Reflexões sobre o Santo Sudário

 

 

  Ao contemplar o Santo Sudáriovemos como, durante sua vida
terrena, naquele Corpo o pensamento
enunciado nos Evangelhos repercutia
na voz, aflorava na fronte, bailava
nos olhos, exprimia-se pelos lábios
e gestos. Assim, a imagem ali
estampada é a prova, não só da
existência, mas da Divindade de Nosso
Senhor Jesus Cristo. É o Homem-Deus!

Analisando o Santo Sudário, parece-me que mesmo tomando
em consideração estar a Sagrada Face um tanto alterada
pelos golpes recebidos – como, por exemplo, o nariz –, ela revela outras
excelências de Nosso Senhor.
É fato que na sua forma nativa, perfeita, a fisionomia de Nosso Senhor
se apresentaria de modo ainda mais excelente. Mas per accidens uma
certa excelência maior aparece devido às próprias deformações que ela
sofreu. Deve-se entender isso como uma espécie de preliminar da análise.

 

Abismo de maldade
que causa assombro

 

Chama a atenção ver como não só o nariz visivelmente recebeu uma pancada e ficou deformado, mas o queixo também caiu um tanto. A
distância entre o ponto mais alto da fronte e a parte mais baixa do queixo é um pouco maior do que seria normalmente.
Isto tem, a meu ver, um efeito
curioso: na harmonia perfeita e divina de Nosso Senhor, sua Face deveria dar uma dupla impressão de uma Pessoa muito entregue ao pensamento, mas nem um pouco tenso. O que é natural, pois o pensamento não Lhe custava o menor esforço. Ele pensava com a facilidade e a abundância próprias à excelência das suas duas naturezas unidas hipostaticamente
na Pessoa d’Ele. Por causa dessa alteração fisionômica provocada pelos golpes, Jesus parece um pouco afanoso no pensar.
E, por uma coincidência feliz, percebe-se também que o seu pensamento versa sobre a dor e a perseguição sofridas por Ele, e a injustiça ali cometida, e também a respeito de tudo quanto Lhe aconteceu, as mais atrozes ingratidões, aberrações que chegaram a um ponto inimaginável. Sendo Ele a vítima, medita sobre os criminosos e o crime, a respeito

do qual qualquer meditação tem como ponto de partida a sua própria
santidade e, portanto, a imensa gravidade do fato de que contra o Santo
dos Santos tenha sido feita a violência das violências.

Por causa do estiramento da Face tem-se certa impressão de ser-Lhe
meio penoso sondar até o fim, pela meditação e pela reflexão, esse abismo
de maldade, o qual não é próprio a Ele estar medindo, pois mais Lhe
compete permanecer com a atenção voltada para as perfeições excelsas
de Deus. E esse abismo de maldade causa uma espécie de assombro expresso
na fotografia do Santo Sudário. E, junto com esse assombro, uma
tomada de atitude em consequência, ou seja, Ele repele totalmente a
atitude das pessoas que fizeram isso e, embora não esteja no momento
emitindo um juízo de quem vai condenar, a condenação já está vindo
no horizonte, inapelável e tremenda.

 

Convicção de que a
Ressurreição virá

 

Notam-se a profundidade, a serenidade, a seriedade da reflexão e a firmeza da consequência da conclusão. O pensamento durante todo o tempo é de uma solidez inabalável, todas as suas impressões foram nítidas e definidas. Tudo quanto Ele viu, rejeitou, pensou ficou para todo o sempre.

Por detrás aparece a Divindade. Porque se percebe que Ele não tem apenas em vista o criminoso, mas a Santíssima Trindade. Noto isso em algo de aveludado, sereno, imperturbável, de sublimemente elevado pelo que Nosso Senhor não desce de corpo inteiro até esse poço de infâmia para sondá-lo, mas tem um padrão do alto do qual Ele mede tudo isso.

A unidade de Pessoa com duas naturezas, a divina e a humana, em União Hipostática é inatingível por tantas ofensas que nem de longe tocam a fímbria da majestade serena d’Ele, mantida de tal maneira por inteiro que um mosquito, voando do lado de fora de uma pirâmide, é menos extrínseco ao que está dentro dela do que todos esses pecados são extrínsecos à santidade, à majestade, à divindade de Nosso Senhor. Jesus está completamente de fora, como quem diz: “Eles cometeram esse pecado, mas a minha santidade, a de Deus Pai e do Espírito Santo não foram atingidas. Nós nos amamos na Trindade Santíssima de um amor ao qual esse ódio não afeta em nada. Há uma paz enorme, uma serenidade, uma dignidade que essa corja de nenhum modo atingiu.”

Por outro lado, imaginemos Nossa Senhora, doloridíssima, dirigindo algumas palavras a seu Divino Filho. Ele Lhe responderia com tal suavidade que se diria estar sendo carregado nos braços d’Ela. Sem dúvida, existia neste Varão a consciência de que ao pé da Cruz estava a Mãe d’Ele. A Santíssima Virgem é o Paraíso de Deus. Portanto, dentro de todo esse horror, Ele estava junto ao seu Paraíso e tinha com isso um gáudio. Isso excede a todas as cogitações humanas.

Uma parte dessa serenidade vem da noção da inatingibilidade. E aí a atitude diante da morte é a mais surpreendente
possível. Porque Ele está morto, mas há uma qualquer coisa parecida com a consciência ou convicção da Ressurreição
que virá. De tal maneira que, de algum lado, a condição d’Ele de morto parece dizer: “Está tudo encerrado!”
Mas de outro lado há algo que afirma: “Nada está encerrado!” Só de olhar isto deveria dar aos assassinos
d’Ele uma insegurança de saírem ganindo pela rua, sem ter o que dizer.

 

 

Batalha dos definitivos

 

O queixo de Nosso Senhor parece ter recebido um golpe em virtude do qual a distância entre a parte superior e a fissura dos lábios ficou mada por eles diante de Mim é definitiva!
A que Eu tomo diante deles é definitiva! A minha morte é definitiva! Definitiva será minha vitória! É a batalha dos definitivos. Nesse embate
só falta o último lance que compete apenas a Deus e, portanto, a Mim. Esse lance é a minha Ressurreição, e esta não depende nada dos homens,
mas inteiramente de Mim! E isto virá!”

Com a pancada recebida, o nariz se alongou e isso confirma a impressão de ter passado por várias peripécias. Através de seu traçado, tornado assim indeciso, há uma decisão no
fundo, mais ou menos como a do homem que passa por muitas provas e as vence, permanecendo inabalável, imutável.

O Divino Redentor passou por todas as vicissitudes da Paixão, e em todas elas a perfeição da atitude foi inteiramente a mesma. Através das várias peripécias estampadas no nariz,
se nota a indefectível continuidade d’Ele até o “Eli, Eli, lamma sabactani” 1. Essa fisionomia parece dizer a quem a contempla: “Tu passarás pelas mais assombrosas peripécias.
Sê firme, igual a ti mesmo, para seres igual a Mim até o fim! Os firmes vencerão, e não há bofetada nem golpe que os deforme. Para frente!”

Olhar que increpa todos
os pecados do mundo

Esse olhar de pálpebras fechadas eu não ouso comentar, pois logo que começasse a fazê-lo, senti-lo-ia fixar-se em mim e dizer:
“Tu ousas transpor para teu miserável vocabulário e o jogo das tuas impressões aquilo que é superior a qualquer cogitação? Eu estou
te olhando e tu pensas que alguma palavra é capaz de descrever esse olhar? A todo momento ele continua o mesmo e variado. Tu pensas seres
capaz de acompanhar essa variedade dentro da estabilidade perfeita?

Meu olhar te convida a penetrar no fundo de Mim mesmo, e quando começas a adentrar percebes que estás entrando no Sanctum Sanctorum2, dobras os joelhos, baixas a cabeça e te deixas envolver, não consegues erguer a tua fronte. Não fales do que não ousas ver!”

Sente-se que esse olhar increpa não apenas os pecados cometidos contra Nosso Senhor durante a Paixão, mas todos os pecados do mundo. Portanto, também tem a atenção posta nos nossos defeitos, embora não com uma recusa tão colossal; porém, enquanto defeito, Ele rejeita.

 

No Santo Sudário Nosso Senhor Jesus Cristo está nos ensinando por contraste. Há representações do Divino Redentor que nos fazem sentir uma certa afinidade com Ele, mas esta é a imagem do contraste por excelência. Diante dessa figura só tenho vontade de dizer a Nossa Senhora: “Minha Mãe, obtende que Ele me cure!”
A boca também traz a marca da Paixão, porque possui o sinal da dor, e ao fechar-se exprimiu algo da alma d’Ele que normalmente não se exprimiria. Não é propriamente uma boca de mistério, mas dá a entender: “Não falarei nada, e no meu silêncio está tudo dito, não me perguntes.” Não está na nossa medida ouvir o que Ele tem a dizer. Portanto, não O interroguemos, mas compreendamos por meio de seus lábios cerrados.

A Sagrada Face apresenta algo à maneira de uma contradição, porque o rosto do homem é o repositório da sua honra; entretanto, nessa Face Divina se encontra toda a honra como nunca houve, junto com todas as bofetadas e insultos que jamais foram descarregados contra alguém; tudo está acumulado ali. Calculem o que Nossa Senhora sofreu vendo isso! Simplesmente não há palavras!

Harmonia, equilíbrio
e beleza só possíveis
no Homem-Deus

Pode-se perguntar: a Paixão acrescentou algo a Ele? Poder-se-ia resumir a questão numa outra: a cicatriz acrescenta algo ao guerreiro? É claro! Nosso Senhor Se tornou cheio de cicatrizes. Quando nós, pelos rogos de Maria, O contemplarmos no Céu, veremos na Face d’Ele uma espécie de plenitude do que era em todas as idades da sua vida. Mais do que como era no Santo Sudário e na Cruz. Todas as suas cicatrizes estarão irradiando esplendores e aumentarão a beleza da Santa Face. Não temos ideia de como Ele será pulcro para nós olharmos.

A fronte tem uma proporção e está numa harmonia celestíssima com o restante do rosto, é a própria imagem da perfeição moral. O tamanho normal dela não aparece devido ao cabelo desalinhado, maltratado, desordenadamente posto pelo Sangue que escorre. Tudo isso causa uma sensação de que a testa desapareceu, como se diria de um castelo cuja parte mais alta pegou fogo.

Consideremos a estatura d’Ele. Percebe-se a extensão de ombro a ombro, a altura do pescoço e do tronco, o comprimento dos braços, formando uma proporção simplesmente monumental!

Em Nosso Senhor existe a conjunção de dois aspectos: a estabilidade e o movimento. Ele tem uma estabilidade perto da qual uma pirâmide do Egito é uma mexerica. E, de outro lado, possui uma facilidade de Se mover a qualquer momento, para um movimento dominador, natural, que afasta qualquer obstáculo para longe. Ele é o Rei rompu, brisé, anéanti – quebrado, despedaçado, aniquilado –, segundo a expressão de Bossuet, mas a essência d’Ele está completa. Ele domina plenamente. Olhando só esse equilíbrio já se compreende não se tratar de um mero homem. É o Homem-Deus.

Pode-se perceber nesse Corpo inerte o pensamento enunciado nos Evangelhos que repercute na voz, aflora na fronte, baila nos olhos, exprime- se pelos lábios e gestos. D’Ele saíram virtudes de toda espécie e cada uma delas era um hino de ordem e de elevação, algo que não podemos imaginar.

A meu ver é inteiramente óbvio que isso traz consigo a prova de que Ele existiu e era Homem-Deus. Só alguém de um valor igual ao d’Ele poderia conceber aquilo que ali se encontra.

 

A tal ponto que se eu não conhecesse Jesus e O visse passar pela rua, me ajoelharia e diria: “Meu Senhor e meu Deus!”

Em contrapartida, ao entrar em uma catedral gótica, no ambiente silencioso ou onde se tocasse uma música inteiramente adequada, causando- me a impressão de que todas as luzes e formas do recinto sagrado se corporificavam em sons; uma igreja toda florida de maneira a encher-se de perfumes odoriferíssimos, meu espírito desejoso de unum seria levado a perguntar: “Mas não haverá alguém que englobe e exprima melhor tudo isto?” Se nesse momento aparecesse Jesus, eu daria um brado: “Eis! Porém, Ele é muito mais belo do que tudo isso!” E, mais uma vez, exclamaria: “Meu Senhor e meu Deus!”

