Eminentemente contemplativo, Dr. Plinio discernia em uma imagem as virtudes do Sagrado Coração de Jesus, cuja consideração maravilhada levou-o, do desejo de uma vida deleitável na prática do bem, ao encanto pelo heroísmo e à luta contra a Revolução.
É conhecida a experiência pela qual, fazendo-se girar em alta velocidade um disco composto das cores do arco-íris, cria-se a ilusão de que o disco tornou-se branco. É inegável que o branco tenha sua beleza, como síntese e matriz de todas as cores.
As virtudes se relacionam entre si à maneira das asas de uma borboleta azul e prata
Entretanto, há outro modo das cores se inter-relacionarem que notamos, por exemplo, nas asas da borboleta azul e prata. Não que uma asa seja azul e outra prateada — seria um pesadelo —, mas, conforme o movimento da luz, o azul se transforma em prateado e o prateado em azul. De maneira que, por assim dizer, se teria a ilusão de que uma cor habita na outra.
O conjunto de verdades ou de virtudes numa alma só manifesta sua inteira beleza vista assim, na linha deste furta-cor do azul e prateado na asa da borboleta. Quer dizer, quando se olha uma virtude, de repente, fixando a atenção não apenas especulativa, mas também descritiva, percebe-se sair de dentro outra virtude.
Isso se dá muito com as virtudes cardeais. Considerem, por exemplo, a fortaleza. Em determinado momento, percebe-se que se desprende dela, no mesmo ato da mesma pessoa, algo que se aprecia no ato total, mas seria simplificar chamar apenas de fortaleza. Essa “cor” que se faz notar seria a virtude da prudência. E assim também com as outras virtudes cardeais.
Naturalmente, numa esfera muito mais alta, provavelmente se poderá dizer o mesmo das virtudes teologais.
A meu ver, o inconfundível “unum” de uma pessoa não se deixa ver a não ser por meio de refrações como essas, pelo menos nesta Terra. Esse é o “unum” que representa aquele fundo da alma que, ao tratarmos com um indivíduo, passamos a vida inteira procurando e conhecendo sempre melhor, sem nunca conhecê-lo até o fundo.
Impressões causadas pela Igreja do Sagrado Coração de Jesus
Digo isso para vermos como devemos analisar nossos modelos. Nunca os compreendemos tão bem como no momento em que de uma virtude se desprende outra. Na hora do “borboletear” da coisa é que se pega bem o que é o total.
Se nos perguntamos se a asa da borboleta é azul ou prateada, a resposta é: para além de azul e de prateada, ela tem algo que a capacidade cromática da vista humana não capta, e que não é o contrário do azul nem do prateado, mas uma coisa que não podemos alcançar porque ora se mostra azul, ora prateada. E o azul e o prateado não mentem quando nos dizem ser aquela asa azul ou prateada; mas ela o é de um outro modo que nós não somos capazes de perceber. Há uma coisa mais bela dentro disso.
Por exemplo, no caráter espiritual-temporal no Império Austro-Húngaro, o que era mais bonito: o caráter acidentalmente espiritual que marcava esse Império, ou o caráter essencialmente temporal, enquanto marcado pelo espiritual? Essas coisas não se discernem. Mas, assim como com o azul e o prateado, de uma coisa sai a outra.
Creio que esse fenômeno não é privativo dos santos de comprovada heroicidade de virtudes e próprios a serem canonizados, mas se verifica em todas as almas virtuosas, entendidas como tais as que estão na graça de Deus. Assim, eu poderia explicitar um pouco mais as impressões que tive, quando pequenino, na Igreja do Sagrado Coração de Jesus, e depois as que, a vida inteira, deu-me a Igreja Católica.
A seriedade do Sagrado Coração de Jesus, por exemplo, me impressionava muito. Mas era uma seriedade na qual eu poderia distinguir pelo menos alguns aspectos; porque no seu fundo a seriedade traz consigo que a pessoa, ao observar algo ou alguém, considere-o enquanto inserido em todo o contexto do Universo.
Isso remete a realidades sobrenaturais tão altas que o indivíduo fica meio desconcertado. E a seriedade, vista debaixo desse ângulo, é meio amedrontadora. Há mesmo qualquer coisa dela que muitos homens creem não poder suportar.
