Morar no Sagrado Coração de Jesus

Eminentemente contemplativo, Dr. Plinio discernia em uma imagem as virtudes do Sagrado Coração de Jesus, cuja consideração maravilhada levou-o, do desejo de uma vida deleitável na prática do bem, ao encanto pelo heroísmo e à luta contra a Revolução.

 

É conhecida a experiência pela qual, fazendo-se girar em alta velocidade um disco composto das cores do arco-íris, cria-se a ilusão de que o disco tornou-se branco. É inegável que o branco tenha sua beleza, como síntese e matriz de todas as cores.

As virtudes se relacionam entre si à maneira das asas de uma borboleta azul e prata

Entretanto, há outro modo das cores se inter-relacionarem que notamos, por exemplo, nas asas da borboleta azul e prata. Não que uma asa seja azul e outra prateada — seria um pesadelo —, mas, conforme o movimento da luz, o azul se transforma em prateado e o prateado em azul. De maneira que, por assim dizer, se teria a ilusão de que uma cor habita na outra.

O conjunto de verdades ou de virtudes numa alma só manifesta sua inteira beleza vista assim, na linha deste furta-cor do azul e prateado na asa da borboleta. Quer dizer, quando se olha uma virtude, de repente, fixando a atenção não apenas especulativa, mas também descritiva, percebe-se sair de dentro outra virtude.

Isso se dá muito com as virtudes cardeais. Considerem, por exemplo, a fortaleza. Em determinado momento, percebe-se que se desprende dela, no mesmo ato da mesma pessoa, algo que se aprecia no ato total, mas seria simplificar chamar apenas de fortaleza. Essa “cor” que se faz notar seria a virtude da prudência. E assim também com as outras virtudes cardeais.

Naturalmente, numa esfera muito mais alta, provavelmente se poderá dizer o mesmo das virtudes teologais.

A meu ver, o inconfundível “unum” de uma pessoa não se deixa ver a não ser por meio de refrações como essas, pelo menos nesta Terra. Esse é o “unum” que representa aquele fundo da alma que, ao tratarmos com um indivíduo, passamos a vida inteira procurando e conhecendo sempre melhor, sem nunca conhecê-lo até o fundo.

Impressões causadas pela Igreja do Sagrado Coração de Jesus

Digo isso para vermos como devemos analisar nossos modelos. Nunca os compreendemos tão bem como no momento em que de uma virtude se desprende outra. Na hora do “borboletear” da coisa é que se pega bem o que é o total.

Se nos perguntamos se a asa da borboleta é azul ou prateada, a resposta é: para além de azul e de prateada, ela tem algo que a capacidade cromática da vista humana não capta, e que não é o contrário do azul nem do prateado, mas uma coisa que não podemos alcançar porque ora se mostra azul, ora prateada. E o azul e o prateado não mentem quando nos dizem ser aquela asa azul ou prateada; mas ela o é de um outro modo que nós não somos capazes de perceber. Há uma coisa mais bela dentro disso.

Por exemplo, no caráter espiritual-temporal no Império Austro-Húngaro, o que era mais bonito: o caráter acidentalmente espiritual que marcava esse Império, ou o caráter essencialmente temporal, enquanto marcado pelo espiritual? Essas coisas não se discernem. Mas, assim como com o azul e o prateado, de uma coisa sai a outra.

Creio que esse fenômeno não é privativo dos santos de comprovada heroicidade de virtudes e próprios a serem canonizados, mas se verifica em todas as almas virtuosas, entendidas como tais as que estão na graça de Deus. Assim, eu poderia explicitar um pouco mais as impressões que tive, quando pequenino, na Igreja do Sagrado Coração de Jesus, e depois as que, a vida inteira, deu-me a Igreja Católica.

A seriedade do Sagrado Coração de Jesus, por exemplo, me impressionava muito. Mas era uma seriedade na qual eu poderia distinguir pelo menos alguns aspectos; porque no seu fundo a seriedade traz consigo que a pessoa, ao observar algo ou alguém, considere-o enquanto inserido em todo o contexto do Universo.

Isso remete a realidades sobrenaturais tão altas que o indivíduo fica meio desconcertado. E a seriedade, vista debaixo desse ângulo, é meio amedrontadora. Há mesmo qualquer coisa dela que muitos homens creem não poder suportar.

