocam a fímbria da majestade serena d’Ele, mantida de tal maneira por inteiro que um mosquito, voando do lado de fora de uma pirâmide, é menos extrínseco ao que está dentro dela do que todos esses pecados são extrínsecos à santidade, à majestade, à divindade de Nosso Senhor. Jesus está completamente de fora, como quem diz: “Eles cometeram esse pecado, mas a minha santidade, a de Deus Pai e do Espírito Santo não foram atingidas. Nós nos amamos na Trindade Santíssima de um amor ao qual esse ódio não afeta em nada. Há uma paz enorme, uma serenidade, uma dignidade que essa corja de nenhum modo atingiu.”

Por outro lado, imaginemos Nossa Senhora, doloridíssima, dirigindo algumas palavras a seu Divino Filho. Ele Lhe responderia com tal suavidade que se diria estar sendo carregado nos braços d’Ela. Sem dúvida, existia neste Varão a consciência de que ao pé da Cruz estava a Mãe d’Ele. A Santíssima Virgem é o Paraíso de Deus. Portanto, dentro de todo esse horror, Ele estava junto ao seu Paraíso e tinha com isso um gáudio. Isso excede a todas as cogitações humanas.

Uma parte dessa serenidade vem da noção da inatingibilidade. E aí a atitude diante da morte é a mais surpreendente
possível. Porque Ele está morto, mas há uma qualquer coisa parecida com a consciência ou convicção da Ressurreição
que virá. De tal maneira que, de algum lado, a condição d’Ele de morto parece dizer: “Está tudo encerrado!”
Mas de outro lado há algo que afirma: “Nada está encerrado!” Só de olhar isto deveria dar aos assassinos
d’Ele uma insegurança de saírem ganindo pela rua, sem ter o que dizer.

 

 

Batalha dos definitivos

 

O queixo de Nosso Senhor parece ter recebido um golpe em virtude do qual a distância entre a parte superior e a fissura dos lábios ficou mada por eles diante de Mim é definitiva!
A que Eu tomo diante deles é definitiva! A minha morte é definitiva! Definitiva será minha vitória! É a batalha dos definitivos. Nesse embate
só falta o último lance que compete apenas a Deus e, portanto, a Mim. Esse lance é a minha Ressurreição, e esta não depende nada dos homens,
mas inteiramente de Mim! E isto virá!”

Com a pancada recebida, o nariz se alongou e isso confirma a impressão de ter passado por várias peripécias. Através de seu traçado, tornado assim indeciso, há uma decisão no
fundo, mais ou menos como a do homem que passa por muitas provas e as vence, permanecendo inabalável, imutável.

O Divino Redentor passou por todas as vicissitudes da Paixão, e em todas elas a perfeição da atitude foi inteiramente a mesma. Através das várias peripécias estampadas no nariz,
se nota a indefectível continuidade d’Ele até o “Eli, Eli, lamma sabactani” 1. Essa fisionomia parece dizer a quem a contempla: “Tu passarás pelas mais assombrosas peripécias.
Sê firme, igual a ti mesmo, para seres igual a Mim até o fim! Os firmes vencerão, e não há bofetada nem golpe que os deforme. Para frente!”

Olhar que increpa todos
os pecados do mundo

Esse olhar de pálpebras fechadas eu não ouso comentar, pois logo que começasse a fazê-lo, senti-lo-ia fixar-se em mim e dizer:
“Tu ousas transpor para teu miserável vocabulário e o jogo das tuas impressões aquilo que é superior a qualquer cogitação? Eu estou
te olhando e tu pensas que alguma palavra é capaz de descrever esse olhar? A todo momento ele continua o mesmo e variado. Tu pensas seres
capaz de acompanhar essa variedade dentro da estabilidade perfeita?

Meu olhar te convida a penetrar no fundo de Mim mesmo, e quando começas a adentrar percebes que estás entrando no Sanctum Sanctorum2, dobras os joelhos, baixas a cabeça e te deixas envolver, não consegues erguer a tua fronte. Não fales do que não ousas ver!”

Sente-se que esse olhar increpa não apenas os pecados cometidos contra Nosso Senhor durante a Paixão, mas todos os pecados do mundo. Portanto, também tem a atenção posta nos nossos defeitos, embora não com uma recusa tão colossal; porém, enquanto defeito, Ele rejeita.

 

No Santo Sudário Nosso Senhor Jesus Cristo está nos ensinando por contraste. Há representações do Divino Redentor que nos fazem sentir uma certa afinidade com Ele, mas esta é a imagem do contraste por excelência. Diante dessa figura só tenho vontade de dizer a Nossa Senhora: “Minha Mãe, obtende que Ele me cure!”
A boca também traz a marca da Paixão, porque possui o sinal da dor, e ao fechar-se exprimiu algo da alma d’Ele que normalmente não se exprimiria. Não é propriamente uma boca de mistério, mas dá a entender: “Não falarei nada, e no meu silêncio está tudo dito, não me perguntes.” Não está na nossa medida ouvir o que Ele tem a dizer. Portanto, não O interroguemos, mas compreendamos por meio de seus lábios cerrados.

A Sagrada Face apresenta algo à maneira de uma contradição, porque o rosto do homem é o repositório da sua honra; entretanto, nessa Face Divina se encontra toda a honra como nunca houve, junto com todas as bofetadas e insultos que jamais foram descarregados contra alguém; tudo está acumulado ali. Calculem o que Nossa Senhora sofreu vendo isso! Simplesmente não há palavras!

Harmonia, equilíbrio
e beleza só possíveis
no Homem-Deus

Pode-se perguntar: a Paixão acrescentou algo a Ele? Poder-se-ia resumir a questão numa outra: a cicatriz acrescenta algo ao guerreiro? É claro! Nosso Senhor Se tornou cheio de cicatrizes. Quando nós, pelos rogos de Maria, O contemplarmos no Céu, veremos na Face d’Ele uma espécie de plenitude do que era em todas as idades da sua vida. Mais do que como era no Santo Sudário e na Cruz. Todas as suas cicatrizes estarão irradiando esplendores e aumentarão a beleza da Santa Face. Não temos ideia de como Ele será pulcro para nós olharmos.

A fronte tem uma proporção e está numa harmonia celestíssima com o restante do rosto, é a própria imagem da perfeição moral. O tamanho normal dela não aparece devido ao cabelo desalinhado, maltratado, desordenadamente posto pelo Sangue que escorre. Tudo isso causa uma sensação de que a testa desapareceu, como se diria de um castelo cuja parte mais alta pegou fogo.

Consideremos a estatura d’Ele. Percebe-se a extensão de ombro a ombro, a altura do pescoço e do tronco, o comprimento dos braços, formando uma proporção simplesmente monumental!

Em Nosso Senhor existe a conjunção de dois aspectos: a estabilidade e o movimento. Ele tem uma estabilidade perto da qual uma pirâmide do Egito é uma mexerica. E, de outro lado, possui uma facilidade de Se mover a qualquer momento, para um movimento dominador, natural, que afasta qualquer obstáculo para longe. Ele é o Rei rompu, brisé, anéanti – quebrado, despedaçado, aniquilado –, segundo a expressão de Bossuet, mas a essência d’Ele está completa. Ele domina plenamente. Olhando só esse equilíbrio já se compreende não se tratar de um mero homem. É o Homem-Deus.

