Comentando Santo Henrique, Dr. Plinio procura mostrar o contraste entre a figura deturpada que se formou da santidade, e a personalidade varonil, sagaz, guerreira, humilde e combativa deste santo imperador.
Em geral, as pessoas têm a respeito da santidade uma ideia unilateral. Pensam que a santidade consiste apenas em sorrir, em estar de acordo com tudo e a tudo perdoar. Porém, muitos não têm ideia do vulto completo e da fisionomia geral da santidade.
Isso se deve, em parte, às imagens que se produziram nos últimos vinte anos, ou nos últimos trinta anos, em que apresentam os santos com umas carinhas lisinhas e um olharzinho meigo, quando, na realidade, se trata de santos que tiveram uma extraordinária personalidade, a ponto de marcar a sua época.
A verdadeira face da santidade
Quando eu estive na Itália, em Pádua, há alguns anos atrás, fui visitar o famoso santuário de Santo Antônio, onde se encontra o corpo do santo. Lá eu vi uma obra de um grande pintor, quase contemporâneo deste santo, chamado Giotto.
É a imagem mais próxima da fisionomia de Santo Antônio que se conhece: homem alto, possante, com fisionomia severa e com uma atitude hercúlea.
Eu comprei uma fotografia desse quadro e depois fui para a sacristia. Na sacristia vendiam ao povo santinhos representando Santo Antônio: um rapaz sem nada de varonil, imberbe, coradinho, dando a impressão que tinha usado carmim, sua fisionomia era a de quem diz: “Eu estou com medo”…
Quer dizer, apresenta-se o santo sem personalidade, um ente sem arrojo e privado do conjunto das virtudes, sem as quais ninguém é santo. O santo é declarado herói nas três virtudes teologais e nas quatro virtudes cardeais. Virtudes teologais: fé, esperança, caridade. Virtudes cardeais: justiça, fortaleza, temperança, prudência. Uma das virtudes sem a qual ninguém é santo é, portanto, a virtude da fortaleza.
No que consiste a virtude da fortaleza? Consiste em ser capaz de empregar toda a força necessária nas lutas que neste mundo devemos travar contra nós mesmos, contra os inimigos da fé e contra os inimigos da Igreja.
É preciso restaurar, aos olhos das pessoas, a verdadeira fisionomia da santidade, que inclui exatamente essa coragem. E por essa razão escolhi, para comentar na reunião de hoje, um modelo de coragem masculina: Santo Henrique, Imperador do Sacro Império Romano Alemão.
Vida repleta de fatos memoráveis
Santo Henrique colocou seu exército sob as bênçãos especiais de Deus, valendo-se da proteção dos grandes santos preferidos do seu povo. Elegeu dentre eles Santo Adriano, oficial mártir, cuja espada se guardava ciosamente, como relíquia, desde antigos tempos, em Valbach.
Assim armado, organizou um exército para reprimir as invasões bárbaras dos povos do Norte, vencendo-os na Polônia e na Boêmia. Quando defrontaram os eslavônios, muito superiores em força, Santo Henrique determinou preces coletivas e a comunhão geral do exército. Ao se apresentarem as primeiras tropas para o combate, verificou-se pânico súbito entre os inimigos que, desorganizados, fugiam em debandada. Os anjos combateram e derrotaram os eslavônios. Os inimigos se submeteram, ficando Boêmia, Morávia e Polônia tributárias do Sacro Império.
Promoveu, a seguir, uma reunião de bispos em Frankfurt, com o objetivo de fomentar a disciplina eclesiástica nos seus estados.
Por duas vezes teve que subjugar os lombardos, que ameaçavam os Estados Pontifícios. Na primeira vez, após submetê-los, foi coroado, em Pavia, Rei da Lombardia, cingindo a célebre coroa de ferro desse reino. Numa segunda vez, sua atuação foi além da pacificação dos lombardos, pois graves problemas afligiam a Igreja: o antipapa Gregório movia disputa contra o legítimo Papa Bento VIII. Por esses dias do ano de 1014, em plena Idade Média, portanto, recebeu ele e a Imperatriz uma das maiores homenagens de suas vidas: visitando o Papa, foram solenemente coroados Imperadores dos Romanos.
O Pontífice presenteou o santo com um globo de ouro cravejado de pérolas, encimado de uma cruz, emblema de dignidade imperial. O monarca, dignificado por tantas honras e para perpetuar a lembrança dessas homenagens, transferiu o globo e a coroa às mãos de Santo Odilon para dotar o célebre mosteiro de Cluny, do qual este era abade.
Outra oportunidade teve ainda o monarca de concorrer para o bem da Cristandade. Aproximou-se de Estevão, Rei da Hungria, príncipe ainda pagão e que carecia vir com seu povo ao grêmio das nações cristãs. Santo Henrique ofereceu-lhe aliança e sua piedosa irmã, Gisela, por esposa. Ganhou ele um Santo Estêvão, cuja conversão foi maravilhosa, um grande rei para a Igreja e um santo para o Céu.
