Nada é tão necessário, útil, doce e glorioso – II

O demônio promete às pessoas o prazer na vida, se forem egoístas. Entretanto, precisamente isso ele vai tirar, pois é o pai da mentira. Não há coisa mais miserável do que a vida de quem é egoísta. Somente tem verdadeiro gáudio quem vive do enlevo desinteressado.

 

No Reino de Maria tudo vai ser diferente. Devemos considerar que, eliminado o pecado de Revolução, no Reino de Maria as almas vão começar a ser sensíveis para esses temas. Vão aparecer de novo as pessoas que se via outrora, chorando ao fazer a Via Sacra.

Relógio de São Rafael

Eu ainda peguei isso no meu tempo de pequeno. De vez em quando, eu ia à igreja e encontrava uma ou outra pessoa fazendo a Via Sacra; eram três ou quatro da tarde, que são as horas mais simpáticas. Eu via, então, uma velha, uma mocinha, um menininho, rezando a Via Sacra, calmamente, lentamente, meditando cada um daqueles passos. Como isso deveria falar para as almas! Mas gastou…

Lembro-me de que havia em minha casa uma cozinheira de cor, a qual era reumática; uma vez eu vi o quarto dela e chamou-me a atenção encontrar um desses despertadores comuns, chamado relógio de São Rafael, que era artigo muito barato. E no mostrador do relógio, em cada hora, estava descrito, por meio de uma figurinha, o que Nosso Senhor durante a Paixão havia sofrido àquela hora. Era um relógio para doente, que ficava à cabeceira de sua cama, e quando o enfermo começava a achar longa a sua doença, que o tempo estava custando para passar, ou quando chegava a hora da dor pungente, da preocupação mais tremenda, ele olhava para o relógio e dizia, por exemplo: “Na hora em que estou sofrendo isso, Jesus penetrava no pretório de Pilatos”; ou, padecendo as constrições de uma angina, pensava: “Jesus tinha seu Coração transpassado pela lança de Longinus”. E dessa forma o doente encontrava uma distensão.

Recordo-me, ainda, que lhe perguntei:

— Você olha para esse relógio e reza conforme ele indica?

Ela deu uma risada, com uma certa bonomia, e disse:

— Se olho…

Essa cozinheira negra era uma Amiga da Cruz!

Tais relógios deixaram completamente de existir, e eu tive uma dor pungente quando, há anos atrás, alguém dizia para todo mundo que nunca tinha visto um relógio assim, era uma verdadeira curiosidade, e comentou: “Olhem, como os antigos eram piedosos…”

E a livraria do Coração de Jesus(1) vendia esses relógios para as empregadas do bairro, no tempo em que eu era menino. Foi um lindo pensamento que inspirou a elaboração de tais relógios; tenho certeza que nesta sala não haveria um que não gostasse de ter um relógio como esse. Entretanto, isso sumiu tão completamente que, 50 anos depois, encontrado um deles, é mostrado com uma curiosidade como quem mostraria um amuleto, tirado de dentro de um sarcófago de uma múmia egípcia.

Como era a Semana Santa nas primeiras décadas do século XX

Lembro-me de que uma vez ou outra, quando era pequeno, eu ainda ouvia as criadas, ou outras pessoas, fazerem interjeições dessas: “Pelo Sangue de Cristo, não faça isso!”

E alguns antigos documentos pontifícios pediam que Fulano ou Cicrano não fizesse tal coisa, “pelas entranhas de misericórdia de Nosso Senhor Jesus Cristo”.  Havia um vinho chamado “Lacrima Christi”, dulcíssimo como a lágrima de Cristo, que era cheia de doçura e de misericórdia.  E existe uma trepadeira “Lacrima Christi”, cujas flores são brancas com uma pétala vermelha, simbolizando o Sangue misturado numa lágrima cristalina e puríssima de Jesus Cristo.

Na Semana Santa, os fiéis se aproximavam da igreja com um senso sacral, um enlevo, uma admiração, uma ternura enormes. As pessoas se vestiam de preto, não se fazia barulho, as crianças não podiam falar alto, os motores não funcionavam, as chaminés das locomotivas não apitavam. E uma espécie de doçura de dor pairava sobre toda a humanidade. Então se compreendia o que São Luís Grignion fala da suavidade do sofrer. Porque o fato de Nosso Senhor estar presente nesse sofrimento proporcionava uma suavidade, uma tranquilidade de alma, uma resignação, da qual o homem moderno já não tem nenhuma ideia, nenhum conhecimento. A cozinheira, há pouco citada, compreendia bem isso. Mas infelizmente essas coisas passaram completamente.

Entretanto, São Francisco de Assis quanto chorou aos pés de um Crucifixo, Santo Afonso de Ligório quanto o osculou!

Quantas almas, não maculadas pela Revolução, eram sensíveis para isso! Aí se compreende um aspecto do pecado de Revolução, que é uma insensibilidade córnea, algo que se tem dificuldade de definir e explicitar; esse pecado faz com que, diante dessas coisas, as almas simplesmente não liguem.

Alguém me dirá: “Dr. Plinio, o senhor está fazendo uma grande confusão. Porque está falando de piedade sensível, e a sensibilidade com a piedade não tem relação com a Revolução. Isto é uma concepção de Deus, que dá o dom das lágrimas ou não. E, às vezes, há mais mérito em não ter essa sensibilidade do que ter”.

É bem verdade, mas não estou falando só da sensibilidade; é de algo por onde esses raciocínios moviam as almas e hoje não movem mais. E diante de uma coisa que impressiona, as pessoas ficam simplesmente com a impressão.

Forma requintada de egoísmo

E exatamente um efeito do pecado de Revolução é uma espécie de dureza de alma, de frieza, de falta de ternura e de capacidade de se enlevar, e ao qual corresponde uma forma requintada de egoísmo.

Assim, compreendemos também uma outra coisa: a nossa famosa procura do absoluto como está ligada a isso!

As almas picadas pela Revolução não se incomodam com o absoluto. Mostramos-lhes a coisa mais sublime, e se não tiver relação com uma vantagem prática delas, da vida de todos os dias, elas não se incomodam.

São secas e frias para essas considerações; são almas incapazes de se enlevar. Elas possuem umas fruições, mas verdadeiro enlevo, que é o entusiasmo pela coisa enquanto tal, e sem preocupação de gozo, essas almas não têm. O egoísmo é tal que elas só são capazes de pensar no seu próprio gozo. E não cogitam em mais nada. Por isso também estão fechadas para a Paixão de Cristo.

Se quisermos ter a ideia de uma alma em diâmetro oposto a isso, podemos, por exemplo, pegar aquela fotografia de Santa Teresinha do Menino Jesus menina. Cheia de enlevo, ela ama uma porção de coisas por não serem ela mesma. E não por lhe darem vantagem, mas porque as coisas são como são. Aquelas famosas meditações que Santa Teresinha fazia, nos “Buissonnets”, olhando para as estrelas, eram coisas que ela amava não como um egoísta pode amar porque gosta de olhar para estrela, mas porque a estrela é estrela. Entretanto, quão poucas almas são assim!

É tremendo, mas aquilo que o demônio promete é precisamente o que ele quer tirar. Ele promete às almas que, se forem egoístas, irão encontrar o prazer na vida. Não há coisa mais miserável do que a vida da alma de quem é egoísta. O único prazer da vida é ter uma alma enlevável, enlevada e que vive do enlevo desinteressado; o resto da vida não tem prazeres. Mas quantos ignoram isso! E daí a secura das almas para com as nossas considerações.

Se alguém, portanto, quiser ter uma noção do que vai ser o Reino de Maria, deve imaginar almas completamente diferentes das de hoje; almas capazes de se tocarem desinteressadamente por essas coisas, e de amar esses temas por serem eles mesmos e não por qualquer outra razão. Afinal raia no mundo a aurora do desinteresse!

O verdadeiro escravo de Maria não busca seu próprio interesse

Embora não claramente enunciado por São Luís Grignion de Montfort — mas eu dizendo todos percebem —, por detrás do conceito da sagrada escravidão à Santíssima Virgem está precisamente isso: o escravo é aquele que renuncia a ter qualquer interesse. Ele só tem os direitos mínimos do Direito Natural, os inalienáveis, e renuncia a suas vantagens, a seus próprios interesses; e quase se diria que ele renuncia ao seu próprio eu. Porque o escravo de Maria compreende que essas coisas não são nada; são puro egoísmo e trazem consigo a frustração de todas as amarguras. E ele se funde em Nossa Senhora, que é sua Senhora; torna-se escravo d’Ela porque não quer fazer outra coisa senão contemplá-La, admirá-La, e todo o prazer dele está exatamente em que tudo na Terra seja conforme a Ela, viva e prospere independente dos seus interesses.

Um perfeito escravo de Nossa Senhora seria de tal maneira, que ele teria incomparavelmente mais ventura em ser lixeiro no Reino de Maria, do que um duque na Inglaterra ou um milhardário nos Estados Unidos.

Mais ainda: um verdadeiro escravo de Nossa Senhora, no Reino de Maria, gostaria mais de ser o último, não ter nenhuma vantagem pessoal, para contemplar desinteressadamente aquele quadro do seu cantinho, do que ser um ator do centro da cena. E são almas assim que o “Grand Retour”(2) deve suscitar. Almas nesse ponto escravizadas ao enlevo, ao ideal, e que já não procuram mais nada para si. E que, afinal, encontram paz para suas almas.

Mas isso supõe graças muito especiais, verdadeiramente de “Grand Retour”. Graças de uma renúncia interna, que tanto dá no heroísmo dos Macabeus, quanto no isolamento dos eremitas, na pequena via de Santa Teresinha, quanto em todas as formas de santidade, mas não nesse egoísmo que a Revolução criou.

Aqui estaria uma meditação sobre um dos aspectos mais fundamentais do que é a cruz.

O que é a cruz? É o conjunto de renúncias que se faz para ser assim. E, quando a pessoa realiza esse esplêndido negócio, percebe que de fato toma uma cruz sobre os ombros, mas entende ser bem verdade o que dizia o Cura de Ars: “A vida dos que vivem segundo a cruz é como um manto de espinhos, forrado de arminho. E a existência dos que vivem segundo o seu egoísmo é como um manto de arminho, forrado de espinhos”.