Pode-se perceber nesse Corpo inerte o pensamento enunciado nos Evangelhos que repercute na voz, aflora na fronte, baila nos olhos, exprime- se pelos lábios e gestos. D’Ele saíram virtudes de toda espécie e cada uma delas era um hino de ordem e de elevação, algo que não podemos imaginar.

A meu ver é inteiramente óbvio que isso traz consigo a prova de que Ele existiu e era Homem-Deus. Só alguém de um valor igual ao d’Ele poderia conceber aquilo que ali se encontra.

 

A tal ponto que se eu não conhecesse Jesus e O visse passar pela rua, me ajoelharia e diria: “Meu Senhor e meu Deus!”

Em contrapartida, ao entrar em uma catedral gótica, no ambiente silencioso ou onde se tocasse uma música inteiramente adequada, causando- me a impressão de que todas as luzes e formas do recinto sagrado se corporificavam em sons; uma igreja toda florida de maneira a encher-se de perfumes odoriferíssimos, meu espírito desejoso de unum seria levado a perguntar: “Mas não haverá alguém que englobe e exprima melhor tudo isto?” Se nesse momento aparecesse Jesus, eu daria um brado: “Eis! Porém, Ele é muito mais belo do que tudo isso!” E, mais uma vez, exclamaria: “Meu Senhor e meu Deus!”

E ainda que, enquanto eu me desfizesse de veneração, gratidão e pedido de perdão, Ele me quisesse fazer um agrado, não era para mim o mais importante. O principal era querer a Ele: gratias agimus tibi propter magnam gloriam tuam3.

Pois bem, a Igreja Católica é o Corpo Místico de Nosso Senhor Jesus Cristo. Tudo quanto ela possui e ainda aparecerá dela no Reino de Maria é isso, com uma intensidade, uma fragrância da qual nós temos dificuldade de formar uma ideia. v
(Extraído de conferência de
9/2/1983)

 

 

 

1) “Meu Deus, meu Deus, por que Me
abandonaste?” (Mc 15, 34).
2) Do latim: Santo dos Santos.
3) Do latim: Nós vos agradecemos por
vossa imensa glória.
Gabriel K.

 

Igreja audaciosa, cheia de Fé, batalhadora

A grande batalha dos povos não se trava fora das fronteiras da Igreja, mas dentro delas. Quando a Igreja está ereta, audaciosa, cheia de Fé, batalhadora, os adversários não são nada. Podem ter o ouro e o domínio que quiserem, podem inclusive matar os que são fiéis, não tem importância, se eles tiverem fervor, tudo vai para a frente.

Todos os mártires romanos, desde a chegada de São Pedro à cidade eterna até o decreto de Constantino dando liberdade à Igreja Católica – portanto, séculos de martírio –, poderiam subscrever estas minhas palavras. Eles foram perseguidos, caluniados, calcados aos pés, enfim, fizeram de tudo contra eles. Porém houve fervor, vida interior, a Santa Igreja continuou, tornou-se invencível e o Império Romano ruiu pelo chão.

(Extraído de conferência de 22/5/1987)

Uma vida inteira consagrada ao serviço de Deus, de Maria Santíssima e da Santa Igreja Católica Apostólica Romana!

Há 25 anos entrava na eternidade um varão de Deus!

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A TFP vem manifestar toda a sua gratidão a Deus, pela mediação da Santíssima Virgem, por ter feito surgir esta obra pela iniciativa providencial e bendita de Plinio Corrêa de Oliveira.

Por ter sido um Fundador, a dimensão de sua pessoa, de suas ideias, de sua atuação alcança um patamar que não se restringe aos dias de sua vida terrena.

E ele foi um autêntico Fundador e inspirador de uma grande família de almas, que deu origem a diversas correntes de opinião, associações e iniciativas de índole civil e religiosa pelo mundo afora.

Até hoje, passados 25 anos de sua entrada na eternidade, seu nome é uma verdadeira bandeira, um divisor de águas, porque “o fundador encontra-se na situação de ter que ir contra a corrente e ser sinal de contradição”, explica o Pe. Fabio Ciardi . E continua: “Denuncia frequentemente com a palavra uma determinada situação eclesial, como ocorre com o profeta do Antigo Testamento; mais ainda, é ele mesmo, feito palavra viva, que se converte em denúncia com sua própria vida e ação, atraindo o ódio e a perseguição dos que se sentem ameaçados no seu cômodo viver”. (F. CIARDI, Los fundadores, hombres del Espíritu, pp. 274-275)

Muito combatido e também elogiado em vida, a figura de Dr. Plinio vai se tornando com o correr dos anos mais compreendida por uma parcela crescente da opinião pública, inclusive porque muitas de suas previsões e análises – inverossímeis para tantos na ocasião de sua formulação – vão sendo confirmadas pelos fatos.

Nesse sentido, comenta um autor: “Ao aproximarmo-nos [dos fundadores] deparamo-nos com algo que não entendemos; e, inclusive, quando imaginamos conhecê-los bem, cada vez que refletimos sobre eles, descobrimos algo novo. Como explicar este mistério, esta riqueza inesgotável? Simplesmente pelo fato de que, ao encontrarmo-nos com um Fundador, nos achamos diante do mistério de Deus: no Fundador, e através dele, é o próprio Deus que atua”. (Il Carisma dei fondatori, Roma, 1974,p.11. Apud, Antonio Romano, Los Fundadores, Profetas de la Historia, pp. 63-64)

E no caso de Dr. Plinio, tendo em vista a sua vocação de fazer face à Revolução – movimento multissecular, que abrange todo o agir humano para levar a sociedade civil e a Santa Igreja a uma situação oposta à desejada por Deus –, o seu olhar abarcava, a bem dizer, todos os horizontes possíveis, conforme ele mesmo definiu a sua luz primordial:

“Uma visão arquitetônica e harmônica, monárquica e aristocrática de todo o universo material e espiritual criados, desde um grão de areia até o mais alto Anjo, ressaltados os pontos que a Revolução procura combater”.

Os Fundadores podem ser analisados e examinados sob muitos aspectos, mas só há uma maneira de compreender a fundo a sua pessoa: amando-a!

Foi, com efeito, o amor à Santa Igreja a característica da longa e heroica existência de Dr. Plinio, a ponto de ele se emocionar ao ouvir a referência à sua catolicidade.

Conforme seu desejo, sobre os seus restos mortais figura o significativo epitáfio:

Vir catholicus, et apostolicus, plene romanus 

Varão católico, apostólico, plenamente romano.

No momento em que se completa um quarto de século de seu encontro com Deus, a TFP quer celebrar esta data adaptando e aplicando a seu Fundador as palavras que um dia ele escreveu no jornal Legionário:

Plinio não dobrou nunca e nem sequer um só joelho diante da Revolução.

Plinio sempre teve a Lei de Deus escrita no bronze de sua alma. E não permitiu que as doutrinas deste século gravassem seus erros sobre esse bronze, que sagrado a Redenção tornou.

Plinio Corrêa de Oliveira amou, como o mais precioso dos tesouros, a imaculada pureza da ortodoxia e recusou qualquer pacto com a heresia, suas obras e infiltrações.

