Como é grande este nome!

Chamai-vos Amigos da Cruz. Como é grande este nome! Confesso-vos que ele me encanta e deslumbra. É mais brilhante que o sol, mais elevado que os céus, mais glorioso e mais pomposo que os títulos mais magníficos dos reis e dos imperadores. É o grande nome de Jesus Cristo, a um tempo verdadeiro Deus e verdadeiro Homem, é o nome inequívoco de um cristão.
São Luís Grignion escreveu essa obra, Carta Circular aos Amigos da Cruz, numa época em que os títulos ainda tinham muita importância, e por meio deles se definiam as pessoas com o direito de usá-los. Então o Santo utiliza o valor da titulatura, conforme à ordem natural das coisas, para mostrar como o título de amigo da Cruz é elevado.
Esse título equivale ao nome d’Aquele que é verdadeiro Deus e verdadeiro Homem, Segunda Pessoa da Santíssima Trindade, Nosso Senhor Jesus Cristo. Pensamento lindíssimo e acertado, pois ao longo de toda a História a piedade católica elegeu a Cruz como símbolo do próprio Redentor.
Nota-se, ainda, que ele não se refere à cruz apenas como sofrimento, aceito e levado até seu termo em união com os méritos infinitos de Nosso Senhor, mas considera filosoficamente a forma de uma cruz como símbolo que traz consigo algo de santo, pelo vínculo que adquiriu com a Paixão. São Luís deseja nos comunicar, assim, ternura e veneração pelo holocausto redentor de Jesus, bem como pela Santa Cruz.
(Extraído de conferência de 6/6/1967)

Protetor da Santa Igreja

Dentre as várias invocações a São José, exceção feita das que o mencionam diretamente ligado a Nosso Senhor Jesus Cristo, nenhuma é mais bonita do que a de Protetor da Santa Igreja Católica.
De algum modo, o protetor simboliza aquilo que protege. Por isso, para a guarda de uma rainha, por exemplo, escolhem-se os mais capazes, que demonstraram maior coragem nas guerras, dando assim provas de maior dedicação à coroa.
Por certo, o Anjo da Guarda da Igreja Católica é o maior da Corte Celeste, pois nenhuma criatura individualmente considerada tem a dignidade da Igreja, Corpo Místico de Cristo, que envolve todos os Santos e é a fonte da santidade deles.
Assim, São José deve ser alguém tão alto, tão excelso a ponto de, por assim dizer, constituir o reflexo da Igreja que ele guarda e estar proporcionado a ela.
Podemos então ter uma ideia da sublimidade do chamado de São José, considerando-o enquanto coidêntico com o espírito da Igreja Católica, exemplar prototípico e magnífico da mentalidade e das doutrinas dela. Vocação tão elevada que só se pode medir por este outro critério: o fato de ser Esposo de Nossa Senhora e Pai adotivo do Menino Jesus e, portanto, proporcionado a Eles.

(Extraído de conferência de 19/3/1969)

Varão polêmico e recriminador

Na escultura de Aleijadinho representando o Profeta Isaías, nota-se o olhar de um homem que está com a cabeça povoada de ideias, não meramente contemplativas, mas de quem vai fazer uma invectiva. É um varão polêmico e recriminador.

Lendo as profecias de Isaías, tem-se a impressão da narração da dor e da desventura de um homem, quase uma autobiografia. É preciso ver como essa autobiografia se encaixa na História da salvação.

Os justos são o centro da História

Ela poderia eventualmente ser vista da seguinte maneira: uma vez que o centro da História são os justos, Isaías representaria a história de Nosso Senhor e dos filões de justos ao longo dos tempos, e conteria uma espécie de doutrina da história dos justos, a qual teria, no Antigo Testamento, seu ápice em Elias.
Alguns trechos dão a história do justo, que se divide em dois tipos de episódios. Primeiro, Deus parece retirar-se e o justo é abandonado, perseguido, precisando confiar n’Ele. Segundo, a hora em que o Criador volta e dá o triunfo ao justo. Notem a coisa curiosa: muito mais do que se diz, Ele concede ao justo também o triunfo terreno.
De outro lado, vem narrada a história da atitude interna do justo diante dessa variação de tratamentos de Deus e uma história da tática de combate em face do injusto. Para ser mais preciso, a história do justo diante de sua própria dor e do Criador enquanto permitindo sua dor. Depois, a tática de combate e a atitude dele perante sua própria vitória e diante de Deus, causador de sua vitória.
Ele era inocente, foi atacado injustamente e padeceu tormentos que não merecia; o Criador pareceu abandoná-lo; mas ele rezou, confiou e reagiu de acordo com uma certa conduta interior e exterior, e Deus lhe deu a vitória.
Tomando em consideração as vitórias e as dores dos justos, são compendiadas todas as inocências, as vitórias, as dores e as táticas dos justos ao longo da História, em Nosso Senhor Jesus Cristo e, a seu modo, em Nossa Senhora. Ela vive tudo isso e depois o Divino Redentor leva ao auge.
Todas as inocências, dores, táticas e vitórias dos justos ao longo da História constituem uma coleção metafísica. Eu seria levado a supor que cada resplendor de Cristo ressurreto não deveria mostrar-se como se costuma fazer – um halo luminoso em torno de Nosso Senhor –, mas sim fachos de luz, cada qual representando, na coleção das modalidades de glória, uma espécie de tratado de metafísica da glória enquanto tal, de maneira que Ele estaria cercado de todas as formas e graus de glória possíveis.

O melhor modo de meditar o Rosário

Outro dia fiz a meditação do Rosário neste sistema, imaginando em cada dezena as várias modalidades metafísicas que aquele mistério comportava, desde a Anunciação até a Coroação de Nossa Senhora no Céu. Constitui o melhor modo possível de meditar o terço.
Então, por exemplo, a Ressurreição: triunfo sobre a morte.

Imaginar, por exemplo, na Ascensão todos os movimentos ascensionais dos bons e do Bem rumo à vitória completa. Essa trajetória tem mil modalidades realizadas na Ascensão de Nosso Senhor, de maneira tal que os muitíssimos brilhos possíveis de todas as ascensões do Bem na História foram representados em aspectos sucessivos à medida que Ele ia subindo.
Vinda do Espírito Santo: todas as formas de graça possíveis que há na Igreja Católica baixando, metafisicamente ordenadas, sobre os fiéis. Línguas de fogo, sim; mas o que elas conteriam? Não é uma maçaroca de linguinhas de fogo, e sim uma apoteose de ordem, de sabedoria e de ordenação, uma coisa maravilhosa!

A Assunção de Maria Santíssima aos Céus. Não é mais o Justo que Se levanta por uma ação direta sobre ele, mas o justo que, socorrido pelos outros, sobe glorificado. Por fim, a Coroação d’Ela.
Seriam todas as formas possíveis de vida do justo imbricadas na vida de Nosso Senhor. Também na dor. Neste sentido, eu seria levado a imaginar que o número de açoites desferidos contra o Redentor não foi arbitrário, nem determinado pela cólera vil daqueles bandidos, mas cessaram quando Ele gemeu todos os ais próprios à flagelação, enquanto flagelação de alma mais do que de corpo.
Quer dizer, eu veria na Paixão uma espécie de compêndio, ao mesmo tempo, de Teologia e de Metafísica. Caso se justificasse teologicamente, esse modo de meditar seria belíssimo!
Os profetas, enquanto precursores de Nosso Senhor Jesus Cristo, já possuíam sinais de toda a história d’Ele, mas que é também a história dos justos ao longo dos tempos. Inclusive a nossa própria história.
Seria interessante fazermos um histórico nesse nível sobre os profetas; serviria muito para se ter uma visão de conjunto.

 

Batalhador contemplativo da batalha

 

Na escultura de Aleijadinho que representa o Profeta Isaías, nota-se um olhar que fita um ponto indefinido no horizonte, o mirar de um homem que está com a cabeça povoada de ideias, as quais não estão na mente dele numa posição contemplativa, mas de quem vai tirar dali uma invectiva.
Ele está com ar de quem descansa da descompostura que passou e prepara-se para a que vai passar. É um homem polêmico e recriminador em posição de luta, que contempla o embate de todas as ondas. Não o deixaram impune, mas ele sente que permanece substancialmente o mesmo e, percebendo as outras vagas que vêm, pensa: “A lembrança dos embates passados me ajudará no futuro.”
O Profeta Isaías é um batalhador e, ao mesmo tempo, um contemplativo da batalha. Nessa contemplação ele vê os inimigos de Deus avançando por todas as partes e sente o que Nosso Senhor Jesus Cristo disse: “O Filho do Homem não tem onde repousar a cabeça” (Mt 8, 20). E pensa: “Todos têm um ponto de beneplácito, eu não tenho. Tudo é mal, dor, oposição. Porém, Deus é maior do que todas as investidas.” A certeza da vitória divina está presente. Encontrava-se pronto a prorromper em catilinárias e não tinha pena de si mesmo. Eis a visão do mundo do Profeta Isaías.
Essa visão cada alma a tem conforme a vocação. Por exemplo, São João Bosco. É-me fácil penetrar no olhar dele. Ele possuía uma centelha profética. Não era o profeta dos castigos previstos em Fátima, mas da vitória que deveria vir docemente triunfante, dando uma antecipação, um deleite dessa vitória.

Conosco o que há é a previsão de uma situação análoga à de Isaías, de todo o pulchrum1 de estar nessa situação e uma felicidade de encontrar-se nesse infortúnio: “Mar bravio! Isto é lindo!”
Se me oferecessem de vencer já, sem enfrentar a luta, eu não quereria. Esse holocausto teria que ser feito.
Paciência é a capacidade de sofrer, de entrar na dor e arrostá-la. Santo Ambrósio dizia: “Ubi patientia ibi lætitia”2. Sofrer na jovialidade e na alegria.

O que Isaías afirma de si mesmo se aplica a Nosso Senhor Jesus Cristo e a Nossa Senhora: “Eis na paz minha amargura amaríssima” (Is 38, 17).
Como é bonito sermos os guerreiros que enfrentamos a luta a ponto de estalarmos e com a confiança de que vamos para frente! Ter esse estado de espírito e mostrá-lo levanta as ondas contra si. E quanto mais os inimigos ficam sem pretexto, mais odeiam. É o que o Profeta Isaías via vir de longe.v

(Extraído de conferências de 10/3/1966, 31/7/1979 e 15/1/1989)

1) Do latim: belo.
2) Do Latim: Onde há paciência há alegria.

Deus deseja a pompa dentro da Igreja

Lendo as narrações da Légende Dorée sobre São Basílio Magno, temos uma sensação de distensão. Nossos olhos, exaustos de pousarem em coisas monstruosas deste século, fixam-se naqueles fatos meio encantados e maravilhados, e uma espécie de hino de admiração começa a subir de dentro de nós.

 

A propósito da festa de São Basílio Magno, bispo e doutor da Igreja, temos a comentar os dados tirados da famosa Légende Dorée, de Jacques de Voragine1.