Quanta coisa excelente existe para a alma nesta vida de enlevo! Que miséria existe no contrário! v

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 26/8/1967)

Revista Dr Plinio 193 (Abril de 2014)

 

1) Situada junto ao Santuário do Sagrado Coração de Jesus, em São Paulo, bairro Campos Elíseos.

2) Do francês: grande retorno. No início da década de 1940, houve na França extraordinário incremento do espírito religioso, quando das peregrinações de quatro imagens de Nossa Senhora de Boulogne. Tal movimento espiritual foi denominado de “grand retour”, para indicar o imenso retorno daquele país a seu antigo e autêntico fervor, então esmaecido. Ao tomar conhecimento desses fatos, Dr. Plinio começou a empregar a expressão “grand retour” no sentido não só de “grande retorno”, mas de uma torrente avassaladora de graças que, através da Virgem Santíssima, Deus concederá ao mundo para a implantação do Reino de Maria

Restava enfrentar a última batalha

No alto da Cruz, Nosso Senhor já havia passado pelos mais atrozes sofrimentos. Entretanto, Ele ainda padeceu a aridez, outras terríveis aflições e enfrentou a última batalha, antes de morrer. Sofreu para resgatar as almas que se encontravam no Limbo, os homens que estavam na Terra e todos os que existirão até o fim do mundo.

 

Eu gostaria de comentar alguns aspectos do crucifixo que se encontra na Igreja de São Francisco de Assis, em São João del Rei, Minas Gerais. Desejo, assim, chamar a atenção para uma das formas de dor que mais caustica o mundo contemporâneo. O homem hodierno está sofrendo? Está. Mas ele mais sofre da dor que ele percebe que caminha em direção a ele, do que da dor que está padecendo. A previsão da dor é, muitas vezes, pior do que a própria dor.

O lance final mais tremendo do que todos os outros

Esse crucifixo consegue, de um modo impressionante, tornar claras duas posições da alma de Nosso Senhor Jesus Cristo, Homem-Deus. Quer dizer, da sua humanidade ligada hipostaticamente à sua divindade, e colocada diante do tormento da dor que vai cair sobre Si, dominada por um pânico correspondente à reação de toda a natureza humana, mas que não cede e avança, que está resignada e, ao mesmo tempo, apavorada.

Notem como o olhar está fixo, aberto e até arregalado, e não presta atenção em nada a não ser no espectro de uma dor tremenda que Lhe vem por cima. Toda a Paixão está para trás, Ele já sofreu tudo e está crucificado. O que Nosso Senhor olha tão fixamente, com tanto pavor, tão desoladora e varonilmente de frente?

Para compreender bem isso, deitem a atenção na boca, meio entreaberta, prestes a pronunciar uma palavra que já não tem força para articular. Considerem as sobrancelhas arqueadas e muito acima das cavidades oculares. É a morte que vem… É o fim! Depois de tanto e tanto sofrimento, é aquele momento extremo de dor, no qual o Divino Redentor vai bradar: “Meu Deus, meu Deus, por que Me abandonaste?” (Mt 27, 46). E depois inclinará a cabeça e dirá: “Está tudo consumado” (Jo 19, 30). O oceano das dores foi bebido e está tudo feito.

Eis o lance final, trágico, mais tremendo do que todos os outros, aos quais se acrescenta um dilúvio de dores, à vista de cujo horror vemos Nosso Senhor Jesus Cristo estremecer e ainda enfrentar a última batalha.

Há um versículo que se refere profeticamente a Ele dizendo: “Ego autem sum vermis et non homo, opprobrium hominum et abiectio plebis. – Eu sou um verme e não um homem, o desprezo de todos os homens e o escárnio do povo” (Sl 22, 7). Ei-Lo no alto da Cruz, sofrendo tudo isso para resgatar as almas que se encontravam no Limbo, as que estavam na Terra e as de todos os homens até o fim do mundo.

O Salvador tem sede da alma de cada um de nós

É muito importante compreendermos que Nosso Senhor Jesus Cristo era o Profeta perfeito, porque profetizou e cumpriu a sua profecia. Os outros profetas previam o que Deus faria; Ele, sendo Deus, profetizou e realizou tudo quanto profetizara. Ora, esse Profeta previu no seu interior todos os pecados cometidos na humanidade até o fim do mundo. Por isso, nesse olhar há doçura, amor, e este amor se volta para cada um de nós. Inclusive àqueles dentre nós que estejamos mais longe d’Ele, por nossa culpa, nossa culpa, nossa máxima culpa… Nesse crucifixo o olhar é de quem diz: “Se for preciso sofrer tudo por esse, Eu sofro! Ainda que ele rejeite tudo isso, Eu ainda sofro mais para ver se, afinal, ele aceita”.

“Sitio – Tenho sede” (Jo 19, 28), disse Nosso Senhor no alto da Cruz. Quanto gostaríamos de dar água para Ele beber! Ora, Ele tinha sede de almas. O Salvador tem sede da alma de cada um de nós! Portanto, essa água nós podemos Lhe dar! É a nossa alma, o nosso interior, a nossa boa vontade, a nossa contrição.

Peçamos para nós, por meio de Nossa Senhora que está aos pés da Cruz, uma contrição profunda que emende as nossas almas e faça de nós uma razão de alegria para seu Divino Filho. Assim poderemos dizer: “No alto do Calvário, eu fui para Ele uma alegria e não uma dor”.

Penetrou pelos precipícios da morte porque quis nos salvar

Em outro ângulo pelo qual se contempla esse crucifixo, Nosso Senhor parece não tanto apavorado, mas derrotado. E a compaixão, ao menos em mim, se torna mais viva. O olhar d’Ele é igualmente fixo, aterrorizado, mas como quem entende não haver nada para fazer, pois Ele é o Cordeiro de Deus que tira os pecados do mundo… A única coisa que resta é padecer a pancada atroz e injusta que Ele, inocente, sofrerá por nós, culpados, para podermos salvar as nossas almas. Devemos, pois, dizer do íntimo dos nossos corações aquela jaculatória recitada na Via Sacra e que sempre me impressionou muito, a qual rezo cada vez que passo diante do crucifixo presente em nossa Sede: “Adoramus te Christe et benedicimus tibi, quia per sanctam Crucem tuam redimisti mundum – Nós Te adoramos, ó Cristo, e Te bendizemos, porque pela tua santa Cruz, redimiste o mundo!”

Aí está o onipotente, o Homem-Deus. Há algumas horas perguntavam-Lhe se era Jesus, o Nazareno, e Ele respondeu: “Eu sou.” E tal é o poder d’Ele que todos caíram por terra (cf. Jo 18, 4-6). Nosso Senhor poderia pôr de cara no chão essa multidão que estava em torno d’Ele e que O vaiava. Se Ele quisesse, poderia fazer entrar para os antros mais profundos do Inferno, naquele mesmo instante, a corja de demônios que andavam pelos ares atiçando os homens contra Ele. Nosso Senhor poderia descer da Cruz e, por um império de sua própria vontade, recuperar-Se em toda a força da sua juventude, na plenitude de seus trinta e três anos, a idade perfeita do homem. Mas Ele não quis. E podendo afastar-Se da morte com uma facilidade suma, penetrou pelos precipícios dela, porque Ele quis nos salvar!

Sem dúvida, temos sacrifícios a fazer para salvar nossas almas. Entretanto, como são menores – a perder de vista! – do que o que Ele realizou por nós! Diante disso, não teremos coragem de fazer o sacrifício que nossa salvação exige de nós? Que vergonha é essa?! O tema é tão augusto que quase não comporta a brutalidade da palavra que vou usar: que indecência é essa?!

Imploremos ao Divino Crucificado que nos dê força a fim de fazermos todos os sacrifícios para a salvação e santificação de nossas almas, e trabalharmos pela causa d’Ele e de Nossa Senhora no mundo contemporâneo.

Tudo está toldado!

Vista por outro aspecto, a fisionomia de Nosso Senhor nesse crucifixo corresponde a uma situação para a qual não encontro no vocabulário português nenhuma palavra inteiramente adequada, como é o termo francês “détresse”. É uma aflição que estica ou contorce o homem de todos os modos, e para a qual não há remédio. Nosso Senhor Jesus Cristo parece olhar para o Padre Eterno, e não mais para os homens, e dizer: “Meu Pai, nem em Vós encontro compaixão!” Nessa hora, como que uma misteriosa cortina se interpôs entre a divindade e humanidade d’Ele. Esta encontrava-se na aridez, enquanto a sua divindade, no Céu, estava imersa na glória e na felicidade eternas, inseparáveis da natureza divina. Na sua humanidade, Jesus está olhando para o Céu, como quem diz: “Tudo está toldado, não há saída!”

Em quantas situações da vida nós temos a impressão de que tudo está toldado e não há saída! Nessas horas, saibamos rezar, pedir socorro por meio de Nossa Senhora, e certamente seremos atendidos pelo Céu.

Outra fotografia do mesmo crucifixo apresenta a pobre natureza humana colocada próxima à morte. “Mortis dolores circundederunt me – As dores da morte me cercaram” (Sl 114, 3). Elas vão, dentro em pouco, me devorar. E, Homem que sou, tenho horror da morte! Mas Eu a quero para salvar os homens!”

Tem-se a impressão de que toda forma de aflição O esgotou tanto, que Ele está como que entregue e olhando as suas próprias dores como algo que já se apoderou d’Ele inteiramente. De maneira que só Lhe falta dizer “consummatum est” e morrer. O cálice está bebido. Dir-se-ia que houve um sobressalto, mas há algo da aceitação do fato consumado, onde está presente a doçura das resignações últimas.

Notem o aspecto impressionante da bofetada criminosa dada no rosto, e a chaga que abriu na face divina.

Ó Senhor, pelo Sangue de Jesus e pelas lágrimas de Maria, tende pena de mim!

Esses são os comentários sugeridos por essa esplêndida sequência de fotografias do crucifixo da Igreja de São Francisco de Assis, em São João del Rei. São palavras que nos predispõem para os sentimentos de contrição que devemos ter durante a Semana Santa.

