A liberdade e a virtude

Membros de uma civilização diametralmente oposta ao conceito medieval de liberdade, os homens hodiernos são levados a considerar a escravidão de amor a Nossa Senhora, proposta por São Luís Grignion de Montfort, como algo vergonhoso. Servindo-se dos ensinamentos de Leão XIII na encíclica “Libertas praestantissimum”, Dr. Plinio mostra como a verdadeira liberdade consiste em cumprir seriamente o próprio dever.

 

Quando estudamos a Idade Média, encontramos uma observação que os historiadores fazem cada vez com mais frequência: a comparação entre o direito medieval e o direito moderno. Conforme as leis modernas, o direito fundamental é de um homem sobre coisas, e coisas que valem dinheiro. Então, posso dizer: “Eu sou dono desta mesa; a família é proprietária deste prédio”. O ponto sobre o qual recai o direito é o objeto.

A única relação que não visa diretamente coisas, mas envolve o poder de pessoa sobre pessoa, é o direito de família. A relação entre esposo e esposa, pais e filhos, pode ter repercussões patrimoniais, mas de si não é uma relação patrimonial. O esposo tem o direito ao afeto, à fidelidade da esposa. O mesmo tem a esposa em relação ao esposo; são direitos pessoais, assim como o pai tem um direito sobre o filho, e este possui um direito em relação ao pai. São direitos que têm aspectos econômicos, mas não se cifram nisto. Trata-se de bens que não se aquilatam em dinheiro; são bens de alma.

Alguém perguntará: “E a relação patrão-empregado?” O patrão tem o direito não sobre o empregado, mas ao trabalho do empregado. O empregado vende o trabalho, o patrão compra o trabalho, a tal ponto que se fala em mercado de trabalho. Quer dizer, o trabalho é tratado — aliás, é uma coisa errada — como uma mercadoria. Este é o sentido do direito moderno.

Como os medievais concebiam o direito

Na Idade Média, o direito, de alto a baixo da sociedade, era concebido noutro plano. O principal liame jurídico era de uma pessoa sobre a outra, e não de uma pessoa sobre as coisas. Havia também o direito de uma pessoa sobre uma coisa, mas era num plano secundário. A principal questão do direito era de uma pessoa sobre outra.

Como isto se realizava? Havia três classes sociais: o clero, a nobreza e o povo.

O clero tem um direito sobre o povo, quer dizer, um direito de ser ouvido, ser seguido, ser venerado pelo povo; e também o direito de ser mantido pelo povo. Uma vez que um homem seja padre para o bem do povo, é natural que o povo lhe sustente, mas esses são aspectos secundários. O principal direito do clero é sobre as almas; o direito da Igreja se exerce sobre as almas, o que não se avalia em dinheiro; não é uma mercadoria, mas um vínculo de ordem religiosa.

Os nobres têm um direito sobre os plebeus. Não é principalmente o direito de fazer o plebeu trabalhar, mas o direito ao afeto e à fidelidade do plebeu. Este deve amar o nobre como o filho ama seu pai. Mas o plebeu tem o direito à proteção e ao afeto do nobre. De maneira que ele deve ser amado pelo nobre como o filho é amado pelo seu pai. Quer dizer, há um vínculo que os medievais chamavam de fidelidade, pelo qual um acreditava no outro, cumpriam as obrigações de parte a parte e assim estruturavam a vida.

Outrora os empregados quase pertenciam às famílias para as quais trabalhavam

Temos muito vagas reminiscências disto nos dias de hoje; restam coisas e situações de outrora. Creio que quase todos terão ouvido falar de empregados tão fiéis que ficavam trabalhando na família durante vinte, trinta anos; depois, o empregado tornando-se velho, a família o mantinha até morrer, obtinha colocação para seus filhos e netos, resolvia toda a situação da família dele. Quer dizer, o empregado ficava meio pertencente à família. Era uma espécie de adoção.

Eu mesmo vi ainda minha avó, que era do tempo da escravatura, conversando com uma antiga escrava negra. Minha avó era uma senhora muito imponente, bonita; apesar da distância muito grande entre ambas, havia familiaridade, bondade. Essa negra já estava velha e incapaz de fazer qualquer coisa; ela entrava em nossa casa, sentava-se perto de minha avó, e uma contava para a outra casos de antigamente; tinham fatos para contar a perder de vista, de gente que elas haviam conhecido; e repetiam os casos. Enquanto viveu, ela possuía a bolsa da minha avó à vontade.

