A Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo nos serve de lição para a vida: devemos, também nós, carregar nossa cruz todos os dias! Ao meditar o sofrimento do Redentor, Dr. Plinio haure valiosos princípios para nossa vida espiritual.
Sendo hoje Quinta-feira Santa, pareceu-me conveniente comentar alguns trechos da “Concordância dos Santos Evangelhos”(1), a fim de nos prepararmos para a grande comemoração que amanhã se dará: a morte de Nosso Senhor Jesus Cristo no alto da Cruz e a Redenção do gênero humano.
Acontecimentos trágicos que viriam depois
“Depois dessas palavras, tendo recitado o hino de ação de graças, saiu Jesus com os discípulos para além da corrente do Cedrão. Dirigindo-se para o Monte das Oliveiras segundo costumava, chegara a um lugar chamado Getsêmani, onde havia um jardim em que entrou com seus discípulos.
“Chegando a esse lugar, disse-lhes Jesus: ‘Sentai-vos aqui, enquanto vou ali fazer oração. Orai também para que não entreis em tentação.’”
Vemos que há uma delimitação clara entre a festa de instituição da Eucaristia, da primeira Missa, e a Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo. A Santa Ceia tem um caráter festivo, sobre o qual já se projetam as sombras e as tristezas dos acontecimentos trágicos que virão depois. Concluída a ação de graças, a festa cessou, e Ele começa então a enfrentar a dor, o drama, a grande luta. Sua vida já fora de lutas, mas nesse momento ela chega ao auge, ao apogeu.
Para bem saborear os acontecimentos que o Evangelho narra, nessa linguagem tão simples, devemos imaginar o estado de alma de Nosso Senhor Jesus Cristo, as disposições do Sagrado Coração de Jesus ao longo desses fatos.
A Santa Ceia para Ele foi triste por dois motivos: em primeiro lugar porque o Redentor via a Paixão que começaria logo após, pois, evidentemente, Ele tinha o conhecimento de tudo.
E também por causa da situação tristíssima dos Apóstolos. Na narração da Santa Ceia aparecem manifestações da insuficiência e da mediocridade dos Apóstolos. E o que deveria cortar o Sagrado Coração de Jesus, transpassá-Lo mais do que a lança de Longinos, era a infidelidade dos Apóstolos, o insucesso da obra que Nosso Senhor havia começado com eles.
O Redentor, dando-lhes a maior manifestação de seu amor até aquele momento, instituindo a Sagrada a Eucaristia e oferecendo-Se a Si próprio em comunhão a eles, vê aquelas almas receberem esse dom incomparável com frieza: São Pedro, grandiloquente; Judas, nas condições abomináveis que não vale a pena referir; os outros Apóstolos se preparando para a fuga.
Há aquele episódio tão bonito de São João Evangelista, discípulo amado, que reclina a cabeça sobre o peito de Jesus e pergunta-Lhe quem seria o traidor; e Nosso Senhor, então, disse quem era. Ora, esse discípulo “a quem Jesus amava”, ia fugir como os outros.
Quer dizer, tudo são sombras que vão baixando e ao mesmo tempo os clarões da Missa se vão acendendo. E Nosso Senhor Jesus Cristo, que conhecia todos os tempos e tudo quanto haveria de acontecer, se deleitava com a ideia de toda a glória que a Sagrada Eucaristia e a Missa dão ao Padre Eterno, com as adorações que Ele receberia dos Santos e das almas eleitas, até o fim do mundo. Todos esses sentimentos penetraram no Coração d’Ele e constituíram um claro-obscuro de tristeza e alegria; em certo momento o clarão se retira e Nosso Senhor vai entrando cada vez mais nas sombras de sua dor e de sua morte. Cada passo que se aproxima é mais trágico do que o outro.
Ele caminha, mas caminha seguramente, sem um minuto de distensão, de alívio — a não ser quando recebeu o Anjo que o consolou, e na hora em que viu Nossa Senhora e teve a presença d’Ela ao longo da via sacra —, tendo no alto do Calvário, no auge da dor, exclamado: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonastes?”(2)
E até o “consummatum est”, ou seja, tudo quanto era para sofrer está sofrido, as coisas vão se tornando mais densas para Ele.
A Paixão, uma luta travada na solidão
Então, podemos imaginá-Lo triste após a Ceia, andando pelas ruas de Jerusalém com os Apóstolos, até o Getsêmani, onde começa sua agonia — agonia, em grego, quer dizer luta; os atletas eram chamados agonistas, porque lutavam na arena —, ou seja, a grande luta que Ele vai travar sozinho. E a solidão é uma das tragédias d’Ele durante a Paixão, até o momento em que Nossa Senhora aparece.
Ele se isola, porque sente que ninguém é digno de estar perto d’Ele nesta hora, e diz aos Apóstolos sonolentos e indiferentes:
“Sentai-vos aqui, enquanto vou ali fazer oração. Orai também para que não entreis em tentação.”