E ainda que, enquanto eu me desfizesse de veneração, gratidão e pedido de perdão, Ele me quisesse fazer um agrado, não era para mim o mais importante. O principal era querer a Ele: gratias agimus tibi propter magnam gloriam tuam3.

Pois bem, a Igreja Católica é o Corpo Místico de Nosso Senhor Jesus Cristo. Tudo quanto ela possui e ainda aparecerá dela no Reino de Maria é isso, com uma intensidade, uma fragrância da qual nós temos dificuldade de formar uma ideia. v
(Extraído de conferência de
9/2/1983)

 

 

 

1) “Meu Deus, meu Deus, por que Me
abandonaste?” (Mc 15, 34).
2) Do latim: Santo dos Santos.
3) Do latim: Nós vos agradecemos por
vossa imensa glória.
Gabriel K.

 

Cindindo a História de alto a baixo

Numa piedosa imagem de Nosso Senhor flagelado, chama muito a atenção a sublimidade do olhar, no qual transparece o sofrimento intenso do Divino Salvador, que medita com profundidade a respeito do significado transcendente, metafísico, sobrenatural de todas as dores pelas quais passa. O Redentor divide a História entre os que são d’Ele e os que são contra Ele.

 

Tenho a intenção de comentar uma imagem de Nosso Senhor Jesus Cristo flagelado. Dizer dessa imagem que é bonita é muito pouco, porque mais do que isso é profundamente impressionante, e de molde a despertar muita piedade. E é enquanto tal que desejo fazer dela objeto de nossas considerações.

Significado transcendente, metafísico, sobrenatural das dores

À primeira vista, quando me foram apresentadas fotos dessa imagem, fiquei chocado porque as feridas do Corpo sagrado de Nosso Senhor Jesus Cristo estão apresentadas com um tal realismo e de modo tão brutal, que o instinto de conservação do homem clama com aquilo, tem a tendência a fugir e achar que não é arte representar um horror daqueles de um modo tão horripilante.

Esse é um primeiro impulso que deve ser dominado porque é uma ingratidão. Tal será que, tendo Nosso Senhor Jesus Cristo sofrido tudo o que padeceu por nós, não queiramos sequer olhar para o Corpo chagado d’Ele porque isso pode nos desagradar. Como um primeiro impulso se compreende, pois é uma reação quase física. Porém, haveria ingratidão em consentir nesse impulso. Além de ingratidão é uma falta de respeito sem nome!

Compreende-se, então, que o escultor tenha chegado a esculpir de modo tão terrivelmente realista essa imagem, a qual pareceu-me ser uma escultura espanhola, com aquele realismo próprio das imagens sobre a Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo, e que deveria datar de fins do século XVIII, mais provavelmente do século XIX. Soube depois que ela se encontra no Canadá.

Consideremos, nas seguintes fotos, alguns aspectos dessa imagem.

Algumas coisas me agradam extraordinariamente nessa figura. A primeira delas que me chama mais a atenção é o olhar profundamente pensativo, meditativo. Tenho visto incontáveis crucifixos em que Nosso Senhor parece abismado – aliás, santamente – na consideração da sua própria dor, e onde o artista procura atrair a atenção para os sofrimentos do Divino Crucificado a fim de provocar compaixão. Nesses crucifixos o próprio olhar do Redentor, muito legitimamente, parece perguntar: “Pelo menos nesta dor, tu não tens pena de Mim?”

Porém, aqui eu interpreto o olhar de outra maneira. É bem verdade que a dor está presente. É o olhar de uma Pessoa que sofre intensamente, mas, por cima da dor, nota-se que há uma reflexão profunda, consternada de Quem pensa profundamente a respeito do que Lhe está acontecendo, do significado transcendente, metafísico, sobrenatural de todas as dores pelas quais Ele está passando, e que constitui propriamente uma meditação.

Nosso Senhor enquanto pedra de escândalo

É uma meditação sobre a sua própria Paixão, como Ele gostaria que nós fizéssemos e que, segundo interpreto olhando a Face sagrada, parte do mais alto ponto de consideração em que uma mente humana possa se colocar. Mas é, ao mesmo tempo, uma reflexão que vai até o mais concreto, palpável, miúdo, o mais distante da transcendência, e une tudo numa vista em comum, numa consideração global não só do que fazem contra Ele, mas também do que realizam por Ele.

De maneira que estão contemplados não apenas os homens vivos nessa ocasião, mas todos os que ao longo dos tempos meditariam esse passo da Paixão e seriam frios, indiferentes, cruéis, ou O adorariam transportados de amor e admiração na consideração da situação em que Ele está.

Tudo isso é considerado, o que me faz lembrar a palavra do Profeta Simeão sobre Ele: Pedra de escândalo que dividiria os homens para a perda e a salvação de muitos, a fim de que se revelassem as cogitações de muitos corações (cf. Lc 2, 34-35). Quer dizer, dividindo, cindindo a História de alto a baixo em dois: os que eram d’Ele e os que eram contra Ele, salvando-se uns e perdendo-se os outros. Parece-me que essas considerações altíssimas, e outras ainda, estão expressas nesse olhar, que pousa ao longe, num ponto indefinido.

Entretanto, há uma altaneria na posição d’Ele pela qual, por mais que esteja alquebrado, não está arqueado. Pelo contrário, o tronco sagrado está ereto numa posição que se poderia chamar de nobre. A própria cabeça não está caída de modo desairoso, nem erguida de maneira arrogante, mas posta com uma naturalidade digna sobre o pescoço, e elevada como um Homem que está entregue às suas mais altas cogitações.

Notem a posição lindíssima dos dois braços. Dir-se-ia tratar-se de um personagem num ato de muito protocolo, de muita etiqueta. Nas cortes, muitas vezes o modo correto de postar os braços diante de um rei ou de uma rainha é esse. Assim está Ele.

No Corpo ferido pela flagelação vemos partes da carne sagrada intumescidas, algumas foram batidas e outras arrancadas. Embora esteja cercado por gente que ria d’Ele, Jesus não olha para essas pessoas, mas as transcende. Ele está infinitamente acima de tudo isso, entregue aos seus pensamentos, à sua oração. De tal maneira que se poderia colocar, entre os muitos títulos que essa imagem mereceria, a frase: “Iesus autem orabat”, como também “Iesus autem tacebat”(1).

Três aspectos do divino olhar

Observem como o manto da irrisão, apesar de tudo, cai composto, com a parte direita meio voltada para trás, indicando por esses discretos indícios a beleza e a força moral que não O abandonaram nem mesmo nas situações mais terríveis.

Creio ser este semblante a última expressão do comovedor. É Cristo enquanto pensando, refletindo, orando durante a sua Paixão. Julgo discernir nesse olhar três aspectos. Primeiro, muita dor física que se exprime aí, seguida de muita angústia diante do sofrimento que vem. É Alguém que está em pleno tormento e sente o tormento que ainda vem. Portanto, encontra-Se no auge do horror, em que Ele ainda não sofreu tudo, e a morte que o libertará está longe. Ele já sofreu tanto que perdeu toda a força para resistir; entretanto, ainda tem que aguentar enormemente. Há, por isso, uma ansiedade, uma angústia. Mas que angústia doce, suave, sem agitação, confiante! “Isto tem uma saída. Meu Pai atenderá minha prece, e Eu chegarei até o fim. Isto tem um sentido.”

Por outro lado, vê-se a tristeza profunda, mas uma tristeza moral, como que divinamente decepcionado com aqueles que O abandonaram. Não parece que o Divino Mestre Se lembra, nessa hora, não dos miseráveis que O estão chicoteando, mas dos Apóstolos que O deixaram? Ele parece estar revendo cada Apóstolo, um por um: pensando em São Pedro, sobre quem Ele construiu a Igreja; em São João, o Apóstolo Virgem, que horas antes ainda deitara a cabeça sobre o peito d’Ele para fazer uma pergunta na intimidade; em São Bartolomeu, de quem Ele mesmo disse que era um verdadeiro israelita no qual não havia fraude e que, entretanto, O abandonou também… Ele está pensando em todos os outros. E lembrando-Se com horror do filho da perdição que O vendeu, Ele está cogitando em todos aqueles que O trairiam ao longo dos séculos.

Entretanto, Jesus está pensando também em algo que O angustia enormemente, mas é magnífico: Nossa Senhora e a dor que Ela está sofrendo.

Porém, por cima disso, parece-me ver os olhos do pensador que está meditando, fazendo a Filosofia e a Teologia daquele acontecimento central da História, que é a sua Paixão e Morte. E contemplando tudo isso Ele está orando. A meu ver é manifesto haver dentro disso uma magnífica oração.

Nosso Senhor sofreu tudo isso pelos rogos de Maria

Quando uma pessoa pensa, costuma frequentemente formar um vinco precisamente nesse lugar da fronte onde, na imagem, sobressai uma vergastada profunda. A meditação do verdadeiro homem de Deus é muitas vezes acompanhada de dor, de tristeza e de amargura, faz sangrar a alma, se não o corpo, que envelhece, encanece, se consome, mas se eleva e se santifica.

Considerem no Corpo divino a tumefação do braço esquerdo: nem tem o contorno comum de um braço, mas está todo ele bailando em torno dos ossos. E esses braços ainda vão carregar a Cruz, essas mãos ainda serão cravadas no madeiro, até que Ele morra. Esta é a imensidade de tormentos que O aguarda depois de ter sofrido tudo isso.

Ali vemos amarradas as mãos sagradas do Onipotente. É bonito que o escultor as tenha apresentado inteiramente descontraídas; não há contração nervosa, mas estão como as mãos de um rei prontas para serem osculadas. É o Rei da dor.

Por nós, que somos escravos da Santíssima Virgem, essa imagem deve ser considerada de dentro dos olhos de São Luís Grignion de Montfort. Devemos entender que se Nosso Senhor sofreu tudo isso foi pelos rogos de Maria; se esse Sangue é aplicável a nós, é pelos rogos de Nossa Senhora; se nossa presença não causa horror a Ele, mas, pelo contrário, é aceita com misericórdia, é pelos rogos de Maria.

É com Ela, por Ela e n’Ela que nós podemos nos apresentar a Nosso Senhor Jesus Cristo. Maria Santíssima é o caminho necessário, por vontade de Deus, para nos aproximarmos de seu Divino Filho e sermos, não digo dignos, mas pelo menos de algum modo proporcionados para olhar essa figura, e pedirmos por nós e pela Igreja.

Considerações sobre o escultor da imagem

Agora, uma palavra sobre o escultor. A meu ver, esse homem fez uma coisa extraordinária no seguinte sentido: muitas vezes vemos em uma obra de arte a expressão da alma do artista que a produziu. Essa é uma qualidade, pois indica o modo pelo qual a pessoa exprimiu o que aquele tema lhe produzia no espírito. Contudo, muito mais bonito é quando o artista de tal maneira se deixa identificar com o tema, que a expressão de alma dele não aparece, e sim somente o tema. Nessa escultura não se sente o artista, mas apenas Nosso Senhor Jesus Cristo.

O artista de tal maneira viveu, por assim dizer, a dor de Nosso Senhor que ele O representa e se apaga. Não se percebe qual era o estado de alma dele, a não ser na extrema inteligência, propriedade, finura e, sobretudo, na extrema piedade com que ele apresenta a matéria; de resto, ele está ausente. Isso, a meu ver, é o auge do mérito dentro da obra de arte.                v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 10/2/1976)
Revista Dr Plinio 265 (Abril de 2020)

 

1) Do latim: Jesus, porém, orava. Jesus, porém, calava.

 

Alegrai-vos, pois o Senhor ressuscitou!

Durante os três dias em que Nosso Senhor esteve morto, aos olhos dos que O conheceram tudo parecia irremediavelmente perdido. Porém, sua gloriosa ressurreição trouxe-lhes novamente a alegria e o júbilo.

