Os ódios sapienciais do Imaculado Coração de Maria – I

Maria Santíssima é toda cristalina, feita de suavidade e de pureza, dir-se-ia ser uma alma incapaz de odiar. Entretanto, pelo próprio amor insondável que Ela tem a Deus, é impossível que não odeie o que é contrário a Ele

 

Nossa Senhora é a Medianeira de todas as graças e o ponto de referência de todos os elogios feitos a Deus. Não podemos conceber um louvor de Deus perfeito que não tenha a Ela como ponto de referência.

O caminhar do espírito humano

O espírito humano caminha para a cognição de “proche en proche” – de próximo em próximo, mas nesse caminhar, qual é o próximo d’Aquele que é eterno, absoluto, perfeito, infinito, transcendente em relação a qualquer criatura? Deus mora, a um título muito especial, no interior das criaturas por Ele amadas. Então, como Ele habita em Nossa Senhora, que é tão especialmente objeto de seu amor?

N’Ela temos o modo de nos tornarmos mais próximos de Deus. Embora Ele seja inacessível, fica ao alcance de nossa mão, porque habita em nossa Medianeira. Sendo Ela o Palácio da Trindade, o Paraíso do Homem-Deus, por meio d’Ela podemos ter com Ele aquele contato sem o qual nada somos.

Por essa razão, para exaltar qualquer perfeição divina, até mesmo a sagrada cólera d’Ele, não podemos tratar disso sem falar a respeito d’Ela.

Quando um indivíduo peca e se fixa irreversivelmente no pecado, torna-se odioso

Como medir a cólera do Sapiencial e Imaculado Coração de Maria? Como podemos sequer conceber o Sapiencial e Imaculado Coração de Maria em cólera? Parece que as expressões são contraditórias, antitéticas. N’Ela não pode haver cólera, Ela é toda cristalina, toda feita de suavidade, de pureza. A cólera parece uma vibração de indignação, do amor de si mesmo contrariado, do egoísmo vilipendiado. Como se pode conceber disposições de alma tão baixas n’Aquela criatura que é toda Ela elevação?

A quem e como Nossa Senhora odiou? Costuma-se dizer que Ela odiou o pecado. É verdade. Mas o pecado só existe na pessoa do pecador. Não há um pecado tomado em abstrato. Antes de Adão e Eva pecarem, não havia pecado, pois não havia pecadores. Existia uma possibilidade de alguém pecar. Então, poder-se-ia odiar essa possibilidade, mas o ódio não teria como objeto um ser existente. Se Adão e Eva tivessem esse ódio ao pecado, enquanto sendo uma eventualidade, teriam encontrado mais recursos de alma para não pecarem.

Maria Santíssima odeia em todos os pecadores aquilo que é pecado e ama os pecadores, pois ama neles a possibilidade que, por disposição divina, têm de se arrepender. Mas a situação atual do pecador, enquanto permanecendo no estado de pecado, Ela odeia.

Como Ela odeia? Como nós podemos imaginar os ódios do Sapiencial e Imaculado Coração de Maria?

Tenho a impressão de que com o pecado e com a virtude há quintessências. Alguns pecadores, por assim dizer, levaram tão longe o pecado quanto uma criatura humana pode levar a virtude. E, ao pé da letra, pecaram tanto quanto podiam, isto é, quanto estava na condição deles pecarem. Sendo criaturas muito elevadas, tiveram a possibilidade de pecar de modo muito abominável. Diz o ditado popular: quanto maior é a altura, tanto maior é a queda.

Assim, houve criaturas de uma natureza muito elevada chamadas por Deus a emitir um reflexo magnífico das três Pessoas Divinas. No momento em que pecaram e se fixaram irreversivelmente no pecado, essas criaturas tornaram-se odiosas. Ao ser criada, e tendo tomado conhecimento dessas criaturas e da hediondez do pecado por elas cometido, Nossa Senhora não foi em relação a elas senão ódio.