Quando Ele se afasta, em vez de algum Apóstolo perguntar-Lhe “Senhor, por que Vos isolais?” ou “Senhor, não precisais de mim?”, eles nesse lance começam a vacilar, e a tragédia de alma de Jesus já se faz sentir.
“Depois, tomando consigo a Pedro e os dois filhos de Zebedeu, Tiago e João, começou a sentir pavor e angústia, e caiu em tristeza e abatimento. — Minha alma está triste até a morte, lhes disse Ele. Ficai aqui e velai comigo.”
Esses Apóstolos, Ele quis ter consigo — os outros, deixou para trás —, e numa maior intimidade lhes explica: “Minha alma está triste até a morte.” E pede-lhes: “Velai”, ou seja, “Ficai acordados comigo. Eu quero ter o reconforto de vossa presença e de vossa compaixão, enquanto estiver passando por esta dor tão grande.”
“Adiantando-se um pouco, afastou-se deles à distância de um tiro de pedra, prostrou-se com a face no chão e começou a orar para que, se fosse possível, se afastasse d’Ele aquela hora.”
Tenhamos em mente o Santo Sudário de Turim: aquele olhar, aquela majestade de Nosso Senhor. O que significaria, para quem tivesse um pouco de alma, ver aquela fronte na qual estava resumida toda a glória do universo, aquele olhar que sintetizava, em grau excelso, de superação inimaginável, a santidade possível em todas as almas em todos os tempos, a inteligência, a força, a bondade, enfim todas as qualidades; contemplar aquela face, o mais perfeito espelho de Deus, que jamais tinha sido criado!
“Faça-se a vossa vontade e não a minha”
Podemos imaginar Nosso Senhor — que era um varão alto —, com uma túnica branca, numa noite que talvez tivesse a claridade da lua, com as sombras do arvoredo produzindo um claro-obscuro. O que teria de pungente, ver esse varão majestoso, inteiramente só… De repente, uma grande forma branca que se inclina e põe sua face em terra! Então, o Rei de toda glória rezava prostrado, acabrunhado por uma tristeza que O tomava até a morte.
E Ele dizia na sua oração, que os Apóstolos ouviram para depois poder contar, e assim ficasse constando para todo o sempre, estas palavras memoriais:
“Meu Pai, se é possível, afaste-se de Mim este cálice. Todavia, faça-se a vossa vontade e não a minha.”
É a oração mais doce, mais forte e mais contrarrevolucionária que talvez se tenha feito em toda a Terra.
Mais doce porque, vendo que o Padre Eterno quer o tormento, o martírio d’Ele, e vai tomá-Lo como vítima, Jesus Se apresenta cheio de amor e O trata “Meu Pai”, as palavras mais suaves que uma pessoa possa dizer a outra.
“Meu Pai”, diz Ele como quem geme! Sabe que vai sofrer aquele tormento, necessário segundo os desígnios de Deus, para sua glória. E Jesus, na sua humildade Santíssima, como que abandonado, seccionado de sua divindade, fica naquelas trevas. Sua natureza humana pede: “Se for possível evitar esse tormento, afastai-o”. Como quem diz: “É tão grande o peso da dor, que sou levado a Vos perguntar: Por misericórdia, não existe um modo de afastá-lo?”
Mas, logo depois Nosso Senhor acrescenta: “Se não for possível, faça-se a vossa vontade e não a minha.” Vemos, então, além do afeto, a força: “Não sendo possível, embora não aguente, não tenha recursos, Eu começarei; porque nada existe que Eu não esteja disposto a empreender para fazer a vossa vontade. Sou o Varão forte por excelência, esmagado, quebrado, aniquilado. Estou, entretanto, disposto a lutar até o fim. Mandai-me a vossa força, que farei a vossa vontade”.
É, portanto, uma submissão completa, uma obediência total, um ato amoroso sem nenhuma revolta, nem a sensação de que Deus não vai ser misericordioso para com Ele; vê a misericórdia até no momento em que ela pareceria impossível.
Há aqui um mistério. Poder-se-ia perguntar: Deus Pai não poderia ter aceitado uma gota de Sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo, e assim redimir os homens?
Realmente, uma gota de Sangue de Cristo tem valor infinito. E os teólogos dizem que simplesmente o Sangue que Ele derramou na circuncisão teria sido não só suficiente, mas superabundante, para resgatar o gênero humano. Porém, havia um desígnio de Deus, para nós misterioso, segundo o qual era preciso aquela enormidade de tormentos.
O colóquio entre Ele e o Padre Eterno, tão trágico, mas ao mesmo tempo tão íntimo, nos desvenda algo que podemos sondar nas relações entre o Homem-Deus e Deus Pai. Vê-se que, por algo, o Padre Eterno e Ele mesmo, enquanto Segunda Pessoa da Santíssima Trindade, não quiseram tornar isto possível. Um pouco disso se soube e esse pouco é de uma sublimidade extraordinária.