 

Comentarei a Ressurreição de Nosso Senhor, com base num texto tirado da “Concordância dos Santos Evangelhos”, de Dom Duarte Leopoldo e Silva(1).

A narração da Ressurreição

Na noite do sábado, quando já raiava o primeiro dia da semana, Maria Madalena, Maria, mãe de Tiago, e Salomé, compraram perfumes para ir embalsamar a Jesus.

No primeiro dia da semana, partindo muito cedinho, estando ainda escuro, chegaram elas ao sepulcro ao levantar do Sol, trazendo os perfumes que tinham preparado. E diziam entre si: “Quem nos há de afastar a pedra da entrada do sepulcro?” Porque ela era muito grande.

Eis que houve um grande terremoto, porque um Anjo do Senhor desceu do Céu e, aproximando-se, rolou a pedra e sentou-se sobre ela. O seu aspecto era como o relâmpago e suas vestes como a neve.

De medo dele, assustaram-se os guardas e ficaram como mortos.

Maria viu a pedra afastada do sepulcro e foi correndo ter com Simão Pedro e com o outro discípulo que Jesus amava, e lhes disse: “Tiraram o Senhor do sepulcro e não sabemos onde O puseram”. As outras mulheres viram também a pedra afastada do sepulcro e, entrando, não encontraram o Corpo do Senhor Jesus.

E aconteceu que, estando elas consternadas por esse motivo, se apresentaram junto delas dois homens vestidos de roupas deslumbrantes. E como elas se atemorizassem e baixassem os olhos para o chão, disseram-lhes eles: “Não temais, porque sei que procurais a Jesus que foi crucificado. Por que procurais entre os mortos Aquele que está vivo? Não está aqui, mas ressuscitou como tinha dito. Recordai-vos do que vos disse Ele quando estava ainda na Galileia: ‘É preciso que o Filho do Homem seja entregue nas mãos dos pecadores, que seja crucificado e ressuscite ao terceiro dia’.

Vinde ver o lugar onde foi posto o Senhor, e ide prontamente dizer aos seus discípulos e a Pedro que Ele ressuscitou e vai adiante de vós para a Galileia. Aí O vereis, como Ele vos disse. Eis que eu vos preveni”.

Então, recordaram-se elas das palavras de Jesus e, saindo, fugiram do sepulcro, porque as tinham acometido o tremor e o pavor, e a ninguém disseram coisa alguma por estarem possuídas de medo.

Entretanto, saíram Pedro e aquele outro discípulo, e vieram ao sepulcro. Ambos corriam juntos, mas aquele outro discípulo correu mais apressado do que Pedro e chegou primeiro ao sepulcro.

Inclinando-se, viu os lençóis postos no chão, mas não entrou. Chegou, depois, Simão Pedro, que o seguia, e entrou no sepulcro e viu os lençóis postos no chão. Mas o sudário, que estivera sobre a cabeça de Jesus, não estava posto com os lençóis, senão que estava dobrado num lugar à parte.

Então, pois, entrou também aquele discípulo que primeiro tinha chegado ao sepulcro: e viu e acreditou.

E os discípulos voltaram de novo para casa.

Jesus aparece a Maria Madalena

Tendo Jesus ressuscitado de manhã, no primeiro dia da semana, apareceu primeiramente a Maria Madalena, da qual havia expulsado sete demônios.

Ora, estava Maria junto ao sepulcro, na parte de fora, chorando. Enquanto chorava, inclinou-se, olhou para o sepulcro e viu dois Anjos vestidos de branco, sentados, um à cabeceira, outro aos pés, onde tinha sido posto o Corpo de Jesus.

Disseram-lhe eles: “Mulher, por que choras?” Respondeu-lhes ela: “Porque tiraram o meu Senhor e não sei onde O puseram”.

Dizendo isto, voltou-se para trás e viu a Jesus, de pé, mas não sabia quem Ele era.

Disse-lhe Jesus: “Mulher, por que choras? A quem procuras?” Julgando ela que fosse o jardineiro, disse-lhe: “Senhor, se O tiraste, dize-me onde O puseste e eu O levarei”.

Disse-lhe então Jesus: “Maria!” Voltando-se, disse-Lhe ela: “Raboni!”, o que quer dizer “Mestre!”

Disse-lhe Jesus: “Não Me toques, porque ainda não subi para meu Pai, mas vai dizer aos meus irmãos que Eu subo para meu Pai e vosso Pai, para meu Deus e vosso Deus”.

* * *

Como a linha geral deste lindíssimo texto dos Evangelhos sobre a Ressurreição de Nosso Senhor Jesus Cristo é bastante conhecida, julgo mais interessante irmos comentando um ou outro pormenor mais ilustrativo.

Aquela sobre a qual todas as alegrias e as glórias da Ressurreição convergiram

Na noite de sábado, quando já raiava o primeiro dia da semana, Maria Madalena, Maria, mãe de Tiago, e Salomé, compraram perfumes para vir embalsamar a Jesus.

São citadas duas Marias; onde está a outra Maria, Nossa Senhora? Percebe-se que a dor, o recolhimento, a esperança d’Ela eram tão grandes, que a Virgem Santíssima pairava acima de todas as circunstâncias e providências concretas, mesmo as mais augustas, que dissessem respeito ao Corpo de seu Divino Filho. Por causa disso, as outras A serviam e faziam, por mediação, instigação e pelas ordens de Nossa Senhora, aquilo que Ela mesma quisera realizar.

Tal era o grau excelso de recolhimento de Maria Santíssima, que toda a dor, todo o júbilo e toda a esperança da Igreja estavam n’Ela concentrados, para depois serem distribuídos a todos os fiéis ao longo de todos os tempos. Todas as alegrias e glórias da Ressurreição de Nosso Senhor convergiram, como num foco central, sobre a Virgem Maria; d’Ela não se diz nenhuma palavra, porque Nossa Senhora é superior a todo louvor, a qualquer menção. Ela paira acima de tudo. Cabe-nos apenas pensar nisto e continuar, reverentes, a narração, porque na soleira da porta do quarto onde estava Nossa Senhora não penetrou o cronista do Evangelho, e também nós não somos dignos de entrar. Podemos apenas sentir esses perfumes da devoção a Maria Santíssima do lado de fora, e nos enlevarmos ao passar. Essa é a razão do silêncio dos Evangelhos a respeito de Nossa Senhora, quando falam da Ressurreição.

O caráter matinal da alegria pascal

No primeiro dia da semana, partindo muito cedinho, estando ainda escuro, chegaram elas ao sepulcro ao levantar do Sol, trazendo os perfumes que tinham preparado. E diziam entre si: “Quem nos há de afastar a pedra da entrada do sepulcro?” Porque ela era muito grande.

Elas chegaram ao sepulcro quando raiava o dia. De fato, a alegria pascal tem qualquer coisa de matinal. Nosso Senhor, que sai de dentro da morte, é simbolizado pelo Sol que se levanta do interior da noite.

Como deve ter sido a primeira noite de Adão, quando viu descerem as trevas sobre o mundo, e depois ele adormeceu? O medo de que nunca mais as coisas se restaurassem e voltassem ao que eram… E, vendo o Sol surgir de novo de dentro da noite, Adão observou esse esplendor que evocava o pensamento da ressurreição. Nosso Senhor era o Sol que saía de dentro da escuridão da morte, e aquelas que foram tomar conhecimento d’Ele chegaram ao sepulcro exatamente no momento em que o símbolo figurava a realidade que se tinha passado.

Vemos aqui como Nosso Senhor ama a natureza que Ele criou, gosta de fazer todas as coisas em consonância com essa natureza e dando valor ao símbolo de que Ele mesmo é o Autor.

Compreendemos também porque, adequadamente, o Evangelho menciona essa hora. Todas essas coisas têm muitos sentidos místicos, alegóricos, reais. Aqui está um desses significados.

Assim como afastaram a pedra do Santo Sepulcro, os Anjos removerão as pedras de nossos caminhos

As santas mulheres levavam perfumes que tinham preparado, fazendo-nos lembrar das palavras de Jesus, quando recebeu o perfume daquela mulher: o Corpo d’Ele já estava sendo preparado para a sepultura. Os cadáveres eram aromatizados com perfumes. Elas estavam tão esquecidas da profecia da Ressurreição, e tão certas de que Nosso Senhor não tinha ressuscitado, que levavam todos os unguentos perfumados para ungir o cadáver; chegam lá e encontram um Deus ressuscitado!

Vemos como era razoável que Nossa Senhora pairasse acima dos acontecimentos. Ela sabia que Jesus não seria encontrado lá, mas tinha que incentivar o ato de piedade delas, embora dele não pudesse participar. Então, elas lá foram com os seus perfumes, que eram uma expressão das almas delas. Quem oferece perfumes é porque tem amor e gostaria que sua alma subisse a Deus como um aroma de um odor suave.

De outro lado, notemos a confiança dessas mulheres. Elas sabiam que havia uma pedra muito pesada no sepulcro, podiam temer perseguições e a tarefa que pretendiam fazer era impossível, mas nada as deteve. Elas confiaram que, obedecendo à voz interior da graça, não seria uma pedra que lhes haveria de atrapalhar o cumprimento da missão. Que maravilhosa lição para nós! Quantas vezes a graça nos chama para alguma coisa, mas nós dizemos: “E quem tirará uma pedra tão pesada de nosso caminho?” A resposta é esta: “Contemos com Nosso Senhor, porque se a graça nos chama para algo, não há pedra que alguém não afaste”.

No caso concreto, os Anjos afastaram a pedra. Quantas vezes os Anjos têm afastado pedras dos nossos caminhos! Precisamos ter confiança e caminhar de encontro a todas as pedras, porque os Anjos as removerão, por ordem de Nossa Senhora.

Harmonia entre dois terremotos: o do castigo e o da graça

Eis que houve um grande terremoto, porque um Anjo do Senhor desceu do Céu e, aproximando-se, rolou a pedra e sentou-se sobre ela. Seu aspecto era como o relâmpago e suas vestes como a neve.

Sinto muito por não ter o mínimo talento para a pintura, pois eu gostaria de saber pintar isto, que representa para mim umas das imagens que faço de um Anjo. É um Anjo descrito pelo próprio Espírito Santo. Pode haver uma coisa mais gloriosa, mais espiritual, mais casta, mais forte, do que um espírito que é como um relâmpago, mas vestido como a neve?

A presença do Anjo causou um terremoto, porque é tal a superioridade da natureza do Anjo, tal a sua grandeza, que há uma espécie de incongruência entre ele e os seres materiais. E compreende-se que na proximidade de certos Anjos com a matéria, a fragilidade desta estremeça. Mas, bendita a terra que tremeu pela presença do Anjo! Bendito o Anjo que fez tremer a terra! Essa é a terra que treme para dar glória a Deus, depois de ter tremido de indignação por causa do deicídio que tinha sido realizado. Entre os dois terremotos, há uma espécie de harmonia, de simetria: o terremoto do castigo, mas depois o terremoto da graça, da presença do Anjo, da reconciliação e da aliança. Foram dois fatos tão grandes, que eram dignos de serem celebrados por terremotos.

Senso hierárquico de Santa Maria Madalena

De medo dele, assustaram-se os guardas e ficaram como mortos.

Maria viu a pedra afastada do sepulcro e foi correndo ter com Simão Pedro e o outro discípulo que Jesus amava. Ela disse: “Tiraram o Senhor do sepulcro e não sabemos onde O puseram”.
É bonito que o primeiro pensamento tenha sido orientado para São Pedro.

Tem-se a impressão de que Maria Madalena não sentiu o terremoto. E nem viu o Anjo na sua natureza angélica, mas notou que o sepulcro estava aberto. Entre as santas mulheres, aquela de quem o Espírito Santo, no Evangelho, mais fala que amava Nosso Senhor é Maria Madalena. Em vez de ter a coragem de entrar no sepulcro, ela entendeu que o fato era tão augusto que não lhe cumpria fazer isso. Que coisa bonita! É o senso hierárquico e anti-igualitário da Igreja, que se manifesta desde esses albores. Maria Madalena vai correndo falar com o chefe da Igreja, conta-lhe o que ela viu, para que ele tome as providências que as circunstâncias pedem.