De fato, tinha sido ali criado um embricamento de alma por onde a minha avó não tinha o direito de chegar para aquela mulher e dizer: “Quer saber de uma coisa? Pela legislação trabalhista eu sou desobrigada de você!” Existia entre elas uma relação viva e recíproca.

Essa negra tinha os seus pecúlios, ela não dependia propriamente de minha avó. Esta lhe dava dinheiro como presente e para apuros, ajuda etc. Mas quando não havia criados, ou alguém estava doente em casa, bastava mandar um recado: “Diga à fulana que venha aqui, pois eu estou precisando”. Não passava pela cabeça da antiga escrava de não vir. E ela não tinha o direito de não ir. Havia um direito de minha avó à fidelidade dela e um direito dela a esse carinho materno de minha avó, que valia muito mais do que a legislação do trabalho, do que dinheiro ou qualquer coisa.

Atmosfera de afeto risonho e distendido

É um vínculo à maneira de um vínculo de família, que se estabelecia entre essas pessoas e criava uma relação, a qual não era imposta pelas leis revolucionárias, liberais, mas valia muito mais do que as leis. Possuía outra solidez, porque quando uma relação chega a este ponto, podia-se modificar a lei que a relação permanecia. Tenho certeza que as duas nunca pensaram em lei trabalhista; se falássemos para elas a respeito de leis, nem entenderiam bem; era a antiga escrava e a antiga dona, amigas, está acabado, o negócio está feito.

Naturalmente, a família dos patrões tem sempre as características que não são as da família dos empregados, mas nisto existia uma atmosfera de afeto risonho, distendido, de que hoje em dia quase não se tem mais noção.

Era um direito de uma pessoa sobre a outra. Sobre o que da outra pessoa? O afeto, a dedicação, o carinho.

Sistema patriarcal vigente na época dos antigos coronéis do interior

Houve outro exemplo de relação desse tipo. Todos devem ter ouvido falar dos antigos coronéis do interior. Eram, em geral, fazendeiros com propriedades grandes e que protegiam uma série de pequenas cidades próximas ou dentro da fazenda.

Então, era o coronel que resolvia os problemas. Se alguém estava muito doente, o coronel sabia qual era o médico a ser procurado. Se um queria saber onde mandar o filho estudar, o coronel é que escolhia a escola. Se dois brigavam porque queriam casar com uma terceira, o coronel é quem resolvia o problema. Era o sistema patriarcal.

Todo mundo ia atrás do coronel, e na hora das eleições votavam em quem o coronel mandava. Quer dizer, era uma espécie de sindicato, mas sem o aspecto odioso de certo sindicalismo; era um sindicato afetivo.

E o coronel tinha escuderia. Quantos casos eu conheço de coronéis que, na hora do perigo, chamavam três, quatro capangas, e lhes dizia: “Vamos para o perigo!” Os capangas iam e expunham a vida pelo coronel.

Mas se o capanga precisasse de qualquer coisa, o coronel lhe dava. Ele garantia a região, por mais difícil que fosse. Era um pacto para a vida e para a morte, com um reflexo financeiro, é verdade; entretanto, o principal era o afeto que estabelecia um laço de obediência, de dependência, de proteção e de dedicação.

O binômio obediência-proteção caracterizava as relações na sociedade medieval

Em todas essas relações encontramos este binômio: de um lado, o direito de mandar e a obrigação de proteger; de outro lado, o direito de ser protegido e a obrigação de obedecer. É a relação pai e filho.

Essa relação existia entre os nobres e os plebeus. E também entre os nobres: a do nobre de grau menor em relação ao de maior grau. E também entre os plebeus. Nas corporações de artesãos havia três graus: o companheiro, o aprendiz e o mestre. Eles se protegiam uns aos outros. Mantinham uma fidelidade que era meio patriarcal e durava a vida inteira.

Podemos dizer, então, que à civilização da Idade Média caberia o título de “civilização da obediência”. Quer dizer, toda a hierarquia, todas as relações sociais eram estabelecidas na base de obediência, proteção e até dedicação. Obediência-proteção era o grande binômio que caracterizava as relações na sociedade medieval.