O segredo das almas quem o poderá desvendar? Dentre os que lerão esses comentários poderá haver almas muito desanimadas, talvez sem esperança de se reerguerem inteiramente. Argumentemos diante da justiça divina com os méritos de Jesus, nosso Redentor, e de Maria Santíssima, Co-Redentora, e digamos:

“Senhor, não sou digno de vossa misericórdia, mas a misericórdia de vosso Filho já se exerceu em meu favor. Ele já verteu seu Sangue, e eu estava na lista dos filhos por quem Ele morreu, pois sou homem, e Nosso Senhor quis morrer por todos os homens. Fui remido, e quando Nossa Senhora chorou, verteu lágrimas também por mim. Eu alego esse Sangue e essas lágrimas, e Vos digo, por meio de Maria Santíssima: Ó Senhor, pelo Sangue infinitamente precioso de Jesus e pelas lágrimas de Maria, a quem amastes tão especialmente, Senhor, tende pena de mim!”

É o que cada um de nós deve dizer na Semana Santa.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 3/4/1985)

Revista Dr Plinio 253 (Abril de 2019)

O Sepulcro do Senhor

Imaginando o Santo Sepulcro, Dr. Plinio faz riquíssimas considerações que podem inspirar-nos à meditação por ocasião da Páscoa.

 

Atualmente, o ambiente que cerca o Santo Sepulcro difere bastante daquele existente quando Nosso Senhor ali estava morto na sua humanidade.

Entretanto, a fim de fazer uma meditação sobre a Ressurreição de Cristo, farei o que Santo Inácio de Loyola chama, nos Exercícios Espirituais, a composição de lugar, sabendo que o Santo Sepulcro assim não foi. Vou imaginar um sepulcro em concreto, ou seja, real, e depois descreverei a impressão que ele me causaria, se lá estivesse.

Um arco prodigioso, não definido

Eu imaginaria o Santo Sepulcro como algo completamente tosco, aberto na pedra pelos pedreiros de José de Arimateia, que formavam talvez uma das primeiras empresas funerárias do mundo.

ma coisa tosca, mas para quem soubesse interpretar e conhecesse o gótico, olhando para aquilo perceberia que formava um arco prodigioso, não definido. Um indivíduo que vivesse no tempo de Jesus não perceberia, mas um medieval diria: “Olha o gótico!” Se quiserem, foi a primeira ogiva da História.

A lápide que encerrava o Santo Sepulcro, ao contrário de ter aquela beleza leve do gótico, aquele charme, seria uma pedra bruta como que fazendo carranca.

E a ogiva era um louvor do Filho de Deus e a tragédia do deicídio, a justaposição do lindo e do horror da morte, da virtude e do pecado.

A câmara mortuária em forma de cruz

Como se poderia imaginar a câmara mortuária onde estava Nosso Senhor?

Poder-se-ia representar, não uma montanha gigantesca, seria ridículo, mas uma rocha muito grande, ainda com terra por cima, com plantas, de maneira que se sentisse que ela é muito maior do que nossos olhos percebem.

Afastada a pedra de abertura, entrar-se-ia numa espécie de corredor, no fundo do qual se tem a ideia do âmago da morte. E no âmago da morte, o Deus vivo.

É bonito imaginar o cortejo que entra, levando o sagrado Corpo: os archotes, a resina dos mesmos e a fumaça marcando o teto e as paredes; aquela escavação escura e tenebrosa vai recebendo uma luz surpreendente. Nessa escavação, cuja forma seria alongada, haveria uma como que mesa de pedra, sobre a qual se colocaria o Corpo divino.

Quem prestasse uma atenção amorosa e meditativa perceberia, não à primeira vista, mas à terceira ou quarta, que aquilo formava uma cruz. No âmago da morte não cabe a festa nem o “pulchrum” ostentado, mas apenas insinuado, entrevisto.

Contraste entre Nossa Senhora e a montanha de pedra

Prestando-se atenção nas paredes e na estrutura geral, se compreenderia que aquilo representava um dossel fabuloso, embora de pedra comum, o dossel de todos os séculos, pois ali estava colocado o Corpo de Nosso Senhor.

Talvez não se devesse imaginar que também Nossa Senhora entrasse. Ela, em cujo claustro Nosso Senhor tomou vida, vendo agora o sepulcro onde está o seu Filho morto! Seria lancinante o contraste entre a Virgem-Mãe e a montanha de pedra, a vida que começa e a morte dando seu golpe brutal, o crime mais inopinado, mais satânico, mais estúpido, se não fosse diabólico.

Assim, podemos conceber que Ela julgasse não dever estar ali, como uma espécie de protesto das entranhas que O geraram contra a entranha de pedra que O vai conter: uma incompatibilidade intransponível.

É mais bonito supor que todos saem, ficando ali apenas o sagrado Corpo ultra-aromatizado, isolado, na escuridão completa, havendo, na aparência, a vitória deslumbrante da impiedade, da vulgaridade, da morte, do pecado, sobre Nosso Senhor Jesus Cristo.

Fosforescência lívida, mas gloriosa

Se, pela ação de um anjo, uma pessoa tivesse a felicidade de ver através da rocha, perceberia que do Corpo emanava uma discretíssima claridade, não a de um homem vivo, mas a de um cadáver.

ara a autenticidade da Ressurreição era preciso que Jesus estivesse morto, com todas as características da morte, exceto a putrefação, que n’Ele não cabe. Se não fosse irreverência, poder-se-ia comparar essa luminosidade à fosforescência. Seria uma fosforescência lívida e cadavérica, mas gloriosa.

Num canto qualquer, e também no solo, uma luz mantida por anjos, que brilhasse de um modo lindíssimo, como um vitral iluminado por detrás. Brilharia apenas num canto, sem chegar a iluminar tudo, como são os quadros da escola holandesa.

E por que no chão? Porque a glória de Nosso Senhor impunha que, junto ao cadáver d’Ele, nunca se fizesse noite completa.

Seria de certo modo o “lumen gloriae”(1) porque, no lugar da morte, a luz não tem a sua residência própria. Ela está como que enxovalhada, posta de lado, iluminando só um canto, enquanto a vida não voltar para Ele. Tratar-se-ia de luz angélica, que não precisa de oxigênio, pois independe das leis da Física.

E essa luminosidade aumentaria paulatinamente, se desdobrando em como que fosforescências cada vez mais bonitas, cujas várias zonas lembrassem os tormentos d’Ele e tudo quanto em sua alma humana, em união hipostática com a Divindade, se passou durante a existência: a vida íntima da Sagrada Família, os três anos da vida pública, a aurora radiosa, a glória, a perseguição, as apreensões, o Horto das Oliveiras, tudo isto iria se desdobrando em luzes. Seria como que uma narração.

Poderíamos imaginar também que as feridas, as chagas sagradas, fossem gradualmente tomando, em harmonia com isso, à maneira de matizes, fosforescências próprias, indicando o significado de cada uma, o que Ele havia sofrido e expiado em cada passo da Paixão.

Quando isto estivesse inteiramente representado, seria preciso pensar nas legiões de anjos adorando o sagrado cadáver. E, incomparavelmente superior a todos os anjos, Nossa Senhora à distância, no Cenáculo, em contínua adoração. Poder-se-ia objetar: “Está bem, mas anjo não precisa de fosforescência”. Sim, mas ela poderia existir para que algum dia fosse o seu sentido meditado por outros.

Nesse momento, algo de novo começaria a se dar dentro do Santo Sepulcro.

Duas formas de imaginar a Ressurreição

Podemos imaginar duas formas de Ressurreição.

Cristo morto, deitado, em determinado instante, dá sinais de vida; a fosforescência se torna uma luminosidade e sua Alma imediatamente glorifica a Deus Pai, faz um ato de amor ao Espírito Santo. A Pessoa do Verbo Se levanta com uma majestade indizível e caminha no sepulcro transformado, de repente, numa catedral feita de luzes, em meio aos cânticos dos anjos.

Chegando junto à entrada, os anjos rodam a pedra e Ele… meus ouvintes estão imaginando que Ele apareceria a Santa Maria Madalena. Não. Do momento em que Nosso Senhor se levantou até o instante em que ela O reconheceu, houve um interstício insignificante. É-nos lícito imaginar que, com o deslocamento rapidíssimo dos corpos gloriosos, neste interstício Jesus esteve no Cenáculo e apareceu a Nossa Senhora. Assim, imagino ter sido Ela a primeira pessoa que O viu. E logo depois Se apresentou a Maria Madalena, tendo então lugar a cena que o Evangelho descreve.

Essa seria uma modalidade de imaginar a Ressurreição.

Conforme a piedade e o modo de ser de cada um, poder-se-ia supô-la de outro modo: nas trevas intensas, de repente, à maneira de um corisco sublime, a montanha como que racha, Nosso Senhor se levanta como um raio e, num instante, está junto à porta. Um anjo rola a pedra e Ele se encontra diante dos olhos de Maria Santíssima.

Fato tocante: durante toda a Paixão, Nossa Senhora teve em Si a presença eucarística

Há, entretanto, um fato tocante, do qual as pessoas que meditam sobre a Ressurreição nem sempre se lembram: Nossa Senhora fez sua primeira Comunhão no Cenáculo, quando Jesus instituiu a Eucaristia; e a partir desse momento — hipótese defendida por inúmeros teólogos(2) —, nunca mais a presença real n’Ela cessou. E depois de sua morte, Jesus de fato estava em dois lugares no mundo: na sepultura e em Nossa Senhora.

Isso forma, a meu ver, um contraste lindíssimo e afirma, de um modo tão glorioso que não encontro palavras para qualificar, a vitória de Nosso Senhor sobre o demônio, porque Ele morto estava em seu paraíso, ou seja, Maria Santíssima. E, durante a Paixão, Ele estava atado à coluna, carregando a Cruz, crucificado e até morrendo, mas permanecia ao mesmo tempo no paraíso d’Ele e — julgo indispensável considerar isso — desse modo triunfava dentro de sua derrota.

Eis aí, de modo esquemático, alguns pontos que depois devem ser desdobrados, para se fazer uma meditação sobre a Ressurreição.

No fim do mundo, o incêndio poupará o Santo Sepulcro

Devemos também recordar a glória que ao Santo Sepulcro deram os fiéis em todo o curso da História, mas me comprazo em pensar especialmente nos que derramaram o sangue para libertá-lo.

