Numa piedosa imagem de Nosso Senhor flagelado, chama muito a atenção a sublimidade do olhar, no qual transparece o sofrimento intenso do Divino Salvador, que medita com profundidade a respeito do significado transcendente, metafísico, sobrenatural de todas as dores pelas quais passa. O Redentor divide a História entre os que são d’Ele e os que são contra Ele.
Tenho a intenção de comentar uma imagem de Nosso Senhor Jesus Cristo flagelado. Dizer dessa imagem que é bonita é muito pouco, porque mais do que isso é profundamente impressionante, e de molde a despertar muita piedade. E é enquanto tal que desejo fazer dela objeto de nossas considerações.
Significado transcendente, metafísico, sobrenatural das dores
À primeira vista, quando me foram apresentadas fotos dessa imagem, fiquei chocado porque as feridas do Corpo sagrado de Nosso Senhor Jesus Cristo estão apresentadas com um tal realismo e de modo tão brutal, que o instinto de conservação do homem clama com aquilo, tem a tendência a fugir e achar que não é arte representar um horror daqueles de um modo tão horripilante.
Esse é um primeiro impulso que deve ser dominado porque é uma ingratidão. Tal será que, tendo Nosso Senhor Jesus Cristo sofrido tudo o que padeceu por nós, não queiramos sequer olhar para o Corpo chagado d’Ele porque isso pode nos desagradar. Como um primeiro impulso se compreende, pois é uma reação quase física. Porém, haveria ingratidão em consentir nesse impulso. Além de ingratidão é uma falta de respeito sem nome!
Compreende-se, então, que o escultor tenha chegado a esculpir de modo tão terrivelmente realista essa imagem, a qual pareceu-me ser uma escultura espanhola, com aquele realismo próprio das imagens sobre a Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo, e que deveria datar de fins do século XVIII, mais provavelmente do século XIX. Soube depois que ela se encontra no Canadá.
Consideremos, nas seguintes fotos, alguns aspectos dessa imagem.
Algumas coisas me agradam extraordinariamente nessa figura. A primeira delas que me chama mais a atenção é o olhar profundamente pensativo, meditativo. Tenho visto incontáveis crucifixos em que Nosso Senhor parece abismado – aliás, santamente – na consideração da sua própria dor, e onde o artista procura atrair a atenção para os sofrimentos do Divino Crucificado a fim de provocar compaixão. Nesses crucifixos o próprio olhar do Redentor, muito legitimamente, parece perguntar: “Pelo menos nesta dor, tu não tens pena de Mim?”
Porém, aqui eu interpreto o olhar de outra maneira. É bem verdade que a dor está presente. É o olhar de uma Pessoa que sofre intensamente, mas, por cima da dor, nota-se que há uma reflexão profunda, consternada de Quem pensa profundamente a respeito do que Lhe está acontecendo, do significado transcendente, metafísico, sobrenatural de todas as dores pelas quais Ele está passando, e que constitui propriamente uma meditação.
Nosso Senhor enquanto pedra de escândalo
É uma meditação sobre a sua própria Paixão, como Ele gostaria que nós fizéssemos e que, segundo interpreto olhando a Face sagrada, parte do mais alto ponto de consideração em que uma mente humana possa se colocar. Mas é, ao mesmo tempo, uma reflexão que vai até o mais concreto, palpável, miúdo, o mais distante da transcendência, e une tudo numa vista em comum, numa consideração global não só do que fazem contra Ele, mas também do que realizam por Ele.
De maneira que estão contemplados não apenas os homens vivos nessa ocasião, mas todos os que ao longo dos tempos meditariam esse passo da Paixão e seriam frios, indiferentes, cruéis, ou O adorariam transportados de amor e admiração na consideração da situação em que Ele está.
Tudo isso é considerado, o que me faz lembrar a palavra do Profeta Simeão sobre Ele: Pedra de escândalo que dividiria os homens para a perda e a salvação de muitos, a fim de que se revelassem as cogitações de muitos corações (cf. Lc 2, 34-35). Quer dizer, dividindo, cindindo a História de alto a baixo em dois: os que eram d’Ele e os que eram contra Ele, salvando-se uns e perdendo-se os outros. Parece-me que essas considerações altíssimas, e outras ainda, estão expressas nesse olhar, que pousa ao longe, num ponto indefinido.
Entretanto, há uma altaneria na posição d’Ele pela qual, por mais que esteja alquebrado, não está arqueado. Pelo contrário, o tronco sagrado está ereto numa posição que se poderia chamar de nobre. A própria cabeça não está caída de modo desairoso, nem erguida de maneira arrogante, mas posta com uma naturalidade digna sobre o pescoço, e elevada como um Homem que está entregue às suas mais altas cogitações.
Notem a posição lindíssima dos dois braços. Dir-se-ia tratar-se de um personagem num ato de muito protocolo, de muita etiqueta. Nas cortes, muitas vezes o modo correto de postar os braços diante de um rei ou de uma rainha é esse. Assim está Ele.
No Corpo ferido pela flagelação vemos partes da carne sagrada intumescidas, algumas foram batidas e outras arrancadas. Embora esteja cercado por gente que ria d’Ele, Jesus não olha para essas pessoas, mas as transcende. Ele está infinitamente acima de tudo isso, entregue aos seus pensamentos, à sua oração. De tal maneira que se poderia colocar, entre os muitos títulos que essa imagem mereceria, a frase: “Iesus autem orabat”, como também “Iesus autem tacebat”(1).