Civilização da igualdade e da autossuficiência

As relações da sociedade de hoje, igualitária, são completamente baseadas num outro princípio, o da igualdade completa de todos os homens, que tem uma consequência, na qual as pessoas não prestam atenção: se todos os homens são iguais, todos são autossuficientes. Resultado: nenhum tem razão para proteger o outro. É evidente.

Se dois indivíduos têm, por exemplo, os ouvidos igualmente bons, e um diz para o outro:

— Você quer prestar bem atenção para ouvir o que está dizendo o rádio do vizinho?

— Não. Para que existe orelha? Ouça você!

Quer dizer, não há razão para este pedido, uma vez que os ouvidos são igualmente bons.

Se todos os homens são iguais, todas as inteligências são iguais — porque é isto que a igualdade supõe —; portanto, os vínculos de auxílio, de proteção, de dependência, não têm razão de ser.

Então, como consequência, toda obediência, toda dependência é um sinal de insuficiência e, portanto, uma coisa da qual a pessoa deve envergonhar-se. E o ideal é o homem inteiramente livre, bastando-se completamente a si próprio para fazer tudo quanto ele quer. Este é o padrão do homem. Dessa forma nós estamos na civilização da igualdade, na civilização do “cada um carrega o peso do próprio corpo”. Quer dizer, não há vínculos entre as pessoas.

Atualmente a relação de patrão e empregado é uma relação trabalhista. Diz o patrão ao empregado: “Eu tenho capital e você tem trabalho. Eu lhe dou capital, aqui está tanto; você me dá trabalho, que vale tanto. O mais arranje com o Instituto de Aposentadoria e Pensões”. Ou seja, não converso com você, nem me interesso por sua pessoa, eu compro o seu trabalho.

A mesma coisa se passa no relacionamento do empregado com o patrão: “Eu do senhor quero o ordenado; saber como o senhor se chama, que problema tem em casa, se está aborrecido, precisando de alguma coisa, não me interessa, vá às favas! Eu quero o meu dinheiro no fim do mês. Dado o dinheiro, o senhor tome o seu caminho e eu tomo o meu”.

Quer dizer, é a civilização da autossuficiência e da independência completa.

Entre esses dois critérios passou a Revolução Francesa, que fez esta afirmação: “Toda dependência é uma vergonha, pois diminui o homem na sua dignidade. O homem não deve ser alienado, ou seja, não deve estar dependendo de um alheio”.

Reflexos causados pela civilização da liberdade

Daí encontrarmos grande estranheza quando se fala da escravidão de amor a Nossa Senhora. Porque a ideia da escravidão parece a própria ideia da vergonha. Em última análise, o que quer dizer “escravidão de amor a Nossa Senhora”?

A primeira vez que li esta expressão “escravidão de amor” — todos veem que eu não era nada revolucionário —, confesso que tive um calafrio: “Ficar escravo de Nossa Senhora? Bem, é Nossa Senhora, mas… escravo? Que futuro singular se delineia diante de mim!”

Depois de ler o “Tratado”(1), eu achei a escravidão à Santíssima Virgem uma coisa simplesmente fenomenal. Mas de início tive um arrepio.

A civilização da liberdade cria em nós reflexos que nos tornam um tanto surpreendente esta escravidão de amor a Nossa Senhora. Então, devemos considerar o fundo do problema. Ou seja, no que consiste a escravidão de amor à Virgem Maria; depois, se uma escravidão, ainda que a Nossa Senhora, é uma vergonha para um homem; se a obediência, a dependência é uma vergonha para um homem; o que devemos entender por obediência e dependência.

A escravidão na Antiguidade

Então, primeiro ponto: o que é a escravidão de amor? São Luís Grignion de Montfort explica isto muito bem. A escravidão entre os antigos era imposta. O pai tinha o direito de vender o seu filho como escravo. Era imposta, portanto, pelo pátrio poder; imposta pelos reis que podiam vender seus súditos; mas, sobretudo, imposta pela guerra. Quando um país ganhava a guerra contra outro, todos os súditos do país vencido passavam a ser escravos do vencedor. Por exemplo, se Roma ganhasse uma batalha numa guerra contra Atenas, todos os atenienses ficavam escravos de Roma. Esta mandava vir para Roma os que ela quisesse, e ordenava que os restantes fossem trabalhar em outros lugares. O vencido de guerra era um escravo.