Um pequeno episódio da vida doméstica
Por exemplo, uma criança é meio estabanada e deixa cair um copo d’água no tapete. Este episódio tem um inconveniente minúsculo para a vida doméstica; é preciso secar a água e talvez tomar uma pequena providência para não danificar o tapete.
Digamos que isso se dê na casa dos avós da criança, onde também estão presentes seus pais. O trabalho da mãe é passar um pitozinho na criança, para ela aprender a não ser estabanada; mas um pito com leveza, proporcionado à banalidade do que aconteceu, obrigando a criança a trabalhar para secar aquela água, praticar um pouquinho de penitência. Mas deixando-a entrever que aquilo não vai ter muita duração; é um pequeno episódio. À noite, na hora de dormir, ela já nem se lembra do que aconteceu.
A mãe, portanto, tem em vista operações práticas — salvar o tapete —, mas também a educação da criança, que é uma finalidade mais alta. Mas ela visa as vantagens imediatas da criança, evitar que fique tonta, não ganhe prêmio no colégio, etc.; enfim todo o futuro psicológico da criança.
O pai olha com muito menos sensibilidade, preocupado com outras coisas, considerando aquilo meio uma bagatela, mas ao mesmo tempo tomando uma atitude diante do fato por onde a criança compreenda que, se isso se repetir, o ajuste de contas será com ele, que agirá com muito mais severidade do que a mãe.
O avô está lendo um jornal, e a avó uma revista ilustrada. Ao ver o que o menino fez, a avó cai na gargalhada:
— Que engraçado, olha como foi estabanadinho…
O avô:
— Se começa assim, começa mal, porque nessa idade já se tem que aprender…
A avó o defende:
— Não, não, coitadinho!
O avô:
— Olha, muita gente se perdeu porque se disse “coitadinho” em casos semelhantes…
E sobe às mais altas considerações.
Seriedade expressa pela imagem do Sagrado Coração de Jesus
Qual é a imagem perfeita da seriedade aí? No fundo é o avô, porque ele tem razão. Mas se uma criança fosse educada exclusivamente por esse avô, ela ficaria insegura, e não sei onde as coisas iriam parar. Sem dúvida, é verdade que muita gente foi para o Inferno porque, quando criança, não teve um avô para corrigir o estabanamento; mas é verdade também que, se a todo propósito se vai falar do Inferno para a criança, cria-se um ambiente impossível.
Algo dessa seriedade avoenga eu percebia que a imagem do Sagrado Coração de Jesus queria fazer entender. O modo de Nosso Senhor segurar o Coração, rodeado de espinhos e com uma chama, no centro da qual uma cruz; o Coração vermelho daquele modo, por mais bonito que seja, tirado de dentro do peito e exposto, dá uma ideia de certa violência. Tudo isso fazia lembrar a Paixão que Ele tinha sofrido. E a carga desses símbolos significava para mim uma pergunta feita por Nosso Senhor: “Você se dá conta de que, em cada ato mau, você feriu meu Coração? Olhe como Eu sou bom, meça o mal que você fez!”
E em cada imagem do Sagrado Coração de Jesus, feita com um mínimo de idoneidade artesanal ou artística, isso se exprime, a simbologia é essa.
Neste sentido, o apelo do Sagrado Coração de Jesus é admirável, e é bela a dimensão desse apelo: Como as coisas do homem tocam ao infinito! Como é bonita a vida quando se considera que cada pequeno fato toca no Céu, no Inferno! Como tudo é grande!
Tudo isso me vinha muito à mente na consideração do Sagrado Coração de Jesus, e também no ambiente imponderável da igreja. É fora de dúvida que se tratava de uma graça pela qual eu sublimava a imagem. Esta diz algo nessa direção, mas eu a sublimava involuntariamente por efeito da inocência. Mas de fato, para mim, aquela imagem dizia isto, era mesmo a primeira mensagem da imagem.
Doçura
Depois vinha a segunda mensagem: “Entretanto, meu filho, Eu não lhe digo isso para perdê-lo, mas perdoá-lo. Desejo perdoá-lo porque há em Mim a fonte de um afeto, de um carinho mais suave do que o veludo, mais ameno do que qualquer brisa do mar, completamente envolvente e capaz de inundá-lo inteiramente, nas últimas fibras do seu ser.”