Na tormenta, na aparente desordem, na aparente aflição, na quebra aparente de tudo aquilo que para ele seria a vitória, Plinio é aquele que confiou, que jamais duvidou, mesmo quando o mal parecia ter vencido para sempre.

Plinio é o filho, o heroi e o paladino da confiança! Quanto mais os acontecimentos pareciam desmentir a voz da graça que lhe dizia — “vencerás” —, tanto mais ele acreditou na vitória de Maria!

Unida a ele, portanto, a TFP ecoa esta sua verdadeira proclamação de Fé:

 

“Estou certo de que os princípios a que consagrei minha vida são hoje mais atuais do que nunca e apontam o caminho que o mundo seguirá nos próximos séculos.

Os céticos poderão sorrir. Mas o sorriso dos céticos jamais conseguiu deter a marcha vitoriosa dos que têm Fé.” (conclusão do Auto-retrato Filosófico)

O joio e o trigo

Na parábola do joio e do trigo (Mt 13, 24-30) a boa semente, segundo a interpretação que lhe deu o próprio Senhor (Mt 13, 38), são os filhos do Reino, os que ouviram a palavra de Deus, aceitaram-na e com ela conformaram sua vida. Na sociedade visível instituída por Nosso Senhor Jesus Cristo, a Igreja, o trigo seriam os fiéis. Há de notar-se, entretanto, que o joio, isto é, os filhos da iniquidade (Mt 13, 38), encontra-se no mesmo campo, cresce ao lado, bem junto do bom grão. Seria mesmo difícil arrancá-lo sem danificar o trigo.

A lição do Mestre insinua, pois, que está nos desígnios da Providência permitir também a existência de maus no seio da sua Igreja. E dispôs assim que prosseguisse ela sua finalidade até o tempo da colheita, que é a consumação dos séculos, quando o Reino dos Céus receberá seu último complemento na Jerusalém celeste, onde não entrará nada de imperfeito.

Não nos escandalizemos, portanto, se encontrarmos algum dia nos nossos templos também o joio, onde absolutamente ele não deveria estar. Nosso Senhor o predisse para que não se infirmasse nossa Fé. Para permiti-lo tem razões divinas que aos limites de nossa inteligência nem sempre é dado perscrutar.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de O Legionário  n. 334, de 5/2/1939)
Revista Dr Plinio 269 (Agosto de 2020)

Militância católica: excelente forma de amor a Maria

Quem conhecesse a Santíssima Virgem nesta Terra, admirando-A, teria a noção de toda a sabedoria da Igreja, do esplendor de todos os Santos, do talento de todos os Doutores, do heroísmo de todos os cruzados e da paciência de todos os mártires. Enfim, não houve beleza que a Igreja tivesse engendrado que não resplandecesse em Nossa Senhora com extraordinário fulgor.

Com efeito, amamos Maria Santíssima sendo, vivendo e fazendo como a Igreja Católica nos prescreve. Em nossos dias, a Igreja militante se encontra no auge de sua luta. Portanto, nosso amor à Santíssima Virgem e à Esposa Mística de Cristo supõe, na atual conjuntura, pensamentos de coragem apostólica, de intrepidez, de santos empreendimentos em prol da Civilização Cristã.

Em várias de suas imagens, a Mãe de misericórdia contempla, enlevada, o Céu ou considera com bondade a Terra. Entretanto, com seu calcanhar, a Virgem esmaga continuamente a cabeça da serpente. É a representação de uma luta que só cessará no fim do mundo.

Sem dúvida, se Nossa Senhora estivesse de modo visível nesta Terra, estaria estimulando os seus devotos escravos a combater pela causa d’Ela. Na militância católica se encontra, pois, uma das mais excelentes formas de amor e de veneração à Santíssima Virgem.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 7/10/1971)
Revista Dr Plinio 269 (Agosto de 2020)

Visão de conjunto do verum, bonum e pulchrum

A Idade Média tendia para pulcritudes que se fundiriam numa só ordem grandiosa apontando para o Reino de Maria. O Humanismo procurou provocar sensações meramente sensíveis e fragmentadas, prometendo ao homem uma falsa felicidade nesta Terra. Desse conceito errado de felicidade deriva todo o desabamento tortuoso pelo qual precipitou-se o mundo contemporâneo

 

Um homem privado inteiramente de qualquer forma de “pulchrum”, mesmo das mais modestas, pereceria primeiro se deformando, depois definhando em sua personalidade. Levaria uma vida tão arrastada, tão difícil, tão inconveniente de ser vivida que equivaleria quase a uma morte.

O homem tem necessidade do “pulchrum”

Pode-se realizar bem isso imaginando o que se conta a respeito do Delfim de Luís XVI e Maria Antonieta, na prisão do Templo. Murado vivo, nunca se limpando, se lavando, não tendo ar livre, perpetuamente na escuridão, sem interlocutor, recebendo a alimentação – pode-se imaginar que comida e que bebida… – por meio de uma dessas rodas junto a uma porta, e o resto do tempo completamente isolado.

Era um ente inteiramente privado de “pulchrum”. Dir-se-ia que o mais terrível era estar privado do afeto paterno e materno. Isso é evidente, e é nocivo no mais alto grau. Porém ainda que recebesse demonstrações desse amor, se ele não tivesse algum contato com uma realidade sensível bela, por exemplo, jamais visse o pai e a mãe – apenas tomasse conhecimento de bilhetes que lhe mandavam, porque estavam proibidos de entrar –, ele teria a noção da perseverança do afeto de seus pais, mas isso não bastaria. Precisaria ter algo de belo.

Absolutamente falando, a necessidade do “pulchrum” não é como a do ar, sem o qual a pessoa morre, mas é a que conduz a uma situação quase intermediária entre o estar vivo e o estar morto.

No campo doutrinário, há aqueles que, ao ensinarem o tomismo, embora não afirmem claramente, insinuam que para compreender bem o pensamento de São Tomás é preciso afastar o “pulchrum” de qualquer cogitação e pôr-se numa atitude onde só joga o raciocínio. Isso é completamente falso e anti-tomista.

Tudo o que é verdadeiramente belo favorece a virtude

O trecho sobre Maria Antonieta, do historiador inglês Edmund Burke que tivemos ocasião de comentar(1), tem uma beleza inegável. Porém, trata-se de um “pulchrum” moral.

Tudo aquilo que é autenticamente belo, de si, favorece a virtude. Não me refiro, é claro, a uma obra de arte esteticamente bonita, mas imoral, a qual em seus detalhes poderá despertar lubricidade. Essa é uma outra questão. Mas se uma obra de arte é verdadeiramente bela, ela desperta a pureza, porque a inocência se compraz com a beleza.

O “pulchrum” moral da Contra-Revolução está no fato de que tudo quanto ela diz e quer, os caminhos por ela trilhados têm um aspecto de beleza, do contrário não seria Contra-Revolução. Entretanto, a natureza dessa beleza varia muito. Por exemplo, Godofredo de Bouillon galgando as muralhas de Jerusalém, tomando conta da cidade e dirigindo-se ao Santo Sepulcro, seguido por seus guerreiros, tem uma beleza de arrepiar. É uma ação de caráter religioso-moral, tanto mais moral quanto é religiosa, e possui um “pulchrum” duplo: é a beleza do estabelecimento de uma ordem e da destruição da desordem que se opunha a essa ordem.