São Luís Grignion explica bem que não é esta a escravidão de amor. A escravidão de amor é um vínculo de dependência que aceitamos em relação a Nossa Senhora porque A amamos. Quer dizer, nós A queremos tanto, temos n’Ela tal confiança que desejamos fazer tudo quanto Ela quer, como um escravo quer fazer tudo quanto o seu senhor deseja. Mas é uma dependência de amor, não é imposta pelo despotismo, pela força; é imposta pelo amor.

União nas cogitações e nas vias de Nossa Senhora

Nossa Senhora é a Rainha do Céu e da Terra. Se eu tiver todas as cogitações de Maria Santíssima, fizer tudo quanto Ela quer que eu faça, estou unido à Virgem Maria. E se a minha vida for continuamente assim, eu sou um escravo de Nossa Senhora. Mas sou escravo de amor porque, pelo amor que tenho à Santíssima Virgem, eu resolvi fazer isto. Nossa Senhora tem este direito e eu resolvi atender ao direito d’Ela.

Quer dizer, é uma alta, uma transcendental união de almas que por esta forma se exprime, mas que desabrocha de fato numa obediência: porque Ela pensa, eu penso; Ela quer, eu quero; Ela deseja que eu faça, eu faço. Eu dependo d’Ela em tudo.

Como isto se dá em concreto? Se eu quero pensar como Nossa Senhora, devo pensar como a Igreja. Se eu quero querer o que Maria Santíssima quer, eu devo querer o que a doutrina da Igreja me ensina que devo querer. Se eu quero fazer o que Nossa Senhora quer que eu faça, devo fazer aquilo que o meu espírito católico me indica que eu faça. Por esta maneira eu serei escravo de amor de Nossa Senhora.

Ensinamento de Leão XIII sobre a liberdade

Agora, trata-se de perguntar se é uma vergonha uma pessoa depender de tal maneira de Nossa Senhora; e, mais profundamente, se a obediência, a dependência, é uma vergonha; se a doutrina liberal a respeito disto, segundo a qual toda dependência é uma vergonha, é uma doutrina verdadeira ou falsa. Vejamos o que nos diz a Doutrina Católica sobre isto.

Leão XIII expõe este assunto numa encíclica muito bonita: “Libertas praestantissimum”. É uma encíclica muito técnica, doutrinária. Vou tentar pô-la ao alcance dos presentes neste auditório, o menos tecnicamente possível.

Consideremos um exemplo. Eu tenho a possibilidade de viajar de automóvel: inutilmente, só para me distrair, ou de ir para a minha casa a fim de, cumprindo o meu dever, descansar.

Segundo o mundo liberal de hoje, eu exerço a minha liberdade fazendo o que é agradável, indo passear. O dever me obriga a fazer o que eu não gosto; é uma limitação de minha liberdade. E a minha liberdade consiste, portanto, em fazer o maior número de atos que eu ache agradáveis, que me atraiam.

Em sentido contrário, se eu cumprir o dever em tudo, não sou livre; a canga do dever limita a minha liberdade.

Leão XIII nos ensina exatamente o contrário, expondo uma doutrina muitíssimo bonita, que para a compreendermos, tomemos fatos que até se passam fora da ordem humana.

O voo da gaivota e a trajetória do cometa

Uma das coisas de que eu gosto mais de ver, na beira-mar, é gaivota voar. É uma beleza: ela levanta voo, quando a gente pensa que a gaivota “esqueceu” o mar, ela mergulha! Pega um peixe e sai com ele no bico; fica feliz durante algum tempo pairando, se deixando levar pelo vento, descansando e comendo. Quando acabou de comer, ela está rapinando outro peixe no fundo do mar; efetua voos bonitos, com elegância.