Teve de empenhar-se novamente em campanhas na Itália. Enquanto consolidava os estados no interior, e assegurava a paz com os vizinhos de Leste, os lombardos, associados aos gregos e normandos, assolavam as províncias da Itália. O monarca preparou-se para castigá-los. Derrotou-os em várias batalhas, repelindo uns e subjugando outros. Reintegrou a Igreja na posse das terras invadidas, ocupou Nápoles, Salerno e Benevento e restabeleceu a paz na península.
Ao voltar para a Alemanha, teve com Ricardo, o Bom, Rei dos franceses, a célebre entrevista do rio Mosa na qual se entenderam amistosamente os dois príncipes acerca dos grandes problemas cristãos e políticos da Europa. Dispunha o cerimonial que o encontro se desse no meio do rio, cada um em seu barco. Santo Henrique, em atenção às virtudes do príncipe francês, resolveu quebrar os rigores do protocolo: atravessou o Mosa com seu séquito e foi saudar o Rei da França na margem oposta(1).
Invasão dos bárbaros e início da Idade Média
A ficha é um pouco longa, pois a vida desse santo é tão cheia de atos memoráveis, que dela não se poderia ter uma ideia sem que vários elementos de sua biografia fossem mencionados. Para compreendermos bem o conjunto desses fatos, é preciso situá-los em seu contexto histórico: plena Idade Média, no ano de 1014.
Como é sabido, a Idade Média se iniciou com a queda do Império Romano do Ocidente. O Império Romano foi invadido por uma quantidade incalculável de bárbaros, completamente selvagens, os quais, estabelecendo-se no território do Império, sujeitaram os romanos ao seu domínio.
Aos poucos, toda a antiga população romana foi caindo na barbárie também. Então, as estradas não tinham mais quem delas cuidasse; os aquedutos que levavam água às cidades se rompiam; as cidades afundavam na sujeira; os palácios eram agora habitados por bárbaros selvagens que se degradavam completamente; as obras de arte eram quebradas nas ruas. Em suma, tudo o que pudesse representar civilização e cultura era miseravelmente liquidado.
Aos poucos, sob o bafejo da Igreja — a única organização que continuou a existir depois que tudo se dissolveu —, a Europa foi sendo reconduzida ao estado de civilização. Os bárbaros se converteram e, então, foram progredindo, à semelhança de uma tribo selvagem aonde chega um missionário.
Desta maneira — por mais que ainda estivesse abaixo do que ela estaria duzentos ou trezentos anos depois —, por volta do ano 1000 a civilização já se encontrava bastante adiantada no que diz respeito ao estado originário dos bárbaros. Ou seja, trata-se de um estado semibárbaro.
Ademais, alguns povos eram mais civilizados do que outros, havendo, portanto, dentro do continente europeu, ilhas de Cristandade, ilhas de Civilização Católica incipiente no meio de conglomerados de povos que, sendo bárbaros pagãos, estavam sempre atacando e lutando de maneira a tornar a vida dos católicos dificílima.
Formação do Sacro Império Romano Alemão
O povo germânico, que ocupava mais ou menos o território onde hoje se situa a Alemanha, a Áustria, parte da Checoslováquia e a Suíça, foi um dos primeiros a se converter. Após se civilizarem, os germanos constituíram uma entidade política chamada o Sacro Império Romano Alemão.
No fundo, tratava-se de uma liga dos povos cristãos contra a barbárie. E, como essa liga abrangia uma extensão grande de território, chamavam-na Império; Romano, por ser uma reminiscência do antigo Império Romano, que tinha abrangido toda a Terra; e, por fim, Alemão, pois o núcleo do Império eram as nações alemãs. Porém, acima de tudo, era um Sacro Império, pois sua principal finalidade consistia em defender a Religião Católica contra a agressão dos pagãos.
Deus é quem dá a vitória
Santo Henrique foi eleito Imperador do Sacro Império Romano Alemão, sendo colocado numa situação onde nem sempre a hagiografia popular mostra os santos. Ele estava à testa de toda a organização política da Europa de seu tempo, era o homem mais poderoso do continente. Mas, ao mesmo tempo, ele tinha a obrigação de ser o melhor político e o melhor filho da Igreja.
Ele era, por excelência, o filho da Igreja, aquele que devia protegê-la em suas necessidades contra a barbárie. E como acontece sempre com os santos, ele desempenhou magnificamente suas funções.
Havendo hordas bárbaras que continuamente agrediam o seu povo, o santo monarca armou-se de força, constituiu um exército e o conduziu à guerra. Porém, por ser um herói católico, um homem de fé, ele sabia que não bastava lutar fazendo uso das forças humanas e naturais, mas era preciso contar com os recursos sobrenaturais. Por isso, ele pedia a Deus que lhe desse a força necessária para vencer.