Um pequeno episódio da vida doméstica

Por exemplo, uma criança é meio estabanada e deixa cair um copo d’água no tapete. Este episódio tem um inconveniente minúsculo para a vida doméstica; é preciso secar a água e talvez tomar uma pequena providência para não danificar o tapete.

Digamos que isso se dê na casa dos avós da criança, onde também estão presentes seus pais. O trabalho da mãe é passar um pitozinho na criança, para ela aprender a não ser estabanada; mas um pito com leveza, proporcionado à banalidade do que aconteceu, obrigando a criança a trabalhar para secar aquela água, praticar um pouquinho de penitência. Mas deixando-a entrever que aquilo não vai ter muita duração; é um pequeno episódio. À noite, na hora de dormir, ela já nem se lembra do que aconteceu.

A mãe, portanto, tem em vista operações práticas — salvar o tapete —, mas também a educação da criança, que é uma finalidade mais alta. Mas ela visa as vantagens imediatas da criança, evitar que fique tonta, não ganhe prêmio no colégio, etc.; enfim todo o futuro psicológico da criança.

O pai olha com muito menos sensibilidade, preocupado com outras coisas, considerando aquilo meio uma bagatela, mas ao mesmo tempo tomando uma atitude diante do fato por onde a criança compreenda que, se isso se repetir, o ajuste de contas será com ele, que agirá com muito mais severidade do que a mãe.

O avô está lendo um jornal, e a avó uma revista ilustrada. Ao ver o que o menino fez, a avó cai na gargalhada:

— Que engraçado, olha como foi estabanadinho…

O avô:

— Se começa assim, começa mal, porque nessa idade já se tem que aprender…

A avó o defende:

— Não, não, coitadinho!

O avô:

— Olha, muita gente se perdeu porque se disse “coitadinho” em casos semelhantes…

E sobe às mais altas considerações.

Seriedade expressa pela imagem do Sagrado Coração de Jesus

Qual é a imagem perfeita da seriedade aí? No fundo é o avô, porque ele tem razão. Mas se uma criança fosse educada exclusivamente por esse avô, ela ficaria insegura, e não sei onde as coisas iriam parar. Sem dúvida, é verdade que muita gente foi para o Inferno porque, quando criança, não teve um avô para corrigir o estabanamento; mas é verdade também que, se a todo propósito se vai falar do Inferno para a criança, cria-se um ambiente impossível.

Algo dessa seriedade avoenga eu percebia que a imagem do Sagrado Coração de Jesus queria fazer entender. O modo de Nosso Senhor segurar o Coração, rodeado de espinhos e com uma chama, no centro da qual uma cruz; o Coração vermelho daquele modo, por mais bonito que seja, tirado de dentro do peito e exposto, dá uma ideia de certa violência. Tudo isso fazia lembrar a Paixão que Ele tinha sofrido. E a carga desses símbolos significava para mim uma pergunta feita por Nosso Senhor: “Você se dá conta de que, em cada ato mau, você feriu meu Coração? Olhe como Eu sou bom, meça o mal que você fez!”

E em cada imagem do Sagrado Coração de Jesus, feita com um mínimo de idoneidade artesanal ou artística, isso se exprime, a simbologia é essa.

Neste sentido, o apelo do Sagrado Coração de Jesus é admirável, e é bela a dimensão desse apelo: Como as coisas do homem tocam ao infinito! Como é bonita a vida quando se considera que cada pequeno fato toca no Céu, no Inferno! Como tudo é grande!

Tudo isso me vinha muito à mente na consideração do Sagrado Coração de Jesus, e também no ambiente imponderável da igreja. É fora de dúvida que se tratava de uma graça pela qual eu sublimava a imagem. Esta diz algo nessa direção, mas eu a sublimava involuntariamente por efeito da inocência. Mas de fato, para mim, aquela imagem dizia isto, era mesmo a primeira mensagem da imagem.

Doçura

Depois vinha a segunda mensagem: “Entretanto, meu filho, Eu não lhe digo isso para perdê-lo, mas perdoá-lo. Desejo perdoá-lo porque há em Mim a fonte de um afeto, de um carinho mais suave do que o veludo, mais ameno do que qualquer brisa do mar, completamente envolvente e capaz de inundá-lo inteiramente, nas últimas fibras do seu ser.”