Na Idade Média, o “pulchrum” não era tomado apenas em uma determinada linha. Explico-me tomando como exemplo um nome que exprime uma certa ideia de “pulchrum” moral: Ricardo Coração de Leão. Refiro-me exclusivamente ao nome, pois o personagem não valia nada. O rugido do leão tem sua majestade, sua beleza. Um homem que se chama Coração de Leão dá a entender que ele quer ter essa coragem. E como ele era ligado ainda ao ambiente medieval, pensa-se num homem da Idade Média que tem coração de leão. Ora, fica muito bonito para um medieval ter coração de leão.

Mas o “pulchrum” medieval não consistia apenas em tomar um conceito assim – homem com coração de leão –, mas em uma ideia sintética da colaboração de todas as belezas para a constituição de uma resultante da soma de todos as pulcritudes, a fim de causarem ao mesmo tempo uma impressão única que seria quase uma visão sensível do belo enquanto belo, de uma beleza metafísica.

É propriamente o que medieval procurava, por exemplo, com aqueles vitrais da Sainte-Chapelle. Aquilo é uma sinfonia de cores onde cada nota tem seu efeito para produzir não apenas um bonito lilás ou vermelho em tal caquinho de vidro; isso existe e teríamos vontade de mandar fazer uma capela só com tons daquele vermelho ou daquele lilás. Porém o que fica no espírito humano de ideia e de sensação viva do “pulchrum” é o que decorre da coexistência e da coordenação de tudo isso junto.

Engana-se, portanto, quem pensa que são os vitrais o que há de mais bonito na Sainte-Chapelle. O mais belo é uma espécie de arqui-cor aparentemente incolor ali existente, como se estivéssemos num líquido composto de todas aquelas cores ao mesmo tempo. É o sublime da beleza da Sainte-Chapelle.

Ordem grandiosa que apontava para o Reino de Maria

Em geral, a Idade Média tendia para sínteses gigantescas dessa natureza, em que pulcritudes de vários tipos, de si, já constituíam pirâmides de belezas particulares, fundindo-se numa só ordem grandiosa que apontaria para algo – que o medieval não sabia, mas que seria o Reino de Maria – onde tudo fosse de uma harmonia arquetípica, desde a ordenação das ruas até a plantação das árvores, à maneira do Céu empíreo, e as pessoas se sentissem envoltas por tudo isso junto e, prelibando o Paraíso, dariam um brado de contentamento: “Ó beleza! Ó alegria!”

Isso nos dá uma ideia do coração humano reto que procura, já nesta Terra, uma forma de felicidade ordenadíssima que produz a suma felicidade.

A Revolução – sobretudo no seu começo nascente no fim da Idade Média, no Humanismo – procurou provocar sensações meramente sensíveis e fragmentadas, prometendo ao homem a felicidade nesta Terra se ele procurasse qualquer desses prazeres isoladamente e fizesse disso o campo da sua felicidade. A promessa era: “Goze disso e de várias coisas assim à vontade, mas não constitua uma síntese, porque a síntese o tirará da realidade!” Eis a grande mentira. Desse conceito errado de felicidade deriva todo o desabamento tortuoso pelo qual nos precipitamos onde estamos.

A verdadeira felicidade

Para o medieval, a noção de felicidade consistiria na tendência contínua para o “verum, bonum, pulchrum”.

Não se pode conceber um homem que procurasse o “pulchrum” o tempo inteiro e não buscasse, nas devidas proporções, também o “verum” e o “bonum”, até mesmo um artista. Evidentemente, ele não os procuraria separadamente, mas teria a visão de conjunto do “verum, bonum e pulchrum” de sua obra de arte.

Se bem que essa visão global dê a verdadeira felicidade nesta Terra, é necessária muita retidão para a pessoa querer tê-la. Por isso ela horripila o homem moderno, mas extasia o verdadeiro católico, embora este se encontre carregado de cruzes. Eu quase ousaria dizer que extasia no sentido místico da palavra. Isso porque a sede da contemplação, e o fato de encontrar-se dessedentado somente na medida em que se realiza a contemplação, corresponde a uma primeira graça que a pessoa recebe de um modo germinativo, um primeiro toque, com a inocência. O mundo atual está feito para excitar no indivíduo o abandono disso para se jogar nos prazeres fragmentados.

Antigamente os transatlânticos procuravam realizar isso. Eram palácios flutuantes onde a todo momento se oferecia um pequeno prazer. Então, salões magníficos nos quais garçons serviam sorvetes, bebidas, sanduíches, etc. Num desses salões se tocava música, em outro tinha jogo, noutro havia não sei o quê…

No tombadilho ficavam dispostas umas cadeiras espreguiçadeiras anatômicas, idealmente cômodas, com colchão de revestimento macio, enfim, tudo era mole. E quando a pessoa se encontrava inteiramente à vontade, vinha um empregado que fazia um salamaleque e oferecia, numa bandeja, refrescos segundo o gosto do cliente, que bebericava aquilo enquanto olhava o esplendor do mar.

Ficava subjacente a ideia de que viver num navio desses, ou num mundo todo ele feito de uma soma justaposta de sensações agradáveis, era a própria definição de felicidade.

Ora, eu, que por temperamento e modo de ser tenho uma enorme tendência a apreciar essas coisas e a procurar nelas a felicidade, estou certo de que, quando tivesse me saciado com tudo isso, dar-me-ia conta de haver em mim um vazio que essas delícias não preencheram, mas se eu entrasse na Sainte-Chapelle, diria: “Encontrei a felicidade!” v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 21/8/1994)
Revista Dr Plinio 269 (Agosto de 2020)

 

1) Ver Revista Dr. Plinio n. 268, p. 12-18.

 

Um rio de humildade no Paraíso do novo Adão

São Luís Grignion afirma que em Maria Santíssima, Paraíso do novo Adão, “há um rio de humildade que surge da terra, e que, dividindo-se em quatro braços, rega todo este lugar encantado: são as quatro virtudes cardeais”.

As virtudes cardeais – justiça, temperança, fortaleza e prudência – são aquelas que regulam todas as ações do homem. Dessa poética figura podemos deduzir que quem for verdadeiramente humilde possui as quatro virtudes cardeais.

Ora, verdadeiramente humilde é aquele que, antes e acima de tudo, o é em relação a Deus. A humildade para com o Criador consiste em reconhecer o que devemos a Ele, tributando-Lhe nossa enlevada e submissa adoração. Consiste, portanto, em sermos para com Deus amorosos e filiais paladinos da causa d’Ele – que é a mesma da Igreja Católica – até o último extremo de nossas forças. Portanto, a verdadeira humildade dispõe a alma do homem para viver num holocausto contínuo em relação a Deus, ao mesmo tempo em que o faz adquirir as quatro virtudes cardeais. Assim era a humildade de Nossa Senhora, Paraíso do novo Adão.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 5/6/1972)
Revista Dr Plinio 268 (Julho de 2020)

Sacralidade, renúncia e força de impacto

O cavaleiro medieval era fundamentalmente religioso, persuadido de sua Fé e da legitimidade, e até da obrigação, de usar o máximo de força a serviço da verdadeira Religião. Imbuído da liceidade dos meios que empregava, ele se deu por inteiro à Causa católica, estando disposto a ir até o fim e a morrer por ela.