Ficaram eles desolados quando souberam que o Santo Sepulcro estava ocupado pelos inimigos da Igreja, impedindo aos católicos do Oriente de para lá se dirigirem. Além da desolação, houve a indignação do Papa Bem-aventurado, Urbano II, que pregou a Cruzada. Ocorreu, então, por toda a Europa aquela espécie de santa propagação, como a luz, do brado “Deus o quer!”, e avalanches de cruzados, durante muito tempo, lutaram para libertar o Santo Sepulcro.

Depois podemos imaginar o Santo Sepulcro cercado pelas labaredas que vão consumir quase toda a Terra no fim do mundo. Digo “quase” porque alguns lugares sagrados, antes de tudo o Santo Sepulcro, vão ser poupados.

Julgo que, no fim do mundo, todas as relíquias da Paixão que restarem — relíquia é o que restou — serão reunidas gloriosamente junto ao Santo Sepulcro.

Quanto ao Santo Lenho, há relíquias autênticas misturadas com outras que não o são. A coroa de espinhos e os instrumentos da Paixão, os cravos, não estão inteiros. Poder-se-ia imaginar que para tais relíquias haveria uma espécie de ressurreição, ou seja, as autênticas seriam desentranhadas para se reincorporarem.

Essa é uma ideia pelo menos muito simpática e enormemente atraente. Nem por isso é prova de que seja verdadeira, porque pode haver obstáculos metafísicos e teológicos a isso; seria preciso estudar o caso.

Lábaro de dor

A respeito do Santo Sudário, parece-me que poderá ocorrer o seguinte: continuará sendo uma espécie de lábaro de dor, lembrando as sofrimentos de Nosso Senhor; ou acontecerá o que sucedeu com suas chagas, as quais se tornaram gloriosas, recordando todos os crimes cometidos contra Ele. Quem sabe, o Santo Sudário conserve esse aspecto funerário e doloroso — é como que a fotografia da própria dor —, mas irradiando uma glória como as chagas.

Ninguém pode descrever como seria essa glória. O Santo Sudário é uma “fotografia” — entre aspas — de Nosso Senhor; todo o brilho que aquele emitir vai ser uma espécie de réplica do esplendor que do Divino Redentor promanará, e será objeto de enlevo, de adoração, etc., de todos os anjos e bem-aventurados.

O Corpo sacratíssimo de Nosso Senhor, com suas chagas, e analogamente o Santo Sudário, brilharão, constituindo o gáudio de todos os eleitos. E cada um de nós verá então, com reconhecimento, o que custou seu próprio resgate.

O Imaculado Coração de Maria: a mais perfeita figura de Nosso Senhor

Tudo quanto Nosso Senhor sofreu e, lindamente, Maria Santíssima padeceu em união com Ele, se projetará sobre os anjos maus e os réprobos de maneira a estertorarem de ódio e de horror.

Imaginemos que o indivíduo A tenha inveja do indivíduo B. De repente, A descobre que B é príncipe e será coroado rei. A não vai assistir a coroação, preferindo ficar em algum antro se contorcendo de inveja e de ódio. Embora não esteja vendo a coroação, cada rito da mesma, cada brilhante da coroa, etc., o dilaceram. A inveja e a revolta o devoram. Assim, podemos calcular qual foi o ódio dos demônios diante do Santo Sudário e de Nosso Senhor Jesus Cristo, apesar de não os verem.

Mas acima do Santo Sudário há uma representação mais alta de Nosso Senhor Jesus Cristo.

É o véu da Verônica?

Não. É o Sapiencial e Imaculado Coração de Maria. Aquele que é a própria Beleza ali se representa com complacência.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 18/4/1981)

 

 

1) Luz da glória.
2) Entre os que defendem esta piedosa hipótese está o Revmo. Pe. Gregório Alastruey em sua obra Tratado de la Virgem Santíssima. (Madrid: BAC, 1956.)

Impressoes sobre a Semana Santa

Para Dr. Plinio, a principal época do ano era a Semana Santa. Não apenas pela recordação, em si, da tragédia do Homem-Deus, morto e sepultado, mas também pelo ambiente salutar e santificante que dela emanava.

Na Sexta-feira Santa, a cerimônia que mais me tocava era esta: a cruz exposta numa espécie de mesa, com Nosso Senhor morto, e o povo fiel que passava para oscular-lhe os pés. Desfilavam aquelas pessoas às centenas. Nas catedrais, esse cortejo para a veneração da cruz era encabeçado pelo bispo, e foi durante uma dessas celebrações litúrgicas que contemplei, pela primeira vez, a simbólica beleza do báculo.

Estávamos na Igreja de Santa Efigênia (pois a Catedral da Sé ainda se achava inacabada), quando o velho Arcebispo D. Duarte entrou para a cerimônia, revestido dos trajes próprios aos ritos da Paixão: batina amplíssima, de um roxo quase violeta, prolongando-se numa grande cauda, levada por um ou dois caudatários, em geral seminaristas. Ia sem mitra, com uma cobertura na cabeça lembrando em algo o barrete dos doges venezianos. Não sei a razão dessa peça no paramento episcopal, mas o adornava de modo muito adequado.

Com todos os fiéis quietos, tendo já deixado um espaço aberto no corredor central para o prelado passar, este vinha caminhando sem sapatos, deixando ver as meias violáceas. Estava descalço em sinal de penitência, e ia como bispo diocesano, o primeiro, pedir perdão pelos seus próprios pecados e pelos do povo.

Essa cena causava uma impressão de realidade — e o era — de que, diante do trono de Deus, naquela hora, comparecia com o bispo a diocese, e cada um dos que estávamos ali, na pessoa do Pastor,  pedia perdão por seus pecados, responsáveis pela morte de Nosso Senhor Jesus Cristo. A liturgia começava a entoar um cântico que exprimia e corroborava esse sentimento, enquanto Dom Duarte, com ar grave e recolhido, em grande estilo se aproximava do Senhor morto para Lhe oscular os pés. Em seguida, saía pela sacristia, e tinha início a longa procissão de fiéis.

Ao presenciar essa cena, eu me rejubilava: “Ah! Esta é a Igreja Católica!”

A cidade se tornava austera e séria

Outros lindos aspectos das celebrações da Paixão me encantavam igualmente. Por exemplo, a transladação do Santíssimo, que havia sido consagrado, para o chamado monumento ou sepulcro.

Então, o celebrante — que podia ou não ser o próprio bispo — envolvia o cibório com uma capa da cor de luto e o conduzia ao seu destino, precedido pelos toques das matracas: “plec-plec, plec-plec, plec-plec, plec-plec”… Quer dizer, não havia mais música nem alegria. Era tudo tristeza e tudo pranto, por causa de nossos pecados, porque o Filho de Deus morrera. O cortejo se dirigia a um altar lateral, mais afastado, para que o maior espaço a ser percorrido pelo povo conferisse certa pompa e extensão à cerimônia.

Descia-se uma urna, na qual depositavam o Santíssimo, trancavam-na à chave e esta era entregue ao pároco. Até o Sábado Santo não havia mais comunhão naquela igreja, porque o Senhor estava  morto. Era um luto pesado, uma tristeza profunda.

O povo se dispersava silencioso e recolhido. Caminhavam todos para suas casas, naquela época antiga, ainda usando trajes escuros. Os homens se vestiam de preto, e as senhoras portavam sinais  de luto, faixas ou véus negros, etc. As próprias crianças se apresentavam com algo de preto. E assim, pelas ruas tranquilas da cidade, as pessoas voltavam para suas residências. Iam fazer a sua   refeição de jejum e abstinência, mantendo-se na piedosa e compungida quietude daquele dia de dores.

A cidade tornava-se tão austera, tão séria, que se tinha quase a impressão de que, quando ela voltasse ao normal, já estaríamos vivendo no Reino de Maria. Ou seja, naquela época histórica  prevista por São Luís Grignion de Montfort e outros santos, durante a qual a Santíssima Virgem ser á a Rainha dos Corações e da sociedade.

As alegrias da Ressurreição

Terminada a Sexta-Feira Santa, os espíritos se voltavam para as esperanças e as alegrias da Páscoa.

Certa vez, quis ver a cidade de São Paulo no seu conjunto — eu tinha uns 20 anos — festejando a Ressurreição. E a Igreja, naquele tempo, o fazia no Sábado de Aleluia, ao meio-dia. Acompanhado de um amigo, subi então até o último andar da torre do santuário Coração de Jesus, onde ficamos à espera do festivo momento.

Quando chegou meio-dia em ponto, ouvimos o timbre do bonito carrilhão da igreja que começava a tocar.

Depois do silêncio sacral e sepulcral da Semana Santa, ecoavam os repiques dos sinos. E como não havia quase arranha-céus naquela época, o som se propagava, trazendo aos nossos ouvidos os tangeres dos sinos das mais variadas igrejas, a diferentes distâncias, bimbalhando festivamente junto com o sino fortíssimo do Coração de Jesus. Era um júbilo, um triunfo pascal com grandeza bíblica.

Logo a alegria da Páscoa começava a se espalhar sobre a cidade. Soltavam-se rojões, e a molecada ia pelas ruas levando o judas para ser enforcado em árvores, em postes, espancado até cair e, finalmente, queimado.

Já nas casas de família, as mães acendiam velas bentas diante das imagens de Nosso Senhor e de Nossa Senhora, para celebrá-los, e reuniam as crianças para rezar.

Enfim, tinha-se a impressão de que até a natureza se rejubilava quando, ao meio-dia do Sábado Santo, soavam os sinos da Ressurreição. O Apóstolo diz esta palavra, que tudo resume: “Absorta est mors in victoria”. A morte foi tragada pela vitória!

Plinio Corrêa de Oliveira

Divina seriedade de Nosso Senhor

Os algozes fizeram terríveis brutalidades contra Nosso Senhor, por ódio à virtude que n’Ele transparecia de modo tão magnífico. Quem chegasse perto do lugar onde Jesus estava sendo flagelado, ouviria lancinantes brados de dor, entretanto, mais harmoniosos e belos  que os sons de qualquer orquestra.