De maneira que, logo depois da noção de cobrança, vinha-me a seguinte ideia:
As mãos d’Ele e um de seus pés, que aparece debaixo da túnica, estão chagados; meus defeitos concorreram para isso. Sinto que em mim há matéria-prima, não reprimida ainda, que pode vir dar em maldade. Eu até agora não sou alheio a esses defeitos; eles constituem minha pessoa e, embora sejam defeitos potenciais, não os rejeitei ainda.
Sinto que isso que Ele está me mostrando não é para cobrar algo de mim, para me castigar, nem se vingar, nem pôr o seu pé chagado, mas vencedor, sobre minha cabeça desvairada e pecadora; é para me dizer que, sem nenhum interesse próprio que não seja o amor da própria glória de Deus, Ele absolutamente não me cobraria nada, e está disposto a me pagar o bem pelo mal.
Porque me quer apesar de tudo, tem pena de mim, considera minha pequenez, meu isolamento, considera tudo, e tem algo a mais do que tudo isso, que me inunda como um mar: é a doçura d’Ele. Entra aqui outra ideia da grandeza: a seriedade d’Ele indica uma dimensão dessa doçura, que eu não seria capaz de medir só pela doçura.
Eu sentia bem que Ele dizia isso a mim, interiormente — não era aparição nem visão, mas estava na economia comum da graça —, não como quem vê passar pela estrada um pimpolho, perdido no meio de milhões de outros homens, e para o qual afirma: “Uma vez que você está aqui, Eu tenho algo a lhe dizer. Agora ande e trate de tirar proveito!” Se fosse isso, já teria sido boníssimo, muito mais do que eu mereço.
Mas é um Pastor, um Rei que empreendeu de me governar, vai me dar conselhos, indicações, ordens, me prepara o caminho para eu voltar até Ele. E que, portanto, quer absolutamente que eu seja dócil ao que Ele indique, porque, em primeiro lugar, Ele merece: Olha a perfeição d’Ele! Em segundo lugar, se eu não fizer isso, estou perdido. Vejo bem tudo quanto formiga em mim de ruim e, ou eu deito a atenção nisso ou, então, não sei até onde vou chegar!
E eu percebia bem que chegaria espantosamente até o fim de qualquer caminho que tomasse. E que, portanto, toda cabeça de caminho ou era bem escolhida, ou seria um bordo de precipício. Aliás, isso é com todo o mundo, não só comigo; eu não me sentia uma pessoa diferente das outras.
Asseio, boas maneiras, intransigência
Outra coisa que me encantava era o asseio e as boas maneiras de Jesus.
Por vezes Ele é apresentado como tendo uma túnica de uma cor que me atrai especialmente, o vermelho, com uma discreta bordadura dourada que me parecia indispensável à grandeza d’Ele. Sem ouro Nosso Senhor não teria sabido reverenciar sua própria grandeza como devia. E a consciência que Ele tinha da sua grandeza era uma coisa que me encantava.
E a túnica dava ideia de estar Ele perpetuamente limpíssimo, não tinha mancha nenhuma, nem na alma, nem na roupa. E essa limpeza na indumentária se manifestava ainda mais na limpeza do Corpo d’Ele. Não só não tinha nenhuma mancha, nada de ensebado ou de doente, mas parecia emitir luz.
E eu dizia a mim mesmo o seguinte: “Veja as boas maneiras d’Ele, como está em pé com distinção! O modo com que Ele segura o Coração é de uma pessoa bem educada. Como a impostação da cabeça é de uma pessoa que teve uma boa formação! Como a barba está bem arranjada, sem faceirice! Que supremo aristocratismo natural no cabelo! Tem-se a impressão de que Ele nem pensa no seu cabelo, mas não há um cacho, um fio, que não esteja inteiramente no lugar, para dar uma ideia perfeita d’Ele mesmo”.
Sei que foi um artista, um artesão que esculpiu essa imagem, mas percebo, pela perfeição moral d’Ele, que era de fato assim, e o artista quis exprimir uma coisa que havia na alma de Nosso Senhor. Então, meu encanto!
