Com a alma pervadida de enlevo, veneração e ternura, Dr. Plinio imagina como seria o convívio diário na Sagrada Família, abordando desde os assuntos mais comezinhos até os mais sublimes. E compõe uma oração própria de uma pessoa que não foi maculada pela Revolução.
Encontramos diversas estampas pitorescas, várias delas muito respeitáveis, decorosas, apropriadas e dignas, representando a santa casa onde residiu a Sagrada Família.
Simplicidade sublime
Em geral essas ilustrações se empenham em representar a casa de Nazaré com uma pureza diáfana, uma luz que não era apenas a de um dia lindamente luminoso, mas uma luminosidade persistentemente matinal, ao lado de uma grande simplicidade e uma limpeza absoluta.
O que dizer da limpeza dessa casa?
É difícil imaginar, porque talvez nem sequer os Anjos tinham o privilégio de limpá-la. Era Nossa Senhora, a Rainha dos Anjos, São José, o castíssimo esposo d’Ela, e às vezes, quando estavam cansados, o próprio Menino que, diante de todos os coros angélicos extasiados, limpava a casa para que seus pais descansassem.
Num canto, um jarro simples do qual se levanta uma açucena, muito ereta, como a virgindade, como a pureza, perpendicular, da qual brota o cálice de uma flor maravilhosa; é a única coisa que fala de arte, de gosto; o resto é muito simples.
Mas olhando para qualquer madeira tosca, para o ponto em que um pé de cadeira encosta no chão, o ponto em que uma prateleira suporta três ou quatro pequenos objetos indispensáveis para viver, fica-se extasiado, sem saber o que dizer diante dessas sublimes bagatelas, tão comuns na vida de qualquer um, mas que por estarem postas naquela luz tomam um caráter maravilhoso!
E para muito adequadamente realçar a humildade de personagens tão puros, apresentam dentro deste décor, a Sagrada Família: São José que, sentado, está torneando algum móvel; Nossa Senhora fazendo uma costurinha; o Menino em pé, tão pequeno ainda que se apoia, não na mesa, mas em uma cadeira vazia, sobre a qual brinca com dois ou três objetos, como se aquilo fosse uma mesa.
Atentos aos gestos, à voz, ao olhar do Menino Jesus
Um silêncio no qual ninguém diz nada, mas todos se entendem superlativamente. Ao mesmo tempo, juntando a vidinha de todos os dias de uma pobre família operária e o encanto de considerações metafísicas, sobrenaturais, de Nossa Senhora e de São José que viviam inundados pela presença do Menino, com tudo quanto essa presença significava e era.
O Menino, nascido da Virgem-Mãe, da raça de Davi e, portanto, da mesma estirpe de São José — que possuía sobre Ele um autêntico direito de pai, por ser a criança o fruto das entranhas de sua esposa —, mas que era o Filho gerado pelo Espírito Santo no seio virginal de Maria.
O que dizer disso? Não há palavras que bastem!
A Santíssima Trindade, por assim dizer, “Se movia” ao menor movimento do Menino, brincando com algumas pedrinhas ou mexendo com uma coisa qualquer, enquanto sua infância ia se desenvolvendo segundo a ordenação posta por Deus na natureza humana, mesmo sendo esta tão elevada e tão distante do pecado original, como era a do Menino-Deus, Filho de Maria Virgem, concebida sem pecado original desde o primeiro instante de seu ser.
Poderíamos, assim, imaginar as cenas mais comuns na vida de uma criança, como procurar algum objeto, hesitando sobre se estaria aqui ou lá, e não encontrando onde procurou, para depois buscar no lugar certo porque Nossa Senhora ou São José tinha mudado de lugar o objeto, ou o vento soprou e tocou para longe o paninho que Ele tinha separado…
Que repercussão episódios tão simples teriam nas relações das três Pessoas da Santíssima Trindade?
Por outro lado, São José e Maria Santíssima também cuidando dos afazeres domésticos, mas, tanto quanto possível, procurando não perder um gesto, um movimento, atentos à mínima emissão de voz d’Ele como a uma música inefável. O menor olhar d’Ele era um tesouro sem conta, o menor movimento tinha uma majestade e uma graça inexprimíveis! E eles sabiam que era o Homem-Deus que estava ali, hesitava, Se movia, falava… Podemos imaginar o enlevo sem fim que os inundava!