Três aspectos do divino olhar
Observem como o manto da irrisão, apesar de tudo, cai composto, com a parte direita meio voltada para trás, indicando por esses discretos indícios a beleza e a força moral que não O abandonaram nem mesmo nas situações mais terríveis.
Creio ser este semblante a última expressão do comovedor. É Cristo enquanto pensando, refletindo, orando durante a sua Paixão. Julgo discernir nesse olhar três aspectos. Primeiro, muita dor física que se exprime aí, seguida de muita angústia diante do sofrimento que vem. É Alguém que está em pleno tormento e sente o tormento que ainda vem. Portanto, encontra-Se no auge do horror, em que Ele ainda não sofreu tudo, e a morte que o libertará está longe. Ele já sofreu tanto que perdeu toda a força para resistir; entretanto, ainda tem que aguentar enormemente. Há, por isso, uma ansiedade, uma angústia. Mas que angústia doce, suave, sem agitação, confiante! “Isto tem uma saída. Meu Pai atenderá minha prece, e Eu chegarei até o fim. Isto tem um sentido.”
Por outro lado, vê-se a tristeza profunda, mas uma tristeza moral, como que divinamente decepcionado com aqueles que O abandonaram. Não parece que o Divino Mestre Se lembra, nessa hora, não dos miseráveis que O estão chicoteando, mas dos Apóstolos que O deixaram? Ele parece estar revendo cada Apóstolo, um por um: pensando em São Pedro, sobre quem Ele construiu a Igreja; em São João, o Apóstolo Virgem, que horas antes ainda deitara a cabeça sobre o peito d’Ele para fazer uma pergunta na intimidade; em São Bartolomeu, de quem Ele mesmo disse que era um verdadeiro israelita no qual não havia fraude e que, entretanto, O abandonou também… Ele está pensando em todos os outros. E lembrando-Se com horror do filho da perdição que O vendeu, Ele está cogitando em todos aqueles que O trairiam ao longo dos séculos.
Entretanto, Jesus está pensando também em algo que O angustia enormemente, mas é magnífico: Nossa Senhora e a dor que Ela está sofrendo.
Porém, por cima disso, parece-me ver os olhos do pensador que está meditando, fazendo a Filosofia e a Teologia daquele acontecimento central da História, que é a sua Paixão e Morte. E contemplando tudo isso Ele está orando. A meu ver é manifesto haver dentro disso uma magnífica oração.
Nosso Senhor sofreu tudo isso pelos rogos de Maria
Quando uma pessoa pensa, costuma frequentemente formar um vinco precisamente nesse lugar da fronte onde, na imagem, sobressai uma vergastada profunda. A meditação do verdadeiro homem de Deus é muitas vezes acompanhada de dor, de tristeza e de amargura, faz sangrar a alma, se não o corpo, que envelhece, encanece, se consome, mas se eleva e se santifica.
Considerem no Corpo divino a tumefação do braço esquerdo: nem tem o contorno comum de um braço, mas está todo ele bailando em torno dos ossos. E esses braços ainda vão carregar a Cruz, essas mãos ainda serão cravadas no madeiro, até que Ele morra. Esta é a imensidade de tormentos que O aguarda depois de ter sofrido tudo isso.
Ali vemos amarradas as mãos sagradas do Onipotente. É bonito que o escultor as tenha apresentado inteiramente descontraídas; não há contração nervosa, mas estão como as mãos de um rei prontas para serem osculadas. É o Rei da dor.
Por nós, que somos escravos da Santíssima Virgem, essa imagem deve ser considerada de dentro dos olhos de São Luís Grignion de Montfort. Devemos entender que se Nosso Senhor sofreu tudo isso foi pelos rogos de Maria; se esse Sangue é aplicável a nós, é pelos rogos de Nossa Senhora; se nossa presença não causa horror a Ele, mas, pelo contrário, é aceita com misericórdia, é pelos rogos de Maria.
É com Ela, por Ela e n’Ela que nós podemos nos apresentar a Nosso Senhor Jesus Cristo. Maria Santíssima é o caminho necessário, por vontade de Deus, para nos aproximarmos de seu Divino Filho e sermos, não digo dignos, mas pelo menos de algum modo proporcionados para olhar essa figura, e pedirmos por nós e pela Igreja.
Considerações sobre o escultor da imagem
Agora, uma palavra sobre o escultor. A meu ver, esse homem fez uma coisa extraordinária no seguinte sentido: muitas vezes vemos em uma obra de arte a expressão da alma do artista que a produziu. Essa é uma qualidade, pois indica o modo pelo qual a pessoa exprimiu o que aquele tema lhe produzia no espírito. Contudo, muito mais bonito é quando o artista de tal maneira se deixa identificar com o tema, que a expressão de alma dele não aparece, e sim somente o tema. Nessa escultura não se sente o artista, mas apenas Nosso Senhor Jesus Cristo.
O artista de tal maneira viveu, por assim dizer, a dor de Nosso Senhor que ele O representa e se apaga. Não se percebe qual era o estado de alma dele, a não ser na extrema inteligência, propriedade, finura e, sobretudo, na extrema piedade com que ele apresenta a matéria; de resto, ele está ausente. Isso, a meu ver, é o auge do mérito dentro da obra de arte. v
Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 10/2/1976)
Revista Dr Plinio 265 (Abril de 2020)
1) Do latim: Jesus, porém, orava. Jesus, porém, calava.