De maneira que, logo depois da noção de cobrança, vinha-me a seguinte ideia:

As mãos d’Ele e um de seus pés, que aparece debaixo da túnica, estão chagados; meus defeitos concorreram para isso. Sinto que em mim há matéria-prima, não reprimida ainda, que pode vir dar em maldade. Eu até agora não sou alheio a esses defeitos; eles constituem minha pessoa e, embora sejam defeitos potenciais, não os rejeitei ainda.

Sinto que isso que Ele está me mostrando não é para cobrar algo de mim, para me castigar, nem se vingar, nem pôr o seu pé chagado, mas vencedor, sobre minha cabeça desvairada e pecadora; é para me dizer que, sem nenhum interesse próprio que não seja o amor da própria glória de Deus, Ele absolutamente não me cobraria nada, e está disposto a me pagar o bem pelo mal.

Porque me quer apesar de tudo, tem pena de mim, considera minha pequenez, meu isolamento, considera tudo, e tem algo a mais do que tudo isso, que me inunda como um mar: é a doçura d’Ele. Entra aqui outra ideia da grandeza: a seriedade d’Ele indica uma dimensão dessa doçura, que eu não seria capaz de medir só pela doçura.

Eu sentia bem que Ele dizia isso a mim, interiormente — não era aparição nem visão, mas estava na economia comum da graça —, não como quem vê passar pela estrada um pimpolho, perdido no meio de milhões de outros homens, e para o qual afirma: “Uma vez que você está aqui, Eu tenho algo a lhe dizer. Agora ande e trate de tirar proveito!” Se fosse isso, já teria sido boníssimo, muito mais do que eu mereço.

Mas é um Pastor, um Rei que empreendeu de me governar, vai me dar conselhos, indicações, ordens, me prepara o caminho para eu voltar até Ele. E que, portanto, quer absolutamente que eu seja dócil ao que Ele indique, porque, em primeiro lugar, Ele merece: Olha a perfeição d’Ele! Em segundo lugar, se eu não fizer isso, estou perdido. Vejo bem tudo quanto formiga em mim de ruim e, ou eu deito a atenção nisso ou, então, não sei até onde vou chegar!

E eu percebia bem que chegaria espantosamente até o fim de qualquer caminho que tomasse. E que, portanto, toda cabeça de caminho ou era bem escolhida, ou seria um bordo de precipício. Aliás, isso é com todo o mundo, não só comigo; eu não me sentia uma pessoa diferente das outras.

Asseio, boas maneiras, intransigência

Outra coisa que me encantava era o asseio e as boas maneiras de Jesus.

Por vezes Ele é apresentado como tendo uma túnica de uma cor que me atrai especialmente, o vermelho, com uma discreta bordadura dourada que me parecia indispensável à grandeza d’Ele. Sem ouro Nosso Senhor não teria sabido reverenciar sua própria grandeza como devia. E a consciência que Ele tinha da sua grandeza era uma coisa que me encantava.

E a túnica dava ideia de estar Ele perpetuamente limpíssimo, não tinha mancha nenhuma, nem na alma, nem na roupa. E essa limpeza na indumentária se manifestava ainda mais na limpeza do Corpo d’Ele. Não só não tinha nenhuma mancha, nada de ensebado ou de doente, mas parecia emitir luz.

E eu dizia a mim mesmo o seguinte: “Veja as boas maneiras d’Ele, como está em pé com distinção! O modo com que Ele segura o Coração é de uma pessoa bem educada. Como a impostação da cabeça é de uma pessoa que teve uma boa formação! Como a barba está bem arranjada, sem faceirice! Que supremo aristocratismo natural no cabelo! Tem-se a impressão de que Ele nem pensa no seu cabelo, mas não há um cacho, um fio, que não esteja inteiramente no lugar, para dar uma ideia perfeita d’Ele mesmo”.

Sei que foi um artista, um artesão que esculpiu essa imagem, mas percebo, pela perfeição moral d’Ele, que era de fato assim, e o artista quis exprimir uma coisa que havia na alma de Nosso Senhor. Então, meu encanto!