Como seria o convívio diário na Sagrada Família?
Deveria acontecer também que, pelas contingências da vida concreta, pela necessidade de prestar atenção nos afazeres, às vezes eles desviavam a atenção do Menino. De repente, tinham uma surpresa com alguma atitude e comentavam-na entre si, cochichando baixinho.
Em outras ocasiões, um dos dois esposos tinha estado fora e, quando voltava, recebia encantado o “jornal falado”.
Outras vezes era o próprio Menino Jesus que tinha saído para brincar com outra criança no jardim, enquanto São José e Nossa Senhora ficavam dentro de casa, confabulando: “O que estará fazendo Ele?”, sabendo não se tratar apenas da satisfação de um desejo infantil de ter um companheiro, mas considerando como tudo quanto Ele fazia tinha um significado muito profundo.
Como seria o relacionamento entre os três, na casa de Nazaré? Teriam entre Si um contato, uma interlocução tal que a todo o momento fizessem referência à natureza divina de Jesus? E o Menino, à virgindade fecunda de sua Mãe e à virgindade milagrosa, florindo num casamento casto, de São José? Ou esses eram temas que eles sabiam, veneravam, mas sobre os quais falavam pouco, deixando-os implícitos e conversando sobre eles apenas nas grandes ocasiões, quando baixavam do Céu luzes extraordinárias e, contemplando o Menino, o santo casal tinha êxtases místicos?
Com exceção desses momentos, talvez o resto do tempo transcorresse em uma vida comum, com os assuntos cotidianos:
— José, meu esposo, fostes vós que abristes aquela porta? Quereis porventura sair levando um banco que acabastes de fazer, ou quereis ainda ficar aqui?
— Senhora, eu ainda preciso ficar aqui, exceto se vossa vontade for outra…
Algum tempo depois, diria São José:
— Senhora, Vós vos distraístes — ele bem sabia que Ela tinha estado conversando com os Anjos! — e o almoço já vai longe no nosso pequeno fogareiro; vede um pouco como está… Enfim, poder-se-ia imaginar tudo.
Refulgindo como no Tabor
Eu seria propenso a achar que, na maravilha desse convívio interno, as coisas mais diferentes se davam simultaneamente. Entretanto, tudo se juntava em uma fórmula maravilhosa que não sabemos qual é, mas podemos intuir.
Seria uma fórmula que comportaria momentos de uma seriedade extraordinária, de uma gravidade maravilhosa, em que a Santíssima Trindade se manifestasse ao santo casal? Ou que o Menino — que quando adulto reluziu no Tabor entre Moisés e Elias, de um modo tão esplendoroso — de repente aparecesse a eles com um brilho cada vez mais intenso, num momento inopinado em que Ele viesse pedir licença para brincar um pouco no jardim. E ambos passassem um tempo sem conseguirem responder ao Menino que, entretanto, esperava reluzente a resposta; e eles completamente transportados para outra esfera, pois estavam diante de Deus!
Poderia ser que, depois de terem visto esse esplendor, não comentassem. E Maria dissesse a José:
— Está ficando tarde, não é? Vou recolher a roupa que está lá fora.
E ele diria:
— Senhora, preciso acabar este objeto que me encomendaram para hoje à tarde.
Enquanto Ela ia pegar a roupa e ele trabalhava no objeto, este tomava rapidamente a forma que ele queria. Nossa Senhora, entrava, via o objeto pronto e dizia:
— Senhor, já está pronto o objeto? — suspeitando ter sido concluído pelos Anjos.
E ele, discreto, responderia:
— Senhora, às vezes as coisas correm depressa…
Há um matiz nesse convívio da Sagrada Família que eu não vejo reproduzido na iconografia, e compreendo, porque não é fácil reproduzir. Isso tudo estava impregnado de uma respeitabilidade, de uma majestade, de uma seriedade augusta, de uma determinação forte, para dizer tudo em uma palavra só, de uma seriedade e de uma dor desconcertantes.
Prefiguras da Agonia no Horto, do levar a Cruz ou da coroação como Rei
Em certos momentos, o santo casal deveria ver que o Menino brincava e Lhes aparecia, de repente, chagado dos pés à cabeça, esmagado de dor, e brincando com dois pauzinhos que Ele carregava às costas. E era o precônio da Cruz.