Então, para mostrar ao santo quanto suas orações Lhe eram gratas, em certa ocasião, Deus fez um grande milagre: no momento em que as tropas dos eslavônios, mais numerosas do que as germânicas, estavam prontas para o combate e os exércitos postos frente a frente, vê-se que os pagãos começam a fugir em debandada: os anjos haviam lhes aparecido, incutindo-lhes terror.
Desse modo, Deus dava a entender como Ele considerava a oração: pela prece de Santo Henrique, Deus dispensou seus heróis do combate. Assim, a pressão pagã foi quebrada e uma das garras do paganismo, contra os católicos, liquidada.
Reconhecimento pontifício dos serviços prestados
Entre os inimigos da fé, havia também os lombardos, os quais tinham sua capital na cidade de Milão, hoje Itália, onde formavam um reino de hereges. Eles não eram propriamente pagãos, mas sim hereges arianos.
Santo Henrique desceu, então, pela Lombardia, atacou os lombardos, quebrou-lhes o poder e foi depois até Roma, a fim de visitar o Papa. Foi nessa ocasião que o Romano Pontífice coroou-o, junto com sua esposa, Imperador do Sacro Império Romano Alemão, numa cerimônia realizada com grande esplendor. Deu-lhe também de presente uma esfera de ouro, cravejada de pérolas, representando seu poder sobre toda a Terra.
Mas, para provar seu amor à Igreja, Santo Henrique não ficou com o tesouro: deu-o a Santo Odilon, Abade de Cluny, chefe da maior Ordem Religiosa da Europa naquele tempo.
Voltando para a Alemanha, Santo Henrique derrotou novamente os lombardos, quebrando definitivamente seu poder.
Insigne ato de apostolado e esplêndida manobra política
Sendo um tão grande batalhador, Santo Henrique mostrou-se também um hábil político.
Na Hungria, havia um rei que, apesar de ser pagão, era famoso por sua virtude. Compreendendo que, por demonstrar ser virtuoso, tal rei poderia ser atraído para a Religião Católica, ao invés de atacá-lo, Santo Henrique mandou pedir uma entrevista com ele, e ofereceu em casamento sua irmã, Gisela, de grande formosura e muito virtuosa.
O Rei da Hungria, chamado Estêvão, aceitou. Gisela cumpriu a tal ponto sua missão de converter o rei que este se tornou um santo da Igreja Católica, o qual converteu toda a Hungria.
Com isso, por uma manobra diplomática inteligente e muito bem sucedida, o Imperador estendeu os limites da Cristandade até além do Danúbio, conquistando um amigo onde ele tinha anteriormente apenas inimigos.
Grande por ser católico
Já naquele tempo havia uma secular rivalidade entre alemães e franceses: povos com índole e temperamento diferentes, e com questões de fronteira complicadas de resolver.
Mas, nesse tempo, a França era governada por um muito bom rei, e o Sacro Império Romano Alemão por um santo imperador. Pelo que, um acordo entre ambos não foi difícil. Santo Henrique, muito bom diplomata, quis ter um encontro com esse rei para ajustarem todos os problemas políticos da Europa, porque os dois principais países da Europa cristã eram a Alemanha e a França. Então, foram encontrar-se junto ao rio Mosa.
O protocolo mandava que, por serem dois soberanos importantes, nenhum fosse à terra do outro, pois aquele que fosse à terra do outro, por assim dizer, prestava homenagem à importância do outro. Então, deveria ser feito um encontro no meio do rio, em duas barcas. Trata-se de um rio de curso de água tranquilo, onde esse encontro comodamente podia ser feito. Preparou-se a barca do Imperador, assim como a do Rei da França.
O Imperador, sendo mais importante que o Rei da França, embora esse fosse muito importante também, podia pretender que o rei fosse ao seu território. Mas sendo um homem cheio de espírito católico, e bom diplomata, Santo Henrique fez o contrário: entrou na barca e preparou uma surpresa ao Rei da França, atravessou o rio e desembarcou. Quer dizer, o que era mais foi prestar homenagem ao que era menos, fazendo sentir pela sua atitude cordial que ele estava cheio de boas disposições, de boas intenções. De fato, realizaram-se então conversações muito cordiais, que concorreram para a paz dos dois países e para regular todos os problemas da Europa daquele tempo.
Essa é a história de Santo Henrique: Um grande católico e um grande santo, que por ser católico, foi grande rei, grande militar, grande guerreiro, grande diplomata, grande político, morrendo aureolado de toda espécie de êxitos e sucessos.
Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 14/1/1970)
1) Não possuímos referência da ficha comentada por Dr. Plinio nessa ocasião.
Errata: Por um erro na transcrição da conferência feita por Dr. Plinio em 25/6/1976, no artigo desta seção do mês passado (junho), registrou-se, nas páginas 10 e 11, o termo “hermetismo” ao invés de “eremismo”, o qual representa um neologismo criado por Dr. Plinio para significar a vida enclausurada, religiosa, eremítica.