Fontainebleau – esplendor, riqueza e simplicidade – II

Tratando dos mais diversos assuntos, Dr. Plinio procurava ver o aspecto religioso. Analisando o castelo de Fontainebleau, aponta ele para a tendência de se construir algo que superasse a natureza e compensasse um pouco o que esta Terra tem de exílio. Há dentro disso um apelo para algo maior do que as coisas terrenas, e que é o começo do movimento rumo ao Céu.

 

O mobiliário dessa sala é elegante, leve, também constituído de tapeçarias, e habilmente disperso pela sala, de maneira que se tem, ao mesmo tempo, impressão de muita mobília, mas há vazios importantes. Um dos segredos de uma sala bonita é ter vazios importantes. Eu já tenho visto sala empetecada de móveis, não se pode dar um passo sem esbarrar num cacareco. Não tem propósito! O vazio bonito faz parte da boa decoração.

Orquestração fabulosa de riquezas de espírito

Os vazios são indispensáveis para o ornamento de uma sala. Mas nessa sala do castelo de Fontainebleau, que estou analisando, tem-se a impressão, ao mesmo tempo, de muita mobília e de nada de atravancamento; isso é agradável. A beleza cromática da sala é a seguinte: os vidros das janelas são transparentes, a luz que entra por eles é, inteiramente, a luz do dia. Não é aquela luz leitosa da galeria.

Mas essa luz do dia, no que ela tem de cru, é compensada por um mundo de cores. Quase se poderia dizer que todas as cores possíveis estão representadas aqui, mas para não ficarem sobrecarregadas, todas elas em estado muito pálido. E um mundo de cores muito pálidas não dá a ideia de feeria de cores, pois elas quase que se fundem umas nas outras, mas divertem e descansam os olhos maravilhosamente.

Creio ser indiscutível que essa sala dá uma ideia de fausto. A principal noção de fausto que dela se depreende é da prodigiosa policromia, mas de cores delicadas que se fundem umas nas outras; é uma orquestração fabulosa de riquezas de espírito, de riquezas culturais. No meio de mil coisas empalidecidas, ficaria um pouco insípido não ter uma nota viva. E, a ter uma nota viva, o vermelho é o mais bonito. O vermelho-cereja, dado um pouco para sangue, no meio das cores pálidas, é um jato. Como um cozinheiro, que entende das coisas, sabe pôr na elaboração de um prato um pouco de pimenta, para realçar todo o resto.

A porta é feita com a preocupação de constituir um elemento decorativo a mais dentro da sala. Então ela mesma é tratada com uma série de painéis, todos muito delicados, leves, que contrastam com o sobrecarregado das laterais. O contraste de sobrecarregados e leves forma a harmonia da sala, que sem isto ficaria empetecada. 

Manifestamente, nota-se aí a tendência a construir uma coisa que superasse a natureza, e compensasse um pouquinho o que esta Terra tem de exílio, com a ideia de que o homem é feito para coisas maiores do que as coisas terrenas. Há dentro disso um apelo para algo maior do que esta vida e esta Terra, e que é começo de movimento rumo ao Céu. Esse é o lado religioso do assunto.

Esplendor do luto com certa nota de severidade

A sala de estar da Rainha-Mãe, quase não se sabe se é mais bonita do que a Sala do Conselho. É mais severa do que a Sala do Conselho, e se explica porque a Rainha-Mãe — por definição a viúva e tudo quanto acompanhava a viuvez — tinha uma certa nota de severidade. Donde o aparecimento dessas portas escuras, que trazem uma vaga reminiscência de todo o esplendor do luto. É uma sala de avó, tendo um certo compassado que a alegria e o esplendor da outra sala não possui.

Isso corresponde à ideia daquele tempo de a viúva usar até o fim da vida os sinais de viuvez, sobretudo quando se tratava da rainha. O que a moldura dessa sala tem de muito sério é compensado por inúmeros arabescos finos. Então, há aqui um mundo de formas, flores, grinaldas, guirlandas, de figuras mitológicas, de quadros.