Imaginemos que uma criança, por exemplo, conseguisse apanhar com as mãos uma gaivota e a segurasse na hora de levantar voo. Dir-se-ia que a criança de algum modo tolheu a liberdade da gaivota. Por quê? Porque está no primeiro impulso natural, ordenado, da gaivota, alimentar-se com os peixes que Deus fez para serem alimentos dela. Deus criou os animais de tal maneira que uns são feitos para serem alimentos de outros; portanto, a gaivota cumpre a ordem universal levantando voo, espairecendo e gozando aquele ar de um modo magnífico, e depois comendo peixes.

Um bicho não tem direito, e a liberdade é um direito. Mas dir-se-ia que a como que liberdade da gaivota foi cerceada.

Suponhamos que uma pessoa pudesse, por exemplo, com essas bombas supermodernas, interceptar o caminho de um cometa, e fizesse com que ele, sem se desintegrar, caísse na Terra. Teríamos a impressão de que a “liberdade” do cometa foi restringida, porque ele estava em sua trajetória bonita, natural, elegante, querida por Deus. O caminho natural, o caminho próprio — notem bem a expressão — o caminho da ordem, próprio ao cometa, foi interrompido por alguém. Um cometa não tem direitos, mas dir-se-ia que foi cerceada a como que liberdade do cometa.

A virtude é a liberdade, e o pecado, a escravidão

Então, diz Leão XIII, assim é também a criatura humana. Há uma porção de verdades que o homem vê. Por exemplo, é evidente que ele deve obediência aos seus pais e às autoridades constituídas; que ele não pode matar o próximo, nem ferir ou espancá-lo; que não pode caluniar o próximo, não pode mentir; que não pode se apropriar da mulher do próximo.

O homem pela sua natureza quer fazer essas coisas, porque o primeiro movimento da alma humana, o mais imediato, é de seguir o bem. De maneira que o homem quer praticar o bem, como a gaivota quer dar seu voo. E a liberdade do homem consiste em seguir este movimento, como a liberdade da gaivota consiste em dar o seu voo inteiro.

Entretanto, surge algo que diminui no homem a possibilidade de praticar o bem. É a tentação. Ele sente um peso que o leva para o outro lado. Esclarece Leão XIII: Qual é o efeito próprio da tentação? É diminuir a liberdade do homem.

Os homens seriam muito mais livres se não fossem tentados. A virtude é a liberdade. A tentação, o pecado, são o contrário da liberdade. Nós seríamos muito mais livres, como a gaivota no ar, se não fôssemos tentados.

A verdadeira liberdade consiste em cumprir o dever

Portanto, afirma Leão XIII, o homem verdadeiramente livre não é aquele que faz tudo quanto lhe passa pela cabeça, inclusive o mal, mas é o homem que aceita o seu primeiro impulso bom, o segue sempre e não admite embaraços que venham tolher este impulso. A verdadeira liberdade está no dever.

Volto, então, ao exemplo que eu citava há pouco.

Ao sair daqui eu poderia ter — não estou mais na idade de fazer isto — uma vontade desordenada de ficar andando de automóvel, sem rumo definido, pela cidade. Quantos rapazes fazem isto! Mas a minha consciência me mostra que devo descansar. Serei verdadeiramente livre se seguir o movimento natural de minha alma para o repouso. E escravo se me deixar arrastar pelo vício. De maneira que eu não serei livre se for passear; serei livre se eu cumprir meu dever. Esta é a verdadeira noção de liberdade.

Vemos que isto é muito verdadeiro, mas “bolostroca” a noção liberal completamente. Porque o conceito liberal cai por terra. O liberalismo fica reduzido a frangalhos diante deste conceito que entretanto é evidente.

Eu insisto com mais um exemplo. Um homem vê que ele se encoleriza com um outro, e que não lhe deveria dizer uma palavra ríspida; seria contra os interesses dele porque, inclusive, digamos, iria perder um bom negócio. Mas ele não se contém e diz a palavra ríspida.

Qual é o homem verdadeiramente livre? É o que, para fazer o bom negócio, se domina e não desagrada o outro, ou aquele que é ríspido, ainda que não queira, e perde o bom negócio? O primeiro é o livre, o segundo, o escravo.

Daí existir esta expressão corrente, de que todos já devem ter ouvido falar: “escravo do vício”. Por exemplo, escravo de jogo. Um de nós, pelo favor de Nossa Senhora, pode não pôr o seu patrimônio no jogo. Mas um jogador, que gasta seu patrimônio no jogo, não é o senhor, mas o escravo do jogo.