 

Vamos fazer algumas considerações em torno de uma estátua que representa um guerreiro medieval, ostentando uma faixa com a palavra “Credo”.

Diálogo de increpação com quem se encontra diante dele

É uma peça típica do século XIX. Em geral, as figuras da Idade Média nada têm de teatral. Por exemplo, as esculturas que ornamentam as catedrais, postas em nichos, estão para ser vistas, mas o artista teve a preocupação de esculpi-las como se ignorassem os espectadores. De maneira que não têm nada de teatral.

O século XIX foi o século do teatro, como o XX foi o do cinema. Porque a arte teatral teve uma expansão no século XIX fabulosa, como quantidade e importância na vida concreta, em comparação com o século posterior.

Esse caráter teatral é o lado fraco não só da arte, mas da mentalidade de todo o mundo no século XIX, inclusive dos contrarrevolucionários.

Assim, esse guerreiro foi representado de maneira a estar tomando posição perante outrem, num diálogo de increpação com quem se encontra diante dele.

Por outro lado, o autor representou bem um lado admirável da alma do cavaleiro medieval: enquanto guerreiro, de tal maneira fundamentalmente religioso que, visto de um aspecto, ele não é senão religioso e só se ocupa com a Religião.

Ademais, está por inteiro persuadido de sua Fé e da legitimidade, e até obrigação, de usar o máximo de força, dentro das regras moralmente nobres da Cavalaria, a serviço da verdadeira Religião. Ele está altamente imbuído da legitimidade dos meios que emprega e se deu por inteiro a essa Causa, disposto a ir até o fim e a morrer por ela. Há, portanto, a meu ver, uma ideia de sacralidade, de renúncia, de determinação e de força de impacto extraordinária nesse guerreiro.

Se o comparamos com um guerreiro do século XV, notamos como são profundamente diferentes. Entretanto, o cavaleiro do panache(1) acrescenta algo que faltava ao medieval, embora tenha havido uma defasagem em pontos fundamentais.

Avançando nos séculos, poderíamos confrontar o cavaleiro medieval com um guerreiro de Napoleão, e encontraríamos diferenças ainda mais marcantes, por onde se vê que a coragem não é apenas a determinação de enfrentar o fogo e a morte, mas uma deliberação da pessoa inteira de empreender qualquer coisa em qualquer campo.

Um guerreiro de Napoleão fora da guerra poderia ser mentiroso, ladrão, acovardado. Ney(2), por exemplo, não era obrigado a ser bravo e ter as virtudes militares na vida civil, bastava possuí-las na vida militar. O medieval não era assim. Esse modo como ele está aqui representado é o mesmo pelo qual enfrenta qualquer outro perigo, adversário ou dever. A guerra para ele é um estilo de vida; para Ney é um estilo de luta. Na hora do combate, o soldado napoleônico é o bravo, mas na vida civil é um sujeito qualquer.

Sacral como uma torre de catedral

Um aspecto que me agrada especialmente nessa figura de cavaleiro medieval é a suprema sacralidade. Ele é sacral como uma torre de catedral, de uma sacralidade que leva às mais altas considerações do espírito, misturadas com muito bom senso. Não vejo esse predicado nos guerreiros que vieram depois. No extremo oposto disso estaria Dom Quixote, por exemplo. O medieval não vai por cima de um moinho de vento, não tem perigo. Entretanto, Dom Quixote manifesta qualquer coisa que o medieval possui, mas não desdobrou. Por exemplo, nesse cavaleiro da Idade Média o gosto da aventura não se encontra. Está o senso do dever aceito por inteiro, com uma determinação de alma completa, até admirável, mas não se pode dizer que está alegre de ser guerreiro. Não há aquela alegria específica da proeza, com a qual a pessoa pega a espada, a lança e diz: “Afinal!”

Alguns tinham isso; a maioria, porém, ia para a guerra porque era preciso, mas não se tinha chegado a destilar aquilo que se destilou depois, isto é, o gosto da proeza pela proeza. Contudo – aqui está o mal – deveriam apreciar a proeza por ser ela um reflexo de Deus, mas eles gostavam da proeza pela proeza por uma vaidade, um esporte, e isto é errado. Não obstante, há um gosto metafísico da proeza que eu encontro nos heróis da Reconquista espanhola, mas vejo menos nas Ordens de Cavalaria.

A proeza enquanto tal é uma linda posição da alma, que atinge essa beleza para se parecer com Deus, seu Criador. Os pregadores, quando viram despontar o amor da proeza, deveriam ter dito isto para canalizar esse amor. Este cavaleiro, representado nesta estátua, leu no compêndio que se deve morrer pela Fé e resolveu cumprir seu dever de modo fabuloso; pode ser um santo, mas não tem aquele “élan” que corresponde à alegria de realizar essa proeza por ser boa em si, porque reflete a Deus.

Nostalgia da proeza

Nessa outra representação o gosto da proeza está expresso de modo bem mais explícito, porque se nota nesse guerreiro montado a cavalo uma leveza que procede de uma alegria interior, simbolizada até no modo de a auriflama tremular ao vento, e na posição da lança; tudo isso representa a alegria de atacar com todas as forças, expondo-se ao risco. Os ornamentos do cavalo e do cavaleiro têm por objetivo nobilitar o estado de proeza em que esse homem se encontra. A viseira erguida indica o desafio ao risco.

A iconografia do século XIX representou muito mais o cavaleiro na guerra do que os próprios medievais representaram. É mais uma prova de que eles não tinham sabido ainda explicitar toda a beleza da proeza que possuíam. Os heróis que realizaram as proezas não tiveram tanto a ideia do “pulchrum” da proeza quanto o século da burguesia com saudades da proeza, e que soube cantar o que os outros possuíam.

A partir desse fenômeno poder-se-ia afirmar um princípio: o século que perdeu uma determinada qualidade e a considera com nostalgia, embora já não possua esse predicado, tem dele uma noção mais definida do que aquele que o possuiu. Essa nostalgia não é um elemento de fantasia, mas de definição.

Então, há uma pós-Idade Média baseada na História, mas vista por nós de um modo que não estava inteiramente na consciência dos medievais. Seria um erro afirmar que eles não possuíam esse espírito e essas qualidades. Tinham, mas os homens de séculos posteriores souberam exprimir melhor do que eles, por causa da nostalgia e do contraste produzidos pela falta que sentiam dessas riquezas.

Isso aponta para um aspecto da tradição até agora não considerado. Talvez a alma da tradição seja essa lembrança sublimada, com lucidez, que é o melhor legado que uma geração confere a outra.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 23/5/1974)
Revista Dr Plinio 268 (Julho de 2020)

 

1) Do francês, em sentido figurado: galhardia, brio.

2) Michel Ney (*1769 – †1815). Comandante francês nas guerras revolucionárias francesas e nas guerras napoleônicas, e um dos dezoito Marechais da França instituídos por Napoleão Bonaparte.

Um papa que expulsou os hereges de dentro da Igreja

São Leão II, referindo-se às faltas de seu predecessor, Honório I, declarou que este, “em vez de purificar esta Igreja Apostólica, permitiu que a Imaculada fosse maculada por uma traição profana”. Canonizando Leão II, a Esposa de Cristo quis mostrar que a plenitude e a vivacidade da Fé são opostas à tolerância, composição e inércia em relação à heresia, tão frequentes em nossos dias.