E uma coisa que fica muito bonita é o espelho, certamente feito em Veneza — onde se fabricavam espelhos enormes, profundos — e que é como uma janela aberta, o que também torna alegre o ambiente. Depois, tapeçarias colossais, que também dão gáudio à sala.

Os quadros sobre as portas dão à passagem quase a majestade de um arco de triunfo. Fica uma coisa riquíssima, muito bonita. Porta sempre com duas folhas, por causa do protocolo da corte. Para os filhos ou netos de um rei, as duas folhas da porta se abriam, o alabardeiro dava uma pancada no chão e gritava: “Sua Majestade, a Rainha, ou Sua Alteza Real…” Quando era para um príncipe de sangue real, mas não filho ou neto de rei, abria-se uma só face, como também se fazia para todo o resto da nobreza.

De maneira que era de grande estilo a pessoa, digamos a Rainha-Mãe, ser precedida pelos alabardeiros que abriam a porta, colocavam-se de ambos os lados e gritavam: “Sa Majesté, la Reine!” Então, reverências, etc. Quer dizer, a porta era ocasião de um cerimonial, quase um pano de boca de um palco; daí seu caráter triunfal.

Isto estava nos hábitos do tempo, porque entrar e sair eram uma arte. Não se faziam esses movimentos como um frango entra ou sai do galinheiro. A entrada e a saída de uma pessoa marcavam a sala.

Observem a beleza dessa mesa, com as pernas trabalhadas e sobre ela uma taça de porcelana policromada muito bonita. Tudo em nível mais discreto do que o jogo de cores feérico.

A Revolução vai se adensando: melancolia e moleza

Sala de Conselho de Luís XV. O gênero de beleza evoluiu do tempo de Luís XIV para Luís XV. Enquanto a nota do raffiné(1) de Luís XIV era imponente, em Luís XV, que já marca uma certa decadência, o raffiné é gracioso. Então, é um esplêndido de gracioso, mas o gracioso é um valor menor que o imponente, e nisto está a decadência.

Os ângulos retos desaparecem, ou como que desaparecem; o ângulo reto exprime muito mais a força do que o arredondado, que representa o jeito, a conciliação, o sorriso. Por outro lado, as cores se tornam — sob algum ponto de vista — mais delicadas, e um certo ar triunfal, que tinham as salas de Luís XIV, desapareceu. Não é uma sala feita para um rei vencedor do mundo, como Luís XIV pretendia ser e, em alguma medida, foi; mas é para um rei que leva uma vida gostosa e, nas horas vagas, realiza uma reunião do Conselho.

Desta sala não sai a conquista do universo, nem a prevenção da Revolução que vai se formando e adensando. Considerada sob o aspecto da pulcritude, ela exprime o maravilhoso gracioso e, neste sentido, ela o exprime magnificamente. E a linha da feeria continua inteiramente afirmada. Dir-se-ia que, de algum modo, ela é até mais raffinée do que as salas de Luís XIV.

E notem uma coisa curiosa: dentro de todo esse gracioso há qualquer coisa de mais tristonho. Não há aquela alegria matinal. É um gracioso crepuscular, embora com todos os encantos do crepúsculo, mas já não é aquela coisa maravilhosa da aurora.

Essa sala, com todo o seu maravilhoso, poderia ser de lazer, ou de jogo, num palácio real. Não poderia ir além disso. E mesmo assim, ela tem qualquer coisa de perigoso, porque se uma pessoa fica muito tempo aqui dentro, não tem vontade de passar para as outras salas. Ela tem qualquer coisa de anestésico, que é o anestésico do otimismo. Está tudo arranjadinho, redondinho.

As cadeiras já são um pouco dadas ao anatômico, por incrível que pareça. A civilização que gosta da cadeira com pernas baixas é decadente. Então, nessa sala as cadeiras têm perninhas baixinhas.

Poder-se-ia dizer que o melancólico e mole são as notas dominantes nessa sala.

 

(Extraído de conferência de 31/10/1966)

 

(1) Refinado, requintado.

 

 

 

 

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