Maria Santíssima toma em consideração que o pecador forma um todo só com o pecado, assim como a pessoa virtuosa forma um todo só com a virtude. É mais ou menos como a pessoa feia e a feiura; como também a beleza constitui um todo com a pessoa bela. Tanto a beleza quanto a feiura são inerentes ao ser da pessoa.

Assim também o pecado, com a diferença de que este é livremente escolhido pelo pecador; e nisso a pessoa tem exatamente a nota mais humilhante, pois ela viu e aderiu àquilo por sua própria vontade.

O ódio se mede pelo amor

Então, pelo próprio amor insondável que Nossa Senhora tem a Deus, é impossível que Ela não odeie completamente aquele ser ao vê-lo como sendo o contrário do Criador. Para cada pecador a quem a Divina Justiça selou o destino e condenou ao Inferno, Maria Santíssima pode dizer as palavras da Escritura: “Eu te odiei com ódio perfeito!” (cf. Sl 138, 22). É um ódio ao qual não falta nada.

Esse ódio é feito de uma concepção retíssima e nobilíssima de como aquele ente deveria ser, pois Nossa Senhora conhece o modo único pelo qual aquela criatura deveria ser a imagem e semelhança de Deus, e ama muito aquilo. Ao ver que aquele ser rejeitou essa perfeição, transformando-se voluntariamente no contrário, Ela percebe que ele atingiu o requinte de sua própria maldade e o odeia completamente, por amor àquela mesma perfeição que Ela contempla em Deus.

É forçoso que, amando-se algo muito, se odeie igualmente o contrário. O ódio e o amor se acompanham como a figura e a sombra.

Os pés puríssimos de Nossa Senhora calcam os precitos com ódio

Poderíamos imaginar Nossa Senhora na presença de Deus e, diante d’Ela, uma alma que será julgada. Se for uma pessoa virtuosa, Ela a considera com amor e diz: “Filho meu, como te pareces comigo e com os dons que Deus pôs em Mim! Quero oscular-te, meu filho, dá-me tua fronte!”

De repente, aparece a alma de um pecador empedernido, trazendo o sinal do demônio na testa. Evidentemente, toda aquela força de atração se transforma em repulsa, e as palavras de carinho tornam-se increpação: “Eu desvio de ti minha face, tenho horror ao semblante que apresentas, ele causa-Me asco e indignação. Quero calcar aos pés a deformidade que por teu pecado assumiste, como calco a serpente eternamente!”

Poder-se-ia pintar um quadro representando a Santíssima Virgem calcando aos pés cada um dos réprobos que estão no Inferno porque, de fato, sobre eles pesa eternamente o ódio total e implacável d’Ela. E tendo Ela como uma de suas glórias pisar sobre os precitos, poderia dizer a Deus: “Faço-Vos este ato de reparação, meu Criador, que sois meu Pai, meu Filho e meu Esposo! Esses miseráveis quiseram ser o contrário de Vós, por isso meu pé puríssimo, elemento integrante e executivo da mais alta criatura que vossa Sabedoria e vosso Poder engendraram, calca-os com ódio, e Eu entoo o cântico de cólera e de triunfo de todos os justos no Céu e na Terra!”

Ela teve vontade de punir Salomão, que levou à perdição o povo eleito

Dos múltiplos exemplos que se poderiam apresentar, não há nenhum que me cause tanto arrepio quanto Salomão, o filho bem-amado, o rei que recebeu de Davi a coroa e a missão. Davi deixou prontos os materiais e os planos para a construção do Templo, mas foi Salomão quem teve a glória de construí-lo. Salomão, que é o autor do Livro da Sabedoria, entretanto prostituiu-se a ponto de adorar ídolos, transformar-se num devasso e morrer na libertinagem e na apostasia. Como era possível que uma alma de tal maneira decaísse daquele pináculo? Esse homem, que escreveu as palavras ditadas pelo Espírito Santo para serem comunicadas à humanidade, de repente transforma-se nesse vaso de abominação!