 

Tenho a comentar duas notas a respeito de dois Santos que viveram a uma grande distância no tempo.

São Leão II, Papa, que aprovou as Atas do VI Concílio Ecumênico para condenar a falta daquele que, no dizer do Santo, “em vez de purificar esta Igreja Apostólica, permitiu que a Imaculada fosse maculada por uma traição profana”. Século VII.

Santo Irineu, Bispo. Deus deu-lhe a graça de destruir as heresias pela verdade da doutrina. Lutou contra os gnósticos. Século II.

Tudo o que é vivaz tem horror ao que lhe é contrário

Quando ouvimos falar em séculos II e VII, temos a impressão de que foram muito próximos um do outro, pois se perdem no nosso olhar e no rumo do tempo, formando uma coisa só. Entretanto, a distância cronológica que havia entre esses dois Santos é mais ou menos a que separa o Brasil do tempo de seu descobrimento e o de hoje. Então, compreende-se como esses Santos viveram distantes um do outro.

Ora, apesar dessa distância, ambos possuem um traço comum, consignado nessas pequenas notas: combateram a heresia, expulsaram os hereges de dentro da Igreja e vingaram a honra da Esposa de Cristo. Porque o herege dentro da Igreja maculava-a por sua presença. Por causa disso, a honra da Igreja exigia essa expulsão, impunha que o herege fosse posto fora, porque não pode haver coexistência pacífica, coabitação normal entre o bem e o mal, a verdade e o erro. Não pode haver em nenhum lugar, mas sobretudo dentro da Igreja Católica que é, por excelência, a montanha sagrada da verdade e do bem, que repele de si, horrorizada, aquele que dentro dela toma a defesa do erro e do mal.

Alguém poderia objetar: “Mas, afinal de contas, qual é o papel da misericórdia dentro disso?”

A Igreja tem muita misericórdia e não expulsa de si aquele que reconhece que anda mal, bate no peito e pede perdão por andar mal. Mas quem dentro da Igreja afirma que o bem é o mal e o mal é o bem, luta para disseminar o erro, a este ela expulsa horrorizada.

Isso por duas razões: primeiro, porque o herege perde as almas que estão dentro da Igreja. Em segundo lugar, por uma razão mais alta de heterogeneidade fundamental: a Santa Igreja é heterogênea com quem dissemina a heresia, e não pode suportar junto a si quem faz isso.

Em última análise, essa incompatibilidade está na própria natureza do princípio de contradição. Tudo aquilo que é vivaz, pelo próprio fato de ser vivaz, tem um horror àquilo que lhe é contrário e o repele com toda força e vivacidade.

Isso ocorre até no mundo animal. Um bicho que está na força de sua idade, ao se deparar com um fator contrário, reage violentamente. Por exemplo, um gato. Se uma mosca pousa em um gato cheio de vitalidade, ele espanta o inseto com violência. Mas se se trata de um gato velho, a mosca pousa nele, o incomoda, mas ele faz um gesto com negligência e com um mínimo esforço. Porque na medida em que o ser possui vivacidade tem horror àquilo que lhe é oposto.

Devemos representar a intransigência da Fé dentro da Igreja

Assim, a Igreja, cuja vida é eterna, perene, sobrenatural, tem o horror normal e contínuo àquilo que lhe é contrário. Por isso, está na índole dela ejetar para fora de si o herege, o foco de mau espírito. E o fato de ela se manifestar indolente, preguiçosa, pouco apressada na repressão do mal, indica que aqueles de seus representantes ou filhos que são assim possuem a Fé num estado de declínio, de ocaso.

Quando a Fé se encontra no estado de aurora ou no meio-dia, ela é intransigente. Quando a Fé definha, começa a envelhecer, a murchar, então surgem os conchavos, pois ela já não sente aquela fundamental incompatibilidade com aquilo que lhe é hostil.

Então compreendemos a razão pela qual a Liturgia, quando canta louvores a um Santo, insiste como título de glória desse Santo o fato de que ele ejetou para fora da Igreja os maus. A Igreja quer mostrar como a plenitude e a vivacidade da Fé e da virtude são opostas a essa composição, a esse transigir que hoje tão frequentemente se vê, e que exatamente deve ser considerado com um dos sintomas mais alarmantes existentes dentro da Igreja atualmente, ou seja, o senso da tolerância, da composição, da inércia em relação à heresia.

Temos, assim, mais um ângulo para considerarmos nosso apostolado: devemos representar na Igreja a intransigência, pois dessa maneira representamos a Fé viva, porque só aquilo que é muito vivo não transige. É, portanto, a vivacidade, a intransigência da Fé que nos compete representar dentro da Igreja. É para isso que nossa vocação nos chama. E devemos reconhecer humildemente que este dom desce do Céu e pousa sobre nós como um favor obtido pelas orações de Nossa Senhora, nos vem de fora, e a ele simplesmente nos cabe corresponder e pedir sempre à Santíssima Virgem que nos dê um acréscimo deste dom.

As circunstâncias dentro das quais nós vivemos são muito difíceis e se prendem à vida de São Leão II. A ficha a seu respeito afirma que ele aprovou as atas do VI Concílio Ecumênico, o qual condenara a falta daquele que, no dizer do Papa São Leão II, “em vez de purificar esta Igreja Apostólica, permitiu que a Imaculada fosse maculada por uma traição profana”. Aquele cujo nome não está dito era o Papa Honório I.

O Papa São Leão II disse isto de seu predecessor, ele passou por essa dificuldade tremenda de ter vivido no tempo em que se podia afirmar isso de um papa, em relação ao qual o Concílio tomou uma atitude de condenação.

Se alguém viver em dias assim, estude a situação e peça a São Leão II que lhe dê toda aquela medida de superior fidelidade à Igreja e ao Papado que fez com que ele, Santo e Papa, entretanto se julgasse no direito e no dever de usar uma frase como essa.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 3/7/1965)
Revista Dr Plinio 268 (Julho de 2020)

Na encruzilhada entre a cordialidade e a combatividade

Em sua primeiríssima infância, Dr. Plinio tinha a alma em extremo delicada, afetiva e amiga da paz. Em certo momento, pôs-se diante dele uma alternativa: ou sua delicadeza se completava com uma grande combatividade, ou não defenderia aquilo que o entusiasmava. Seria ele capaz de sacrificar suas primaveris afetividades?

 

O  ponto de partida do assunto a ser tratado é o seguinte: deve-se ter fortaleza ou bondade com as pessoas, e a que regras da Moral isto se relaciona? A Moral indica as circunstâncias, as situações em que ora a fortaleza, ora a bondade é necessária e se impõe como imperativo moral.

Se todos recorressem ao Espírito Santo, o pecado de Revolução pesaria muito menos sobre as pessoas

Essas regras são universais, não variam. Mas há outro conjunto de circunstâncias que pesam muito na fixação da conduta e se ligam ao modo de a Providência querer tocar as almas. Há almas às quais a Providência, por um desígnio misterioso especial, quer fazer o bem por meio da bondade, e outras sendo exigente para com elas. Devemos ter o discernimento necessário para perceber quando é o caso para uma coisa ou para outra.