Se considerarmos Nosso Senhor ao longo da sua peregrinação durante os três anos da sua vida pública, de um lado para outro pregando às multidões, quer no primeiro ano  que foi gaudioso, em que a obra d’Ele iniciou-se e mais ou menos encantou todo o povo de Israel; quer no segundo, quando as dificuldades começaram a aparecer; quer no  terceiro, o qual foi dramático, chegando até o Gólgota e o “Eli, Eli lammá sabactâni” (Mt 27, 46) – Meu Deus, Meu Deus, por que Me abandonaste? –; em quaisquer desses  anos, como imaginaríamos Nosso Senhor?

Majestosa e serena tristeza de Nosso Senhor

Andando alegre de um lado para o outro, satisfeito, com a fisionomia contente, comentando despreocupadamente e de modo agitado os aspectos engraçados das coisas? Ou  com um fundo de tristeza amenamente presente na sua personalidade, marcando seus divinos olhares e tudo quanto Ele dizia e fazia, exprimindo-Se aos homens em termos de um tratamento afável, doce, bondoso, mas também com um fundo de tristeza não dramática, nem lancinante, mas habitual, estável – para empregar uma comparação  que não me satisfaz inteiramente, mas que diz algo –, um olhar que tivesse algo de luminoso, resplandecente, de tristonho como o luar?

Sem dúvida, esse olhar assim tristonho, mas resignado, atento, afável, bondoso, exprimiria o fundo da alma d’Ele.

Trata-se de saber por que essa majestosa, serena, imensa, afável tristeza de Nosso Senhor enchia de tal maneira  a alma d’Ele. Começo por me perguntar que relação há entre esse olhar e a seriedade, e concluo ser esta a própria seriedade do Redentor. Não havia outro modo de ser sério. Ora, se era essa a seriedade d’Ele, não deve ser também  essa a nossa seriedade?

Se isso é assim, devemos nos indagar qual a razão pela qual sua tristeza era tão grande quanto a amplidão de suas vistas.

Na divindade d’Ele não podia haver tristeza. Deus é de tal maneira perfeito, excelso, admirável, que n’Ele não cabe consternação. Havia tristeza na humanidade santíssima de Nosso Senhor. Mas essa natureza humana estava ligada hipostaticamente à Segunda Pessoa da Santíssima Trindade, constituindo uma só Pessoa continuamente na visão  direta de Deus, no oceano de suas perfeições e de sua felicidade infinita e imperturbável por todos os séculos dos séculos sem fim.

Logo, essa tristeza não poderia vir de Deus, mas só do Homem. Porque Nosso Senhor veio à Terra como Redentor e se encarnou para nos resgatar, morrendo na Cruz como   Homem-Deus e fazendo, portanto, que um Homem oferecesse um sacrifício infinitamente precioso que perdoasse o pecado original e os pecados posteriores, e abrisse o Céu.

Então, torna-se claro que esse sofrimento só poderia vir do Homem. Como um Ser que era Deus, e de tal maneira participava dessa felicidade infinita do Onipotente, podia ter tanta infelicidade, tanta tristeza a propósito dos homens que são tão menos do que Deus?

Dir-se-ia que seria mais ou menos como se eu – vou falar em termos mundanos – recebesse de repente de herança uma fortuna inestimável, imensa, e no mesmo dia, ao  partir uma fruta, corto um pouquinho o dedo. Aqui está um pequeno incômodo que coincide com uma causa de felicidade extraordinária, mas nem se pensa nele. Se à noite   o dedo estiver molestando, começa-se a dar conta de que nele houve um corte de manhã, porque se pensou o dia inteiro na felicidade e na alegria em ter ganho uma fortuna.

Com a devida reverência aplicada à comparação, poder-se-ia dizer que a tristeza causada pelos homens em Deus seria pequena perto de sua infinita jubilação. Isso se explica  da seguinte maneira: Deus ama os homens com amor infinito, e por causa disso Ele quer ter o amor dos homens. Um amor deseja a paga, a retribuição, e quando não é  retribuído sofre de um padecimento tão profundo, que chegava a penalizar desta maneira o Verbo de Deus encarnado. Ele possuía um conhecimento direto, imediato de  todas as coisas. Olhava para todos os homens e conhecia – nem sei se se pode chamar discernimento dos espíritos – os estados de espírito deles.

Ponto de gravidade em torno do qual todos os homens devem girar

Deus via essa atitude dos homens que era de não O amarem: o povo eleito voltado completamente para as abominações que conhecemos; os outros povos para idolatrias e  pecados que enchiam todo o mundo de então. E Ele se sentia não retribuído no seu amor infinito, que não é o sentimento comum, por exemplo, de um professor que se  dedica muito aos alunos e vê que estes não reconhecem.

É uma coisa muito diferente. Sendo Deus, Ele era infinitamente digno do amor dos homens; e estes, recusando o amor do Redentor, ficavam péssimos, totalmente  recusáveis, porque o ponto de gravidade em torno do qual todos os homens, e cada homem em concreto, devem  girar é Ele, que é infinitamente bom, infinitamente santo, e  em função do qual todos nós devemos fazer gravitar a nossa vida. Ele é o Astro divino, o Sol divino. Nós somos os planetas que satelitizam em torno do Sol, e não olhamos  para Ele, nem queremos olhar. Vendo assim as criaturas que Nosso Senhor ama tanto, chega a causar n’Ele essa tristeza.

É uma tristeza por ver a falta de virtude; dos homens o Criador só quer virtude. O homem pode ter o que quiser, se não possuir virtude, por assim dizer, não interessa a Deus. E se Ele toma posição face ao homem é apenas com desejo de que se torne virtuoso e semelhante a Deus para se amarem. Ele rejeitado, a sua tristeza enche a Terra, mais ou  menos como  a luz do luar cobre de tristeza o céu.

Devemos querer que tudo seja semelhante a Jesus Cristo

Isto é um dos traços da divina seriedade de Nosso Senhor Jesus Cristo. E nós vamos ver que os Apóstolos, os mais chegados a Ele, antes de Pentecostes estavam cheios de  coisas destas.

Prestavam atenção em coisas terrenas, humanas, e tendo entre eles Nosso Senhor Jesus Cristo, levaram um tempo enorme para perceber e reconhecer que Ele era o  Homem-Deus, simplesmente porque não tinham apetência daquelas virtudes, não as amavam, e por isso seu entusiasmo não era ascendente, alpinístico, não escalava os cumes. Mas era um entusiasmo dos charcos, dos pântanos. Por exemplo, quando os Apóstolos caminhavam com Jesus para o Horto das Oliveiras, é possível que Ele os tenha  repreendido, dizendo: “Daqui  a pouco iremos orar e vocês vão dormir, enquanto o Filho de Deus começará a padecer.” Naturalmente, os Apóstolos, ligados a   brincadeiras e coisas semelhantes, dormiram. Depois, o resto nós conhecemos… Vamos transladar isso para nós.

Somos meras criaturas. Não temos, portanto, a união hipostática com Deus, mas fomos batizados e em consequência do Batismo começou a viver em nós a graça, que é uma participação criada na própria vida incriada de Deus. E há alguma coisa que não deixa  de ter vaga semelhança com a união hipostática. Nós somos os templos do Espírito  Santo. Isto posto, a grande preocupação nossa na vida é de notar na Igreja Católica, nos  Santos que Ela gerou, nos seus Institutos, nas páginas luminosas de sua História, aquilo que é santo e, portanto, lembra a Deus, a Nosso Senhor Jesus Cristo, porque nós amamos o que é parecido com Ele. Isso é o mais importante de nossa existência, como para Ele o centro da vida terrena era viver  na união hipostática e querer que os   homens recebessem a graça e O adorassem como Homem-Deus.

E, portanto, a nossa grande alegria – se somos fiéis ao nosso Batismo e coerentes na nossa Fé – deve ser ver que os homens estão amando Nosso Senhor, e que tudo no  mundo se passa de acordo com o Espírito, a Lei d’Ele, como se Jesus estivesse presente. Não queremos para nós outra coisa: que tudo seja semelhante a Ele.

Devemos ter um fundo de seriedade luminosamente triste

Sem dúvida, eu admiro Paris, descontados todos os aspectos mundanos. Porém, se me dessem para escolher entre viver naquela cidade, onde o pecado deixou tantas marcas e o amor de Deus algumas coisas tão maravilhosas – a Catedral de Notre-Dame, por exemplo –, ou numa localidade habitada pelo povo mais vulgar, mais desvalido, mais inculto da Terra, mas onde todos  amassem verdadeira e sinceramente a Deus, eu preferiria viver naquele povo, e sairia de Paris voando.

Porque, embora Paris seja tudo quanto é, e Notre-Dame signifique tanto para mim, prefiro ver almas e não apenas pedras, inteiramente segundo Deus, que amam o Criador em espírito e verdade, e tratando com elas tenho a impressão fundada e viva de discernir o Espírito Santo presente em cada uma. Por isso, quero ir para lá ainda que as  pessoas só usem uns tecidos grosseiros feitos de palmeira, comam apenas uns peixes ordinários que se pescam no rio local. Se nelas estais Vós, meu Senhor e meu Deus, é lá que eu quero estar!

Não sei se cada um de nós teria a mesma reação, e se faz assim de Deus o sol de sua própria seriedade.

Mas o fato concreto é que na alma do católico deve haver um fundo de seriedade, vaga e luminosamente triste pelas condições abjetas, altamente censuráveis do mundo  contemporâneo. Nós devemos nos sentir censurados, rejeitados, detesta odiados, e – oh, dor! – não porque é nossa pessoa, que pouco vale, mas porque rejeitam o Espírito  Santo que está em nós, recusam em nós a condição de membros do Corpo Místico de Cristo, que é a Santa Igreja Católica Apostólica Romana.

Se conhecessem os meus defeitos e me rejeitassem por essa causa eu os amaria, mas eles têm conhecimento de minhas qualidades e me recusam; então eu me sinto rejeitado no que é mais internamente  meu, naquilo por onde sou mais eu e pertenço a Nosso Senhor como ente batizado e que tem Fé, membro da Santa Igreja Católica. E então há em mim um fundo constante de tristeza, de seriedade triste.

Em Jesus, a seriedade não excluía, por exemplo, que Ele fosse de vez em quando à casa de Lázaro para tomar alguns dias de sossego, de tranquilidade, de bem-estar, de sentir o amor por Ele. Santa Maria Madalena O adorava, como sabemos, Marta O queria, Lázaro O amava e isso Lhe enchia a alma. Mas por toda parte, assim como a lua acompanha os passos do homem que anda pela noite, via-se a tristeza enluarada: “Os homens não querem a Mim porque não amam a Deus. Isto é uma espada que Me vara de alto a baixo.”