Então, a verdadeira liberdade consiste em praticar o dever. Não há um homem mais livre do que aquele que obedece às leis e às autoridades justas. Esta é a primeira noção que devemos fixar.

Saber consultar…

Há uma segunda noção, desenvolvida por Leão XIII, que é a seguinte.

Se eu me analiso a mim mesmo, constato que posso encontrar muitas verdades, fazendo uso de minha inteligência. Mas percebo também que há muitas verdades as quais outros notam melhor do que eu; e, às vezes, pessoas menos inteligentes do que eu percebem melhor certas coisas.

Daí o fato de que, às vezes, numa conversa, um indivíduo muito inteligente diz uma coisa, e um outro bem menos inteligente afirma: “Fulano, você notou tal coisa?” Espanto, ele não tinha notado. Por quê? Porque Deus nos fez de tal maneira que cada pessoa vê umas tantas coisas que nenhuma outra vê.

Então, chego à seguinte conclusão: se eu noto que outros veem coisas que eu não sou capaz de ver; se a minha liberdade consiste em ver a verdade inteira, em atender ao meu apetite de verdade, eu deveria saber consultar aqueles que são mais capazes do que eu para ver certas coisas, e seguir a opinião deles de preferência à minha. É evidente. Porque assim eu realizo o meu apetite de conhecer a verdade inteira.

Por essa razão se recorre a técnicos, a especialistas, a pessoas que têm muita experiência da vida, muita elevação de pensamento, que são capazes de, em certas emergências, dar um caminho para a vida que, por nós mesmos, não encontraríamos.

É a coisa mais natural do mundo. O homem verdadeiramente livre pede conselho, aceita ser influenciado para tornar-se mais livre, a fim de poder realizar aquilo que ele quer, no fundo: conhecer a verdade inteira.

…e ser dirigido pelos mais capazes

Há mais. Todo homem que não seja um “mega” debandado, compreende que quando se trata de se julgar a si próprio, ele muitas vezes é parcial; julga-se benevolamente. Quantas vezes um outro diz uma coisa a meu respeito, que me incita a prestar atenção e pensar: “Noto que ele me disse uma coisa que eu não tinha querido ver em mim!”

Em muitas ocasiões isto se deu, por exemplo, de minha mãe para comigo. Ela me dizia: “Meu filho, preste atenção em tal coisa!” E isto ocorreu até o fim de sua vida. Quando não tinha o que dizer, ela reclamava que eu tomava água em goles excessivos, e me dizia que fazia mal para a saúde, o que, aliás, parece ser verdade.

Às vezes, saindo de meu apartamento, eu descia correndo a escada; ela olhava e advertia: “Não desça depressa demais, meu filho; não convém”. E tinha razão, pois de repente poderia haver um acidente. Eu já era um homem formado, mas ela poderia dizer coisas que eu não atinaria por mim.

De maneira que um homem que queira ser inteiramente livre, quer dizer, atender ao seu impulso completo para a verdade e para o bem, aceita ser dirigido, ser controlado por outro mais capaz. Dessa forma, ele dá uma prova magnífica de sua liberdade.

Alguém indagará: “Mas não é uma carência da parte dele?” É. Imaginemos um homem que tem uma perna desconsertada, e quer subir uma ladeira; e, servindo-se de um apoio, com enorme esforço sobe a ladeira. Ele não dá mais prova de força de vontade do que outro que sobe a ladeira naturalmente? Dá.

Assim também temos que subir a ladeira da virtude. Muitas vezes precisamos de nos apoiar na bengala ou na muleta do conselho ou da autoridade de um outro. Aceitando esse auxílio, damos prova de força de vontade maior do que de um outro que julga não precisar de ajuda. É uma carência que dá ocasião à manifestação de uma força de vontade ainda maior.

Compreendemos assim que o próprio fato de ser mandado é a mais alta forma de liberdade.

A mais cristalina e mais sublime forma de liberdade

Temos, então, a consequência: na civilização da obediência ou da virtude, os homens sabiam o que podiam, mas também conheciam o que não podiam. Portanto, viviam de um misto de dependência e independência.