Notemos, de um lado, toda a beleza do papel do sexo feminino: o amor com que as santas mulheres levam o unguento, e o significado deste na Igreja; e, de outro lado, a jurisdição de São Pedro, da hierarquia. Maria Madalena, que estava com o coração transbordante de amor, vai falar com ele. Mesmo dentro da efervescência da hora, não se perdeu a distância psíquica e manteve-se o senso de hierarquia.

As outras mulheres viram também a pedra afastada do sepulcro, e entrando não encontraram o Corpo do Senhor.

Elas tiveram menos a ideia da hierarquia, então entraram.

Anjos com roupas deslumbrantes, e não como as usadas hoje

E aconteceu que, estando elas consternadas por esse motivo, eis que se apresentaram junto delas dois homens vestidos de roupas deslumbrantes.

Quer dizer, os Anjos tomaram a forma de homens. E para compreendermos o que eram essas roupas deslumbrantes, temos que nos lembrar dos trajes daquele tempo. Não podemos imaginar dois Anjos vestidos com paletós e calças e, muito menos, com suéteres e outras roupas de hoje. Porque é inimaginável um Anjo aparecer de paletó refulgente e de gravata deslumbrante, para não falar das outras roupas…

Há uma tal vilania nos trajes atuais que não ousamos fazer monumentos de homens vestidos com calça, paletozinho, bengalinha. Naquele tempo se usavam túnicas, as quais têm dignidade. Então, apareceram dois Anjos com forma de homem, de modo alvinitente, brilhante, e eles se põem a falar.

É muito bonito que os dois falam como um só. Eles representam, evidentemente, todos os Coros dos Anjos. E naturalmente as vozes deles não seriam iguais, mas harmoniosas. O Evangelho não fala em música, nem em canto; eles faziam uma proclamação, eram dois arautos que anunciavam esse fato. E eles falam no singular, tal é o uníssono deles, tal é a união das almas que amam a Deus. Eis a mensagem dos Anjos:

Não temais, porque sei que procurais a Jesus que foi crucificado. Por que procurais entre os mortos Aquele que está vivo? Não está aqui, mas ressuscitou como tinha dito. Recordai-vos do que vos disse Ele, quando estava ainda na Galileia.

“Recordai-vos”. Há certa censura àquela insuficiência de Fé que, com exceção de Nossa Senhora, todos os outros tiveram. Então, os Anjos citam as palavras de Nosso Senhor: “É preciso que o Filho do Homem seja entregue nas mãos dos pecadores, que seja crucificado e ressuscite ao terceiro dia”.

Como quem declara: “Essas foram as palavras de Jesus, lembrai-vos agora e confundi-vos”. Mas isso era dito de tal maneira que, sendo uma lição, não era, entretanto, para produzir no momento uma contrição. Tanto é assim que, em vez de contrição, as santas mulheres sentiram alegria.

“Vinde ver o lugar onde foi posto o Senhor, e ide prontamente dizer aos seus discípulos e a Pedro que Ele ressuscitou…

Os Anjos confirmam: a missão delas não era igual à missão de Madalena, a qual era dizer que o sepulcro estava vazio. Elas deveriam informar que dois Anjos apareceram e anunciaram a Ressurreição.

Por que os Anjos não falaram a Pedro? Pode-se fazer a conjectura: aquelas que foram fiéis ao pé da Cruz receberam a mensagem. Aquele que era o Papa, o Príncipe dos Apóstolos, não estava lá presente e não recebeu a mensagem. Alguém me dirá: “Mas por que não a São João Evangelista, que estava presente?” Veremos que ele fez questão de dar preeminência a São Pedro. …e vai adiante de vós para a Galileia. Aí O vereis”. Então, recordaram-se elas das palavras de Jesus e, saindo, fugiram do sepulcro, porque as tinham acometido o tremor e o pavor, e a ninguém disseram coisa alguma, por estarem possuídas de medo.

Mas não é um medo de castigo. Entrevê-se que é devido ao contato com a coisa augusta, enorme. E ficaram quietas. Agiram bem ou agiram mal? Eu não encontro no Evangelho esclarecimentos para isso.

Espírito hierárquico da Igreja

Entretanto, saíram Pedro e aquele outro discípulo e vieram ao sepulcro.

Eles tinham recebido a notícia, transmitida por Maria Madalena, de que o sepulcro estava vazio.

Ambos corriam juntos, mas aquele outro discípulo…

O discípulo a quem Jesus amava.

…correu mais apressado do que Pedro.

Compreende-se porque São Pedro era mais velho, mas o fato é que quem amava mais corria mais.

E chegou primeiro ao sepulcro. Inclinando-se, viu os lençóis postos no chão, mas não entrou.

O amor levou-o a ir depressa, mas é o mesmo amor que o fez dar precedência àquele a quem Nosso Senhor tinha dado a precedência. Ele não entrou, esperou que São Pedro entrasse. Vemos aqui o espírito hierárquico da Igreja e como o correr de São João não era sem distância psíquica, mas um correr cheio de ordem; era uma pressa cheia de falta de pressa; ele era tão equilibrado, tão santo, que chegando ao sepulcro ele espera São Pedro. Quanto respeito, quanta reverência! E tudo passou para a História.

Chegou, depois, Pedro, que o seguia, e entrou no sepulcro e viu os lençóis postos no chão. Mas o sudário, que estivera sobre a cabeça de Jesus, não estava posto com os lençóis, senão estava dobrado e num lugar à parte.

Vemos aqui a beleza do respeito ao Corpo de Nosso Senhor Jesus Cristo. Há uma dignidade da cabeça, da fronte, da face, que é algo de especial no homem; e, por causa disto, o sudário, que tocou na Face, não estava colocado junto com os outros panos. Mais ainda: os panos estavam no chão; o sudário, num lugar à parte. Entrevê-se que era um lugar mais distinto, talvez uma anfractuosidade da pedra.

Cristo ressuscitado apareceu primeiro a Nossa Senhora

Então, pois, entrou também aquele discípulo que primeiro tinha chegado ao sepulcro.

O Evangelho repisa bem: só depois entrou o discípulo fiel. São João, caso fosse orgulhoso, diria: “Bem, São Pedro é o chefe, mas eu tenho direito. Quem estava ao pé da Cruz não era eu? Agora chegou minha vez.” Aquele que ama não quer o primeiro lugar, quer amar. E ainda que aquele a quem ele ama queira dar o primeiro lugar a outrem, ele assim o deseja. Que lição para nós!

E viu e acreditou.

Fica-se pasmo. São João deixa entender que, com todo o amor dele, foi naquela hora que ele acreditou. E era o discípulo amado…

E os discípulos voltaram de novo para casa.

Voltaram porque Nosso Senhor disse que ia aparecer-lhes na Galileia.

Tendo Jesus ressuscitado de manhã, no primeiro dia da semana, apareceu primeiramente a Maria Madalena, da qual havia expulsado sete demônios.

Como é curiosa essa referência! Nesta hora lembrar isso! É que a vitória de Jesus sobre o demônio faz a identificação daquela para quem Ele fez tão grande bem, tão grande maravilha. Vemos a beleza da contrição e do perdão: primeiro o Redentor apareceu para Maria Madalena; mas houve um momento super-primeiro. Quem foi A primeira a quem Ele apareceu? Na primeira hora, o primeiro raio de beleza evidentemente foi para Nossa Senhora. Costuma-se contemplar o encontro de Nosso Senhor com Nossa Senhora na “Via Crucis”. Eu não conheço coisa mais bonita, mas há algo tão bonito: é o encontro d’Ela com Ele ressuscitado. O que terá sido a alegria de Maria Santíssima, o “Magnificat” d’Ela? Só no Céu poderemos saber.

Afeto de Nosso Senhor pelos Apóstolos e discípulos

Ora, estava Maria junto ao sepulcro, na parte de fora, chorando. Enquanto chorava, inclinou-se, olhou para o sepulcro e viu dois Anjos vestidos de branco, sentados, um à cabeceira, outro aos pés, onde tinha sido posto o Corpo de Jesus.

Disseram-lhe eles: “Mulher, por que choras?” Respondeu-lhes ela: “Porque tiraram o meu Senhor e não sei onde O puseram.” Dizendo isto, voltou-se para trás e viu a Jesus, de pé, mas não sabia quem Ele era.

Disse-lhe Jesus: “Mulher, por que choras? A quem procuras?” Julgando ela que fosse o jardineiro, disse-Lhe: “Senhor, se O tiraste, dize-me onde O puseste e eu O levarei”.

Disse-lhe então Jesus: “Maria!” Voltando-se, disse-Lhe ela: “Raboni!”, o que quer dizer “Mestre!”

Que beleza de cena! De quanta coisa ela se lembrou quando Ele falou-lhe: “Maria”? As mil vezes em que Nosso Senhor lhe disse, com afeto, “Maria”; tudo isso acordou na alma dela. Então, ela entendeu. E, como certamente mil vezes tinha ela dito para Ele em vida, Madalena exclamou: “Mestre!”, “Raboni!”

Disse-lhe Jesus: “Não Me toques, porque ainda não subi para meu Pai, mas vai dizer aos meus irmãos que Eu subo para meu Pai e vosso Pai, para meu Deus e vosso Deus”.

Nota-se que Maria Madalena queria ir de encontro a Ele. Que linda intimidade dela com Jesus! Com certeza, quis segurá-Lo, beijar suas mãos ou seus pés. E Ele disse-lhe essas palavras: “Não Me toques”, e deu a razão: “porque ainda não subi para meu Pai”.

Razão para mim um tanto misteriosa, mas sublime. Há uma grandeza nisso, toda a distância entre esta e a outra vida: “Eu não subi ainda para meu Pai, mas já estou do outro lado do rio da morte, o qual continua a correr entre nós, embora Eu esteja ressuscitado. Eu não estou ressuscitado para esta vida. Já estou ressuscitado para o Céu. Não Me toques, mas vai dizer aos meus irmãos –– observem o afeto, chamando os Apóstolos, os discípulos, de irmãos –– que Eu subo para meu Pai e vosso Pai, para meu Deus e vosso Deus”. Estava pronunciado o perdão, e as coisas continuavam no diapasão da alegria.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 5/4/1969)

 

1) Silva, Duarte Leopoldo da. Concordância dos Santos Evangelhos. 7 ª. ed. São Paulo: LTr, 1998. pp 439-441.

“Tenho sede”

Quando do alto da Cruz Nosso Senhor disse “tenho sede”, Ele sentia sede corporal, por ter vertido muito Sangue. Mas isso era um símbolo de sua sede das almas, conhecidas por Ele individualmente, especialmente as que viriam a constituir, até o fim do mundo, a Santa Igreja Católica. 

Em Jesus Cristo as naturezas humana e divina estavam hipostaticamente unidas, formando uma só Pessoa. Portanto Ele, Segunda Pessoa da Santíssima Trindade encarnada para nos salvar, era  verdadeiro Deus e verdadeiro Homem. Este é o ensinamento  da Igreja Católica a respeito de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Quis verter todas as lágrimas e todo o Sangue para nos salvar

Sendo Homem-Deus, Ele poderia ter permanecido na Terra o tempo que quisesse. E poderíamos imaginar que Ele ficasse fazendo apostolado, pregando, ensinando até o fim dos tempos, sem morrer. Todos morreríamos, mas nós somos como as águas que correm num rio. Jesus Cristo era como uma pedra celeste, junto à qual todos passam, se abrem e depois se fecham de novo. Ele fica ali de pé, parado, dando vida, beleza, esplendor a tudo.

Ele não quis isso, preferiu morrer na Cruz, depois ressuscitar e subir ao Céu e nos deixar, na aparência, longe d’Ele. Custa compreender que tenha sido assim, pois poderia haver algo mais  extraordinário do que se encontrar com Ele? Entretanto, Nosso Senhor Jesus Cristo julgou ser isso o melhor para a salvação dos homens.

Imaginem que Ele residisse em Jerusalém, num palácio esplendoroso ou num templo, porque estava à altura d’Ele morar dentro de uma igreja, como objeto contínuo de nossa adoração, não  precisando de repouso, de alimento, de nada, pois a vontade d’Ele era soberana; continuamente adorado, adorável e fazendo bem aos homens.