Gemidos de Jesus por causa de nossa indiferença

Se nós, uns nos outros, procurássemos apenas o amor de Deus e nos regozijássemos sempre, pensando nesse amor que há em nós, e quando notássemos em alguém uma falta de amor de Deus nos entristecêssemos, como Nosso Senhor, de uma tristeza cheia de amor, de vontade de extravasar- se para aquele a fim de trazê-a Deus; se assim   agíssemos, como a atmosfera em nossas Sedes seria, então, mais próxima do ideal de seriedade que tomamos quando nós participamos de um Retiro, como compreenderíamos mais completamente o que é a seriedade!

Não é porque desejamos que queiram odiassem, eu lhes oscularia as mãos e os pés e lhes agradeceria, porque  execro os meus defeitos. Mas essa gente, que tem a proibição de escrever o meu nome num jornal, odeia o que eu tenho de bom; isso me faz sofrer, me indigna. Não por mim, mas por Nosso Senhor, porque é Ele que estão rejeitando.

Aqui está a matéria-prima, a tintura- mãe de nossa seriedade. Entrando agora na Semana Santa,  contemplaremos as brutalidades, a injustiça, a crueldade que tiveram para com Ele, e teremos presente o tempo inteiro que fizeram isso por ódio à virtude que em Nosso  Senhor transparecia de um modo tão magnífico.

De maneira que, por exemplo, se algumas pessoas chegassem perto do lugar onde Jesus estava sendo flagelado, ouviram lancinantes gritos de dor d’Ele. Mas esses gritos eram mais  harmoniosos e mais bonitos que os sons de qualquer orquestra, mais atraentes que as exclamações de qualquer orador, por mais famoso que fosse.

Ele naquela púrpura de seu sangue, jorrando sobre todo o seu Corpo sagrado, era mais majestoso do que um rei na púrpura de seu manto real. Os carrascos viam isso e O  flagelavam porque queriam a vulgaridade, a indecência, a imoralidade. Então mais flagelavam, e Jesus gemia. Gemia por seu Corpo sagrado – um homem geme quando  sente isso –, porém muito mais por causa das almas tão ruins que O açoitavam, como Ele via o que aconteceria até o fim dos séculos.

Nosso Senhor nos olharia passando a  Semana Santa indiferentes aos gemidos, às dores d’Ele, e diria: “Até vós, a quem Eu chamei para um amor especial? Vós ouvis os meus gemidos, Me contemplais coroado de espinhos, como em outros episódios da minha Paixão, e também sois indiferentes!” E Jesus dando brados e gemidos por causa de nossa indiferença.

Maria Santíssima, fixai em mim as chagas do Crucificado!

Pensem na tristeza de Nossa Senhora diante disso. Provavelmente Ela sofria porque tinha algum conhecimento do que se passava com Jesus. Em suas santas intuições,  contemplando cada brado, cada gemido d’Ele, cada pedaço de carne que os açoites arrancavam e jogavam no chão – a união hipostática continuava com aqueles pedaços de  carne –, Ela, completamente transida de dor, sabia como seria a nossa Semana Santa. Quantas vezes, no lugar onde deveria estar o amor a Ele está o amor a outras coisas, ou quiçá a outras pessoas. Para pegar exemplos que não sejam amizades e afetos de si pecaminosos, suponhamos um amigo de quem gostamos porque é engraçado; de outro  porque é prestigioso e nos prestigia; de um terceiro porque nos admira. São essas as razões pelas quais se deve gostar dos outros, ou é porque eles se parecem com Nosso Senhor?

São Tiago era, por uma razão natural de parentesco intencionada por Deus, muito parecido com Nosso Senhor. De maneira que quando os algozes tiveram medo de errar na escolha e pediram para Judas indicar quem era, ele disse: “Aquele que eu oscular, esse é o Homem” (cf. Mt 26, 48).

Por isso, após a morte de Nosso Senhor havia quem percorresse distâncias enormes para ver o Apóstolo que se parecia com o Redentor. Ora, nós temos a Ele presente na  Sagrada Eucaristia… É Semana Santa. O que fazemos? O que isso arranca de nossas almas? Nós rezamos a Nossa Senhora pedindo- Lhe que ponha em nós as disposições de  alma d’Ela para vivermos a Semana Santa como deveríamos viver?

Há um hino da Liturgia que diz: “Sancta Mater, istud agas, crucifixi fige plagas” – Santa Mãe, fazei isso, prendei em mim as chagas do Crucificado. Isso nós deveríamos  afirmar durante  a Semana Santa. E quando chegar as três horas da tarde de Sexta-Feira Santa e adorarmos a Nosso Senhor na Santa Cruz, pensemos na seriedade e  procuremos sentir fixas em nós as chagas do Divino Redentor. Então peçamos a Nossa Senhora que faça de nós homens que vivam da tristeza de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 29/3/1988)

Revista Dr Plinio 240 (Março de 2018)

 

 

O perigo começa com a vitória! – II

Após analisar a primeira fase medieval, Dr. Plinio nos mostra como, a partir de um relaxamento, operou-se a corrupção da sociedade.

 

Dessa primeira fase em que a Idade Média se revela ainda ponderada, equilibrada, passamos para uma época em que os prazeres se vão acentuando. São ainda honestos, legítimos e até equilibrados. Há, porém, uma sede de prazer que se vai tornado progressivamente acentuada. Numa terceira etapa notamos todo o corpo social da Idade Média já deteriorado.

Tratava-se de um relaxamento e não uma deliberação explícita em fazer o mal

É uma espécie de febricitação, de agitação, de delírio, que já define bem o século XV, fazendo com que muitas pessoas do tempo pensassem que o mundo iria acabar.

Nota-se, então, a passagem sucessiva de um apogeu para um estado de decadência. O ponto de partida foi seguramente a falta de cuidado, a falta de prevenção. Uma atitude despreocupada da Cristandade Medieval foi a causa da decadência.

Despreocupação esta que se caracterizava pela excessiva confiança em si mesmo, julgando haver na própria sociedade medieval raízes e lastros de virtudes suficientes para se eliminar qualquer preocupação.

Não se pode, entretanto, afirmar que havia má intenção nesta atitude. Tratava-se apenas de um relaxamento e não de uma deliberação em praticar o mal. Nessa fase de afrouxamento do modo de viver, a Idade Média até nos impressiona pelo que tem de temperante, de digna, de nobre, mesmo nos seus prazeres.

Note-se que isto não é uma afirmação, não é uma tese que venha acompanhada de documento, mas uma hipótese baseada em alguns conhecimentos. Mas, quando formulamos esta hipótese os fatos se alinham de tal maneira que tudo se torna claro. Assim sendo, os acontecimentos ficam arquitetonicamente explicados.

Está na substância da santificação o desejo da cruz

É necessário considerar que isto não se refere a desvios existentes, mais ou menos excepcionais, embora até profundos. Encontramos na Idade Média fenômenos marginais, como as heresias, mas que não são a Idade Média; casos de satanismo, mas que não são a Idade Média; um imperador que é até arabizante e muçulmanizante, mas isto também não é a Idade Média. É a doença inteira do corpo social que estou procurando descrever, e não apenas certas chagas.

Isto interessa muito aos contrarrevolucionários, sobretudo tendo-se em vista o Reinado do Imaculado Coração de Maria conforme sua promessa em Fátima: “Por fim o meu Imaculado Coração triunfará”.

Estes princípios são tão verdadeiros que se aplicam até aos fenômenos de vida espiritual dos contrarrevolucionários de hoje. Em virtude de quase todos os ambientes atualmente estarem, uns mais outros menos, impregnados do espírito revolucionário, quando uma alma ao converter-se torna-se contrarrevolucionária, entra em uma fase de lutas e enormes provações.

Há depois, uma segunda fase, de estabilização, em que tudo se torna menos árduo e mais fácil. Esta é a fase perigosa. Não se devem temer tanto as lutas de conversão como as batalhas de segunda fase, porque é aí que vem a tentação de se viver sem preocupações dentro da virtude, o que significa abandonar a virtude e viver fora dela. Está na substância da santificação o desejo de cruz.

As várias etapas da decadência medieval

A primeira das várias etapas da decadência se caracteriza pelo agradável-bom que se acentua demais, mas ainda honesto, nobre e equilibrado. É exemplo disto o traje feminino habitual na Idade Média. Era lindíssimo, com os belíssimos chapéus de cone com véus pendentes, ou em forma de gomos, com uma coroa. É algo de muito nobre e bonito, e também muito calmo e repousante. Toda a arte medieval produz uma sensação muito agradável.

O agradável encontra sua melhor expressão no Gótico “Flamboyant”. Mas o “Flamboyant” vai invadindo todos os campos, e em vez de ser apenas um agradável-bonito para a sala de visitas, passa a ser a nota dominante em quase todos os ambientes.

Tudo piora sensivelmente a partir do momento em que o agradável se torna ilícito e, portanto, imoral. O mesmo se dá na literatura de Cavalaria e em inúmeros outros setores da vida medieval.

Para se analisar como a crise se generalizou no corpo da sociedade medieval, é necessário ver as profundidades dessa crise. Por profundidade entendemos as várias camadas dessa sociedade; a mais baixa, a do povo, constituía a última profundidade. A mais elevada seriam as cortes.

A corrupção da sociedade a partir das elites

Antes de prosseguirmos, seria conveniente lembrar um princípio.

Ao analisarmos alguém de personalidade encontramos — sobretudo caso se trate de um liberal — várias personalidades conjuntas que entram numa espécie de diálogo. Há num mesmo homem o monarquista e o republicano, o católico e o protestante. É o princípio das várias personalidades opostas, estabelecendo um diálogo interno, e que se dá na vida espiritual de um homem.

Na Idade Média o princípio do diálogo interior entre várias personalidades dava-se conforme as classes sociais. Esse processo de deterioração começou com os mais ricos e poderosos.

O fenômeno é mais evidente nas cortes reais, e mesmo em certas cortes principescas tão altas quanto as cortes de reis. Começa-se então uma vida de extravagância. A metástase, à maneira de câncer, foi se dando, de “proche en proche”(1), para as demais classes sociais.