Cada homem deve carregar sua cruz
Jesus quis que os homens vissem todo o sofrimento d’Ele, para que cada um de nós tivesse a coragem de carregar o seu próprio sofrimento. Se o Homem-Deus passasse pela Terra e sofresse um pouquinho, derramando uma gotinha de sangue, remidos estávamos. Mas faltaria a lição de conformidade com a dor, de aceitação do sofrimento como sendo a mais alta coisa da vida — não um desastre, um trambolho, algo que não se compreende e não deveria ter sucedido —, o caminho necessário para que o homem chegue até onde deve chegar, a estrada para a qual ele se dirige como sendo a realização de seu próprio destino.
Quer dizer, cada um de nós nasceu para carregar uma cruz, passar por um horto das oliveiras, beber um cálice, ter as suas horas de agonia e em que diz a Deus Nosso Senhor: “Meu Pai, se possível, afastai de mim este cálice, mas faça-se a vossa vontade e não a minha”.
A idéia de que o homem nasceu para dar glória a Deus, antes de tudo sofrendo, esta ideia retriz, fundamental na formação do verdadeiro católico, não a teríamos se não fosse apresentada pelo mais sublime e arrebatador dos exemplos, que é Nosso Senhor Jesus Cristo morrendo na Cruz.
Vemos aqui um contraste com o espírito moderno, segundo o qual a finalidade do homem na Terra é ter êxito, saúde, enriquecer, gozar a vida e morrer bem tarde, quando não mais houver remédio. E, durante toda a existência, ter a maior quota possível de segurança, de maneira tal que, não digo o sofrimento, mas o medo do sofrimento, não o assalte. Tal visualização é pagã por essência. Calcular a vida assim é calculá-la à maneira de um pagão. A formação católica prepara as pessoas para o sofrimento, pois está fundamentada em Nosso Senhor Jesus Cristo, cuja vida foi centrada nesta hora suprema da dor.
Como consideramos os sofrimentos de nossa vida?
Isto nos leva a perguntar como consideramos os sofrimentos de nossa vida, dos quais o maior, sem dúvida nenhuma, é a nossa própria santificação. Toda santificação séria faz sofrer, e sofrer muito. E se alguém me disser que não sofre, eu teria vontade de perguntar-lhe, de imediato: “Então tu não te santificas?” Porque não há santificação que não venha acompanhada de dor.
Visando nossa santificação, devemos fazer perguntas como as seguintes:
Combatemos os maus impulsos que, em consequência do pecado original e das nossas más ações, existem dentro de nós? Como fazemos, não só para reprimir os maus impulsos, mas para praticar as virtudes que lhes são opostas?
Aceitamos as nossas limitações de inteligência, físicas de toda ordem, sociais, tais como: falta de posição, de fortuna, de atrativos? Há pessoas sem graça, com as quais os outros não gostam de ter relações; passam diante delas e, quando muito, as cumprimentam. Existem também as muito engraçadas, procuradas por todo o mundo para se divertirem com elas, e que nos solicitam à palhaçada. Como aceitamos a necessidade de resistir a essa solicitação?
Para tudo isto, cada um tem a sua cruz. E Nosso Senhor Jesus Cristo nos mostra o papel fundamental do sofrimento. Uma das razões pelas quais não foi possível ao Padre Eterno atender à oração de Jesus foi que os homens tivessem esse exemplo.
Quando Napoleão estava na fase ascensional de sua carreira, antes ainda de se tornar imperador, um bajulador disse-lhe: “General Bonaparte, por que vós não vos fazeis proclamar deus?” Os antigos heróis romanos, e os da Antiguidade em geral, quando “megalavam”(3) muito, acabavam sendo divinizados. Ele olhou para o sujeito de frente e deu esta resposta esmagadora: “Depois de Jesus Cristo, só há um jeito de alguém ser tomado a sério como deus: subir no alto do Calvário fazendo-se crucificar. Eu não estou disposto a isto.”
O exemplo de Nosso Senhor Jesus Cristo calou tão fundo que nunca mais nenhum candidato à divindade foi tomado a sério, porque só a cruz é séria, e apenas são verdadeiramente sérios os homens que querem carregar sua cruz. Portanto, devemos amar a nossa cruz e meditar sobre os pontos acima referidos.
Ele sofreu para que, por exemplo, no dia 30 de março de 1972, neste pequeno auditório, pudéssemos meditar isto juntos, e cada um sair daqui mais resolvido a combater o seu bom combate. Quer dizer, a carregar sua cruz.
Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 30/3/1972)
1) “Concordância dos Santos Evangelhos” ou “Os quatro Evangelhos reunidos em um só”, de autoria do Arcebispo de São Paulo, Dom Duarte Leopoldo e Silva. São Paulo: Ave Maria, 3ª ed., 1940, p. 365-368.
2) Mt 27,46.
3) “Megalar”, termo criado por Dr. Plinio, derivado de magalomania (mania de grandeza). Usado no sentido de “exagerar as próprias qualidades”, “envaidecer-se”, etc.