Conclusão: Como Ele é amigo da ordem universal! E coerente com essa ordem! Todas as coisas Ele as ama na ordem própria e no mais belo aspecto que elas podem apresentar de si mesmas. E com que carinho Ele as ama! Jesus gosta dessa rosa que foi posta aos pés d’Ele, um pouco como gosta de mim que estou aqui aos seus pés também. Ele é afim com tudo o que é reto, que não tem pecado.
Mas olhe a intransigência: basta ter um pecado, que Ele mostra o Coração ferido! Veja a pureza! Depois, como tudo isso está bem calculado, bem posto n’Ele! Que sabedoria!
Comer éclair ou Apfelstrudel com “chantilly” aos pés da imagem
À medida que eu via essas coisas — não com a precisão com que estou dando agora, mas com aquela intuição de uma criança —, ia me sentindo impregnado por elas, de fora para dentro. Quer dizer, Ele era assim; essas coisas não tinham sua nascente em mim, mas Nosso Senhor as comunicava. E daí o desejo evidente de me unir a Ele.
E não só de me unir, mas morar n’Ele. Se eu pudesse estudar, rezar, conversar com amigos, enfim, fazer tudo quanto faz um menino, aos pés da imagem do Sagrado Coração de Jesus, seria para mim uma explosão de alegria, porque a imagem impregnaria dessas perfeições tudo o que eu realizasse, inclusive meus amigos.
Notem uma particularidade: eu poderia afirmar que quereria estar o tempo inteiro rezando lá, dizendo não às brincadeiras, à comedoria, ao leito bom, ao meu conforto, tudo por amor a Ele. Não era isso, mas algo diferente: como seria bom se Jesus pudesse estar presidindo tudo isso! Toda a minha vida gostei muito de éclair e de Apfelstrudel com “chantilly”. Se pudesse trazer às escondidas esses doces e comer aos pés d’Ele, como eu ficaria contentíssimo!
Creio que não tinha nada de mau nisso. E, portanto, também dizer a Ele: “Senhor, aqui está um Apfelstrudel — ou um éclair — tão afim convosco, que eu vou me unir a Vós comendo-o e pensando em Vós. Abençoai este doce!”
E se eu não pudesse fazer tudo lá, depois iria embora dizendo: “Senhor, infinitas graças pela boa companhia que me destes!”
Explicitando a vocação
Há nisso, em raiz, a vocação da “consecratio mundi”, da sacralização da ordem temporal.
Não estava em mim ser nem asceta, nem revolucionário. Eu era um menino da ordem temporal, que gostava da ordem temporal, alegrando-me muito em poder deleitar-me com ela, mantendo meu estado de graça e sabendo que nesse meu deleite não entrava pecado, pelo contrário, era bom e afim com Ele.
E neste sentido, eu gostava enormemente, em certas horas, de estar só. Não propriamente rezando — embora isso já fosse oração —, mas eu me deleitava em ver como tudo aquilo não era pecado, como era bom. E se nesses momentos alguém me dissesse, com provas de evidência, que o Sagrado Coração de Jesus não existia, eu era capaz de ter uma convulsão, um ataque e morrer. Portanto, era uma atitude profundamente religiosa.
Nessas horas de silêncio, eu sentia uma paz e um gáudio sensível da virtude, da união com Ele, mas intensa, que era minha alegria de viver. E, como não conhecia a Revolução, eu pensava que a vida inteira seria assim.
Naquela fotografia onde apareço sentado no braço de uma poltrona — postura da qual não gostei, por ser esportiva e contrária às boas maneiras; mas o fotógrafo mandou, e vi que ele estava sancionado pela “Fräulein” —, eu estou feliz e sentindo que minha felicidade me vem disso que estou descrevendo. Lembro-me bem daquele momento.
Veio depois o contato com o Colégio São Luís e o encontro com a Revolução. Então, estouro! Apresenta-se o sofrimento, batendo na porta, inopinadamente. Começa a batalha!
Todo esse edifício anterior para o que serviria?
De um lado, ajudou-me enormemente, porque foi para mim um elemento de apoio para a resistência. De outro lado, diante das solicitações do mundo, o desejo de uma vida temporal honesta, limpa, com o tempo passou a ser uma vida temporal admiradora do heroico, que já não tem sentido a não ser em função do heroísmo.
Era minha vocação que ia se explicitando através dessas evoluções.
Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 18/10/1985)