Conclusão: Como Ele é amigo da ordem universal! E coerente com essa ordem! Todas as coisas Ele as ama na ordem própria e no mais belo aspecto que elas podem apresentar de si mesmas. E com que carinho Ele as ama! Jesus gosta dessa rosa que foi posta aos pés d’Ele, um pouco como gosta de mim que estou aqui aos seus pés também. Ele é afim com tudo o que é reto, que não tem pecado.

Mas olhe a intransigência: basta ter um pecado, que Ele mostra o Coração ferido! Veja a pureza! Depois, como tudo isso está bem calculado, bem posto n’Ele! Que sabedoria!

Comer éclair ou Apfelstrudel com “chantilly” aos pés da imagem

À medida que eu via essas coisas — não com a precisão com que estou dando agora, mas com aquela intuição de uma criança —, ia me sentindo impregnado por elas, de fora para dentro. Quer dizer, Ele era assim; essas coisas não tinham sua nascente em mim, mas Nosso Senhor as comunicava. E daí o desejo evidente de me unir a Ele.

E não só de me unir, mas morar n’Ele. Se eu pudesse estudar, rezar, conversar com amigos, enfim, fazer tudo quanto faz um menino, aos pés da imagem do Sagrado Coração de Jesus, seria para mim uma explosão de alegria, porque a imagem impregnaria dessas perfeições tudo o que eu realizasse, inclusive meus amigos.

Notem uma particularidade: eu poderia afirmar que quereria estar o tempo inteiro rezando lá, dizendo não às brincadeiras, à comedoria, ao leito bom, ao meu conforto, tudo por amor a Ele. Não era isso, mas algo diferente: como seria bom se Jesus pudesse estar presidindo tudo isso! Toda a minha vida gostei muito de éclair e de Apfelstrudel com “chantilly”. Se pudesse trazer às escondidas esses doces e comer aos pés d’Ele, como eu ficaria contentíssimo!

Creio que não tinha nada de mau nisso. E, portanto, também dizer a Ele: “Senhor, aqui está um Apfelstrudel — ou um éclair — tão afim convosco, que eu vou me unir a Vós comendo-o e pensando em Vós. Abençoai este doce!”

E se eu não pudesse fazer tudo lá, depois iria embora dizendo: “Senhor, infinitas graças pela boa companhia que me destes!”

Explicitando a vocação

Há nisso, em raiz, a vocação da “consecratio mundi”, da sacralização da ordem temporal.

Não estava em mim ser nem asceta, nem revolucionário. Eu era um menino da ordem temporal, que gostava da ordem temporal, alegrando-me muito em poder deleitar-me com ela, mantendo meu estado de graça e sabendo que nesse meu deleite não entrava pecado, pelo contrário, era bom e afim com Ele.

E neste sentido, eu gostava enormemente, em certas horas, de estar só. Não propriamente rezando — embora isso já fosse oração —, mas eu me deleitava em ver como tudo aquilo não era pecado, como era bom. E se nesses momentos alguém me dissesse, com provas de evidência, que o Sagrado Coração de Jesus não existia, eu era capaz de ter uma convulsão, um ataque e morrer. Portanto, era uma atitude profundamente religiosa.

Nessas horas de silêncio, eu sentia uma paz e um gáudio sensível da virtude, da união com Ele, mas intensa, que era minha alegria de viver. E, como não conhecia a Revolução, eu pensava que a vida inteira seria assim.

Naquela fotografia onde apareço sentado no braço de uma poltrona — postura da qual não gostei, por ser esportiva e contrária às boas maneiras; mas o fotógrafo mandou, e vi que ele estava sancionado pela “Fräulein” —, eu estou feliz e sentindo que minha felicidade me vem disso que estou descrevendo. Lembro-me bem daquele momento.

Veio depois o contato com o Colégio São Luís e o encontro com a Revolução. Então, estouro! Apresenta-se o sofrimento, batendo na porta, inopinadamente. Começa a batalha!

Todo esse edifício anterior para o que serviria?

De um lado, ajudou-me enormemente, porque foi para mim um elemento de apoio para a resistência. De outro lado, diante das solicitações do mundo, o desejo de uma vida temporal honesta, limpa, com o tempo passou a ser uma vida temporal admiradora do heroico, que já não tem sentido a não ser em função do heroísmo.

Era minha vocação que ia se explicitando através dessas evoluções.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 18/10/1985)

“Sede devotos do meu Imaculado Coração…”

Sempre que me refiro a Nossa Senhora, tenho muito em vista a devoção ao Imaculado Coração de Maria.