Coluna de fogo que tocava o céu

Através de uma visão, o eremita chamado Efrém conheceu o grau de santidade que Basílio havia atingido. Em êxtase, Efrém viu uma coluna de fogo que partia da cabeça do Santo e tocava o céu, e ouviu uma voz vinda do alto dizer: “O grande Basílio é como essa imensa coluna que você vê.” Ele foi então à cidade no dia da Epifania para conhecer tão notável personagem. Ao vê-lo vestindo uma estola branca e caminhando majestosamente com seus clérigos, disse consigo mesmo: “Tive trabalho à toa em vir, pois esse homem rodeado de honrarias não pode ser aquele que apareceu na visão. Se nós, ermitãos, que carregamos o peso do dia e do calor, nunca alcançamos nada semelhante, como ele, cheio de tais honrarias, pode ser uma coluna de fogo?” Basílio, que por revelação soube dos pensamentos de Efrém, fez com que ele fosse vê-lo.
Levado diante do bispo, o eremita viu uma língua de fogo que saía de sua boca, e pensou: “Basílio é grande mesmo, é, sim, uma coluna de fogo. O Espírito Santo realmente fala pela boca de Basílio.” Dirigindo-se a ele, Efrém disse:
— Senhor, peço-lhe a graça de me fazer falar grego.
Basílio:
— Você pede uma coisa difícil.
Mas orou por ele, que imediatamente passou a falar grego.
Certa vez, outro eremita viu Basílio andando com trajes pontificais e desprezou-o, pensando consigo mesmo que aquele homem gostava demais de pompas daquele tipo. Uma voz então se fez ouvir, dizendo: “Você gosta mais de acariciar a cauda da sua gata do que Basílio aprecia seus ornamentos.”

As portas de uma igreja se abrem, confundindo os hereges

O Imperador Valente, defensor do arianismo, tirou uma igreja dos católicos para dá-la aos arianos. Basílio foi ter com ele e disse:
— Imperador, está escrito: “A majestade real brilha no amor à justiça. O julgamento do rei é a justiça.” Por que, então, ordenastes de livre e espontânea vontade que os católicos fossem expulsos dessa igreja e que ela fosse entregue aos arianos?
O Imperador respondeu:
— Basílio, não é conveniente que me faleis assim.

 

Ele replicou:
— Não me importo de morrer pela justiça.
Então o cozinheiro-chefe do Imperador, chamado Demóstenes, partidário dos arianos, tentou intervir, mas Basílio disse-lhe:
— Sua tarefa é cuidar dos guisados do Imperador, e não resolver questões de Fé.
O que o deixou confuso e o fez calar-se.
Disse então o Imperador:
— Basílio, ide e arbitre o problema entre os dois partidos, mas sem se deixar influenciar pelas opiniões do povo.
Ele propôs a católicos e arianos que se mandasse fechar as portas da igreja, nelas colocar os selos de cada um dos partidos, e aquele que conseguisse abrir as portas através de preces teria a posse da igreja. A proposta foi aceita por todos. Os arianos rezaram durante três dias e três noites, e quando chegaram diante das portas da igreja elas não estavam abertas. Então Basílio, à frente de uma procissão, foi até a igreja e, depois de ter feito uma prece, tocou levemente as portas com seu cajado pastoral dizendo: “Deixem o caminho livre, poderes celestes, abram-se, portas eternas, a fim de deixar entrar o Rei da glória.” E imediatamente as portas se abriram, todos entraram dando graças a Deus, e a igreja ficou novamente na posse dos católicos.

Uma legenda que correspondia às aspirações de santidade

Não são fatos rigorosamente históricos porque a Légende Dorée é constituída de narrações semilegendárias. Alguns dos fatos ali narrados aconteceram, outros não; e dentre os que aconteceram, nem todos são narrados como se passaram, mas foram embelezados pela imaginação popular.
Sem embargo, são fatos lindos que têm um grande valor espiritual, pois indicam como a piedade daqueles povos cheios de devoção ornou a figura dos Santos, imaginou como Deus deveria agir, e modelou uma legenda que correspondia a suas próprias aspirações de santidade. E isso não pode ser tido em conta de mentira, porque não é propriamente mentira, mas um devaneio, uma história contada de um para outro já sabendo que é estilizada, uma espécie de ficção maravilhosa narrada em louvor do Santo.
As narrações referentes a São Basílio são impregnadas daquela poesia e daqueles problemas do Oriente dos primeiros tempos. Esse Santo viveu numa época de heresias. A heresia dos arianos devastava, naquela época, a Igreja Católica, e São Basílio estava numa luta tremenda contra eles e contra o Imperador, porque em geral os imperadores de Bizâncio davam apoio aos arianos.
A razão disto estava em que esses potentados queriam mandar na Igreja, e os bispos arianos se prestavam a isso, enquanto na Igreja Católica não podiam mandar, porque segundo a Doutrina Católica a Igreja é uma sociedade perfeita e soberana, ou seja, na sua esfera própria – que é a espiritual; e a temporal, em matéria de Fé e Moral – ninguém manda nela. Os imperadores, encontrando na Igreja um dique para o seu absolutismo, evidentemente procuravam persegui-la. Era um transbordamento do orgulho humano.
Nesta época florescia na Igreja uma grande graça, a do eremitismo, entendido no seu rigor. O eremita verdadeiro é aquele que vive inteiramente só, numa gruta, num deserto, em geral não em lugares maravilhosos, mas naqueles que não atraem muito a imaginação, não seduzem muito a fantasia nem agradam os sentidos. O eremita vive ali, sozinho, cuidando apenas do louvor de Deus.
Esse estado eremítico é muito conforme à índole do oriental, porque este, com a alma felizmente cheia de fantasia, de imaginação, no sentido reto da palavra, sabe ver o que tantas vezes o ocidental, sobretudo o “hollywoodizado”, não sabe ver: as mil maravilhas do silêncio, os mil deslumbramentos da solidão.
Quando a pessoa vive isolada, seu espírito adquire grandeza, toma voo. Ela não se preocupa a não ser com coisas de ordem superior e então se aproxima de Deus.
O eremita que rola uma pedra à entrada da gruta onde mora para não entrar uma fera durante a noite, mas que também pode ser surpreendido por uma cobra, e corre os riscos do homem sozinho, exposto à luta contra a natureza; o eremita que jejua, se penitencia, se macera, este é o eremita perfeito cuja figura nos aparece aqui.

Então, nesse Oriente cheio da desolação do arianismo, ao que se somava a pretensão dos gregos de Constantinopla de estar em oposição a Roma, inventando doutrinas rebuscadas para opô-las à simplicidade sacrossanta da Doutrina Católica; nesse Oriente também repleto do deslumbramento do eremitismo, com uma explosão de santidade contrastando com o horror da heresia; é nesse Oriente com aspectos variados que nós vemos aparecer a grande figura de São Basílio.

O apego do homem não está necessariamente na proporção do que ele possui

o mal a figura de São Basílio, alguns eremitas. Com frequência aconteceu na Igreja que, quando se preconiza muito o ideal de pobreza, alguns exageram isso e se voltam, à maneira de protestantes, contra a pompa da Igreja. Assim, por exemplo, pouco depois da morte de São Francisco de Assis alguns franciscanos deram origem à heresia chamada dos fraticelli, que era comunista, contrária à propriedade privada, a toda honra e pompa, e a todo o brilho da civilização.
Assim também encontramos nesta narração eremitas que, vivendo completamente na solidão e, portanto, não sendo servidos por ninguém, não dispondo de nenhuma pompa, fizeram este raciocínio errado: “Se eu, eremita, vivesse nessa pompa, perderia a minha alma; logo, aqueles que vivem nessa pompa perdem a alma deles.” A primeira parte do raciocínio é verdadeira, a segunda é falsa. Porque cada um salva a sua alma no caminho que Deus quer. E assim o eremita salva a sua alma no isolamento, mas outro que é levado a servir a Deus na pompa salvará a sua alma na pompa. Nem um nem outro pode escolher outro caminho por mera arbitrariedade.
Esses dois eremitas viram São Basílio servindo a Deus na sua grandeza como bispo, e duvidaram então da santidade dele.
O primeiro foi Efrém que viu, num êxtase, uma coluna de fogo a qual subia até o Céu e ouviu uma voz dizer: “Este é Basílio.” Ele foi procurar então o Santo. Chegou lá e encontrou um homem rodeado da pompa episcopal numa cerimônia eclesiástica e pensou: “Não pode ser.” Quer dizer, ele contrariou o que a visão disse a ele. “Por que esse homem vive nessa pompa?”
Ele vai falar com São Basílio e a Providência afetuosamente lhe concede uma graça pela qual compreendeu o quanto estava errado, e acaba por sair sabendo falar grego. Para que ele quereria falar grego não se sabe. É de se esperar que fosse para estudos, pois uma vez que o eremita não deve falar, supõe-se que seria para ler. Ademais, o Santo não lhe teria obtido uma graça para ele violar seu bom propósito de ser eremita. De maneira que se deve entender que ele recebeu essa graça para, compreendendo o grego, conhecer os Padres e Doutores gregos, a versão grega do Evangelho, dos Atos dos Apóstolos.
Depois veio outro eremita e também teve um engano a esse respeito, julgando que São Basílio não era Santo. E a esse a Providência castigou de um modo que, entretanto, provoca um sorriso, mostrando que o apego do homem não está necessariamente na proporção do que ele possui.
São Basílio, embora rodeado de pompa, era desapegado. O eremita tinha uma gata pela qual tinha muito apreço. Então, enquanto fazia um juízo desfavorável a respeito do Santo prelado, ouviu uma voz que lhe dizia que ele gostava mais de acariciar a cauda da gata do que São Basílio apreciava seus ornamentos.

Duas psicologias muito bem expressas

Ainda que sejam casos inventados, são de um muito bom gosto, literariamente muito leves, que distraem a alma, fazem sorrir, e cheios de suco doutrinário. Porque os dois episódios resolvem o famoso problema da pompa dentro da Igreja e mostram que ela está de acordo com os desejos de Deus, e que uma pessoa pode santificar-se nessa pompa, quando é vontade do Criador que assim se santifique.
De outro lado, as finuras da alma humana estão muito bem expressas. O primeiro eremita possui um tipo de psicologia especial. Trata-se de um homem impressionável. Ele vê aquela coluna de fogo, fica muito impressionado, vai falar com São Basílio, tem uma impressão diversa e muda imediatamente de opinião. Pede logo uma graça inverossímil e Deus o atende. É um tipo de psicologia representado com muita finura.
Outro tipo de psicologia apresentado com finura é o do segundo eremita: sentimental, cansadão, sentado à porta de sua gruta, levando uma vida bem sossegada, sem amolação. Entra dia, sai dia, aquela tranquilidade, aquele sossego… Para divertir, uma gata que sabe dizer “miau”, mas não aborrece, não faz objeções, não traz problemas. Um animal que não temos que arrancar das garras do pecado e empurrar para os píncaros da vida espiritual, que se limita a comer alguma coisa que encontra no mato, pode ser uma companhia muito repousante.
Há gatos cujo temperamento é parecido com o de certos homens que se deixam agradar de todo jeito até a hora do arranhão. Isso existe. Mas creio que das menores ingratidões que um homem possa receber na vida é o arranhão de um gato. De maneira que se vê esse eremita adaptado à sua situação.
Então vem um aviso que toca no ponto psicológico diretamente, mas sem uma injúria, sem uma descompostura. É um caso que faz sorrir. Ele se lembra da sua gata e volta corrigido. Vejam como isso é bonito.