Ao ler no Livro da Sabedoria a narração da construção e inauguração do Templo, de que amor a alma santíssima de Maria deveria se sentir cheia! Era um perfeito reflexo do amor de Deus e quanta glória deveria dar a Ele!

Contudo, ao considerar a narrativa da queda de Salomão, como poderia não sentir um ódio tão grande quanto o amor por Salomão na sua justiça? Como não sentir náusea, asco, repulsa, vontade de rejeitar e de punir aquele que de tal maneira se tornou inimigo de Deus, levando à perdição o próprio povo eleito?!

Horror implacável a toda forma de pecado

Sabe-se que houve Santos que, ouvindo os penitentes em Confissão, sentiam o mau odor dos pecados cometidos por aquelas almas.

Quando o mau odor resulta simplesmente da negligência da pessoa no trato do próprio corpo, causa uma particular repulsa. Ninguém tem culpa pelo mau cheiro do corpo provocado por alguma doença, mas ser negligente e não ter horror ao mau odor de si mesmo já é uma forma de conivência que contagia de algum modo a alma com aquele mau odor físico.

Por exemplo, uma pessoa que por negligência nunca escove os dentes e tenha, por isso, um hálito abjeto. Ela sabe que, se escovasse os dentes, o mau hálito cessaria, mas não os escova porque não tem horror ao mau gosto e ao mau odor de sua boca. Somos levados a pensar que essa alma tem conaturalidade com certos defeitos morais, e ficamos com horror ao corpo que leva a um horror à alma, enquanto esta não tem aversão àquilo que para o corpo é horrível.

Ora, o pecador que poderia e deveria eliminar o seu pecado, mas se deixa ficar nesse estado, tem incomparavelmente mais culpa e é mais aderente ao mau cheiro de sua alma do que ao mau hálito de sua boca.

Imaginem Nossa Senhora sentindo o mau odor da alma de Salomão, por exemplo, que Ela, a posteriori, terá conhecido por completo. Salomão, cujas palavras deveriam ter o perfume do incenso ao ser queimado, o aroma dos frutos quando chegam à maturidade, após sua prevaricação ficou com o cheiro abjeto de todas as putrefações.

Se isso é assim, podemos compreender, então, o implacável horror de Nossa Senhora a toda forma de pecado.

Maria Santíssima conhece até mesmo o que é oculto

Assim também a Santíssima Virgem, a Quem nada era oculto, conhecia perfeitamente a abjeção a que tinha caído sua nação no tempo em que Ela nasceu. Ela sabia que o Messias estava por nascer naquela ocasião, mas via a que auge de degradação chegara o povo judeu. Nossa Senhora não podia deixar de ter, com muito mais lucidez do que o profeta, aquela visão de Ezequiel quando foi conduzido para dentro do Templo e viu em seus recintos ocultos os sacerdotes praticando idolatria, porém diante do povo fingiam adorar o Deus verdadeiro.

Ora, Maria Santíssima sabia que a classe sacerdotal se preparava para cair no abismo do deicídio, e seria a promotora mais ativa de todas as calúnias contra Nosso Senhor. O Sinédrio era propriamente a força deicida dentro de Israel.

Devemos imaginar a Virgem Maria menina entrando para o serviço do Templo, aos três anos de idade, e presenciando esta realidade bivalente: a casa de Deus, onde a glória d’Ele habita, os justos vão rezar, seu Divino Filho iria ensinar, ou seja, todo o Templo era uma espera ansiosa do Messias que deveria vir; e, ao mesmo tempo, Ela via, ao lado do culto verdadeiro, o culto secreto, disfarçado, abominável, e a prevaricação de toda a classe sacerdotal.

Alguém objetará:

— Mas Ela só tinha três anos!

Eu respondo:

— Ela era Nossa Senhora…

Não tem outra resposta a dar. Ela já conhecia tudo.

Com que enlevo Ela penetrou na casa de Deus! Qual não terá sido o cântico dos Anjos ao verem se aproximar Aquela de Quem nasceria o Salvador e que era a nova Arca da Aliança, da qual a arca guardada no Templo, com tanto respeito, era apenas uma prefiguração!