Ao adorarmos o Sagrado Coração de Jesus temos em consideração não só a afetividade, a bondade, mas toda a personalidade moral e todo o conjunto de virtudes d’Ele. Assim também o culto de hiperdulia que prestamos ao Coração Imaculado de Maria abarca e exprime seu afeto, sua bondade, sua misericórdia de Mãe, bem como sua pureza e todas as virtudes excelsas que Ela possui num grau inconcebível por nós.

O quadro presente em meu apartamento representa Nossa Senhora no seu resplendor, tendo atrás de Si uma série de luzes fulgurando, como que emanadas principalmente da cabeça, e constituindo uma espécie de auréola.

Maria Santíssima está segurando seu Imaculado Coração e o apresenta para os homens, como quem diz: “Ele é vosso, Eu vô-lo dou se Me pedirdes”.

Portanto, é um convite à prece ao Imaculado Coração d’Ela, feito por Ela mesma: “Sede devotos do meu Imaculado Coração e recebereis graças incontáveis”.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 27/2/1992)

Diante do Sagrado Coração de Jesus

A devoção ao Sagrado Coração de Jesus, desde cedo se acendeu no interior do pequeno Plinio. Morando nas cercanias de Sua Igreja, sentia-se atraído por sua Bondade e Misericórdia, tal qual narraria mais tarde.

 

Bondade e Nobreza do Sagrado Coração de Jesus

Não me custou perceber que Nosso Senhor Jesus Cristo, especificamente enquanto fazendo ver seu Coração aos homens, era a fonte infinita da qual emanava todo o bem. E nele realizavam-se todas as perfeições e maravilhas de alma possíveis, de um modo que eu jamais poderia ter imaginado! E, ao discernir o bom espírito que havia em todas as coisas da Igreja, pensava: “Este ambiente é o reflexo d’Ele! A harmonia que encontro aqui é o próprio Deus. Ele é isso num grau supremo, extraordinário, perfeito e infinito”.

Às vezes, permanecia diante da imagem do Sagrado Coração de Jesus que existe num altar lateral da igreja [do Sagrado Coração de Jesus]. Via-O em pé, muito nobre e com um sorriso ligeiramente triste, mas imensamente convidativo, tocando com a mão no Coração e olhando para quem estava embaixo, como se dissesse:

“Queres um lugar aqui dentro? Não Me aceitas? Olha que tesouro! Isto é para ti!”.

Eu olhava e pensava: “Bem sei que isto é uma imagem e não um homem, mas as pessoas que construíram a igreja querem que Deus seja visto assim e, por isso, representaram Nosso Senhor dessa forma. Ora, Deus, visto assim, é completo! Percebo que Ele é de fato assim.

“Que fisionomia! A beleza de que ouço falar por aí não vale nada! Se um dia eu quisesse analisar a idéia de formosura, eu viria aqui para olhar a fisionomia d’Ele, pois só Ele é bonito! Esse é o padrão: uma beleza de alma, mais do que de corpo. Mas, que corpo…! E por detrás dele, que alma…! Que maravilha!

“Dado que essa imagem coincide de um modo inteiramente satisfatório com o ambiente da igreja e com o que me ensinaram a respeito de Nosso Senhor, olhando a sua fisionomia, suas mãos, seu traje, seus cabelos e seu gesto, terei uma ideia global a respeito d’Ele, que posso tornar mais precisa e mais rica em contornos, se examinar cada ponto. Sobretudo seus divinos olhos e seu Sagrado Coração.”

Começava, então, a fazer a análise psicológica d’Ele e assim O discernia. Hoje vejo o quanto eu “arquetipizava” a imagem por efeito da minha inocência, pois ela está realmente distante daquilo que a graça me fazia ver. Numa atitude de respeito e de adoração, eu compunha a mais alta das idéias que minha mente de criança podia formar. De maneira que, quando muito mais tarde conheci o Santo Sudário, exclamei: “É Ele!”.

Posso dizer que aquilo que eu via na infância representava ainda mais fielmente a Nosso Senhor do que o próprio Santo Sudário, o que se compreende facilmente, pois este O mostra enquanto morto e vítima, e na imagem do Sagrado Coração Ele Se me apresentava vivo, acolhedor e afável.