Cena grandiosa e profética

São Basílio é chamado diante do Imperador e discute com ele. Entra em cena o diretor da cozinha, que é muito mais do que ser um cozinheiro. Devemos pensar no luxo fabuloso dos imperadores bizantinos, nas grandes comilanças que eles faziam. Havia frequentemente banquetes. Portanto, um diretor de cozinha devia ser um homem bem entendido de gastronomia, de festas.
Ele quer fazer-se de zeloso diante do Imperador e se mete numa discussão onde não tinha nada que ver. São Basílio espirituosamente lhe dá uma resposta: “Você cozinhe comidas, não dogmas!”
É uma coisa prazenteira que se lê sorrindo, mas a lição está bem dada. Há um suco doutrinário, uma substância atrás disso.
Vem depois uma cena grandiosa, profética. Os fiéis da Religião Católica discutem com os ímpios, que constituem a seita ariana, pela propriedade de uma igreja católica que o Imperador tinha dado aos arianos.

O soberano confiou ao Santo a solução do caso. Então, segundo essa narração, São Basílio disse-lhes que selassem com seus respectivos lacres as portas da igreja e rezassem.
Pode-se imaginar a cena magnífica, a tranquilidade de São Basílio e a torcida dos arianos. Estes rezam, rezam, rezam e… nada! São Basílio com mitra, uma grande casula, um báculo, barba branca, olhos serenos, caminhando à frente de um clero piedoso. E todos cantando as ladainhas. Tem-se a impressão de que quando eles chegaram perto, as portas da igreja já estavam para se abrir. Ele se antecipa e, num gesto majestoso, com a ponta do báculo apenas toca na porta e esta se abre. Os hereges foram confundidos e o coro entra cantando, seguido de uma grande multidão de fiéis.

Se essas coisas não se passaram assim, inúmeras outras transcorreram, e as circunstâncias eram tais que podiam ter se passado dessa forma. De maneira que há um resíduo de verdade nisso, até mais verdadeiro do que a narração histórica. Porque aponta para certa maravilha das almas, que é a realidade histórica mais profunda. Pode não ter havido o fato externo, mas houve o fato profundo que é aquele tipo de piedade, de espírito sobrenatural presente por detrás disso.
Quando lemos essas narrações da Légende Dorée, temos uma sensação de distensão. Nossos olhos, exaustos de pousarem em coisas monstruosas, em toda espécie de sujeira e de borra deste século, fixam-se nisso meio encantados e maravilhados, e uma espécie de hino de admiração começa a subir de dentro de nós. Não é verdade que, sendo obrigados a interromper a leitura, sentimos uma espécie de desolação, como uma alma que visse um pouquinho do Céu e fosse obrigada a voltar para o Purgatório?

Admiração humilde e desinteressada

sso? É a seguinte: se nós fôssemos tais que conseguíssemos fixar o nosso espírito duravelmente nesse estado de admiração; se gostássemos, acima de tudo, de praticar a virtude da admiração, que desinteressadamente se detém, fica pensando e se maravilha com esses episódios; se tivéssemos dentro da alma um paraíso permanente, uma alegria fixa, estável e contínua que nos acompanhasse, apesar de todas as tristezas, teríamos a certeza de que o fundo da realidade não são as coisas efêmeras que vemos, nem os aborrecimentos que essas coisas nos dão, mas é esse fundo de maravilha, essa ordem de coisas virtuosa, admirável, indescritível que existe na alma das pessoas verdadeiramente santas. Eis o encanto de nossa vida: fazer dessa contemplação nossa alegria humilde e desinteressada.
Humilde porque isto nos alegra, em grande parte, na medida em que vemos não ter nenhuma proporção conosco, pois é muito superior a nós, a ponto de nos sentirmos pequenos diante disso e termos a alegria de nos sentir assim, de nos entusiasmar com algo que é mais do que nós.
Desinteressada porque não temos um papel para representar dentro disso. Não vamos representar nenhum papel ao lado de São Basílio contra o Imperador. Estamos fora. Aqueles fatos não nos engrandecem, não trazem vantagem nenhuma para nós. Nós os contemplamos apenas porque eles são eles. Nós olhamos desinteressadamente para isso.
Este é o modelo da alma medieval. Aqui está um traço do modo de ser medieval que é muito mais do que uma descrição do temperamento – embora entre profundamente no temperamento –: a capacidade de se maravilhar humilde e desinteressadamente. É isso que está nessa disposição de alma.

A alma assim é verdadeiramente fiel, realmente agrada a Deus. É sobre uma alma assim que baixa o Espírito Santo. Porque esses são os humildes que serão exaltados. Os poderosos que serão depostos são aqueles que se agarram a uma porção de coisas – ainda que seja apenas o rabo de um gato – e que fazem disso o seu apego. Esses serão depostos, ou seja, destituídos das coisas a que se apegam. Os humildes, os desinteressados, pelo contrário, serão elevados.
Como se dá essa elevação? Da seguinte maneira: a alma com essa capacidade de se maravilhar humilde e desinteressadamente é como que um mata-borrão. Toda perfeição que toca nela, ela inala, absorve. Aquilo que nós admiramos desinteressadamente nos modela e nós tomamos algo dessa maravilha.
A maravilha contemplada torna o indivíduo maravilhoso. Nada é mais bonito, não há maravilha mais autêntica do que a alma verdadeiramente maravilhável. Essa tem o amor de Deus, porque o amor de Deus é isto: maravilhar-se humilde e desinteressadamente com as coisas de Deus. Não só com as invisíveis conhecidas pela Fé, mas com as visíveis que o Criador colocou por todos os lados.
Eis, portanto, o que devemos procurar e pedir a Nossa Senhora, que foi a mais maravilhável das almas. Basta considerar que foi Ela quem teve mais de perto a maior maravilha que pousou nesta Terra: Nosso Senhor Jesus Cristo.

Megalomania: um defeito que está na linha oposta ao maravilhamento

Nosso Senhor disse que não se deve atirar pérolas aos porcos (cf. Mt 7, 6). Não se pode dar coisas maravilhosas para almas incapazes de se maravilhar. Deus deu o Menino Jesus a Nossa Senhora para viver no seio d’Ela, passar sua infância ao lado d’Ela, e Ele passou trinta anos maravilhando-A, porque Ela era dotada de uma potência de maravilhar-Se que estava na proporção dessa Maravilha.
Por aí compreendemos a capacidade de maravilhar-Se de Nossa Senhora. Resultado: todas as gerações A chamarão maravilhosa, porque quem A chama Bem-aventurada, chama-A maravilhosa. Por quê? Pelo desinteresse com que Ela amou, pela humildade com que admirou. Por isso Se tornou admirável.
Aqui está o mecanismo dessa virtude tão fundamental para a alma contrarrevolucionária, para o espírito católico.
Um dos muitos defeitos que estão na linha oposta ao maravilhamento é a megalomania. O megalômano não se maravilha com nada a não ser consigo. Quando vê algo de maravilhoso fora dele, irrita-se, olha um pouquinho e depois se aborrece, porque ele quer estar no centro de todas as coisas. Este é o contrário do homem verdadeiramente maravilhável.
Que essa citação da Légende Dorée nos sirva de ocasião para pedir a Nossa Senhora que nos dê essa faculdade de alma pela qual nos maravilhemos com o que está acima de nós, humildemente, amando aquilo precisamente por ser superior a nós, e admirando desinteressadamente.v
(Extraído de conferência de 19/6/1971)

Um príncipe segundo o plano de Deus

Realizando o altíssimo plano de Deus para a Civilização Cristã, o Príncipe São Casimiro soube aliar a nobreza e o laicato à santidade perfeita, sendo uma pedra de escândalo para sua época e difundindo o aroma da Santa Igreja pela sua pureza ilibada e seu zelo na defesa da Fé.

 

Temos uma ficha biográfica1 sobre um príncipe da época em que a Hungria era chamada o “Reino Apostólico da Hungria”. Trata-se de São Casimiro, da Polônia, cuja festa se comemora no dia 4 de março.
São Casimiro, príncipe polonês, veio ao mundo em 5 de outubro de 1458. Foi o terceiro filho de Casimiro III, Rei da Polônia e Grão-Duque da Lituânia, e de Isabel da Áustria, filha do Imperador Alberto II. Desde o berço foi formado na virtude e piedade pelos cuidados de sua mãe, princesa muito católica.
Esta ficha biográfica traz uma série de observações. A primeira delas, a respeito da qual não podemos deixar de insistir, é o grande número de nobres e de pessoas pertencentes a dinastias reinantes, que foram elevadas, durante a Idade Média, à honra dos altares, esfarrapando a lenda revolucionária de que os nobres não eram senão uns imorais, corruptos, sanguessugas.
No caso concreto, eu me comprazo em afirmar o fato de São Casimiro ter vivido na corte de seus pais, no século XV. Como vemos, a mãe dele era descendente da família imperial Habsburg.

 

Uma corte segundo a Civilização Cristã

Para efeito das teses que temos em vista não é uma coisa tão concludente considerar um príncipe qualquer que, em determinado momento, deixou a corte para abraçar o estado religioso. Sem dúvida, é uma ação nobre, piedosa, edificante, mas para as nossas teses o mais concludente é o fato de ele ter continuado a viver na corte e aí se ter santificado.
Por causa da impregnação de “heresia branca”2 sob a qual o mundo contemporâneo está sujeito, ainda prevalece no subconsciente de muitas pessoas a ideia de que só padres e freiras podem alcançar a santidade. Fora desse âmbito é tão raro o surgimento de um santo, que se considera um caso extraordinário, quase monstruoso. Como na natureza pode brotar um rabanete de tamanho excepcional, assim a graça produz, às vezes, um santo leigo. Parece uma coisa maravilhosa, uma exceção à regra.
Contudo, um santo leigo não é exceção à regra, mas a realização perfeita do plano da Providência. Ademais, o fato de um nobre ter se conservado íntegro na corte de um rei, mostra-nos esse ambiente como um elemento dentro do qual um católico pode viver e santificar-se.
Neste sentido, constitui uma espécie de elogio ao ambiente onde o santo viveu e uma afirmação de que, com frequência, a santidade perfumou a atmosfera nobiliárquica, contrariamente à pregação revolucionária. Então, em vez de serem lupanares, lugares medonhos de perdição e corrupção, as cortes foram, em numerosos casos, receptáculos da santidade onde a virtude atuou, teve prestígio e influência, realizando assim o ideal da Civilização Cristã.
Segundo esse ideal, o que é a corte real? O rei é a imagem terrena de Deus; logo, a corte terrena é imagem da celeste. Numa corte autenticamente católica, em face de um rei santo, os cortesãos deveriam ser a representação dos Anjos e Santos diante de Deus três vezes Santo. Ora, que isso tenha tido, em determinadas circunstâncias históricas, importantes parcelas de realização deve nos encher de entusiasmo e alegria, são exemplos que devemos opor à crítica revolucionária.

Alguém poderia objetar: “Em um número grande de casos, as cortes foram assim. Mas esse número grande é colhido a esmo ao longo de mil anos de história, de maneira que é possível encontrar numerosos exemplos de muitas coisas. Isto não prova que as cortes, a fortiori, tenham sido sempre assim, mas apenas uma vez ou outra. Daí nada se deduz.”
Ora, se as monarquias produziram isso pouco, eu quero saber o que as repúblicas produziram. Por exemplo, quem já ouviu falar em senador santo? Vê-se, então, a diferença existente entre uma coisa e outra, e quanto esses fenômenos são significativos.
Por outro lado, está provado que nas cortes mais depravadas houve sempre uma prestigiosa corrente de reação. Por exemplo, um personagem histórico sobre o qual pouco se tem falado entre nós, e que é muito interessante, é o Delfim Luís Fernando, filho de Luís XV, homem excelente, irmão da Madame Louise de França, que morreu carmelita e da qual ainda se procuram elementos para o processo de canonização, e também da Rainha da Sardenha, Madame Clotilde, irmã de Luís XVI, declarada bem-aventurada pela Santa Sé. Isto na tão putrefata corte de Versailles, no tempo de Luís XV.
Continuemos a análise da ficha sobre São Casimiro.