A corte corrompe a média nobreza, que por sua vez corrompe a pequena. A alta burguesia, sempre a primeira a corromper-se com os reis, deteriora a média burguesia e a pequena. Este processo é lento, mas terrivelmente eficaz.

Houve tempo, na Idade Média, em que se nota muito claramente este fenômeno de corrupção nos altíssimos letrados, nos altos aristocratas, nos altíssimos argentários, e mesmo no mais alto clero.

Há, no entanto, correntes de opinião e umas tantas classes sociais que constituem centros naturais de resistência. É o que se passou com o movimento humanista e renascentista, que tanto floresceu entre os altos intelectuais, mas que encontrou focos de resistência nas universidades, a tal ponto que estas durante muito tempo ficaram à margem do movimento novo, apegadas às fórmulas antigas.

Entre as camadas inferiores do povo a corrupção é muito mais lenta, havendo muita resistência. Mas esta resistência sofre um processo de degradação que se delineia mais ou menos da seguinte maneira: inicialmente há uma indignação e resistência profunda à deterioração; a seguir, uma contemporização, apesar da não adesão e até da resistência; por fim, tolerância indiferente seguida de admiração, inveja e adesão ao processo que já estava vitorioso há muito tempo nas camadas superiores da sociedade.

A decadência deveu-se à tolerância dos bons

Quando estudamos o problema da decadência da sociedade medieval, ocorre-nos uma indagação no sentido de saber por onde ela se vergou à Revolução.

Muitos afirmam que a decadência coube aos reis e ao clero, que deram o passo inicial. Há outra teoria, mais simpática, que é a de que tudo foi possível a partir do momento em que a resistência deixou de ser caracterizada por uma intolerância agressiva, indignada e militante. Só a reação enérgica é capaz de deter o progresso do mal. O mais lamentável não é que os maus sejam audaciosos, mas que os bons não lhes oferecem a intolerância e resistência que eles demonstram para com o bem.

Se alguém denuncia publicamente o mal praticado pelos revolucionários, algo se lhes atrapalha, ainda que eles não queiram. E é esta espécie de atrapalhação interna, que produz o estertor dos revolucionários. Poucos têm coragem para argumentar contra quem lhes denuncia. E vence quem argumenta com mais intolerância, no sentido mais profundo da palavra. Pode-se, em certo sentido, dizer, sob este aspecto, que tudo depende inteiramente da intolerância.

O mal começa a vencer quando os bons deixam de ter essa intolerância ousada e triunfante.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de maio de 1959)

 

1) Pouco a pouco.

 

Paixão de Cristo

Embora fosse infinitamente superior aos homens, Nosso Senhor Jesus Cristo chegou ao extremo de receber todos os ultrajes que Lhe foram feitos em sua Paixão, com imensa doçura.

Assim sua superioridade tornou-se não apenas régia, mas, por essa doçura, digna de ser amada. É uma elevação enquanto corolário da misericórdia, consentindo em colocar-se num plano indizivelmente menor, por amor àqueles que Lhe são inferiores.

Plinio Corrêa de Oliveira, 18/10/1989

De pé, como uma tocha de esperança

Na hora do Gólgota, no momento mais trágico que houve e haverá na existência da humanidade, Nossa Senhora permaneceu fiel. Não se entregou, não fraquejou, não traiu, não recuou.

E continuou de pé como uma tocha de oração e de esperança. Maria permanecia ereta, em toda a força de seu corpo e de seu espírito, com os olhos inundados de lágrimas, mas com o coração inundado de luz. Possuía a Fé inabalável, a certeza inamovível de que, após a grande tragédia, depois do abandono geral, viria a aurora da Ressurreição, viria o alvorecer da Santa Igreja Católica, Apostólica, Romana, nimbada de glória a partir de Pentecostes. E de que, de cruzes em luzes, de luzes em cruzes, o mundo chegaria até o momento que em Fátima Ela prenunciou: “Por fim o meu Imaculado Coração triunfará!”

 

Plinio Corrêa de Oliveira

Uma devoção da cristandade…

Nosso Senhor Jesus Cristo morreu numa sexta-feira e ressuscitou num domingo. Ambos os dias foram-Lhe especialmente consagrados, de modo que, semanalmente, relembram a Paixão e a Ressurreição do Senhor. Porém, entre estes dias há outro: o sábado. Como faria a civilização cristã para solenizar este dia posto entre duas datas tão sublimes?

 

Na Idade Média, sob o impulso dos monges cluniacenses, o sábado passou a ser consagrado a Nossa Senhora. Mas, por que razão a piedade católica instituiu esse costume?

A Ressurreição

Embora os Apóstolos tivessem um misterioso instinto de que a história de Nosso Senhor não podia estar concluída e que a última palavra ainda não fora dita — caso contrário haveriam se dispersado —, eles ainda não tinham atinado com a ideia da Ressurreição.

Não concebiam eles que Quem ressuscitara Lázaro — fato que eles puderam comprovar —, ressuscitar-se-ia a Si próprio; não imaginavam que Nosso Senhor aceitaria o desafio lançado pelo mau ladrão crucificado a seu lado: “Se és o Cristo, salva-te a ti mesmo!”(1). Cristo fez muito mais do que descer da Cruz e curar-se a Si próprio: Ele consentiu em morrer para depois ressuscitar-Se.

De fato, a Ressurreição é algo tão extraordinário e miraculoso, que o espírito humano é propenso a sequer imaginá-la. Pois, se um vivo ressuscitar um morto é incomum, quanto mais o é um morto voltar à vida por suas próprias forças, sair dos abismos da morte e dizer a seu corpo: “Levanta-te!”… Esta é uma espécie de vitória dentro da vitória, de esplendor dentro do esplendor, que o espírito humano não pode sequer imaginar.

A Fé da Santíssima Virgem sustentou o mundo

Porém, havia alguém que possuía plena certeza na Ressurreição de Jesus: Maria!

No sábado que precedeu a Ressurreição de Nosso Senhor, somente Nossa Senhora, em toda a face da Terra, teve uma Fé completa e sem sombra de dúvida na Ressurreição. Ela possuía uma certeza absoluta, uma expectativa imensamente dolorida por causa do pecado que havia sido cometido, mas imensamente calma, com a certeza da vitória que se aproximava.

A cada minuto que passava, de algum modo a espada da saudade e da dor penetrava ainda mais seu Coração Imaculado. Mas, de outro lado, havia a certeza de uma grande alegria da vitória que se aproximava. Esta concepção inundava-A de consolação e gáudio.

Maria Santíssima, nesta ocasião, representou a Fé da Santa Igreja e, por assim dizer, sustentou o mundo, dando continuidade às promessas evangélicas, pois, se não houvesse Fé sobre a face da Terra, a Providência teria encerrado a História.

Maria foi a Arca da Esperança dos séculos futuros. Ela teve em Si, como numa semente, toda a grandeza que a Igreja haveria de desenvolver ao longo dos séculos, todas as promessas do Antigo Testamento e todas as realizações do Novo; tudo isto viveu dentro da alma de Nossa Senhora.

Podemos até nos perguntar se este episódio não foi mais bonito do que quando a Santíssima Virgem trazia o Messias em seu seio. Numa ocasião Ela gestava o Messias e carregava dentro de Si a salvação do mundo inteiro; noutra, tinha Ela em Si a Santa Igreja Católica Apostólica Romana, portanto, o Corpo Místico de Cristo.

É à noite que é belo acreditar na luz

Na obra Chanteclair, de Edmond Rostand, há uma linda frase: “É à noite que é belo acreditar na luz”.

Que mérito há em acreditar na luz ao meio-dia? Mas, acreditar na luz à meia-noite, ou mais ainda, às três horas da manhã, quando até a própria meia-noite já vai longe, tem-se a impressão de que o curso das coisas nos afundou nas trevas definitivamente; aí é que é belo acreditar na luz.

Ora, Nossa Senhora acreditou na luz durante a terrível meia-noite da morte de seu Filho. Apesar de presenciá-Lo “rompu, brisé, anéanti”(2), Ela não teve dúvida nenhuma.

Quando Jesus morreu e Nossa Senhora teve seu divino cadáver no colo, Ela fez um tranquilíssimo ato de Fé, dizendo: “Apesar destas chagas e desta morte estraçalhante, Ele ressuscitará! Eu creio porque Ele prometeu!”

Este foi, sem dúvida, um dos mais belos momentos da vida d’Ela.

A fidelidade de Maria fez-Lhe merecer, até o fim do mundo, ser lembrada especialmente aos sábados

Compreende-se assim, com que tato a Igreja escolheu para festejar Nossa Senhora este dia que lembra exatamente a hora trágica da dúvida e do abandono de todos.

No sábado, Jesus estava na sepultura, cheio de perfumes e de aromas, envolto no sudário. O sepulcro estava selado por uma enorme lápide e guardado por soldados. Para todos estava tudo acabado, exceto na alma d’Ela, onde uma tocha de Fé e de convicção ardia com a certeza de que Ele ressuscitaria.

Este é o Sábado Santo, dia especialmente consagrado a Nossa Senhora.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 19/11/1971)

 

1) Lc. 23, 39.
2) Roto, quebrado e aniquilado.

Santa Maria Madalena: fruto da penitência e do desapego!

Estando profundamente arrependida, Santa Maria Madalena perdeu o apego às coisas da Terra que lhe foram ocasião e motivo de pecado, e voou à contemplação.

Meditando na vida da Santa Penitente, Dr. Plinio põe-se a seguinte interrogação: existirá alguma correlação entre espírito de contemplação, espírito de arrependimento, e desprendimento das coisas desta Terra?

 

Santa Maria Madalena mereceu ser a primeira pessoa a contemplar o Salvador ressuscitado.

No famoso episódio do banquete, em que Maria Madalena — tudo leva a crer que dela se tratava — ungiu os pés de Nosso Senhor, há aspectos colaterais os quais nos fornecem algumas perspectivas da alma e da vida dela, bem como de sua posição no firmamento da Igreja, que seria o caso de comentarmos.

Contemplação e penitência

Ela era irmã de Lázaro, o qual segundo a tradição, pertencia à alta sociedade porque era um homem muito rico. Portanto, Lázaro e suas duas irmãs eram pessoas de alta categoria, mas Maria Madalena havia decaído muito e se tornara uma pecadora pública.