Eu via n’Ele algo de uma bondade insondável, e essa ideia era requintada pela impressão que me causava a cor vermelha de seu Coração. Encantavam-me também, em Nosso Senhor, o asseio e as boas maneiras, expressas no feitio da sua face e ainda mais no seu corpo, que parecia emitir luz. Sua túnica dava-me a ideia de uma pessoa perpetuamente limpíssima, sem mancha alguma na alma ou na própria indumentária. E havia no seu traje uma discreta bordadura dourada que me parecia indispensável à sua elevação. Essa consciência d’Ele a respeito da sua majestade me deixava encantado.

Eu me dizia: “Como Ele está em pé com distinção! Como o modo de segurar o Coração é o de uma pessoa bem-educada! Como a impostação da cabeça é de alguém que recebeu boa formação! Como a barba está bem-arranjada, sem faceirice! Que supremo aristocratismo natural nos cabelos! Tem-se a impressão de que Ele nem pensa nisso, mas não há um cacho, nem um fio, que não estejam inteiramente no lugar apropriado, para dar uma ideia perfeita d’Ele mesmo!

“Muita gente viveu em ambientes mais distintos dos que Ele frequentou. Mas… distinção é aquela! Os outros são todos insignificantes em comparação com Ele!”.

E eu chegava à conclusão: “Como Ele é amigo da ordem universal! Como é coerente com essa ordem! Ele ama todas as coisas na sua ordenação própria e no mais belo aspecto que podem dar de si mesmas. E com quanto carinho! Ele gosta dessa rosa que foi posta em seu altar, assim como também gosta de mim que estou igualmente aos seus pés. Ele é afim com tudo o que é reto! A Igreja Católica é santa porque é como Ele; é um hífen entre Ele e nós; é a própria auréola que nimba a cabeça d’Ele e por isto eu a amo! A influência, a mentalidade e a presença d’Ele estão neste ambiente”.

Essas graças foram de tal profundidade e alcance que não creio ter podido, naquela idade, conhecer d’Ele mais do que conheci. (…)

“Aqui está o Plinio…”

Eu tinha a impressão de que Ele me olhava, não com os olhos de vidro de uma imagem sem vida, mas, de algum modo, comunicando a essa imagem certa expressão. Não sabia como definir esse olhar, nem me preocupava em fazê-lo, pois, por outro lado, achava ser talvez uma ilusão de minha parte, em vista da distância entre Ele e os homens. Como Ele chegaria a ter uma manifestação assim a meu favor?

De qualquer maneira, parecia-me que Ele realizava comigo o mesmo que eu fazia em relação a Ele: analisar. E eu imaginava que Ele me olhava pensando: “Aqui está o tal Plinio, o menino número ‘um trilhão quinhentos milhões e tanto’, de quem gosto e no qual Me comprazo em apreciar tais aspectos bons; de quem espero tal coisa. É uma criança boazinha, para a qual Me digno olhar com compaixão e com intenção de beneficiá-la. Uma vez que está aqui, tenho algo a dizer-lhe, do que ele deve tirar proveito”.

Eu já considerava isso muito mais do que eu merecia e, então, diante da atitude d’Ele, refletia: “É um Pastor e um Rei que empreendeu de me governar, e Ele quer absolutamente a minha docilidade às suas indicações. Dar-me-á conselhos e ordens, preparando-me o caminho para voltar até Ele”.

As consolações promovidas pelo Sagrado Coração de Jesus

Eu refletia: “Antes de tudo, sinto-me elevado acima de mim mesmo, por ver a sua grandeza. De onde se abre em mim uma certa luz no cogitar e no ver, que me extasia, porque algo em mim é feito para admirar o que é mais do que eu. Quando saio das minhas ocupações normais de menino e vejo algo muito maior do que eu, tenho a impressão de fugir do bom para o ótimo! Ali eu me ponho ‘na ponta dos pés’ e me alegro. Isto é: vejo-O como Ele é e O adoro.

“Eu noto que, ao mesmo tempo em que O contemplo, Ele me faz como que ‘tocar com as mãos’ no pensar, no querer e no sentir d’Ele. E isso me comunica uma retidão e uma santidade no meu pensar, no meu querer e no meu sentir, à maneira de uma bebida deliciosa que eu tomasse e me agradasse sobremaneira, mas ao mesmo tempo me corrigisse. Ou seja, adorando-O, vejo que os meus aspectos tortos e reprováveis endireitam-se e, com isso, Ele me cura de doenças cuja existência eu ignorava.”