Alma penitente e de uma pureza convidativa

Sua pureza e castidade foram, desde a infância, absolutamente virginais e evangélicas. Era difícil imaginar um príncipe de maior inocência, de maneiras mais belas e com méritos mais elevados. A pureza de seu coração e de seu corpo brilhava em toda a sua conduta, de modo que todos os que o viam ou com ele tratavam, sentiam-se movidos à castidade.
Seu espírito era tão unido a Deus, que sua paz interior se manifestava na grande serenidade do seu rosto. Todos os seus servos, ao seu exemplo, eram cheios de bondade e se destacavam pela extraordinária misericórdia para com todos os visitantes e os pobres que iam lá pedir esmola. Pode-se formar uma ideia da felicidade dos súditos de tão santo príncipe.
Aqui temos um personagem que poderia figurar na pintura de um vitral em uma catedral. Príncipe da casa real, com irmãos reis, São Casimiro era um jovem de alta cultura e condição social, no qual se reuniam todos os dons físicos, intelectuais e espirituais; era um varão muito justo, misericordioso e bondoso.

É interessante notar a castidade enorme deste Santo. Uma nota curiosa desta castidade é a sua comunicatividade. Ele era tão puro que transmitia aos outros o desejo de o serem também. Isso tem uma beleza especial, porque muitas vezes encontramos pessoas puras, dignas de admiração e homenagem, mas a quem Nossa Senhora não deu o dom de tornar comunicativa essa virtude.
Ora, uma das melhores formas de fazer apostolado é ter essa virtude comunicando-se de uma pessoa para outra, como por osmose.
Mas, como Deus está irado com o mundo, esses dons se tornam raríssimos. Por esse motivo, devemos recorrer a São Casimiro para compreender o que é a pureza convidativa e irradiante, e assim atrair as pessoas para a prática dessa virtude contrária à impureza, à voluptuosidade, também conquistadoras, e que arrastam para o mal. A virtude arrastando para o bem é uma coisa que pouco se vê em nossos dias e, no entanto, dá tanta glória a Nossa Senhora!
São Casimiro teve, entre outros, o dom da continência, que o tornou casto toda a vida, num celibato muito puro. Para corresponder com maior facilidade a tantas graças, cobriu seu corpo com rudes cilícios e o macerou com longos jejuns. Com frequência, passava noites inteiras dormindo sobre uma tábua e, algumas vezes, dormia nas portas das igrejas, onde era encontrado de manhã, com o rosto virado para o chão. Todas essas mortificações, o Santo praticava sem ferir qualquer das pompas que a dignidade de sua Casa, ou a consideração das pessoas com as quais vivia, pareciam exigir do seu estado.
Há um outro aspecto interessante aqui: é a atitude de São Casimiro vestindo roupas régias e levando cilício por baixo. Ele quer fazer penitência, mas sabe que sua condição lhe impõe vestir-se com a pompa inerente à sua categoria. E como ele não é igualitário, usa tudo quanto é necessário para a manutenção de seu estado. Vemos nisso o equilíbrio do verdadeiro Santo.

Qual o valor disso? Este Santo considerava tão nobre e justo que um príncipe, ou qualquer pessoa de maior categoria social, tivesse um estado de vida superior, que ele, fazendo penitências de todos os modos, encobria sua mortificação para ostentar sua nobre condição aos olhos de todos, qualificando isso como um verdadeiro dever de estado a ser cumprido.
Desde seus primeiros anos São Casimiro se desinteressou dos prazeres do mundo, das diversões e da vida folgada. Seus prazeres, os mais atraentes, eram de passar várias horas seguidas rezando diante dos altares. O palácio de nosso Santo era um lugar de devoção, onde se rezava a Deus o dia inteiro. Quando ele assistia ao Santo Sacrifício da Missa, não era raro que tivesse êxtases no momento de se operar a transubstanciação.
Uma das virtudes em que mais se esmerou o grande São Casimiro foi a cordial devoção a Nossa Senhora, à qual chamava de “minha Boa Mãe”. Daqui veio a conservar os virgíneos candores desse arminho, apesar do real estado e da viçosa idade… Não contente de recitar todos os dias um longo hino, composto por ele, no qual cantava os mistérios da Encarnação e os gloriosos privilégios da Mãe de Deus, quis ainda ser enterrado com essa oração e uma imagem de Nossa Senhora, a qual cento e vinte anos depois, por ocasião do processo de canonização, quando foi aberta a sua sepultura, foi encontrada junto ao corpo.

O Santo é sempre uma pedra de escândalo

Ao completar Casimiro treze anos, os Estados da Hungria, não estando satisfeitos com seu Rei, Matias Corvino, enviaram deputados ao Rei Casimiro III para que seu filho obtivesse a coroa da Hungria em detrimento de Matias. Casimiro III prometeu-lhes seu filho e o enviou com um exército para apoiar seu direito à eleição, contra Matias, que não aceitava sua deposição. Tendo chegado às fronteiras da Hungria, São Casimiro soube que Matias acabava de reunir dezesseis mil homens para ir à frente dos poloneses e que tornara a conquistar o coração dos súditos. Soube também que o Papa Sisto IV se declarara pelo rei destronado e enviara uma embaixada a seu pai, para fazê-lo abandonar a empresa.
Foi então que o jovem príncipe percebeu a demasiada facilidade com que seu pai escutara os deputados húngaros. Tendo, então, reconhecido a injustiça da expedição a que o tinham atraído, ele se recusou a fazer qualquer outro ataque e voltou para a Polônia.

Foi mandado pelo pai para tomar conta da coroa da Hungria, e só quando chegou à fronteira percebeu que não estava depondo um usurpador, mas o rei legítimo. A partir desse momento ele se recusou a combater.
Vejam a preocupação em não derrubar um governo legítimo. Ao contrário desta nossa época em que os governos são tão mais perecíveis quanto mais legítimos, e tanto mais estáveis quanto mais ilegítimos são.
Estes são alguns preciosos exemplos de virtudes dados por São Casimiro, e temos que aproveitá-los para a nossa santificação.
Para não aumentar o desgosto de seu pai, que planejara aquele empreendimento, retirou-se para o Castelo de Dobczyce, onde se entregou a austeras penitências. Ao fim deste tempo voltou ao palácio real, onde já encontrou tudo mais em paz.

Casimiro, inimigo nato de toda espécie de intriga, era sumamente vigilante em tudo o que dizia. Tinha palavras inflamadas quando falava a respeito da beleza da virtude e do feliz estado de uma alma em paz, em amizade com Deus.
Seu zelo pela Religião Católica correspondia a tanta piedade. Fez conhecer em diversas ocasiões sua aversão pelos que corrompem a Fé da Igreja. Ele empregou todo o seu poder em extirpar o cisma dos russos. Em virtude disso, fez agir seu zelo ante o Rei, seu pai, a fim de confiscar todas as igrejas cismáticas e impediu mais tarde que estas fossem restituídas aos cismáticos.
É muito bonito ver o seu zelo contra os hereges, virtude que sempre acompanha a alma da pessoa verdadeiramente pura. Havia certas igrejas, no reino do pai dele, entregues aos cismáticos, e ele fez questão de que de lá fossem expulsos.
Nesta biografia consta um grande gesto de heroísmo e de energia da parte de São Casimiro: o confisco dos bens da igreja cismática e o impedimento desta funcionar na Polônia. Gesto que está à altura de um inquisidor ou da alma de um Santo.
Mas, tirando esse gesto, o que nós vemos? As virtudes suaves, amáveis, que tornam um homem atraente. Não notamos as virtudes do batalhador. Por quê? Precisamente porque na Europa de então vivia-se o período chamado de “anarquia feudal”.
Os senhores feudais, os príncipes se destacavam todos pela tendência excessiva a combater, a manter, uns com os outros, um estado de guerra contínuo, por razões muitas vezes fúteis que levavam a Santa Sé a pronunciar condenação em cima de condenação.

Duas influências nefastas contribuíam para a existência desse estado de coisas. Em primeiro lugar, pela influência bárbara, embora remota, mas que ainda se fazia sentir e levava esses homens a não poder viver tranquilos. De outro lado, houve também uma explosão de vaidade a que, infelizmente, as Cruzadas do Oriente tinham dado lugar.
Como se sabe, na Europa houve várias Cruzadas, das quais a mais vitoriosa foi a da Espanha e Portugal contra os mouros que invadiram a Península Ibérica. Também houve Cruzadas coroadas de belo êxito contra os turcos, vindos do Sul, que invadiram mais de uma vez a Hungria, ou contra os pagãos do Mar Báltico que queriam impedir a expansão da Religião Católica.
Mas, ao par dessas, empreendeu-se a série de Cruzadas mais célebres destinadas à libertação do Santo Sepulcro, que, no total, umas pelas outras, redundaram no fracasso, em grande parte por causa do espírito de vaidade e de exibição que se apoderou dos cruzados. Sabendo que todo o Oriente tinha os olhos voltados para eles e que os atos de coragem praticados para a reconquista do Santo Sepulcro haveriam de redundar em fama, boa reputação e em glória para eles, tinham a pretensão de ocupar, no Oriente, os primeiros lugares nas batalhas, destacando-se e ganhando celebridade no Ocidente, dentro do contexto deles. Portanto, não abandonaram o contexto que ficava na Europa; apenas saíram fisicamente dele, mantendo a preocupação de ali se tornarem célebres.
Assim, acontecia muitas vezes que, com pasmo e verdadeiro escândalo para todo o mundo, quando chegava a hora de o General-chefe distribuir as posições de guerra, e não distribuía para esse ou aquele nobre um lugar onde ele teria ocasião de realizar grandes proezas, esse nobre não aceitava e entrava em luta contra o outro designado para tal posição. Então, na primeira linha, os cruzados guerreavam entre si em vez de lutar contra o adversário. Resultado: naturalmente, saíam derrotados.
Isso contaminou toda a nobreza europeia com uma espécie de vício de fanfarronada militar, cujo resultado foi que, terminadas as Cruzadas, mesmo na Europa as lutas entre os feudos fossem incessantes, e todos os Estados europeus vivessem numa agitação e numa fermentação contínua por causa disso. Essa era a “anarquia feudal”.
Essa situação favoreceu indiretamente a causa da Revolução, pois para coibir essa anarquia, os reis começaram a exercer uma autoridade brutal sobre os senhores feudais até quebrá-los, passando para a monarquia absoluta dos tempos modernos, certamente muito menos digna de aplauso do que a feudal como o ideal medieval a tinha imaginado.
Tratava-se, nesse tempo, de fazer uma reação contra esse espírito de fanfarronada, de vaidade militar, em favor da luta contra o gérmen da Revolução que se vinha acumulando.
Temos, então, um príncipe que faz o escândalo daquele século. São Casimiro vai invadir a Hungria porque, em virtude de direitos hereditários e por aclamação popular, fora eleito Rei daquele país no lugar do monarca deposto. Porém, quando chega à fronteira e recebe a notícia: “O Papa considera a sua causa falsa. Julgou o assunto e reconhece o Rei Matias como verdadeiro monarca. Aliás, este já subiu ao trono novamente, porque as diferenças existentes entre ele e os súditos foram aplacadas. Portanto, o Rei legítimo está no seu palácio”, São Casimiro se detém na fronteira e diz: “Se esse é o pensamento do Papa, eu paro, submeto-me e volto para trás. Não irei conquistar um reino ao qual não tenha direito.”
Isso era o contrário da mentalidade da “anarquia feudal”, segundo a qual ele deveria dizer: “Eu provarei, pela ponta de minha espada, que sou homem de coragem e conseguirei o que eu quero!” E avançaria contra toda razão e todo direito, para mostrar ser audacioso.