Se Jesus residisse em qualquer parte da Terra, sem dúvida se construiria uma enorme cidade em torno d’Ele, tal seria o número de pessoas que quereriam morar perto d’Ele. Ele poderia fazer este milagre: conservar a vida de Nossa Senhora junto a Ele.

Não é exprimível a quantidade de vantagens, de dons, de bondade e de tudo que os homens receberiam. Entretanto, Nosso Senhor não quis  porque nada disso salvaria os homens. Para salvar os homens era necessário que Ele sofresse, que o seu Sangue infinitamente precioso fosse derramado por nós em expiação dos nossos  ecados. E todo o bem que Ele nos pudesse fazer, estando nesta Terra, não seria comparável ao bem da Redenção infinitamente preciosa que Ele nos conquistou, a qual Nossa Senhora como corredentora do gênero humano obteve para nós.

Na circuncisão Ele verteu Sangue. Os teólogos dizem que simplesmente as gotas de Sangue ali vertidas já teriam sido suficientes para resgatar toda a humanidade. Mas tal é a insondável, incompreensível e adorabilíssima bondade de Nosso Senhor, que Ele não se contentou com isso e quis verter todo o Sangue que derramou na sua Paixão, Crucifixão e Morte.

Ele quis verter todas as lágrimas que verteu, sofrer tudo quanto sofreu, para que nós fôssemos salvos, e constituir com esses que ele remiu a Santa Igreja Católica Apostólica Romana. Temos assim um meio de medir toda a glória que a Esposa de Cristo dá a Ele e de compreender como devemos amá-la. Por conseguinte, precisamos entender o que representa a repetição, na Santa Igreja atólica, do martírio sofrido por Ele.

Uma ideia muito bonita a respeito do universo Nosso Senhor Jesus Cristo remiu- -nos com o seu Sangue infinitamente precioso e, a partir do momento de nosso Batismo, somos transformados em templos do Espírito Santo e a vida da graça começa em nós  e, com ela, Nosso Senhor passa a viver em cada um.

Isso determina uma misteriosa união entre nós que estamos habitados pelo mesmo Deus, constituindo  um vínculo enormemente maior do que qualquer liame de amizade, de respeito, de consideração, de estima, de parentesco, seja o que for. O fato de que a divina graça habita em mim e num outro nos une mais do que todos os laços meramente humanos.

Às vezes, veem-se pessoas conversando sobre o parentesco que têm entre si, recordando os ancestrais, etc. Certamente é de se tomar em consideração. Mas o que é isso em comparação com o fato  e que o Divino Espírito Santo tem sua morada naquelas almas, e ambas são membros do Corpo Místico de Nosso Senhor Jesus Cristo?

Que maravilha se todos os membros da Igreja Católica compreendêssemos, por exemplo, isto: lendo no jornal que uma criancinha de um país longínquo acaba de ser morta, tendo recebido o Batismo segundos  antes de falecer, a alma dela passou a ser habitada pelo mesmo Espírito Santo que está na minha alma e, por isso, ela passou a ser parentíssima nossa pelo fato de se ter tornado uma célula viva do mesmo Corpo sobrenatural ao qual pertencemos: o  Corpo Místico de Nosso Senhor Jesus Cristo! Deus fez da Igreja a verdadeira obra-prima de toda a Criação.

Os antigos tinham uma ideia muito bonita. Diziam eles que, como na Terra nasceu, viveu, sofreu e morreu Nosso Senhor Jesus Cristo, então ela deveria ser o centro de todo o universo. E  maginavam que o centro da Terra fosse Jerusalém, porque ali, no meio de tormentos e de dores incomensuráveis, o Divino Redentor disse “consummatum est” e redimiu o gênero humano. Dali a sua Alma desceu ao Limbo para se encontrar com Adão, Eva e todos aqueles que Lhe tinham sido fiéis na Antiga Lei.

De lá voltou para a Terra, ressuscitou gloriosamente, inundou de alegria e de  lória a Nossa Senhora. E, depois de passar algum tempo ainda na Terra, subiu ao Céu do alto do monte Tabor com um esplendor, uma glória de que ninguém tem ideia. E assim a sua vida terrena estava terminada.

Fica-se com o coração partido. Mas como Jesus Cristo foi embora e nós ficamos na Terra, Ele deixou  quem o representasse, São Pedro, a quem Ele disse aquelas palavras magníficas: “Tu és Pedro, e sobre essa pedra Eu construirei a minha  Igreja e as portas do Inferno não prevalecerão contra ela” (Mt 16, 18). De lá para cá, formou-se a mais antiga dinastia que há na Terra, a dos pontífices romanos. Dinastia inesperada e singular, onde ninguém é pai daquele que o sucede e ninguém é filho daquele a quem sucede. Dinastia, entretanto, tão contínua e tão augusta: a enorme procissão  os papas através da História. Que magnífica série, que dinastia sem igual essa que vai de São Pedro até aquele que será o último papa sobre a Terra!  Que coisa grandiosa!

Imaginem, no dia do Juízo Final, o cortejo enorme dos papas, dos bispos que ao longo de toda a História apascentaram o rebanho de Nosso Senhor Jesus Cristo! Depois, o séquito dos sacerdotes  ue durante toda a História, ininterruptamente, renovaram de modo incruento o Santo Sacrifício do Calvário, rezando a Santa Missa. Em seguida, o imenso cortejo de todos os que viveram no estado religioso, almas especialmente consagradas a Deus: é a Santa Igreja que passa com sua luz, seu esplendor naqueles elementos que, ou exerceram dentro dela governo, ou foram chamados a ar especialmente o bom exemplo.

Por mais que possa haver vácuos, falhas nessa série, que grande quantidade de santos e de serviços prestados; que imensa glória até que o último papa, o derradeiro bispo e o último padre possam  soltar-se para Deus e dizer: “Está cumprido tudo, a tarefa foi realizada, a glória está conquistada. Senhor, encerrai a História, porque o fim de vossa Igreja na Terra chegou!”

Fonte de toda a verdade, todo o bem e toda a beleza

Se não me engano, foi São Pio X quem escreveu um documento no qual ele falava, de passagem, a respeito da civilização cristã. Tal documento foi lançado em fins do século XIX ou no começo do  éculo XX, antes da Primeira Guerra Mundial. Esse período representou o apogeu da Europa, em que ela estava no auge de todo o progresso, de toda a glória. A América do Norte, filha da Europa,  ma vez que era filha da Inglaterra, começava a tomar lugar entre as grandes potências. Dos vagidos de suas vastidões, suas brumas, suas selvas, de junto de seus mares esplendorosos, ia surgindo uma coisa que seria a glória e a esperança da última parte do século XX: a América Latina, nascendo como uma virgem, filha de Portugal, da Espanha, filha da Fé, prolongada em todas essas vastidões que vão desde o México  até a Patagônia.

Esse documento trazia o seguinte comentário: “Se quereis saber qual é a Religião que ensina a ordem divina ao mundo, olhai para os resultados. Vede as nações que confessam o nome de Jesus Cristo, como elas estão acima de todas as outras em glória, em poder e em toda forma de esplendor e perfeição. Eu vos pergunto, então: Quais as nações que têm a ordem perfeita, senão as que se orgulham do nome de Jesus Cristo? E qual, então, a fonte de todo o verdadeiro bem, de toda a beleza, de toda a maravilha que contemplais na civilização cristã?

Essa fonte está na própria Igreja Católica Apostólica Romana!

Cristandade, tu és bela, gloriosa! Entretanto, digo eu, a corola dessa flor não é nenhuma das nações que te compõem, mas a Santa Igreja Católica Apostólica Romana. E para que isso fosse assim,  osso Senhor Jesus Cristo sofreu tudo quanto quis sofrer. Sofrimento tão atroz que O levou a dar aquele brado magnífico: “Eli, Eli, lamá sabactâni?” – “Meu Deus, meu Deus, por que Me abandonaste?” (Mt 27, 46).

Pouco depois, como se estalasse de dor, Ele disse: “Consummatum est” e expirou… (Jo 19, 30).

A primeira canonização da História

Mas Jesus conhecia tão bem a glória que O esperava que, pouco antes Ele tinha dito a um ladrão: “Ainda hoje estarás comigo no Paraíso” (Lc 23, 43). Nosso Senhor tocou a alma daquele  miserável,  perdoou-o e profetizou essa coisa preciosíssima: ele não iria desesperar, nem pecar até a hora de morrer.

A Santa Igreja, por razões verdadeiras e excelentes, estabeleceu que o padroeiro da boa morte é São José, uma vez que ele morreu tendo Nosso Senhor a seu lado, ensinando-o a bem morrer, e  ossa Senhora junto aos dois rezando a Jesus por José, para que a morte dele fosse perfeita. Não se pode morrer melhor.

A morte de Nossa Senhora foi tão leve que os teólogos falam de “dormição”, como um sono. E quando Ela ressuscitou não dava a impressão de ter saído das garras da morte, mas de que florescia  ais uma vez. Excetuadas essas duas mortes, que outra poderia ser bela como a do bom ladrão?

Imaginemos a cena: o bom ladrão ao lado de Nosso Senhor, contorcendo-se de dor; um bandido que, tocado pela graça, estava arrependido e, em meio a todos seus sofrimentos, pensava: “Eu aqui, o meio de minha dor e vendo a dor d’Ele, sinto-me mais feliz do que em qualquer momento de minha vida! A morte se aproxima de mim com seus passos pesados e suas garras terríveis, mas Ele  lha para mim com amor e me restituiu na amizade d’Ele. Se eu pudesse ficar eternamente cravado nessa cruz, sofrendo como estou, mas olhando para Ele, ah, como seria bom! Só sou alguma coisa porque Ele olha para mim e eu para Ele. Nunca mais quero deixá-Lo. Se a morte me agarra e me leva, o que será de mim?”

Talvez nesse momento auge de dor, Jesus, que tanto sofria, mas olhava com tanta compaixão para a dor dos outros, tenha dito para o bom ladrão: “Tu hoje estarás Comigo no Paraíso”.

Assim, naquele momento em que a Inocência e o criminoso, contrito e penitente, se reuniam, ali estavam Nossa Senhora, São João Evangelista e as santas mulheres. A Santa Igreja fazia a sua primeira canonização. Como é benfazejo, assistindo às cerimônias de canonização conforme eram realizadas antigamente no Vaticano, tão pomposas e magníficas, com os sinos e as trombetas que  ocavam, etc., lembrarmos que a primeira canonização foi feita na dor e na aflição, na humilhação e no terror, mas com uma promessa incomparável! É glorioso para a Igreja Católica simplesmente esse fato de ela poder inclinar-se sobre a história desses ou daqueles que viveram na Terra, e dizer com poder infalível: tal pessoa está no Céu. É parecido com Nosso Senhor afirmando: “Tu estarás no Paraíso”. Não é igual, pois Nosso Senhor garantiu ao bom ladrão o Céu.

A Igreja não garante o Paraíso a ninguém, mas declara que alguém já falecido está no Céu, num alto grau reservado aos heróis. Quanta beleza e quanta glória da Igreja Católica! Ela deu origem a todas as pulcritudes da Europa, do mundo, e à maior de todas as belezas: a das almas!

Sede de almas

Foi por amor às almas que Nosso Senhor sofreu toda a Paixão. E quando Ele, do alto da Cruz, disse “tenho sede”, todos os intérpretes estão de acordo em dizer que Jesus sentia muita sede  corporal, o que é explicável por ter vertido muito sangue; mas isso era um símbolo da verdadeira sede d’Ele, que era a de almas.

Sede da alma de cada um de nós. Ele nos conheceu individualmente, sabia como nos chamaríamos, como seríamos, como O injuriaríamos… Entretanto, conhecia também os momentos de bondade nos quais, Ele tocando nossas almas, nós nos arrependeríamos e voltaríamos para o bom caminho. Ele sabia de tudo e queria que nossas almas Lhe pertencessem. Quer dizer, que nossas almas Lhe fossem fiéis e a graça pudesse viver nelas. Foi por ter esta sede desmedida de almas que Ele sofreu também desmedidamente e verteu seu Sangue sem nenhuma medida, desde o primeiro instante em que no Corpo sacratíssimo d’Ele, enquanto agonizava no Horto das Oliveiras, começaram a estalar as primeiras veias e Ele principiou a suar Sangue, até ao fim de sua  paixão, quando veio Longinus e O perfurou com uma lança para que saísse o resto do líquido existente no seu Corpo santíssimo. Ele quis dar e derramar tudo por causa dessa imensa sede de almas!