No mundo contemporâneo, os espíritos são movidos pelo princípio de que toda desigualdade é uma injustiça e corresponde a um trato de uma certa crueldade, dureza de alma, porque a desigualdade faz sofrer quem é inferior. Ora, fazer sofrer é uma falta de clemência, de bondade; portanto deve-se ser a favor da igualdade porque é a ordem de coisas em que ninguém sofre os pesares da desigualdade. Por causa disso, metafisicamente falando, a igualdade é um bem e a desigualdade um mal.

Há muita gente que tem disso uma noção confusa e não é capaz de formular este erro como estou dizendo, pois a ideia não está explícita, a pessoa nunca conseguiu ou não quis exprimir em palavras, mas tem isso na cabeça. Entretanto quem pensa assim é levado a tomar uma posição igualitária diante das coisas, e entra na caudal da Revolução.

Se essas pessoas tivessem visto claramente isso, elas teriam resistido à Revolução? Seriam contrarrevolucionárias? Neste caso, não se poderia dizer que a graça não as ajudou e elas caíram no poço da Revolução sem a ajuda do Espírito Santo e, portanto, sem culpa? É uma pergunta odiosa, mas que pode surgir.

A resposta só pode ser negativa. O Espírito Santo ajuda todos que a Ele recorrem, esta é uma promessa de Nosso Senhor. Logo, essa quantidade enorme de pessoas não chegou a ver bem porque não quis, não se aplicou, não deu importância ao problema, teve vontade de ceder à opinião dos outros, pois, do contrário, teriam visto. Por esse motivo o pecado de Revolução pesa muito fortemente sobre um número colossal de pessoas.

Ora, como se explica que se aproxima de nós um rapaz, às vezes muito novo, dizemos-lhe essas verdades e ele aceita de boa vontade, contente? E o mais curioso é que antes de tomar contato conosco ele não aceitaria. Mais ainda, ele adere tanto que, praticamente, acaba dedicando toda a sua vida para a defesa desses princípios. O que aconteceu para que tão poucos pensassem assim e tantos outros não?

Uma graça especial, à medida da correspondência

Devemos, pois, concluir que nós, pensando assim, recebemos uma graça especial, à qual, em alguma medida, correspondemos, e que nos leva a fazer um ato de Fé, de coragem e uma renúncia muito grande que a Providência nos pede. Por causa disso Ela quer também tratar nossas almas de modo especial.

Então, para pessoas que lutam tanto contra o espírito revolucionário e, portanto, aguentam um fardo muito grande, é compreensível que seja reservada uma bondade igualmente grande, toda especial.

Entretanto, os que se colocam como inimigos da Igreja e da Civilização Cristã estão na posição oposta. São almas endurecidas que não têm nenhuma reverência, são capazes de todos os desaforos e de toda indecência. São pessoas que devem ser tratadas do modo oposto. Portanto, enquanto devemos fazer o possível para ser pai e mãe para uns, temos que ser leões em relação aos outros. É natural.

Se estou tratando com uma pessoa que me considera como um pai, devo tratá-lo como um filho. Mas se alguém está procurando qualquer ocasião para me ridicularizar e, na minha pessoa, zombar da Fé, da Doutrina Católica, da Igreja, perseguir Nosso Senhor Jesus Cristo, eu tenho a obrigação de mostrar a esse indivíduo e a terceiros qual é a força de alma que a Fé pode dar. Donde o princípio adotado por nós: devemos ser cordeiros para os de dentro e leões para os de fora.

A força simbolizada pelo leão é majestosa e provém da grandeza.  Com efeito, da grandeza, enquanto se mostrando na sua superioridade, emana uma certa força inerente à majestade e que esmaga, derruba, contunde o adversário, o que nosso leão exprime muito bem na dignidade daquele gesto de garra magnífico.

O primeiro estandarte da TFP

Aliás, cabe aqui um parêntese para contar a origem desse leão e desse estandarte. Na Vila Formosa, bairro da Zona Leste de São Paulo, havia um convento de dominicanas que eram muito amigas nossas. Às vezes íamos lá, aos domingos. Havia uma madre que era francófona – não me lembro se francesa, canadense ou belga, mas falava francês – e tinha muita habilidade para desenhar.

Nessa época, éramos seis ou sete pessoas remanescentes do Grupo do Legionário. Mas, tendo a convicção de que nosso grupo um dia cresceria e precisaria de um símbolo, pensei: “Vou cuidar do emblema enquanto o Grupo é pequeno, porque quando for grande já não terei tempo para isso.” Então consultei os demais, eles concordaram, e fomos pedir a essa madre que desenhasse um leão com as características que indicássemos. Ela desenhou, eu gostei bastante porque a madre apanhou muito bem o movimento de patas do leão. Dissemos, então, que mandaríamos bordar. Ela mesma bordou o nosso primeiro estandarte.

Com o tempo, fui indicando mudanças com vistas a tornar nosso leão elancé(1), de maneira a conferir-lhe esse aspecto de força majestosa que faltava no original.

Notem como ele está bem firme sobre suas patas traseiras, numa atitude ereta, a cabeça alta, olhando de frente como quem não teme o olhar de ninguém. Esse leão dá a entender que sua força não é a de um aventureiro, de um brutamontes, mas a de quem tem o direito de mandar.

No fundo da ideia de majestade está o direito e a superioridade intrínseca que confere certa força própria a quem sente que tem razão. A noção do bem encontra-se muito marcada nisso.

Táticas para todas as circunstâncias

Consideremos outro animal também muito forte, o qual, entretanto, não dá a impressão de ter o direito de mandar: o tigre. Ele tem o “direito” de ser admirado – há tigres lindos –, mas não possui o direito de ser obedecido. Se alguém afirmasse que o tigre é o rei das selvas, não diria a verdade. Porque ele não é, por sua natureza, um dominador. Ele capta as situações e dá um pulo quando a oportunidade se apresenta. É, portanto, um explorador de oportunidades, um aventureiro que sabe aproveitar a ocasião, não um governador. E como tem força se impõe, mas não com a força do direito e sim a do músculo.

O tigre é um “grand seigneur” que impõe admiração e medo, não obediência. A agilidade do tigre está, antes de tudo, na percepção. Ele tem notícia dos perigos e dos movimentos da presa. É a agilidade da surpresa. Com efeito, uma das mais altas formas de agilidade é saber pregar surpresa.

Assim, a Providência deu a cada animal o seu processo de defesa e de ataque especial. Vejam como os bichinhos muito pequenininhos têm facilidade de fugir. A desproporção de forças entre o tigre e o homem é muito menor do que a existente entre o homem e a mosca. Mas a mosca foge. Para o homem pegar uma mosca, que trabalho!

Há animais pequenos que encontram na sua própria pequenez a defesa. Uma pulga é tão pequenina que dificilmente a vemos. De repente ela pula, mas não sabemos onde ela caiu. São as defesas dos pequeninos.

A cobra, por exemplo, arrasta-se pelo solo e, como ninguém olha com atenção para o chão, ela tem mais condições de nos pegar de surpresa, ainda mais quando se oculta no meio das ervas e passa um homem. Ela é uma das rainhas da agilidade, mas se erra o bote está liquidada.

Há, portanto, nos animais uma espécie de equilíbrio que a Providência pôs entre a capacidade de atacar e de defender, que é colossal. A seu modo, eles não erram, seus instintos se desenvolvem corretamente e sempre agem de acordo com a lei inerente à natureza deles, embora não sejam dotados de inteligência.