Suscitado para rebater a Revolução de seu tempo

Também, nessa época, começava a se acentuar a ideia de que um príncipe que reza muito, dá esmola aos pobres e tem um trato

muito afável não possui as virtudes verdadeiramente militares e não é um homem corajoso, o qual, segundo a concepção errada, não é afável nem piedoso; ao contrário, é um fanfarrão disposto a toda hora a brigar com qualquer pessoa, e não conhece o oposto harmônico que é exatamente a placidez, a serenidade, o amor à paz, o equilíbrio que dão o verdadeiro valor à coragem.

Na realidade, a fanfarronada estava substituindo a coragem sincera. Ora, São Casimiro enfrentou toda essa posição errada de seu século e praticou tais virtudes, ditas moles, mas que naquela época era preciso ter uma coragem extraordinária para praticar, porque todo o mundo as desprezava.
Com efeito, o Santo é equilibrado, forte, vigoroso, heroico se necessário, mas capaz também de não praticar esse falso heroísmo de ponta de faca se as circunstâncias pedem dele outra forma de heroísmo, que consiste em enfrentar a opinião pública. Esse herói é, portanto, o tipo do verdadeiro príncipe que devemos venerar e honrar.
Nota-se como Nossa Senhora o suscitou, no fundo, para salvar o feudalismo. Se os senhores feudais tivessem seguido esse exemplo, a “anarquia feudal” se aplacaria por si mesma, e teria sido muito difícil a implantação da monarquia absoluta e pré-revolucionária dos tempos modernos.
Nós devemos ver em São Casimiro o varão que teve coragem de resistir à pressão de seu tempo, de fazer o contrário do que convinha à Revolução da época. Esta é a verdadeira coragem, e quem a possui conquista as demais, inclusive a de derramar o seu sangue no campo de batalha se as circunstâncias exigirem.
Se vejo alguém com coragem de enfrentar a opinião pública, embora nunca tenha dado provas de bravura numa batalha campal, sou capaz de afirmar: “Esse homem tem grande possibilidade de ser um herói no campo de batalha.”
Entretanto, de um herói no campo de batalha, eu me perguntaria: “Que probabilidade ele tem de enfrentar a opinião pública?”
Porque quem enfrenta o mais difícil, isto é, a opinião vigente, é capaz de expor a sua vida.
Alguém perguntará: “Mas será verdade, Dr. Plinio, que é mais difícil enfrentar a opinião pública do que o adversário no campo de batalha?”
É nobilíssimo, belíssimo, empolgante enfrentar o adversário no campo de batalha a serviço de uma guerra justa e, sobretudo, sagrada. Mas há muita gente disposta a correr o risco de entrar em combate por medo de ser objeto de caçoada se permanecer na retaguarda. Logo, tais pessoas têm mais medo da risada do que da metralhadora.
Assim, nós podemos considerar São Casimiro como um verdadeiro herói.

Difundindo o aroma de santidade

Estando São Casimiro enfermo, diziam os médicos, e o importunavam seus domésticos, que lhe era necessário o casamento para conservar sua vida e saúde, tão importantes ao bem público. Desprezando com uma heroica constância os avisos dos médicos, respondeu-lhes ele uma sentença digna de seu espírito casto, generoso e celestial: “Não conheço outra vida e outra saúde mais que a Cristo, por cuja companhia desejo desatar-me”.
Deus lhe fez a graça de revelar o dia e a hora de sua morte, para a qual ele se preparou particularmente. No dia 4 de março do ano de 1483, aos vinte e quatro anos, expirou docemente entregando a sua alma a Deus. Seu corpo foi levado com grande pompa fúnebre para a Catedral de Santo Estanislau, em Welms, capital do ducado do qual ele era senhor, e recebeu ali as honras da sepultura. Operou-se grande número de milagres por sua intercessão.
Cento e vinte anos após a sua morte, seu corpo e as ricas vestes com que fora enterrado foram encontrados incorruptos, construindo-se uma riquíssima capela de mármore para conservação desta relíquia. São Casimiro é padroeiro da Polônia e modelo de pureza para a juventude.

Nós temos falado em muitas ocasiões a respeito dos Santos fundadores de povos ou de ciclos de civilização, e que por sua ação extraordinária movem a História. Porém, também podemos considerar que há uma outra categoria de Santos que nascem e se tornam exímios na prática de uma virtude, a qual eles vão representar em toda a vida da Igreja. E, para que a atenção dos fiéis não se desvie deste ponto central, esses Santos morrem relativamente jovens e a sua vida fica circunscrita à prática daquela virtude.
Considerem, por exemplo, São Luís Gonzaga. Ele fez pouca coisa, mas morreu no apogeu da virtude, ainda adolescente. Se ele tivesse realizado numerosas obras, as atenções se voltariam para o que ele fez, em vez de se concentrarem no que ele foi, e o principal exemplo a ser dado por ele acabaria esquecido.
Tais Santos nos mostram que a santidade consiste, sobretudo, em ter uma ação de presença dentro da Igreja, em difundir o aroma dessa santidade, não só enquanto estão vivos, mas depois de mortos. E que a vida deles, tão precocemente imolada e, em geral, oferecida em benefício da Igreja Católica, é um elemento preciosíssimo para a salvação das almas.

 

(Extraído de conferências
de 3/3/1964, 3/3/1966,
3/3/1967 e 25/11/1974)

 

1) Cf. ROHRBACHER, René-François. Vida dos Santos. São Paulo: Editora das Américas, 1959. v. IV, p. 177-180.
2) Expressão metafórica criada por Dr. Plinio para designar a mentalidade sentimental que se manifesta na piedade, na cultura, na arte, etc. As pessoas por ela afetadas se tornam moles, medíocres, pouco propensas à fortaleza, assim como a tudo que signifique esplendor.

Majestade, ápice da grandeza

Em Nosso Senhor Jesus Cristo o equilíbrio entre a majestade e a bondade encantava a Dr. Plinio. O Sagrado Coração de Jesus tão majestoso, mas sempre com uma bondade levada ao último limite do excogitável, deu-lhe a ideia, desde pequeno, de que o padrão mais alto da majestade era Ele. E, por sua vez, havia ali um lugar naturalmente posto para a devoção a Nossa Senhora.

A majestade se distingue da grandeza, porque ela é o ápice da grandeza. Mas não é qualquer ápice dela que define a majestade.

Conjugação entre finalidade e perfeição

Tomem, por exemplo, algo banal como os quatro dentes de um garfo. Há uma razão para que sejam nesse número: corresponde às dimensões do bocado que a boca humana normalmente ingere, ao menos nos costumes do Ocidente. Eles foram calculados pelo costume, pela tradição e por um certo bom senso presente em tudo.
Entretanto, se o garfo perder um dente, não vale mais nada. Pode-se jogá-lo fora. Se for de prata, mandamos fundi-la para vender o metal, mas ele, enquanto instrumento, já não tem utilidade.
A imagem do garfo íntegro traz consigo uma ideia de perfeição. Aquilo que é completo é perfeito. Embora a perfeição possua graus, no seu gênero determinado, naquele seu estilo, tudo quanto é completo é perfeito.
A coisa perfeita é, então, aquela que por si mesma realiza toda a sua missão. O garfo não realiza a missão de alimentar o homem e, sim, de espetar alimentos, e isto é suficiente.
As noções de completo e suficiente se conjugam. E quando algo adquire esta suficiência, passa a ter, em linguagem filosófica, a perfeição. Possui um grau, pelo menos mínimo, de perfeição. Eu posso imaginar, por exemplo, um garfo de ouro pertencente à Rainha Elizabeth. Este seria, sem dúvida, mais perfeito.

Majestade: a grandeza daquele que tem o poder supremo

Ora, a majestade é a grandeza daquele que está colocado como primeiro, ou numa ordem de coisas, ou numa associação perfeita possuidora de todos os elementos necessários para subsistir como deve. Ele é a chave de cúpula fora da qual todo o resto se esvai.
Só há duas sociedades perfeitas, de fato: a Igreja e o Estado.
Este é o ensinamento da Igreja: Ela é uma sociedade perfeita, tem todos os elementos para realizar a sua missão, e tem o governo soberano, acima do qual não há nenhum.
A Igreja é destinada à ordem espiritual, o Estado à ordem temporal.
O Estado é aquela sociedade perfeita de um povo, ou de vários, colocados sob a direção de um mesmo poder público soberano, não há nenhum outro acima dele.
Alguém dirá: “Mas a família não é uma sociedade perfeita?”
Não, ela é a cellula mater da nação. Se quiserem, em certo sentido, do Estado. Mas não é uma sociedade perfeita.
Outro objetará: “Um partido político não pode ser tido como sociedade perfeita?” Chama-se partido, logo não é perfeito, porque é uma parte. A sociedade perfeita é um todo.
“Bem, mas uma Universidade não é uma sociedade perfeita?” Não. Porque ela existe dentro do Estado e precisa dele. O Estado não precisa dela, está por cima.
Então, a verdadeira majestade, no sentido pleno da palavra, é a grandeza daquele que tem o poder supremo na sociedade perfeita: É o Rei, ou é o Imperador.
Assim se compreende melhor a etimologia: majus stat1. É aquele maior do que todos. Este tem majestade.

A majestade é, antes de tudo, de Deus

A majestade é, antes de tudo, de Deus. Ele é a Majestade. Em comparação com Deus, quis sustinebit?2 Quem é qualquer coisa em comparação com Ele? E em união com Ele, logo abaixo d’Ele, Cristo Rei. Nosso Senhor Rei tanto da Igreja quanto do Estado. É evidente. O Estado tem obrigação, em suas leis, de conformar-se em tudo com os desígnios de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Abaixo de Nosso Senhor Jesus Cristo, Nossa Senhora. Porque o governo de todo o universo foi entregue por Deus a Ela, que Se tornou a Imperatriz. Depois vem o Papa, e de modo sucessivo o Rei, o Imperador, o chefe de Estado.
Como se explica que chefes de Estado se constituam com um poder que nega a majestade?
Por erro deles. Porque mesmo numa nação independente, de índole republicana, se deveria reconhecer a grandeza daquele que ocupa, embora temporariamente, as funções supremas. O fato de elas serem provisórias diminui a grandeza da situação pessoal de quem as exerce. Porém, não diminui a função em si.
Por exemplo, o doge de Veneza era chefe de Estado provisório. Ele era eleito por dez anos. Mais tarde parece ter passado a ser vitalício. Enquanto era provisório, não era hereditário, ou seja, não pertencia à família dele aquele poder. Qual era a dignidade dele? Era a de ser doge. Doge quer dizer duque, em dialeto veneziano. Duque temporário, mas soberano de uma região riquíssima, mas pequena. Ficava ridículo ser imperador. Ninguém é imperador de Luxemburgo, por exemplo. No entanto, ele estava cercado de um fausto, do qual dá bem ideia o Palácio dos Doges. Ou seja, o poder público, de si, deve ter majestade.