Se é verdade que muitas almas se perdem, é também verdade que várias outras se salvam. Se pensarmos  simplesmente no mundo contemporâneo, no meio do oceano de pecados que se cometem,  quantas crianças vão para o Céu porque foram batizadas e morreram sem atingir a idade da razão, e brilharão no Paraíso como  sóis por toda a eternidade, compreenderemos quantas almas sobem ao Céu como bolhas de um gás dourado que sai do fundo da humanidade, dos extremos da Terra. E as almas dos recém-nascidos batizados, cantando para todo o sempre a glória de Deus.

A mais bela púrpura de todos os tempos

Em breve celebraremos o Domingo de Ramos, que precede de pouco a Paixão e Morte de Jesus. É o domingo em que Ele entra em Jerusalém aclamado pela multidão, montado num burrico, com mansidão e humildade, o  Filho de Davi e Rei por direito daquela terra que se entregara aos romanos pagãos, não soubera conservar a sua independência e, sobretudo, a sua fidelidade à verdadeira religião.

Nessa entrada triunfal, entretanto, Jesus está meio triste porque, apesar de receber com agrado aquela glória, por serem almas que O amam, Ele olha para elas e, conhecendo todas, não tem ilusão  obre nenhuma. A começar pelos Apóstolos que O acompanhavam. Eles não sabiam, mas Jesus estava ciente do que iria acontecer. Conhecia o sono do Horto das Oliveiras, a fuga medonha no omento em que Ele era preso, as infidelidades dessa gente para com Ele.

O Divino Redentor sabia que aquela aclamação toda provinha de um povo superficial, frívolo, ingrato, que naquele momento gritava “Hosana ao filho de Davi!”, mas pouco depois estaria preferindo Barrabás.

Vem a Quinta-Feira Santa e a Ceia na qual Ele anuncia: “Um de vós há de Me trair!” Todos começam a perguntar: “Quem será? Serei eu?” (Mc 14, 18-21). Fazem sinal a São João para que pergunte  Jesus.

Sendo ele o discípulo predileto, a oração de São João podia alcançar esse favor. Então Nosso Senhor lhe diz baixinho: “É aquele a quem Eu der o pão molhado no vinho”. Molha e como cortesia o  á  para Judas, o qual o recebe e, naquele momento, o demônio entrou nele (Jo 13, 25-27).

Nosso Senhor disse-lhe: “Judas, o que tens a fazer, faze-o logo” (Jo 13, 27). Judas saiu… E o Evangelho diz que era noite; ele entrou na treva, penetrou no horror! Terminada a Ceia, em que Jesus instituiu a Sagrada Eucaristia, todos saem do cenáculo entoando, segundo o ritual antigo, um cântico da Páscoa – isto é, a saída dos judeus do cativeiro do Egito e a travessia do Mar  ermelho, a pé enxuto, por um milagre de Deus – e se dirigem ao Horto das Oliveiras.

As tristezas vão-se acumulando na alma de Nosso Senhor e os Apóstolos não compreendem. Ele os manda aguardar, enquanto Se retira para rezar, levando consigo apenas São Pedro, São Tiago e  ão João. Ali começa a sua Paixão, na previsão de tudo quanto aconteceria. Pela pressão moral diante do terror dos acontecimentos – isso se explica inclusive do ponto de vista médico –, algumas veias capilares começaram a se romper e a derramar Sangue; e Ele suou Sangue no seu Corpo inteiro. Quando os romanos e os judeus O foram prender, com certeza a sua túnica estava purpúrea como a de um rei, mas com a mais bela púrpura de todos os tempos: o Sangue do Filho de Deus, que era o Sangue de Maria, porque a Carne de Cristo é a carne de Maria, e o Sangue  e  Cristo é o sangue de Maria.

Desenrolaram-se, então, todos os episódios da Paixão. Nosso Senhor sofreu a Paixão naqueles dias, mas previu o que a sua Igreja padeceria ao longo da História. Assim, Ele sofreu também por  udo isso, por todos os nossos pecados, por esses dias nos quais vivemos, mais catastróficos do que quaisquer outros da História da Igreja, em que o mal parece ter chegado ao auge. O Redentor Se sacrificou por tudo isso, para nos resgatar. Embora não quisesse que se praticassem esses  horrores, Ele não tirou a liberdade do homem. Este, recusando a graça, fez da sua liberdade o péssimo som que estamos vendo em nossos dias.

O “fatinho” da vida de cada um de nós

Diante disso, o que devemos fazer? O que Ele quer de nós? “Christianus alter Christus”: Todo  cristão é um outro Jesus Cristo. Nessa situação devemos dizer: Vou sofrer a Paixão com Nosso Senhor Jesus Cristo! Se eu tiver sido inocente como São João, estarei ao pé da Cruz amando-O e pedindo-Lhe que preserve a minha inocência. Se fui pecador como São Dimas, ficarei junto à Cruz, quer dizer, aos fiéis, ao que resta da Igreja, pedindo: “Não permitais que eu me separe de Vós!” Rogarei isso por meio de Nossa Senhora, sem cuja intercessão nenhuma oração é válida.

Se eu dever sofrer, ser odiado, perseguido e desprezado, porque fui fiel aos aspectos imutáveis e eternos da Santa Igreja Católica, que aconteça! Meu martírio de alma ou de corpo será um prolongamento do sofrimento de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Oh, glória! Peço à Mãe d’Ele que me obtenha coragem, e irei para a frente. Debaixo do desprezo e do ódio do mundo inteiro, estarei de pé para dizer: “Blasfemadores e prevaricadores, vós andais mal! Eu estou com Jesus e Maria, com a Santa Igreja Católica Apostólica Romana!” Devemos desde já apresentar esse pedido a Nossa Senhora, incorporando a ele todas as almas existentes, inclusive aquelas que pecam contra Deus, fazendo esses horrores, para que Ele as toque e as converta.

Contudo, merecem um lugar especial em nosso amor aqueles a quem Nossa Senhora chamou para serem, conosco, os batalhadores pela Causa d’Ela. Rezemos especialmente por todos os católicos  e nossos dias, para que sejam inteiramente fiéis e suportem carregar a cruz às costas, aguentem a crucifixão, dispostos a qualquer coisa para acompanhar até o fim Nosso Senhor Jesus Cristo e Nossa Senhora.

Os mais augustos episódios, os acontecimentos que o mundo de hoje reputa tão importantes não são nada em comparação com isso. Esses são os grandes fatos da História. Não obstante, devemos tomar em consideração este “fatinho” da vida de cada um de nós: lembrarmo-nos do instante em que fomos chamados, do momento em que alguém passou junto de nós e disse: “Vem, o Senhor te chama!”, quando sentimos a nossa alma tocada e respondemos: “Sim, eu vou seguir!” E, então, nossos passos começaram a percorrer as primeiras distâncias na enorme caminhada que nos esperava; os nossos olhos maravilhados e o nosso coração cheio contemplavam esta sublime “descoberta”: a Igreja Católica! Lembrarmo-nos de que isso foi conquistado para cada um de nós no instante em que Nosso Senhor disse “Consummatum est” e, junto à Cruz, com os sete gládios de dor traspassando o seu Coração, estava chorando a Santa Mãe do Redentor.

Flávio Lourenço

A morte é como um ladrão, vem quando menos se pensa. Que ela seja o fim dessa caminhada, no momento em que Nossa Senhora nos der a graça de fazermos um grande Sinal da Cruz e, com os  lhos postos numa imagem d’Ela e nosso coração transbordante de amor à Santa Igreja Católica, pudermos dizer também: “Consummatum est”.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 30/3/1985)

ORAÇÃO A NOSSO SENHOR AGONIZANTE NA CRUZ

Era 10 de março 1988, quando Dr. Plinio, atendendo ao pedido de um jovem que terminara de fazer um  retiro, ditou esta esplêndida oração, plena de amor a Cristo padecente, humildade e filial confiança

Ó Senhor Bom Jesus! Do alto da Cruz deitais sobre mim o vosso olhar de misericórdia, parecendo desejar que, de meu lado, também eu levante os meus para Vos considerar!

Sim, para Vos considerar em vossa infinita perfeição, e no insondável abismo das dores que padeceis… por mim. Pois bem sei que todas essas dores, Senhor, Vós as sofreríeis só por mim ou por outro homem qualquer, se este fosse o único a depender de tais padecimentos para se salvar.

Vós me convidais a Vos fitar, Senhor! Mas Vós mesmo sabeis que não ouso fazê-lo. Não ouso pôr no vosso divino olhar os meus olhos pecadores, pois me é patente que não sou senão um  vermezinho e miserável pecador, como disse vosso grande e glorioso servidor São Luís Maria Grignion de Montfort. Entretanto, sei também, Senhor, que num extremo de misericórdia destes-me por Mãe vossa própria Mãe.

É ela a advogada que instituístes para pleitear minhas atenuantes ante o vosso tribunal, e para me obter a torrente de vossas misericórdias.

Assim, rogo-Vos, Senhor, por Maria Santíssima, Medianeira de todas as graças, favorável acolhida para as súplicas que passo a Vos apresentar.

Conheço, Senhor, quanto os horizontes de minha alma são de “teto baixo”. Isto é, quanto as cogitações para as quais me volto são meramente práticas, sumidas no concreto, de pouca elevação, todas restringidas ao âmbito natural e à vida terrena, cujos aspectos são precisamente os que mais me atraem. E procuro não olhar de frente o que existe de maravilhoso, de grandioso, de admirável, em suma, as criaturas terrenas que melhor refletem vossa supremacia e vossa glória.

Imploro-Vos, ó Bom Jesus, que limpeis de minha alma este, como tantos outros defeitos meus, tão indignos da condição para a qual me chamastes, a rogos de vossa Santíssima Mãe; tão indignos da condição de quem deve viver afastado de todas as coisas terrenas, cogitando destas apenas na medida que estejam ordenadas ao Céu, a fim de preparar neste mundo as condições para que os homens melhor se salvem e Vos deem a maior glória — “nunc et semper et per omnia sæcula sæculorum”. Fazei-me amar, reta e santamente, tudo quanto é grande, maravilhoso, régio e elevado. Dai-me a graça de ser totalmente inapetente das ninharias que até agora me atraem e de ser totalmente apetente das grandezas que me deixam enfastiado. Pois o fastio dessas grandezas, Senhor, acaba redundando em fastio de Vós. Quem é frio e resistente aos apelos que fazeis ao amor dos homens, através do que é santo e maravilhoso na terra, o é também em relação à vossa obra-prima, que é a graça. E o é, outrossim, em relação a todos os infinitos horizontes da fé, que devemos contemplar.

Não Vos peço apenas, Senhor, que esse defeito se atenue em mim, nem Vos suplico somente que dele me cureis. Imploro-Vos mais, muitíssimo mais: que eleveis minha alma ao amor de tudo quanto é grande na ordem sobrenatural e na ordem natural, e que eu a tudo ame com um amor que esteja no extremo oposto da indiferença que até agora me tem dominado.

Pela linfa preciosa que correu de vosso lado, pela Igreja que saiu de vosso flanco, pelo sofrimento de vossa Mãe aos pés da Cruz, peço-Vos, Senhor: perdoai-me todas as minhas infidelidades e fazei de mim o contrário do que sou. Amém.

Apresentação de Nosso Senhor no Templo

Após ter gerado do modo mais maravilhoso e feliz possível o Filho divino que o Espírito Santo concebeu nas suas entranhas virginais, Nossa Senhora quis se sujeitar, junto com o Menino, à Lei de Moisés pela qual deveriam se apresentar no Templo: Ela, para completar os dias de sua purificação, e Ele, a fim de ser oferecido e resgatado como primogênito.