Depois do seu arrependimento, Santa Maria Madalena passou a representar duas coisas que se tornaram claras: de um lado a contemplação, e de outro a penitência.

Ela se diferenciou de Marta, no célebre episódio em que Nosso Senhor disse a esta última — que censurava Madalena porque não estava se ocupando das coisas da casa, mas se limitava a olhar para Ele e ouvi-Lo —: “Marta, Marta, Maria escolheu a melhor parte, que não lhe será tirada!”(1)

A partir de então, Santa Maria Madalena representou o estado puramente contemplativo, destacado da vida ativa. E, pelo seu grande arrependimento, pela sua fidelidade ao pé da Cruz, e pelo fato de ter sido a primeira que teve notícia da ressurreição do Redentor, ela passou a simbolizar não apenas a contemplação, mas a penitência, a penitência na sua glória, no estado do maior perdão e da maior intimidade com Nosso Senhor.

Com o exemplo da vida dela, e de outros santos, alguns teólogos pretenderam que o estado de penitência séria, profunda, é mais bonito que o estado de inocência.

Judas, o oposto de Santa Maria Madalena

Em terceiro lugar, ela representou também a afirmação dos direitos da inocência e dos direitos de Nosso Senhor.

Em que sentido?

Todos se lembram deste fato: estando o Divino Salvador em Betânia, foi oferecida uma ceia em sua honra. Madalena entrou e, quebrando um vidro de perfume, começou a ungir os pés de Nosso Senhor. Judas censurou-a a esse respeito, mas o Redentor justificou a atitude dela(2).

Vemos aí a penitência, juntamente com a contemplação, numa espécie de irredutível oposição ao espírito sem nenhum arrependimento de Judas. Este, em vez de arrepender-se, caiu no desespero, como mostra o ato pelo qual ele se enforcou na figueira.

Enquanto ela, como contemplativa e penitente, representava a renúncia aos bens da Terra, Judas, como ladrão, traidor — e traidor por dinheiro —, simbolizava o apego aos bens deste mundo.

Dois itinerários que se cruzaram

O que pode ter levado esse miserável a ter tanto apego ao dinheiro? Um apego que naturalmente chegou ao ódio ao Redentor, porque ninguém faz uma traição como aquela, apenas por lucro, sem ódio; no fundo, um ódio que domina o próprio espírito de lucro. A roubar as esmolas coletadas para os pobres? Ele que era o defensor dos direitos dos pobres, na hora em que se verteu o perfume nos pés de Divino Mestre… Ao desejo de se tornar rico, para ter uma carreira colateral à de apóstolo, e ser um homem considerado importante naquela sociedade de Jerusalém, julgando que ele perdia algo de sua carreira humana seguindo a Nosso Senhor Jesus Cristo, a quem os fariseus desdenhavam como um homem sem importância?

Judas fez tais coisas porque, quando ele estava junto a Nosso Senhor e ouvia as prédicas e assistia aos milagres do Divino Mestre, o seu espírito saía de lá e começava a pensar em Jerusalém, nas suas praças ou no Templo, onde ficavam os tão “finos, simpáticos e inteligentes” fariseus.

Porque não se reteve nas contemplações do Redentor e começou a aspirar às coisas do mundo, ele caiu em pecado. E esse pecado, chegando até o extremo, o conduziu ao desespero: Judas então se enforcou na figueira maldita.

Podemos admitir a possibilidade de que, em determinado momento, Judas esteve em estado de graça e Maria Madalena em pecado mortal. Ela saiu do pecado, para subir a um alto grau de virtude, e ele desceu da condição de apóstolo, para a qual tinha sido convidado por Nosso Senhor — houve, portanto, uma hora em que o Redentor não só o amou, mas o amou até o fim, e Judas amou a Nosso Senhor —, ele desceu desta condição, para ser o vendilhão do Salvador.

Vemos assim quanto pode subir uma alma que está no lodo, e quanto pode cair uma alma chamada para o que há de melhor. Foram dois itinerários que se cruzaram; é uma coisa que nos arrepia, enche de terror.

Santa Maria Madalena e Judas; espírito de Jacó e de Esaú

A oposição das figuras de Santa Maria Madalena e de Judas torna-se tão flagrante que vai até ao Calvário e à Ressurreição.

Ela estava ao pé da Cruz, e ele, o apóstolo maldito, o homem execrando, foi quem encaminhou Nosso Senhor para a Cruz. Santa Maria Madalena é a primeira a presenciar a Ressurreição, enquanto ele se enforca e sua alma cai porcamente no Inferno.

As antíteses entre um e outro estado de alma são tremendas; os espíritos são diferentes. Compete-nos fazer uma análise dos traços desses espíritos.

Que nexo há entre arrependimento, pura contemplação e desapego dos bens do mundo, de um lado; e de outro lado, impenitência final, desespero, apego aos bens do mundo, enchafurdamento na vida prática, ativa, como fazia Judas, homem que naturalmente roubava e fazia negócios desonestos? Que paralelismo existe entre uma coisa e outra?

Há algum tempo tratei neste auditório a respeito de Esaú e de Jacó, e falei sobre o espírito de ambos.

Santa Maria Madalena nos afigura como quem teve o espírito de Jacó. Quer dizer, espírito superior, voltado para as coisas elevadas, portanto para Deus, e indiferente às coisas materiais do mundo.

Judas é o tipo do Esaú. Mais do que vender o direito de primogenitura por um prato de lentilhas, ele vende seu Salvador por trinta dinheiros, o que é muitíssimo pior. E não teve verdadeiro arrependimento, porque nele não havia mais nenhuma forma de virtude sobrenatural. Fracassou totalmente, caiu no desespero e suicidou-se.

Contemplação nascida da penitência e do desapego

Então, que nexo existe entre estas três coisas: o espírito de contemplação, o espírito de arrependimento, e o desprendimento das coisas desta Terra?

É fácil compreender, pois uma pessoa, de qualquer um desses pontos parte para o outro. Estando profundamente arrependida, com arrependimento eficaz, ela perde o apego às coisas da Terra que lhe foram ocasião e motivo de pecado; e, tendo esse desapego, facilmente vai para a contemplação. A pura contemplação e a renúncia das coisas devido às quais ela pecou, levada ao último extremo, são o próprio da penitência. Quem pratica a verdadeira penitência não se limita a separar-se daquilo que o conduziu ao pecado; ele o execra. E por isso coloca, entre aquilo por onde pecou e si mesmo, a maior das distâncias.

Para praticar essa penitência tão grande, convinha a Santa Maria Madalena separar-se completamente do mundo. E não ficar apenas no estado de uma vida contemplativa e ativa, mas levar vida puramente contemplativa, em que tudo foi abandonado, e qualquer forma indireta de contato com a matéria execrada devido ao pecado foi também cortada; assim, não lhe restava outra coisa senão a contemplação. Contemplação que, nascida da penitência e do desapego, faz compreender a excelência das coisas do Céu, e que todas as coisas da Terra foram feitas para as do Céu. Portanto, era justo e bom derramar unguento nos pés sacrossantos de Nosso Senhor Jesus Cristo, mesmo quando houvesse pobre que precisasse de esmola.

A pecadora arrependida amava Nossa Senhora, e o traidor A detestava

Todos os que têm tratado deste particular dizem o seguinte: Judas com certeza não tinha devoção a Nossa Senhora. Se tivesse para com a Santíssima Virgem um mínimo de instinto filial, de simpatia, de amor, quando ele caiu inteiramente em si iria procurar por Ela; e ter-Lhe-ia pedido que arranjasse a situação dele. Mas Judas tinha antipatia por Nossa Senhora, e A detestava. O Evangelho diz, de modo taxativo, que o demônio tinha entrado nele. E o demônio afastava-o o quanto possível da Virgem Maria.

Qual o resultado? Ele não se dirigiu Àquela que é o canal das graças, e isto ocasionou a sua perdição.

São Pedro, depois de ter renegado Nosso Senhor, talvez tenha tido tentação de desespero. Mas é certo moralmente que ele procurou Nossa Senhora. Por isso, ele, que também tinha pecado muito, foi fiel, sendo o primeiro Papa da Santa Igreja Católica.

Santa Maria Madalena sempre aparece fazendo parte do cortejo da Santíssima Virgem, intimamente unida a Ela em todos os momentos, sobretudo na hora régia da vida de Nossa Senhora, quando Nosso Senhor Jesus Cristo, com dores indizíveis, disse “Consummatum est”.

Podemos imaginar Santa Maria Madalena junto a Nossa Senhora, na hora da piedade, quando  Mãe de Deus tinha Nosso Senhor Jesus Cristo sobre seu colo.

Naquele momento tremendo, Nossa Senhora ficou inteiramente abandonada: Nosso Senhor no sepulcro, o Colégio Apostólico vacilante, a cidade de Jerusalém entregue a terremotos, e os justos da Antiga Lei andando de um lado para o outro. A Santíssima Virgem, nessa situação tão pouco conhecida, estava completamente só.

Tenho a impressão de que não Lhe faltou a assistência de Santa Maria Madalena, a qual estava junto d’Ela. E porque permaneceu junto à Mãe de Deus, ela recebeu um rosário de glórias, cada uma mais extraordinária do que outra.

Quando vemos tudo isto, é impossível não estremecermos com a nossa própria fraqueza. Mas é impossível também que não nos sintamos concertados com este ponto: por mais fraco que o homem seja, desde que ele se apegue muito a Nossa Senhora, peça-Lhe muito por sua própria perseverança e para que Ela o ampare, nunca o abandone, ele encontra aí um ponto de firmeza, de solidez.

A última das pecadoras aproximou-se de Nossa Senhora e se tornou uma penitente gloriosíssima. Um apóstolo, que era distante de Nossa Senhora e frio para com Ela, tornou-se o filho da maldição e da perdição, que Dante coloca no Inferno dentro da boca de Satanás, com as pernas para fora, o eternamente triturado. Enquanto que podemos imaginar, no Céu, Santa Maria Madalena posta bem perto do Sagrado Coração de Jesus e do Imaculado Coração de Maria, agradecendo os favores imerecidos de que ela foi repleta. 

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 22/7/1965)

1) Lc 10,42.
2) Cf. Jo 12,1-8.