Em Saint-Germain l’Auxerrois, um fato que ilustra a majestade

Alguém poderia dizer: “O senhor tratou da majestade enquanto ligada ao cargo. Uma pessoa não pode ter majestade por um dom natural?”
Pode, mas nesse caso ela tem um dos elementos da majestade e, por ampliação, se afirma que ela tem majestade. Quer dizer, se ela tem uma tal supremacia pessoal que, olhando-a se pensa na realeza, ela tem os elementos que caracterizam o rei. Ela não é um rei, mas é majestosa.

Certa vez, minha família ouviu Missa na Igreja de Saint-Germain l’Auxerrois, em Paris. E viram entrar a Princesa Isabel acompanhada de uma dama. Como ela era princesa, e a Primeira Guerra Mundial não tinha arrebentado ainda, se prestava, mesmo nas Repúblicas, a honra de dar-lhes um lugar no presbitério. Ela entrou e foi direto para lá, ocupando o lugar que lhe estava reservado.

Terminada a Missa, minha mãe e minha avó, que não a conheciam pessoalmente, viram a dama de honra da princesa se levantar e ir caminhando em direção a elas, dirigindo-lhes a palavra:
— Eu sou a Baronesa de Muritiba, dama de honra da Princesa Isabel. Ela viu as senhoras desde o presbitério, achou que fossem brasileiras. Então, me mandou manifestar seu desejo de conhecê-las. Se quiserem, ela as espera na sacristia.

Foram até lá: Cumprimentos, homenagens, e, na conversa, a princesa soube que minha mãe era casada com um parente do João Alfredo3, deputado no tempo do Império, muito chegado à Imperatriz. Soube também que meu avô era chefe monarquista em São Paulo, e uma porção de histórias assim. E o resultado foi um convite da Princesa Isabel para todos os membros de minha família irem tomar lanche na sua residência, em Boulogne-sur-Seine.
Foram todos, até as crianças, porque naquele tempo era costume conhecerem-se as famílias inteiras, e não algumas pessoas. Eu tenho certeza que a Princesa Isabel não se espantou nenhum pouco de ver umas dez ali. E para elas era uma ocasião de poder dizer a vida inteira: “Eu conheci a Princesa Isabel!”
Um dos meus tios tinha um filho surdo-mudo que aprendeu a falar com um sistema inventado em Viena, o que naquele tempo era novidade. Esse menino era meio détraqué4. Apesar disso o levaram, por medo de deixá-lo muito deprimido se todos os outros fossem e ele não. Acredito bem, aliás, ter Dona Lucilia, a grande favorecedora desse sobrinho, votado em favor da ida dele.

Chegamos, ficamos todos em pé esperando a princesa. Afinal, ela entrou, cumprimentos. Quando ela foi se aproximando, meu primo, que elevava a voz muito mais alto do que o natural, pois não ouvia, começou a falar:
— Essa é a princesa? Onde se viu? Princesa tem coroa, tem cetro, tem manto bonito! Ela está vestida como vovó!
A Princesa Isabel ouviu isto e, com muita bondade, disse-lhe sorrindo:
— Pois é, meu filho, não tenho nem o manto nem a coroa, mas eu sou a Princesa Isabel, e tenho gosto em conhecer você.
Ela era muito majestosa, um modelo de majestade!

Pendor para o excelente

É próprio do espírito humano reto, bem constituído, ver uma coisa boa e apetecê-la. Voltemos mais uma vez ao exemplo do garfo: O espírito humano bem formado apetece sempre a algo melhor. De maneira que, tendo se alegrado por algum tempo com um garfo bom, ele começa a pensar: “E como seria um garfo melhor?”
Assim, dependendo do pendor pessoal, o ser humano é atraído por mil outras coisas que o levam a cogitar na perspectiva de serem cada vez melhores, algumas delas atingindo o nível de perfeição. Esta, a seu modo, corresponde à majestade naquele gênero.
Por exemplo, existem milhares de idólatras de automóveis. Imaginem um indivíduo desses tão tacanho, que nunca tivesse ouvido falar numa Rolls-Royce. Mas quando ele encontra um veículo desses, numa propaganda, fica encantadíssimo. Lê os prospectos, contente por existir algo dessa categoria que jamais será dele, porque nunca terá o dinheiro para comprá-la e mantê-la. Qual é a razão dessa alegria? Ele viu a possibilidade de um exemplar melhor dentro da ordem de coisas de que ele gosta.
Contudo, se aparecesse um automóvel superior, mais perfeito, ele se alegraria ainda mais. Porque é natural que esse pendor para o excelente, para o supremo de determinadas coisas, e para o muito bom de várias outras, desabroche na alma humana.
Logo, é compreensível que, desde pequeno, eu tenha desejado, conhecido e voltado minha alma a certas majestades. Como isto se fez?

Coração de Jesus de majestade infinita

Na Igreja do Coração de Jesus5 havia todas as impressões ocasionadas pelo culto, pela liturgia, pelos cânticos, pelo órgão, pelo ambiente de recolhimento, mas, sobretudo, pela Pessoa de Nosso Senhor, enquanto mostrando o Seu Coração aos homens. Esta devoção, pelo próprio nome da Igreja, era inculcada nela por várias formas. Na torre, aquela imagem dourada do Coração de Jesus, com os braços abertos para toda a humanidade. Aquela majestade d’Ele com os braços abertos, me entusiasmava!

Dentro tem também uma imagem, no altar lateral à esquerda de quem olha para o Tabernáculo. Não pretendo dizer nem um pouco que ela tenha valor artístico, nem é uma obra de arte, é de artesanato. No entanto, muito tocante, muito nobre, e com o coração de Jesus exprimindo muita bondade, com uma grandeza misteriosa, parecendo emanar algo para mim, vindo do vermelho bem escolhido do seu manto, dos ornatos dourados… Mas, sobretudo, de sua cabeça, os cabelos… sobretudo, o olhar, os traços do rosto. Ele me parecia tão majestoso, e tão bom ao mesmo tempo! Tão infinitamente superior, e com tanta pena, tão voltado para mim, e tão misericordioso, que eu pensava: “Majestade é isto! E eu gosto desta majestade!”
Quando me deparei, na ladainha do Coração de Jesus, com aquela invocação “Cor Iesu majestatis infinitæ, miserere nobis”6, adotei-a e a inscrevi entre as minhas invocações prediletas, desde logo!
No teto do Coração de Jesus vem a mesma majestade expressa por uma pintura representando Nosso Senhor aparecendo a Santa Margarida Maria Alacoque. E há um letreiro, em caracteres dourados sob fundo verde, escrito em francês, pois essa Santa era francesa: “Eis aqui o Coração que tanto amou os homens, e por eles foi tão pouco amado.”

Esse equilíbrio entre a majestade e a bondade me encantava! Ele, tão majestoso na aparição, mas sempre com uma bondade levada ao último limite do excogitável. Deu-me a ideia de que ali estava o padrão mais alto e pleno da majestade. Sendo Ele Rex regum et Dominus dominantium – Rei dos reis e Senhor de todos aqueles que têm domínio –, era natural que se concebesse n’Ele uma majestade dessa elevação.

Nossa Senhora preenche o hiato entre Nosso Senhor e o pecador

Donde, por sua vez, um lugar naturalmente posto para a devoção a Nossa Senhora. Porque o culto à majestade do Sagrado Coração cria a seguinte situação: Quando deitamos atenção, a majestade d’Ele é tão grande, que a pessoa se sente aniquilada: “Como me aproximar d’Ele? Como dizer-Lhe: Eis-me aqui? Quando sinto em mim o pecado original no qual fui concebido, experimento o primeiro impulso de todas as desordens que todo homem tem em si! Isso tudo me distancia d’Ele.”
Fazendo essas considerações, eu adorava a majestade d’Ele enquanto me recusando, olhando para aquilo que em mim causa-me desgosto e, se eu pudesse, jogaria fora. Esta exclusão, eu a adoro! De outro lado, porém, ela me apavora. Porque Ele é tudo. E, rejeitado por quem é tudo, o que eu sou? Se Ele não me rejeitasse, eu não O adoraria. Se Ele me rejeita, desapareço… Então, qual é a solução?

No hiato entre Ele e mim ‒ que, por alguns lados, deve ser visto como um abismo escuro ‒ há uma réstia de luz: Nossa Senhora, Mãe d’Ele e minha, a qual, como ensina a Igreja, quis a morte de seu Divino Filho para nos redimir, e a teria querido mesmo se fosse para salvar somente a mim ou a qualquer outro homem que há na Terra. Quanta misericórdia!

A superioridade de Maria Santíssima

Mas Nossa Senhora não é divina, não tem aquela superioridade Nosso Senhor Jesus Cristo. Ela é superior a mim a jardas, anos-luz, centúrias de séculos, não tem dúvida! Contudo, é uma criatura. Por isso, ouso me aproximar d’Ela e recitar o Memorare, a Salve Regina, e florescer! Porque Ela faz ponte entre Ele e mim. Este é o bem-estar de minha alma!
Naquele episódio do boletim do Colégio São Luís7, quando eu estava rezando aflito diante da imagem de Nossa Senhora Auxiliadora e me sentia olhado por Ela com uma bondade, uma ternura, uma disposição para me perdoar, com uma pena de mim, uma coisa extraordinária, duas ideias vieram juntas, como num relâmpago. A primeira era: “Parece mamãe!”; a segunda: “Mamãe não chega, nem de longe, aos pés d’Ela!”
A maternalidade d’Ela comigo, não por ser eu, Plinio, não. É por um qualquer, um prequeté pecador, um cisco de menino pecador, aparecendo diante d’Ela, trêmulo, mais movido pela atrição do que pela contrição; a esse menino, Ela deixa cair a pétala de um sorriso!
Deste fato veio-me a convicção: Ou eu me agarro a Ela a vida inteira, ou eu me perco! Meu negócio é com Ela! Recorrendo a Ela, pedindo, querendo saber a respeito d’Ela, e girando em torno d’Ela, ao serviço d’Ela. Minha vida é para Ela!
Com frequência, rezando a Salve Regina, eu me lembro disso e, de algum modo, revivo bem exatamente aquela sensação. Quando vou ao Coração de Jesus, visito-A enquanto sendo a Mãe que me sorriu! É evidente. E o meu hábito é este mesmo: entro, inclino-me diante do Santíssimo, faço uma adoração rápida e vou direto para junto do altar d’Ela, para vê-La de perto.
E a imagem do Sagrado Coração de Jesus? É claro, vou vê-la, adoro ao Sagrado Coração de Jesus, venero a imagem d’Ele, sei que a maior homenagem, a primeira, se deve a Ele. Mas, em consideração à ideia da mediação d’Ela, sem a qual eu não me salvaria, creio ser mais respeitoso ir pedir primeiro a Ela para pôr minha alma em condições de aparecer diante d’Ele. E acredito que nenhum teólogo sério tenha alguma objeção a isto.