Submetendo-se, sem o precisarem, a tais preceitos, Mãe e Filho nos deixaram um lindo exemplo de amor e obediência aos desígnios de Deus. Ao mesmo tempo em que proporcionaram ao santo Simeão a alegria indizível de ver com seus próprios olhos o Messias prometido pelas Escrituras.

Sustentando o Verbo Encarnado em seus braços, o profeta O louvou e aclamou como a glória de Israel, a salvação que Deus preparara diante de todos os povos, como a Luz para iluminar as nações…

(cf. Lc 2, 29-32).

Plinio Corrêa de Oliveira

Nossa Senhora e a luta entre a Revolução e a Contra-Revolução – II

Diante de uma humanidade em extremo pútrida, quase inidônea para praticar verdadeiramente a santidade, vislumbres de uma misericórdia nova assentada na devoção a Nossa Senhora se fazem sentir. Naqueles que procuram ser bons existe uma luta entre os vícios e uma graça persistente, inefavelmente obstinada, indicando uma enormidade de graça que verdadeiramente não tem  proporção com nada, uma espécie de sinal precursor do Reino de Maria.

 

Vislumbres de uma nova ação de Nossa Senhora nas almas

Há uma coisa curiosa nas revelações a Sóror Maria de Ágreda(1), nas quais ela diz que no Apocalipse há  muitos conceitos especiais contidos de um modo simbólico, que ainda não foram desvendados, a respeito das relações de Nossa Senhora com os Apóstolos, especialmente com São João Evangelista. E só quando chegar a época em que os teólogos de repente entenderem as cifras o Apocalipse a respeito disso, eles conhecerão todo o tesouro que a Revelação contém, e o Magistério da Igreja poderá se exercer na sua plenitude quanto a esse novo panorama.

Isso vai muito de acordo com o que diz São Luís Grignion de Montfort. Quer dizer, forma um todo.

Embora essa ideia de Maria de Ágreda não esteja provada pelo simples fato de ela dizer, não tem nada de heterodoxo.

Haverá, presumivelmente, um momento em que isso vai se desatar, e esse conhecimento vai se consumar.

Então, nós temos este outro dado que é o progresso desse mistério de graça. Houve uma devoção a Nossa Senhora ao longo dos tempos que, em certo momento, pelo desejo d’Ela, começou a tomar uma consistência maior, a qual vai desenvolvendo dentro das almas esse mistério, e é o triunfo dele que acaba com o reino do demônio e estabelece o verdadeiro Reino de Nossa Senhora.

Tenho impressão de que há alguns vislumbres, por onde se compreende algo a respeito dessa ação misteriosa de Nossa Senhora nas almas. E muito ortodoxos, sérios, sólidos, embora à maneira de vislumbres.

Realidade simbolizada no Coração sagrado de Jesus

Houve tempo em que estive lendo a respeito das devoções ao Sagrado Coração de Jesus e ao Coração Imaculado de Maria –  inclusive encíclicas a respeito disso –, para responder à seguinte pergunta: Em essência, o que é a devoção ao Sagrado Coração de Jesus? E depois, por conexão: O que é a devoção ao Coração Imaculado de Maria? Nós sabemos que o objeto dessa devoção é o Coração enquanto membro do corpo divino-humano d’Ele, ou do corpo sagrado e imaculado d’Ela, mas que são, sobretudo,  símbolos de algo de ordem espiritual.

Então, qual é essa realidade simbolizada através do coração? As encíclicas respondem bastante claramente a respeito de Nosso Senhor Jesus Cristo, e não é difícil fazer a transposição ao Coração Imaculado de Maria. Resumindo: a devoção ao Sagrado Coração de Jesus, como as encíclicas apresentam, é a devoção àquilo que nós podemos chamar o espírito de Nosso Senhor Jesus Cristo, portanto, a doutrina d’Ele; não apenas a doutrina, porém aquilo que é a sabedoria, a santidade d’Ele, quer dizer, uma doutrina não só enquanto concebida, mas possuída, personificada e vivida. Quer dizer, algo de lógico e algo contido nesta expressão meio imponderável que é o espírito de alguém como, por exemplo, o espírito de Elias.

O que é o espírito de Elias? A comparação até não é muito feliz porque é a graça de Elias. Mas vamos dizer, por exemplo, o espírito da Companhia de Jesus. O que é o espírito da Companhia de Jesus? No seu bom sentido, é o espírito de Santo Inácio. Porém o que é o espírito de Santo Inácio? É o conjunto de doutrinas especificamente dele e enquanto vividas por ele, possuídas por ele, simbolizadas por ele. De tal maneira que ele era o paradigma do próprio espírito dele.

Assim é o espírito de Nosso Senhor Jesus Cristo, mas enquanto querendo disseminar-se, contagiar, conquistar, quer dizer, um espírito enquanto amoroso dos homens. E como em face de uma  humanidade pecadora o maior triunfo desse espírito não é a justiça, mas a conquista, acaba sendo a misericórdia. Porque pela justiça Deus manda o pecador para o Inferno, pela misericórdia Ele conquista o pecador. O maior triunfo de Deus está em perdoar e em converter.

Então, nós compreendemos o aspecto misericordioso da devoção ao Sagrado Coração de Jesus, que é tão acentuado na piedade popular. Aliás, também bastante realçado em muitos documentos da Santa Igreja: o Coração de Jesus enquanto fonte de misericórdia.

Similitude do Imaculado Coração de Maria

Paralelamente entende-se o que é o Imaculado Coração de Maria, nem é preciso tratar disso. Contudo, quando se presta bem atenção nessas duas invocações e devoções, nota-se haver meandros dentro dos quais cabem algumas coisas que se intuem, mas tem-se a impressão de que não foram inteiramente ditas.

Há uma espécie de comunicação de Nosso Senhor a quem Lhe cultua o Coração, maior, mais completa, mais inteira, do que quem Lhe presta culto nos outros mistérios. Como também há uma forma de comunicação mais plena de Nossa Senhora a quem Lhe cultua o Coração Imaculado. Os que tratam dessas duas devoções  dizem que elas são para os últimos tempos, os fins da História da Igreja, as últimas expansões da misericórdia.

Então, nós voltamos mais uma  vez à impressão de um acréscimo da graça que se opera por maravilhas de misericórdia, progressivamente e mais intensamente a partir do momento em que essas duas devoções foram reveladas aos homens. É, portanto, mais uma tinta para a ideia de um mistério de graça a se manifestar, a se declarar.

Sinal precursor de uma graça superabundante que unirá os homens a Nossa Senhora no Reino de Maria Tem-se a impressão de que essa graça, essa misericórdia nova incidiu sobre uma humanidade em extremo pútrida, quase que tornada inidônea, à força do vício, para praticar verdadeiramente a santidade. De tal maneira decadente do ponto de vista moral, que é uma coisa que indicaria dever vir o fim do mundo.

Vejo, entretanto, naqueles que procuram ser bons, a luta entre uma graça persistente, inefavelmente obstinada, e uma série enorme de repelões em sentido contrário, de recusas, de molezas, de  infidelidades de toda espécie e tamanho.

Não obstante, parece- me ver uma vitória  progressiva dessa graça, marcada de um modo muito interessante pela forma através da qual as pessoas progridem espiritualmente dentro de nosso  Movimento.

Nesse sentido, é tanta misericórdia que sou levado a ver nisso uma espécie de sinal precursor desta graça superabundante, que no Reino de Maria vai prender os homens a Nossa Senhora.

A meu ver isso não seria explicável sem esta graça dada aos fracos, aos pequenos, e que corresponde àquela divisa da Igreja de Filadélfia, conforme diz o Apocalipse: fraca, mas fiel (cf. Ap 3, 8).

Uma graça que sustenta na fidelidade aqueles que são muito fracos. Na humanidade mais capenga, mais pobre, descem graças contínuas as mais imerecidas que, entretanto, vão formando um fluxo de virtude absolutamente indiscutível.

Tantos casos de regeneração moral magnífica, de gente que passa de moleque de rua para o que há de mais recomendável em matéria de piedade e de virtude, e não se pode deixar de reconhecer haver ali um enorme sopro da graça, uma coisa eminentemente sobrenatural, mas comparável aos grandes sopros da graça que a História da Igreja registra. Naturalmente ainda uma coisa de  começo, nos seus primeiros vagidos, nos seus movimentos iniciais, mas existe. Tudo isto indica uma enormidade de graça que verdadeiramente não tem proporção com nada do que se passa hoje.

E esta graça é toda assentada na devoção a Nossa Senhora. Se tivéssemos uma diminuição da devoção a Maria Santíssima que fosse do tamanho de um milímetro – se em milímetros essas coisas pudessem se medir – nosso Movimento estourava agora. Tenho a impressão de que não dava tempo de eu acabar a minha conferência. De tal maneira tudo isso é nascido da devoção a Nossa  Senhora e vive do alento d’Ela.

A devoção à Virgem Maria está em relação a outras virtudes como o motor ao avião. O motor na frente leva atrás de si todo o resto. A devoção a Nossa Senhora é o motor de todas as virtudes. Estando em progresso, o resto vai.

“Pequena Via” e aurora do Reino de Maria

Creio não dever terminar esta exposição sem falar um pouco a respeito de Santa Teresinha do Menino Jesus, e da “Pequena Via” em conexão com isso. Se isto é assim, nós então passamos para uma outra ordem de ideias que parece colateral, mas que nada tem de colateral.

Santa Teresinha do Menino Jesus, em sua História de uma alma, tem também várias referências a uma intensidade nova do amor de Deus, tão poderosa que vai colher aqueles que são pequenos,  insignificantes, pouco poderosos em vários sentidos da palavra, e levá-los para a santidade.

Então, é uma maior efusão da graça divina enquanto conquistadora, da benignidade de Deus, enquanto contentando- Se com pouco para fazer grandes  coisas, uma maior manifestação da eficácia da graça, enquanto tirando o grande daquilo que é pequeno. Santa Teresinha diz que ela se imolou como vítima em holocausto ao amor misericordioso de Deus, para consagrar uma via que  incontáveis almas deveriam seguir. E que ela, no Céu, passaria sua eternidade fazendo cair uma chuva de pétalas de rosas sobre a Terra.

É evidente que as pétalas de rosas significam graças temporais como ela concede, mas para conduzir a graças espirituais, e que é esse maior amor de Deus de que nós acabamos de falar.

Deve haver uma relação entre essa esperança dela de um progresso do amor misericordioso de Deus e a aurora  do Reino de Maria.

Embora ela não tenha expressado isso em termos de Reino de Maria, percebia-se também que o fato deveria se dar depois de sua morte, com uma certa continuidade, não era para começar a aparecer dali a mil anos. Mas a morte de Santa Teresinha correspondia, de algum modo, ao desencadear disso. E que, portanto, a marcha progressiva do amor misericordioso no mundo deveria  ser feita a partir do caminho aberto por ela.

A “Pequena Via” acaba sendo – quando estudada em todos os seus aspectos –, a vários títulos, a via pela qual as almas pequenas de uma humanidade decadente seriam colhidas pela misericórdia e levadas à santidade.

É, pois, a espiritualidade específica daqueles   que querem ser filhos e escravos de Nossa Senhora, e subir nas vias da vida espiritual.

Temos, assim, uma relação entre a “Pequena Via” e essa aurora do Reino de Maria.

Uma novena a Santa Teresinha

Uma coisa puramente individual, mas vem ao caso lembrar: lá pelos idos de 1930, fiz uma novena para Santa Teresinha, em que eu pedia duas graças: uma era de me cair nas mãos um livro que desse andamento à minha vida espiritual.

E a outra, arranjar um bom dinheiro para não ter preocupações financeiras, e poder cuidar do apostolado sem aborrecimentos.

Fui logo atendido quanto ao primeiro pedido. Na semana em que iniciei a novena, fui à Igreja do Coração de Maria, para comprar um livro de vida espiritual. Eu só tinha dinheiro para adquirir um livro, então escolhi muito para, pelo menos, levar o que mais me convinha. E afinal de contas optei pelo livro de São Luís Maria Grignion de Montfort. Mas escolhi-o por uma bagatela, pois estava impresso em vermelho e preto, uma edição muito bonitinha, e porque,  em última análise, o vermelho sempre exerceu uma atração sobre mim. Acabei, assim, decidindo pelo Tratado da  Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem.