Reação das almas diante de Nossa Senhora menina

Podemos imaginar uma ou outra alma boa que havia por ali, quiçá a Profetisa Ana, o Profeta Simeão, e que, por premunições misteriosas, observando aquela criança diriam: “Que grande chamado tem essa menina!” Vendo-A passar no cortejo das outras meninas educadas para o serviço do Templo, talvez percebessem ser uma intercessora incomparável junto a Deus, e a Ela se dirigiam implorando os favores celestes. E a futura Mãe de Deus, por uma dessas correspondências internas da alma, dava a entender: “Eu tenho consonância contigo, tu és um comigo”. E aquela alma se banhava de alegria!

Provavelmente alguns faziam sua vida girar em torno d’Ela. Sabendo nas várias ocasiões do dia onde Nossa Senhora estava, olhavam para um quarto, por exemplo, para ver se Ela apareceria na janela; ou verificavam de que recinto a Menina saíra para poderem entrar lá logo depois, e por esta forma viver em Maria, com Maria e por Maria, que era uma forma antecipada de viver em Cristo, com Cristo e por Cristo.

Assim, deveria haver em torno da Santíssima Virgem almas fervorosas às quais Ela impulsionava ainda mais para o bem, elevando-as a um píncaro de santidade para elas inimaginável. Outras que eram boas, mas postas na mediocridade, a quem Ela convidava a um voo possante rumo à perfeição que deveriam ter atingido, mas não atingiram. A cada uma dessas a presença d’Ela dizia: “Ou tu Me amas, ou te atolas. Tua hora chegou! Vem, minha filha!”

Por fim, havia também os filhos de satanás, abominando qualquer forma de verdade, de bem ou de beleza, e que, ao sentir a presença d’Ela, dentro deles o demônio grunhia, encobria-se, efervescia, tinha medo, sentia a necessidade de abandonar a presa e sair fugindo, mas armava a alma daqueles malditos contra Ela.

Teve ódio e foi odiada

Se um bom católico no mundo de hoje divide, como não supor que Nossa Senhora não dividisse? Não podia deixar de haver no Templo, além dos amigos da Virgem, os inimigos que desviassem d’Ela o olhar, sentissem mal-estar perto d’Ela, A odiassem, tentassem eventualmente caluniá-La ou difamá-La, procurassem de todos os modos ser-Lhe nocivos, invocassem demônios para tentá-La, prová-La, recusassem-Lhe alimentos, enfim, A sabotassem de todos os modos. Salvo por uma disposição especial da Providência, isso deve ter sido assim. E tanto as almas que eram a favor d’Ela quanto as contrárias acabavam se articulando. Portanto, Nossa Senhora, no Templo, fez a Contra-Revolução oposta à Revolução que se preparava contra o Filho d’Ela.

Estas são hipóteses que se constelam em torno da Santíssima Virgem Maria e nos fazem entender o que foi a vida d’Ela, o papel que o ódio representou em sua vida desde a primeira infância.

Levo minha suposição mais longe: creio que Nossa Senhora, quando estava no claustro maternal de Santa Ana, já causava mal-estar nos que eram de satanás. O demônio, a partir do momento em que Maria Santíssima foi concebida, começou a perseguir Santa Ana de um modo especial, surgiram antipatias, ódios, como também venerações e simpatias, antes mesmo de se perceber que ela concebera uma criança. De tal maneira Nossa Senhora é o contrário do demônio, que ele tinha que sentir a irradiação da pessoa d’Ela, instigando contra Ela o ódio daqueles em quem ele habitava. Não é possível que não fosse assim.

Vemos, portanto, que, desde o primeiro instante de seu ser, Ela teve ódio e foi odiada. Essa compressão e descompressão do ódio e do amor representaram a própria trama da existência d’Ela.    v

(Continua no próximo número)

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 5/7/1980)
Revista Dr Plinio 262 (Janeiro de 2020)

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