A admiração diante da grande majestade

Pelo velho hábito de lecionar, que leva à deformação de dar a muitas coisas o caráter de aula, apresentei o conceito de majestade tão claro no seu conteúdo abstrato. Entretanto, ao tratar do Sagrado Coração de Jesus, passou-se do abstrato para o concreto mais sublime, mais perfeito que possa haver, provocando uma impressão de majestade muito grande que convida ao silêncio na consideração das naturezas divina e humana na Pessoa d’Ele, sob a invocação do Sagrado Coração. Esta é a majestade das coisas postas por Deus na ordem do universo.
Desde quando eu era pequeno me intrigava ver certos líquidos que postos em recipientes de gargalo muito estreito não saíam, permanecendo retidos por uma rolha invisível. Passei anos sem entender o porquê, julgando que um dia compreenderia isso em função de algo mais alto. Meu professor de Física deu-me uma explicação, mas não me interessou.
Porém, essa velha imagem de meu curso de Física me veio ao espírito, de repente, quando foi abordado o tema a respeito da majestade. Pensei: “Está vendo? É como a admiração. Ela, diante da grande majestade, fica sem saber se expandir, como o líquido no gargalo, porque desperta movimentos de alma tão grandes, que o ‘gargalo’ da voz humana é insuficiente para transmitir.” E nós ficamos no mutismo de quem quisera ter outros meios de expressão e não os tem. Se fosse músico, tocaria uma melodia; se fosse poeta, comporia uma poesia, porque elas dizem muitas coisas que as palavras não exprimem. Não sendo músico nem poeta, admiro pelo silêncio.
No caso de Nosso Senhor Jesus Cristo, é muito mais do que uma admiração, é uma adoração, um ato de culto. Eis o que se deu. Fico feliz por minhas palavras terem conseguido despertar este ato de culto em relação a Ele.v

(Extraído de conferência 29/10/1985)

1) Do latim: (sentido literal) o maior está de pé.
2) Do latim: Quem subsistirá?
3) João Alfredo Corrêa de Oliveira, tio-avô de Dr. Plinio.
4) Do francês: desequilibrado, demente.
5) Santuário do Sagrado Coração de Jesus, igreja situada no Bairro Campos Elíseos, em São Paulo.
6) Do latim: Coração de Jesus, de majestade infinita, tende piedade de nós.
7) Sobre isso, ver Revista Dr. Plinio n. 122, p. 18-23.

Significado da Realeza de Jesus Cristo

O Reino de Deus está dentro de nós. Ora, apesar de pequeno como extensão, ele possui um valor infinito porque custou o Sangue de Cristo. Por isso, cada um de nós deve conquistá-lo para Nosso Senhor, destruindo tudo aquilo que, em nosso interior, se oponha ao cumprimento de sua Lei.

 

o domingo em que a Santa Igreja de Deus celebra a Realeza de Nosso Senhor Jesus Cristo, encher-se-ão, no mundo inteiro, os templos católicos com uma multidão piedosa, que irá depositar aos pés dos altares suas súplicas e suas orações. Contemplando em espírito essa imensa multidão, composta de pessoas oriundas de todas as raças e de todos os pontos do globo, tão numerosa que, segundo a previsão do Apocalipse, “ninguém a pode recensear” (Ap 7, 9), um pensamento se apodera de mim. E ao mesmo tempo experimento o desejo imperioso de o comunicar aos meus leitores.

Uma verdade áspera e dolorosa

Ser-me-ia, sem dúvida, muito mais grato e fácil cingir-me exclusivamente a considerações de ordem geral sobre a Realeza de Nosso Senhor Jesus Cristo. Tenho, porém, a certeza de que tais considerações outros as farão. Mas o pensamento que está em mim, posso eu porventura ter a certeza de que todos os demais o tiveram, e de que, em hipótese afirmativa, o externarão? Uma dolorosa negativa me responde a esta pergunta. E por isso, deixando a outros uma tarefa, aliás, incontestavelmente indispensável e fundamental, vou fazer a mais ingrata, obscura e desagradável, porém mais necessária: a de dizer uma verdade áspera e dolorosa neste grande dia de festa.

Os bons pensamentos têm isto de característico que, quando aproveitados, servem de remédio tanto a nós mesmos quanto ao próximo. Quando, porém, nós os rejeitamos em nossa vida interior, ou os calamos em nossas relações com o próximo, eles se transformam, segundo São Paulo, em carvões ardentes que nos causticam e calcinam a alma. Ai dos que receberam e, por egoísmo ou covardia, não atenderam aos bons conselhos! Ai também dos que, por covardia ou egoísmo, calaram os bons conselhos que poderiam ter dado! Estes conselhos salutares, que eles não externaram, queimá-los-ão a eles próprios pelo interior, como brasas ardentes. E no dia do Juízo serão levados à conta de talentos inaproveitados.

Quando pronunciou, em Lisieux, sua magistral alocução, o então Cardeal Pacelli, já predestinado pelo Espírito Santo a reger futuramente a Igreja de Deus, fez uma queixa amarga que nos cabe recordar. Disse ele que, entre os muitos homens que desobedecem hoje às palavras dos Pontífices, há uma categoria que causa especial mágoa ao Papa. Não se trata dos que não têm Fé e nem dos que, tendo uma Fé morta e inoperante, não procuram ouvir o que o Papa lhes diz. Os que mais fazem sofrer o Papa – e este é o ponto que nos interessa – são os que, aos pés do púlpito, em atitude externa correta e reverente, ouvem a palavra do Vigário de Cristo comunicada pela hierarquia eclesiástica, mas não a compreendem, se a compreendem não a amam, e se a amam platonicamente não lhe dão execução!

“Veio para o que era seu, mas os seus não O receberam”

Assim, no dia de hoje, quantos e quantos católicos, elevados pelo Batismo à dignidade de cidadãos do Reino de Deus, nem sequer cumprirão o preceito dominical! Quantos outros católicos ainda, indo à igreja, ouvirão algum sermão sobre a Realeza de Jesus Cristo, sem saber, entretanto, e sem procurar saber em que sentido se deve atribuir a esta tão clara e tão litúrgica festa!
Quantos católicos, finalmente, acompanhando até o próprio texto da Liturgia Sagrada, lerão as maravilhosas lições que ela contém sobre a Realeza de Jesus Cristo e não a compreenderão! Quantos católicos que procuram implantar o Reino de Cristo no mundo inteiro, esquecidos ou ignorantes de que devem começar por implantar dentro de si mesmos! E quantos outros supõem que podem implantar realmente dentro de si o Reino de Cristo, sem sentir um desejo ardente e devorador de o implantar no mundo inteiro! Em outros termos, não são tais católicos do mesmo jaez daqueles que ouvem corretamente, porém só com ouvidos do corpo e não com os da alma, o que lhes diz a Igreja pela voz dos Pontífices?

A doutrina da Realeza de Jesus Cristo está intimamente ligada à belíssima e piedosíssima prática da entronização do Sagrado Coração de Jesus nos lares. Se se entroniza a imagem do Sagrado Coração de Jesus no lugar mais nobre do lar, é exatamente porque se reconhece que Ele é Rei. Entretanto, quanto lar há por aí em que a imagem está entronizada na sala, mas Cristo não está entronizado nos corações!
Evidentemente, não quero exagerar a tristeza já, de si, tão grande deste quadro, cometendo a injustiça de desprezar o que há de belo e de bom, apesar dessas lacunas. Qualquer ato de piedade, qualquer atitude de reverência para com a Igreja de Deus, por mais superficial e insignificante que seja, deve ser por nós, católicos, apreciado, amado e estimulado com um zelo imenso, reflexo direto de nosso amor a Deus. Longe de nós, pois, um pessimismo de sabor farisaico que nos fizesse contestar todo e qualquer valor a essas práticas de piedade, desde que sejam sinceras, por mais que a frieza ou a ignorância lhes toldem o brilho sobrenatural.
Entretanto, feita esta reserva, a verdade aí está: a queixa de São João ainda hoje é muitas vezes procedente: in propria venit et sui eum non receperunt… (Jo 1, 11)1

Cristo é Rei por ser Deus

Não seria, aliás, difícil conhecer a Doutrina da Igreja sobre a Realeza de Jesus Cristo. Na sua infinita misericórdia, Deus Se dignou de comparar o amor infinito com que nos ama ao amor que nos têm nossos pais. Evidentemente, não quer isto dizer que Ele tenha reduzido na comparação as insondáveis dimensões de seu amor, para as amesquinhar até as proporções exíguas dos afetos de que os homens são capazes. Pelo contrário, se Ele serviu-Se dessa comparação do amor paterno foi apenas para nos dar a entender, de longe, o quanto Ele nos ama. Se dermos à palavra “pai” o sentido que ela tem na ordem natural, Deus não é apenas nosso Pai, mas muito mais do que isto, por ser nosso Criador. Porém, como a função de pai, na natureza, não é senão de coadjuvar a Deus na obra da Criação, se alguém merece na realidade o nome de Pai é Deus. E nosso pai segundo a natureza outra coisa não é senão o depositário de uma parcela da paternidade que Deus tem sobre nós.

O mesmo se dá com a Realeza de Jesus Cristo. Para nos fazer compreender a autoridade absoluta que, como Deus, Ele tem sobre nós, Jesus Cristo dignou-Se de Se comparar com um rei. Entretanto, como é por Ele que reinam os reis, e a autoridade dos reis só é autêntica por provir d’Ele, na realidade, o único Rei, Rei por excelência, é Ele. E os reis ou chefes de Estado não são senão seus humildes acólitos, dos quais Ele Se digna servir-Se na obra da direção do mundo. Cristo é Rei por ser Deus. Chamando-O de Rei queremos simplesmente afirmar a onipotência divina, e nossa obrigação de Lhe obedecer.
Obediência! Eis aí um dos conceitos contidos essencialmente no conceito da Realeza de Nosso Senhor Jesus Cristo. Cristo é Rei, e a um rei se deve obediência. Festejar a Realeza de Nosso Senhor Jesus Cristo é festejar seu poder sobre nós. E, implicitamente, nossa obediência em relação a Ele.
Como é que se obedece a um rei? A resposta é simples: conhecendo-lhe as vontades e cumprindo-as com amorosa e pormenorizada exatidão. Assim, pois, o único modo de obedecermos a Cristo Rei é conhecer sua vontade e segui-la.

 

Sejamos soldados de Cristo Rei

Desta noção tão clara, simples e luminosa um programa de vida, também ele claro, luminoso e simples, se segue.
Para conhecer a vontade de Cristo Rei devemos conhecer o Catecismo. Porque é ali, através do estudo dos Mandamentos, estudo este que só será completo com o de toda a Doutrina Católica, que conhecemos a vontade de Deus. E para seguir esta vontade devemos pedir a graça de Deus pela oração, pela prática dos Sacramentos e por nossas boas obras. Finalmente, pela vida interior, isto é, pela leitura espiritual, pela meditação e pela vida vivida exclusivamente à luz do Catecismo, seguiremos a vontade de Deus.
Disse Nosso Senhor que o Reino de Deus está dentro de nós mesmos. Ora, este pequeno Reino, pequeno como extensão, mas infinito como valor porque custou o Sangue de Cristo, cada um de nós o deve conquistar para Nosso Senhor, destruindo tudo aquilo que, dentro de nós, se oponha ao cumprimento de sua Lei.
Finalmente, as Leis de Cristo se aplicam não apenas a um indivíduo em particular, mas aos povos e nações. Que os povos conheçam e pratiquem na sua organização doméstica, social e política, as encíclicas que são a expressão da própria vontade de Deus, e Jesus Cristo será Rei.
Em outros termos, sejamos bons católicos; sendo-o, seremos necessariamente apóstolos; e sendo apóstolos, seremos necessariamente soldados de Cristo Rei.v

(Extraído de O Legionário n. 372, 29/10/1939)

1) “Veio para o que era seu, mas os seus não O receberam”.