Levei-o para casa e comecei a ler. Então compreendi que era um paraíso! Santa Teresinha foi muito menos rápida em atender a segunda parte do meu pedido, e muito mais parcimoniosa também.

Mas a primeira ela atendeu generosamente. Tenho a impressão de que esta graça do Reino de Maria algumas almas muito eleitas de Nossa Senhora, desde Elias até o fim do mundo, tiveram e terão. Mas eram fatos individuais, que passarão a ser um episódio coletivo quando vier o Reino de Maria.

Elias foi o primeiro, e Eliseu teve porque recebeu o espírito de Elias. Aqui entra outro mistério. O que é essa comunicação do espírito, como se faz, qual é a realidade?

Creio que São Luís Grignion de Montfort teve isso de um modo magnífico. A meu ver, quem quiser ter uma ideia de como foi Elias, pode ler na Bíblia, mas também o livro de São Luís, porque essas pessoas prefiguram e seguem as outras, mais ou menos, como os anticristos prefigurativos ao longo da História.

Acho que São Grignion de Montfort foi eminentemente uma espécie de Elias. E que há assim algo à maneira de gotas de graças “eliáticas” que caem de vez em quando. E que haverá uma era em que essa graça de Elias vai ser patenteada para o mundo inteiro, e então será o Reino de Maria.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 11/7/1967)

1) Religiosa concepcionista, escritora mística, abadessa do convento de Ágreda, na Espanha (*1602 – †1665).

A Epifania do Senhor

A Epifania — palavra grega que significa “manifestação” — celebra a primeira aparição de Jesus a todos os povos, representados pelos Reis Magos ajoelhados diante do Menino-Deus.

Sentado no colo da Virgem-Mãe, como se fosse num trono, Nosso Senhor começou a receber a adoração de todas as nações que, no decorrer da História, haveriam de desfilar, reverentes e transidas de amor, aos pés d’Ele, em um longo cortejo. E a todas, o Redentor cumulará de graças, favores e dons celestiais.

Plinio Corrêa de Oliveira

O olhar sereno e penetrante de Jesus

Há certas descrições que superam a própria fotografia. Um exemplo característico é a conferência na qual Dr. Plinio, entre outras coisas, descreve o quadro de Giotto representando o beijo de Judas. E interpreta a repercussão na alma do traidor da pergunta de Nosso Senhor: “Judas, com um ósculo trais o Filho do homem?”

O perfeito convívio entre o líder e os liderados supõe algo que seja o mais possível parecido com a autoridade entre o pai e os filhos. Mas de um pai que conheça perfeitamente o seu “métier” de pai — sua função, sua missão —, e compreende que faz parte dessa missão algo que é insubstituível: o querer bem. Não se reduz a isto, mas é uma coisa indispensável.

Censura e perdão

Ora, para querer bem é preciso ter entendido aquele a quem se quer. Os homens são desta maneira: para conseguir querer bem depois de ter entendido, é preciso uma forma de perdão, de suavidade, de mansidão que faça com que se consiga querer bem.

Quem é objeto desse sentimento, se for uma pessoa reta, não pode deixar de se sentir profundamente tocada. Essa é a escola que se aprende no Sagrado Coração de Jesus, no Coração Imaculado de Maria.

Por exemplo, na frase de Nosso Senhor a Santa Margarida Maria Alacoque: “Este é o Coração que tanto amou os homens e por eles foi tão pouco amado”, percebe-se pela redação que há um reproche, uma censura, mas há ao mesmo tempo um perdão.

Nela está contido o pensamento de que — apesar de quererem pouco a Nosso Senhor e Ele fazer uma censura, mostrando aos homens que essa atitude não está bem — isso é feito com tal amor pelo lado bom deles, e com tanta esperança de que se deixem tocar, que há qualquer coisa no homem que o seu lado duro, rebarbativo, pode, pela ação da graça, amolecer de repente e a pessoa ficar outra: agradecida, compreendendo que a montanha das suas imperfeições não levantou contra si um inimigo na Pessoa d’Aquele contra Quem as imperfeições foram levantadas.

A ovelha rebarbativa no meio do carrascal

Existe, portanto, um perdão suave, largo, enorme, infatigável e que, antes mesmo de a falta ser cometida, como que já foi esquecida. E o ofendido age como o bom pastor com a ovelha rebarbativa que se meteu pelo carrascal: é preciso ir pelo meio dos espinhos para pegá-la com jeito, porque a ovelha, que deveria ser jeitosa, não balir à toa e compreender o esforço daquele que já está metido no carrascal por causa dela, e não aumentar seu trabalho, pelo contrário, é caprichosa, cheia de gemidos, não suporta nada. Então, qualquer coisa que se faça ela esperneia, bale de um modo dolorido como quem diz: “Está doendo, está doendo! Você está querendo me tirar daqui? Tire mesmo, mas não deixe doer. Onde é que já se viu infligir-me essa dor?” Reclamando assim contra aquele que a está salvando.

Nós todos somos homens e sabemos que reações como essas podem nos vir ao espírito, e quanto nos toca — tendo feito coisas dessas em tal quantidade, que ficamos cegos e perdemos a noção de quanto fizemos — percebermos, em determinado momento, que nem aquele montão de ingratidões foi capaz de vencer aquela misericórdia. E que há a mesma doçura, a mesma bondade, o mesmo perdão, o mesmo desejo de ajudar absolutamente imutável.

Quando a alma sente isto e é tocada por uma graça especial, chegou a hora da vitória do Sagrado Coração de Jesus ou do Imaculado Coração de Maria.

Nosso Senhor Jesus Cristo é supremo em todos os sentidos da palavra e, abaixo d’Ele, Nossa Senhora é suprema. Sendo Eles exemplos supremos, devemos imitá-Los nas ocasiões da vida particular — nas coisas pequenas, médias e grandes — em que recebemos ingratidões brutais, às vezes estúpidas, subestimas bárbaras, e não nos incomodarmos.

Alguém dirá: “Mas Dr. Plinio, e a hora da punição não chega?”

Eu respondo: “Chega até para o Sagrado Coração de Jesus!”

Há certos graus de recalcitrância tão tremendos, que não se compreende como a maldade do homem chega a esse ponto.

Ósculo da traição

Sempre me causou repulsa máxima e furiosa a indiferença de Judas, naquele episódio em que ele trai Nosso Senhor. Os algozes não sabiam quem era Jesus e, portanto, a quem deveriam prender. Judas então diz: “Aquele a quem eu oscular, a este prendei!”

Quer dizer, a infâmia chega a esse ponto de ele, para indicar a sua vítima, a oscula, sabendo que recebe um ósculo de volta e, portanto, fazendo da troca dessa bondade, dessa amizade, o preço da traição!

Aí, naturalmente, há os limites que tudo tem, e se prepara a descarga da vindita de Deus no que ela tem de mais terrível. Nosso Senhor ainda é suave com ele, mas de uma suavidade com qualquer coisa da doçura de um acento materno e do estrépito de um trovão, quando ele diz: “Judas, com um ósculo trais o Filho do homem?”(1)

O famoso Giotto pintou um quadro figurando o ósculo de Judas a Nosso Senhor. Judas é apresentado mais baixo do que Jesus e beijando-O de baixo para cima, com uma beiçorra que parece estalar de carnes, um beiço sujo e molhado que ele cola com a sua saliva imunda no rosto divino do Redentor. Testa pequena, cabelo que desce até bem embaixo e já saindo desgrenhado da raiz da pele, e um jeito subserviente diante de Nosso Senhor, ou seja, traindo e ao mesmo tempo bajulando.

E Jesus com um olhar sereno, como quem penetra no fundo daquele lodaçal de infâmia, ainda para ser bom porque Ele é justo. Quer dizer, Ele quer fazer com que Judas tenha medo, pelo menos, já que não foi tocável pela bondade. Se a contrição não o tocou, que ele se salve ao menos pela atrição. Então vem aquela pergunta: “Judas, com um ósculo trais o Filho do homem?” Mas nesse “Judas” tem uma pergunta, como quem diz: “Meu íntimo, meu filho, aquele que está sempre comigo… Logo você?!”

Se Judas procurasse Nossa Senhora, obteria o perdão

Judas não dá resposta, mas vê a reação de Nosso Senhor e percebe-se que ele sai levando impresso na alma o castigo do pecado cometido. Ele não consegue mais desamarrar-se daquela pergunta, e aquilo repercute nele ainda que não queira: “Com um ósculo… com um ósculo… com um ósculo…! Judas! Judas! Judas! Tu trais… tu trais…” Trais quem? “O Filho do homem!”

Todas as perfeições de Nosso Senhor vêm ao espírito de Judas, e ele, imundo, levando a sua sacola de dinheiro, raciocina: “Traí por causa disso…”

E pela primeira vez aquela alma adoradora do dinheiro vê quanto este é pouco, ainda quando seja muito dinheiro. É tal o horror diante do que fez, que ele vai ao Templo e joga aquelas moedas no chão. Pensa libertar-se daquela figura, daquela pergunta, e do afeto envolvente daquela censura. Mas ele nem quer libertar-se da censura, nem deixar-se envolver pelo afeto. Se ele se deixasse envolver pelo afeto, iria procurar Nossa Senhora, prostrar-se-ia diante d’Ela e diria:

“Senhora, eu sou tão infame que pela primeira vez Vos chamarei de Mãe, apelando para esse extremo de bondade, porque Vos pedirei um perdão que só uma mãe concede ao seu filho, e mais ninguém. Minha Mãe, Mãe virginal e imaculada, que apesar disso também sois Mãe deste asqueroso, nojento, traidor, ganancioso, desleal, imundo que sou eu, aqui estou, pior do que qualquer leproso. Mas para Vós continua verdade que sou filho, e vos peço: curai-me!”

Todos os caminhos estariam abertos para ele. Mas ele não queria que o afeto o envolvesse, não queria voltar e pedir perdão.

Mas ele também não podia viver sem pedir perdão, porque o remorso era tremendo. Então, não podendo viver com, não podendo viver sem, a “solução” por ele encontrada foi de não viver. Resolveu se matar. Foi a uma figueira, pendurou-se ali e morreu.

Pode-se imaginar aquele corpo asqueroso pendente, malcheiroso, os urubus já esvoaçando em torno dele, as garras do Inferno já o segurando e dando risada, e pelos dedos do vento balançando em várias direções, quebrando de encontro à árvore, e ele se deixando fazer. Até o momento em que ele, por assim dizer, fechou as portas do Céu. Até o último instante ele não pediu perdão. Vemos, então, as vias de Deus infinitas, perfeitas, modelo da conduta de todo aquele que exerce uma autoridade espiritual ou temporal.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 28/1/1993)
Revista Dr Plinio 201 – Dezembro de 2016

Natal

Após Dona Lucilia anunciar que a festa de Natal ia começar, todos — umas vinte crianças — dávamo-nos as mãos e começávamos a entoar o “Stille Nacht”. Íamos, então, levando o presépio com o Menino Jesus, desde a saleta onde estávamos até a sala dos brinquedos, na qual havia uma árvore de Natal.

Ali cantávamos canções de Natal, girando em torno da árvore, mas já sentindo o cheiro do chocolate com o qual se iam enchendo as xícaras, acompanhado de creme “chantilly”; e o odor do pinheiro um pouco queimado por algumas velas, que deitava um perfume de resina especial.

Havia uma alegria cândida, pura, eu ousaria dizer virginal, que não era perturbada por qualquer intemperança. Nenhuma criança fazia uma travessura, uma peraltagem, todas brincavam entre si com a maior calma, dentro daquela paz que parecia sair das imagens de Nossa Senhora e do Menino Jesus que estavam no presépio, e se difundia por toda a sala.

Essa alegria proporcionava uma coisa que eu não sei exprimir. Mas era a ideia do “Puer natus est nobis” — Foi-nos dado um Menino —, e uma grande alegria tinha nascido no Céu. O Menino era Jesus. E ali se realizava algo de único, como que a repetição do Natal; parecia-nos estar vivendo as graças do Natal.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 25/12/1976)