Quem erra somos nós. De maneira que de um general ou de um advogado pode-se dizer que adotou uma tática errada. Já não se pode afirmar o mesmo de um leão, de um tigre, nem de uma pulga. É aquela mesma tática que serve para todas as circunstâncias.

O poder limitado do ser humano

Isso porque fomos concebidos no pecado original e eles não. O resultado é que em nós existe o erro. Para nós é uma lição e uma humilhação tremendas. Por exemplo, só de pensar na dificuldade de capturar uma pulga… Conforme o lugar onde ela se esconda, não há inseticida que a alcance. Quer dizer, ficamos pequenos em comparação com a pulga.

Mas também se passa com certas belezas da natureza. Como temos vontade de pegar uma borboleta azul e prateada, que voa perto de nós! Entretanto ela vai embora, não temos domínio sobre ela.

Para mim, as mais belas aves são a arara e o pavão. Por vezes acontece que estamos admirando o pavão, e ele fecha a cauda; não podemos mandar-lhe que a abra porque estamos com vontade de vê-la. A arara, por sua vez, é de uma beleza maravilhosa, uma joia. Suas penas são sempre lindíssimas. Mas é o único bicho que conheço o qual tem o corpo lindo e a cara nojenta, com a carne de que é composta e aquela espécie de olheiras medonhas com uns olhos imbecis dentro; um bico bonito feito para agredir, mas pendendo de uma cabeça mole sobre um pescoço incapaz de agressão. No Paraíso, se araras havia, tenho a impressão de que não eram assim, mas se assemelhavam a mini-águias, voando esplendidamente.

Tudo isso nos leva a considerar o que perdemos com o pecado original, e como o nosso poder é limitado. Entretanto convida-nos a nos voltarmos amorosamente a Nossa Senhora com esperança do Céu, porque no Paraíso Celeste nossa situação será muito melhor do que a de Adão no Paraíso Terrestre.

Nesta Terra é muito difícil haver criaturas que conjuguem capacidades aparentemente opostas. Por exemplo, para que um ser majestoso possa ser ágil, é fácil que perca algo de sua majestade; como também um ente ágil facilmente perderia alguma coisa de sua agilidade ao tentar ser majestoso. Não são qualidades contraditórias, mas com facilidade se chocam entre si.

Houve Quem tivesse todas as qualidades no mais alto grau e na mais perfeita harmonia: Nosso Senhor Jesus Cristo; e, abaixo d’Ele, Nossa Senhora. Porém a Providência tem um modo peculiar de tocar cada alma com vistas a realizar sua missão.

Num pequeno hotel de São Vicente

Na minha primeiríssima infância, eu tinha a alma em extremo delicada, afetiva e, portanto, em sumo grau amiga da paz, da ordem, das coisas que andam bem e não se chocam entre si. As brigas me causavam verdadeiro horror, como episódios que não deveriam ocorrer.

Eu me lembro de que minha mãe me contava um caso ocorrido numa ocasião em que ela foi passar uma temporada em São Vicente conosco, e se hospedou numa pensão de um alemão chamado Herr Kinker. Era um estabelecimento muito bom, bem mantido, perto do mar, para que minha irmã e eu respirássemos o ar marítimo muito saudável. Mas o Herr Kinker, dotado de uma porção de qualidades de hoteleiro, não tinha a virtude da temperança, especialmente quando estava em presença de uma garrafa; e, de vez em quando, entregava-se a bebedeiras ferozes.

Meu pai estava em São Paulo, as ligações interurbanas eram muito difíceis naquele tempo, tudo muito mais atrasado do que hoje, e não podendo voltar para São Paulo a fim de fugirmos do bêbado, minha mãe ficava sumamente preocupada, esperando que meu pai chegasse em breve para resolver o que fazer. Um dia caiu uma chuva medonha e ela me perdeu um pouco de vista. Em certo momento, começou a me procurar na casa inteira e não encontrava. Naturalmente sua aflição aumentou muito e ela, ao deparar-se com o Herr Kinker, perguntou-lhe onde eu estava, mas ele deu uma resposta pastosa, ambígua. Então Dona Lucilia foi ao terraço em frente da casa e me viu embaixo, sentado bem no meio de um canteiro, com a chuva caindo às torrentes sobre mim, e dizendo:

— Isso é uma injustiça, eu não merecia isso.

Eu tinha uns dois anos, mais ou menos, e repetia em voz alta essa frase, sem ninguém me ouvir.

Evidentemente ela foi correndo, pegou-me e me levou para dentro de casa, cumulando-me de carinhos. Até o fim da vida ela contava emocionada esse contraste entre minha inocência e o castigo imerecido que eu tinha sofrido.

Havia uma predisposição minha para manter as coisas como me parece que devem ser, mas com muita paz. Não fiz nenhum desaforo contra o Kinker, eu não estava irritado, protestava em paz. Porém se é injusto, é injusto.

Destinado pela Providência a sofrer os choques mais duros

Em certo sentido, essas são matrizes que Nossa Senhora pôs em minha alma. Em outros Ela colocará matrizes diversas. Depende de como Ela queira orientar e formar cada alma.

Essa minha disposição de alma estava, entretanto, destinada pela Providência a sofrer os choques mais duros no que eu tinha de bom. Em meus oitenta anos de vida, a Revolução não fez outra coisa senão chocar os meus lados bons o tempo inteiro.

Como não podia deixar de ser, pôs-se diante de mim uma alternativa: “Ou essa sua delicadeza se completa com uma grande combatividade, ou você será rejeitado, liquidado, porque não soube lutar contra os inimigos de Deus. Se não soube lutar contra os inimigos de Deus, todo o maravilhoso, todo o grandioso que você ama, toda a hierarquia que o entusiasma tiveram em você um mau defensor, um admirador vazio e sem valor, digno de ser rejeitado, porque não foi capaz de se sacrificar. Agora vamos ver, sacrifique-se!” Não era um sacrifício qualquer, mas um holocausto, uma vida feita de dor. “Você aguenta ou não aguenta essa vida feita de dor? Agora toque para a frente!”

Notem, portanto, que não é uma contradição, mas uma antítese, duas posições em extremo contrárias. Lembro-me de que, vendo-me na contingência de ser tão combativo, eu me perguntava o que faria das minhas primeiras cordialidades, das minhas primaveris afetividades. Aquilo tudo estaria liquidado? Minha resposta para comigo mesmo foi: “Não! Não renuncie a isso. Conserve no fundo de sua alma para quando algum dia acontecer de você tratar com gente que mereça isso. Mas por ora, se você vive no meio dos jaguares, saiba ser jaguar com os jaguares, saiba lutar! E, portanto, força!”

Mais tarde, compreendi que a hora da bondade tinha chegado quando comecei a perceber as novas gerações que se aproximavam de mim. Ao passar-lhes uns pitos, como eu fazia ao pessoal de minha idade, ao invés de tentar se revoltar – para o que eu já estava armado –, choravam. Então levei uma surpresa: “Que negócio é esse?! Bem, então começou outra canção…”            v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 15/9/1988)
Revista Dr Plinio  268 (Julho de 2020)

 

1) Do francês: esbelto, esguio.