 

Beleza divina do Reino de Cristo

O reinado de Nosso Senhor Jesus Cristo se exerce sobre
as almas. Cada indivíduo, nação, Ordem religiosa, forma
como que uma província, um céu. A harmonia dessas
almas individuais e desses grupos humanos constitui no
seu todo a beleza divina do Reino do Divino Salvador.

 

A primeira vez que fui à Europa, o avião que me conduziu chamava-se Ciel de Lorraine. Notei depois que havia uma série de aviões com títulos assim: Céu disto, Céu daquilo…

Encontra-se envolta nisso a ideia de que o céu da Lorena não é o mesmo da Île-de-France e este não é o céu de Auvergne. Portanto, a cada província, com suas características regionais e sua forma de cultura, corresponde um céu, já não o atmosférico, mas outra espécie que não é também o sobrenatural. Trata-se de um céu de cultura. Embora a partir da terra vejamos o mesmo azul na Lorraine ou na Champagne, há qualquer coisa que os diferencia entre si como também da doçura do céu da Île-de-France, por exemplo.

Então, embora se saiba que as nuvens e o céu, realmente com algumas variantes, mas afinal de contas são os mesmos por toda a parte, tem um sentido em se falar de um céu de Lorena, um céu de Auvergne, etc., e esta teoria da variedade dos céus inclui uma espécie de teoria da diversidade dos céus culturais, e de uma projeção para o céu físico de valores culturais da Terra e de uma impregnação destes por elementos vindos do céu astronômico-celeste, conforme se apresenta num lugar, constituindo um todo só que forma cada província a bem dizer um céu. O luar do Ceará, por exemplo, compõe um céu, pelo menos noturno, inteiramente especial.

Cada província é uma espécie de valor de alma que tem um significado próprio, e cuja posse é um elemento capital para a integridade do reino. Este, perdendo uma província, mais do que ficar privado de uns tantos territórios, perde algo que é um valor moral, cultural, o qual, desmembrado do reino, faz com que este perca a sua integridade e fique como, por exemplo, uma imagem sagrada da qual se cortasse uma parte. Quer dizer, algo de irremediavelmente mutilado, enquanto aquela unidade não se reintegrar.

Por causa disso, por exemplo, os franceses, com muito senso para as coisas, fizeram o seguinte: Quando a Alsácia e metade da Lorena foram tomadas na Guerra de 1870, eles envolveram com crepe de luto as estátuas que representavam em Paris essas províncias, significando que o crepe seria tirado quando aquelas províncias fossem reconquistadas.
Era um luto da França e da província. Um luto de alma por causa dessa unidade ideal que é a substância da verdadeira unidade do reino.

Cada indivíduo é como uma província do Reino de Nosso Senhor

A que propósito vêm essas considerações na festa do Reinado de Cristo?
Tenho a impressão de que quem não deteve a sua atenção sobre essa realidade de que acabo de falar, não possui toda facilidade desejável para compreender bem o que é o Reino de Nosso Senhor Jesus Cristo.

É o Reino sobre pessoas e não territórios. Um Reino sobre almas em que cada indivíduo, grupo humano, nação, Ordem religiosa, família, constitui como que uma província, um céu. É a harmonia de todos esses grupos humanos, todas essas famílias de alma, todas essas almas individuais que constitui no seu todo a beleza divina do Reino de Nosso Senhor Jesus Cristo. E o Redentor, como Rei, defende cada alma contra o ataque do adversário com um amor, um conhecimento do valor daquela alma e do que ela significa para a unidade do seu Reino, muito maior do que o Rei da França defenderia a Auvergne, a Lorena ou qualquer outra coisa.
Cada um de nós é a Lorena, a Alsácia, a Île-de-France de Nosso Senhor Jesus Cristo. Ele sabe que, assim como há o céu de uma província, existe o céu de um indivíduo o qual corresponde à sua luz primordial objetiva e subjetiva1. Isso no seu todo é uma espécie de firmamento de beleza espiritual próprio a cada um de nós, que o Divino Salvador ama com um empenho com que um verdadeiro francês deve, por exemplo, amar a Lorena ou o céu da Lorena.
Quer dizer, é este valor de caráter moral e espiritual que se deve amar. Isto nos leva, então, a considerar o seguinte: As províncias ou os municípios do Reino de Cristo Rei são os homens. Cada vez que Nosso Senhor perde ou diminui o exercício efetivo de sua realeza sobre uma alma, dá-se n’Ele, na sua vida terrena, uma tristeza parecida com a do rei que perde sua província; uma espécie de ordem de beleza ideal se perde. Mas cada vez que se volta a Ele, o Divino Salvador tem todas as alegrias dessa recondução. É isto que se joga continuamente na festa de Cristo Rei.

O céu para o qual Nosso Senhor nos chamou…

Existem céus para as várias famílias de alma. Qual será o que corresponde à nossa? Na harmonia de valores espirituais, que é o Reino de Cristo Rei, o que representa nossa família espiritual? Que valores morais, que vocação, que apelo para a virtude, para o heroísmo, para a dedicação incondicional, para enfrentar todas as formas de risco, de trabalho, de despesa, de humilhação, enfim tudo quanto está contido neste valor especial que Nosso Senhor Jesus Cristo criou para esta época, e para o qual Ele nos chamou!

Então nós devemos ter, na festa de Cristo Rei, a seguinte preocupação: o desígnio do Redentor a nosso respeito está se realizando e, portanto, o Reino d’Ele é efetivo em nós, como tem o direito de ser? Nós somos aquilo que Ele quereria que fôssemos?
É preciso dizer que, embora não se possa responder pura e simplesmente sim, sobretudo, graças a Deus, não se pode responder pura e simplesmente não. Devemos, ao formular esta pergunta, ter a alegria de dizer que o fundo de quadro é uma afirmação. E graças a Deus nós somos para Nosso Senhor Jesus Cristo, nessa época em que Ele é tão perseguido e tão flagelado, uma grande consolação.

Mas, por outro lado, isso nos deve dar o desejo de ser e dar ainda mais, para que se integre sobre nós o exercício efetivo do poder d’Ele. De maneira tal que tenhamos toda aquela beleza de alma, a qual seria propriamente o nosso céu nesse conjunto de formosuras que deveria ser, nos dias de hoje – e de fato é –, a Santa Igreja Católica. Porque esta, por mais desfigurada e conspurcada que esteja, é um jardim onde continuamente desabrocham flores para Nosso Senhor. E nós, talvez só no dia do Juízo Final, poderemos saber quantos santos florescem no desconhecimento, na ignorância, no abandono, isolados e odiados aqui, lá e acolá, dando a Deus uma glória completa e magnífica.

…e cuja estrela central é o Imaculado Coração de Maria

É assim que cada um de nós deve ver a atual situação e, quando for comungar, perguntar com que disposição o Redentor me recebe. Que graças, que generosidade Ele está disposto a me conceder?
Essas coisas na vida são uma espécie de regra de três. Nosso Senhor recebe a cada um de nós na Eucaristia com uma alegria, uma certa medida de tristeza e muita esperança. Isto no conjunto constitui a incompleta realeza de Cristo sobre cada um de nós, mas que, marchando para ser completa, é uma razão contínua de gáudio para Ele.
Assim, peçamos ao Redentor, por meio do Imaculado Coração de Maria, que nos dê a compreensão de todos esses céus da Igreja Católica, do Reinado de Nosso Senhor Jesus Cristo, de que nós somos individualmente e como família de almas uma espécie de céu dentro desse conjunto de céus. Um céu preciosíssimo porque sua estrela central é o Imaculado Coração de Maria. Estrela mais preciosa não poderia haver.
Que compreendamos as graças recebidas, quanto motivo temos para esperar perdão, misericórdia, e roguemos muitos favores com grande empenho e desembaraço, com uma respeitosa desenvoltura. A isso nos conduzem essas altíssimas considerações.v

(Extraído de conferência de 21/10/1964)

1) Luz primordial é o aspecto de Deus que cada alma deve refletir e contemplar, em função do qual precisa ordenar toda a sua existência, a sua vocação pessoal. A luz primordial objetiva está no Criador e a subjetiva se encontra na alma da pessoa.

 

 

Vítima do ódio ao Bem e à Verdade

 

 

 

À medida que Santo Estêvão manifestava as maravilhas que trazia em seu interior, o ódio contra ele ia aumentando.
Primeiro, à vista dos milagres que operava, os inimigos se levantaram para disputar com ele. Depois, tendo o santo diácono discutido maravilhosamente, reduzindo-os ao silêncio, aumentou-lhes o ódio a ponto de fazê-los ranger os dentes. Ao vê-lo num êxtase, transbordando de sobrenatural, resolveram matá-lo.

Ódio ao quê? Não pensemos que Santo Estêvão foi inábil, imprudente, de maneira a não se fazer entender por aquela gente. Entenderam-no com perfeição. Mas está na essência da iniquidade e perfídia dos filhos das trevas odiar o bem e a verdade, que, quanto mais vão se manifestando, tanto mais são odiados.

Por fim, o ódio culminou na lapidação, e então se passou esta cena maravilhosa: Santo Estêvão, qual outro Cordeiro de Deus, com os olhos voltados para o céu, todo ferido, pronunciou esta oração: “Senhor Jesus, recebei o meu espírito!” Em seguida, vergado pelas pedradas,
caiu de joelhos e disse: “Senhor, não lhes imputeis este pecado!”

Um suspiro… e aquele homem todo ensanguentado dormiu no Senhor. A tormenta se tinha transformado num sono, na morte plácida dos justos; o martírio estava consumado e sua alma subia ao Céu.

(Extraído de conferência de 26/12/1966)

Primeiro lance da Contra-Revolução

O demônio tem especial ódio à Imaculada Conceição pelo fato de esta singular prerrogativa de Nossa Senhora constituir para ele uma derrota dolorosíssima e, por assim dizer, pessoal. Com efeito, tendo satanás conseguido arrastar nossos primeiros pais ao pecado original, as vantagens que lhe traria essa queda, caso não houvesse a Redenção, seriam simplesmente espetaculares. O homem, criatura nobre de Deus, ficou desfigurado pelo pecado e sujeito às más tendências. Com isso tornou-se incalculável o número de pessoas capazes de cair, ao longo dos séculos, no Inferno. Imenso foi o êxito imediato obtido pelo demônio com o pecado de Adão e Eva.

O único modo de anular esse triunfo do mal seria o Verbo Se encarnar e, enquanto Homem-Deus, oferecer- Se como vítima pela nossa salvação. Ora, essa vitória do Bem teve sua primeira realização no nascimento de uma menina excelsa, imaculada, que, apesar de todos os embustes do demônio, nascia livre da trama na qual ele pretendia envolver todo o gênero humano. Em favor d’Ela, Deus rompeu a urdidura satânica. E Ela nasceu fora da lei do pecado original.

Portanto, a raiz da salvação do mundo, o ponto de partida da Redenção da humanidade, foi o fato de Nossa Senhora ter sido criada isenta do pecado original. Donde nos ser fácil compreender como o primeiro lance da Contra-Revolução foi, precisamente, a Imaculada Conceição de Maria Virgem, prelúdio da Encarnação do Verbo.

(Extraído de conferência de 3/12/1964)
O Primeiro Primeiro lance da Contra-Revolução
Luis C.R. Abreu