Eles ficavam com o coração partido, e viam o Menino andar de um lado para outro, determinadamente, fazendo um gesto ao Padre Eterno. E era um primeiro, um segundo, um quinto lance prefigurativos da Agonia no Horto. Que dor, que nobreza, que grandeza, que majestade!
Outros dias Ele aparecia como Rei, em comparação com o qual os Césares não eram senão moleques.
Poderíamos, assim, imaginar formas de venerabilidade as mais augustas.
Acredito que os que quisessem habitar na dor seriam pouco numerosos. Mais raros ainda seriam os que não se cansassem da majestade.
Escudo e espada para defender o Menino-Deus
Contudo, quem, considerando a grandeza dessas cenas, não tivesse nenhuma nódoa de Revolução na alma, diante dessa majestade se ajoelharia e diria:
“Ó Majestade divina, dentro desse mar imundo de vulgaridade que é hoje a Terra dominada pela Revolução, quanto Vos procurei sem saber que era a Vós que eu procurava! Quanto Vos desejei, quanto me comprouve em pegar os menores fiapos de majestade que encontrei pelo meu caminho e me deter diante deles conscientemente, pensando em Vós que eu não conhecia!
“Mas afinal, ó Majestade, eu Vos encontro! Majestade, eu Vos compreendo! Vós tendes todo o império dos Anjos, sois tudo quanto há de grande!
“Quando apareceis a mim, ó Majestade, penso no estrondo das cataratas mais caudalosas que, entretanto, são minúsculas torneiras abertas diante de Vós. O oceano parece um dedal de água em vossa presença, e todas as grandezas da Terra não são nada em comparação convosco.
“Ó Majestade, quanto eu Vos procurei, ó pátria de minha alma! Afinal Vos encontro!
“Quando eu fitava a Igreja e renovava enlevado o meu ato de Fé, não sabia que um dos nomes dela era “Majestade”. Agora compreendo. A Santa Igreja Católica, Apostólica, Romana, receptáculo da Majestade, vaso de honorificência!
“Se eu visse Maria, que majestade! Se eu visse José, o modesto carpinteiro, que majestade! Se eu visse o Menino, minha alma procuraria rimas para celebrar-vos, ó Majestade!
“Meus braços ansiariam por um escudo e por uma espada para Vos defender! Meu corpo inteiro se retesaria diante da possibilidade de Vos proclamar diante dos homens, ó Majestade!
“E precisamente porque Vos compreendo, ó Majestade, compreendo também que na vossa imensidade cabem todas as outras coisas: não há amor paterno nem materno, nem carinho fraterno, nem amizade, nem socorro, nem proteção, nem nada do que o coração humano possa produzir de mais suave e de mais terno, que não more em Vós, ó Majestade! Vós sois todas as grandezas, todas as magnificências, até mesmo das coisas pequenas.
“Vós sois o meu repouso quando estou cansado; a tranquilidade e a harmonia do meu sono; a alegria do meu despertar.”
Morar no santuário da majestade
Quem compreende que no santuário incomensurável da majestade há um altar, bem no centro, colocado para o sofrimento? Portanto, também para esta forma de dor de espírito, que é a ascese, por onde o homem abandona o que é frívolo, superficial, fútil, e se volta para o que é profundo, sério, para o esforço da mente na procura da verdade, para o esforço do corpo inteiro na procura do bem e do belo; holocausto mil vezes feito de todos os modos pela alma à procura da verdade, do bem, e da beleza.
Sem essa dor, para nós, concebidos no pecado original, não teria sentido o santuário infinito da majestade. Essa é a verdade.
Há a dor, há a cruz. A Cruz sacrossanta de Nosso Senhor Jesus Cristo.
Quem ama a dor? Quem ama a cruz? É tal a ligação entre a cruz e a majestade que, a partir de certo momento da História cristã, nenhuma coroa houve que não fosse encimada pela cruz. O píncaro da majestade, a cruz pequena sobre a coroa, como se a cruz estivesse numa altura tal que mesmo sobre a coroa ela fosse difícil de ver. Tal é a majestade da cruz!
Quem amará esses pensamentos? Quem se habituará a conviver com eles? Quem quererá morar no santuário da majestade, ajoelhado aos pés da cruz?
Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 20/11/1982)