A civilização da pseudo liberdade é a civilização do vício. Cada um faz aquilo que acha agradável, mas o resultado é que fica escravo de todos os vícios. E a nossa pseudo liberdade de hoje resultou numa verdadeira escravidão. Assim se pode chegar aos maiores crimes e às maiores abjeções. Quis, é livre, fez. Disso decorre que a forma suprema de liberdade é aceitar a autoridade daqueles que nos ajudam a fazer aquilo que nós queremos, ou seja, a verdade e o bem.

Portanto, não há forma mais cristalina e mais sublime de liberdade do que sermos escravos de Nossa Senhora. O auge da dignidade humana é ser escravo de Maria Santíssima, porque significa fazer em tudo aquilo para onde as nossas melhores apetências nos encaminham.

Assim, quando formos nos consagrar a Nossa Senhora, devemos ter um espírito amoroso de autoridade. Quer dizer, compreendendo a função da autoridade, da obediência; e compreendendo que, fazendo-nos tão pequenos diante d’Ela, realizamos uma coisa sublime, altamente dignificante. Assim, devemos nunca nos envergonhar de obedecer, de seguir um outro, porque exatamente aí está a mais alta dignidade do homem.

O cruzado e o hippie

Alguém perguntará: “Mas Dr. Plinio, e aqueles guerreiros medievais tão ardorosos, tão combativos, os pares de Carlos Magno, aqueles homens tremendamente varonis, eles eram assim?”

Precisamente isto forma o homem capaz de uma epopeia, ou seja, que tem uma vontade tão firme que ele diz: “A verdade eu a quero até o fim e de qualquer jeito; o bem eu o quero até o fim e de qualquer jeito. Então vou me esforçar de todos os modos para conhecer a verdade e o bem. Mas, conhecendo minha falibilidade, vou fazer este ato de epopeia de não resolver tudo pela minha cabeça, mas de consultar o ensinamento da Igreja Católica, que vale mais do que está em minha cabeça. E, portanto, ter certeza daquilo que penso porque a Igreja assim ensina; esta certeza é muito maior do que a certeza que eu tenho pelo fato de pensar por mim mesmo, porque é uma Igreja divina, infalível, que me ensinou”.

E continua: “Eu quero fazer o que devo, mas a minha vontade é fraca, ela erra; então vou seguir aqueles que têm a missão dada por Deus de me mandar fazer aquilo que eu devo. E ainda que possa parecer um disparate, um absurdo, desde que não seja pecado, eu estarei mais certo de fazer o que desejo, que é o bem, fazendo a vontade daqueles que mandam em mim, do que agindo de acordo com a minha cabeça”.

Isto é uma forma de força de vontade que fazia com que aqueles cruzados — todos eles vassalos uns dos outros e, em última análise, vassalos do rei, obedientes como nenhum homem moderno é — tivessem dez quintilhões de vezes mais liberdade do que esses hippies que vemos perambular pelas ruas.

A nossa ufania é de sabermos obedecer. E obedecer por um ato de suprema força de vontade, não por moleza, como quem diz: “Ah!… ele pode zangar-se comigo; por isso vou fazer o que ele quer”. Não é por moleza, mas por essa suprema energia que devemos obedecer.

Como homens tão humildes construíram monumentos tão altivos?

Termino com um fato narrado por Montalembert(2), na introdução da vida de Santa Isabel da Hungria.

Ele conta que um xeque árabe tinha sido aprisionado pelos cruzados e passeava pela França; estava preso sob palavra. Naquele tempo havia uma coisa chamada honra; daí palavra de honra. E o indivíduo preso sob palavra de honra não fugia mesmo.

Então o xeque olhava as catedrais etc.; chegando provavelmente a uma abadia, onde estavam alguns irmãos leigos, perguntou: “Quem a construiu?” Apontando os irmãos leigos, foi-lhe respondido: “Foram eles”. Ele olhou-os e disse: “Mas como homens tão humildes podem construir monumentos tão altivos?”

Acho isso uma verdadeira beleza. As grandes almas altivas são aquelas que conhecem a glória de obedecer.

Aí estão alguns pensamentos que devemos ter quando nos consagrarmos como escravos de Nossa Senhora.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 28/4/1973)

 

1) Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem, da autoria de São Luís Grignion de Montfort.

2) Charles de Montalembert, 1810­-1870.

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