Sua seriedade me impressionava muito, e eu percebia que Ele queria manifestá-la no modo de segurar o Coração, rodeado de espinhos e tendo uma chama em cujo centro havia uma cruz. Esse Coração, retirado do peito e colocado à mostra, dava-me a ideia de uma certa violência, o que era acentuado pela cor vermelha, apesar de esta ser muito bonita. Isso me fazia lembrar da Paixão que Ele havia sofrido, e a carga desses símbolos tinha, para mim, o significado de uma pergunta feita por Ele: “Você se dá conta de que, em cada um dos seus atos maus, você feriu o meu Coração? Olhe como sou bom. Meça o mal que fez”.

E eu pensava: “Quanta intransigência! Basta cometer uma falta para Ele ostentar o Coração ferido… Quanta pureza e sabedoria! Ele, no fundo, está mostrando o que eu fiz… As suas mãos estão chagadas e eu tenho parte nisso. Os pés, aparecendo sob o traje, também o estão… As minhas falhas concorreram para esses ferimentos. Sinto que em mim há defeitos potenciais não reprimidos, em relação aos quais, por enquanto, não sou um alheio, pois não os rejeitei ainda.

“Também, estou vendo bem tudo quanto há de mal em mim… Se eu não aplicar atenção nisso, estou perdido, pois não sei até onde decairei…”. E concluía: “Como as coisas do homem tocam no infinito! Como é bonita a vida, ao considerar que cada pequeno fato tem relação com o Céu! Como tudo é grande!.”

Essa era a primeira “mensagem” d’Ele para mim.

A segunda, porém, manifestava-se assim: “Entretanto, meu filho, Eu não lhe digo isso para perdê-lo, mas para perdoá-lo, pois existe em Mim o manancial de um afeto mais suave que o veludo, mais ameno do que qualquer brisa do mar e capaz de inundá-lo inteiramente, até o mais íntimo de seu ser”.

E eu continuava refletindo: “Como é imensa a doçura d’Ele! Eu não seria capaz de medir sua grandeza, se não entendesse a dimensão dessa doçura! Sinto que Ele não quer cobrar algo de mim, nem castigar-me, nem vingar-se, pondo o seu pé chagado mas vencedor sobre minha cabeça desvairada e pecadora. Não! Ele quer dizer-me que está disposto a pagar o bem pelo mal, pois, apesar de tudo, tem pena de mim considerando a minha pequenez”.

Aquele corretivo era delicioso, mas eu percebia que me seria difícil manter essa postura interior e que em certo momento, eu teria de sofrer e lutar muito. Mas, como criança, pensava: “Bem, ainda não chegou a hora! E isto é tão bom que deixarei esse problema para depois”.

Eu tinha mais curiosidade em fixar minha atenção no que Deus estava me mostrando, do que em deduzir por mim mesmo a conseqüência futura daquilo. (…)

A “Consecratio Mundi”, em seus desejos

Entretanto, o meu desejo ia mais longe: eu queria morar n’Ele! E refletia: “Se pudesse estudar, rezar, conversar, enfim fazer tudo quanto faz um menino, aos pés da imagem do Sagrado Coração de Jesus, seria para mim uma explosão de alegria, pois sinto que Ele impregnaria tudo em mim e em torno de mim, inclusive os meus amigos”.

Poder-se-ia pensar que eu desejava permanecer rezando lá, abandonando as brincadeiras, a comedoria, o leito bom e o conforto. Não era assim! A minha ideia era a seguinte: “Como seria bom se Ele pudesse presidir toda a minha vida!”.

Eu gostaria de trazer às escondidas um éclair e dizer a Ele: “Senhor, aqui está este doce, tão afim convosco. Eu vou me unir a Vós comendo-o e pensando em Vós. Abençoai este éclair!”.

Eu comeria aos pés d’Ele e ficaria contentíssimo! Depois diria: “Senhor, eu trouxe mais um… É de café, o éclair de minha preferência!”

E se eu não pudesse permanecer ali, despedir-me-ia d’Ele assim: “Senhor, agradeço Vos pela boa companhia que me fizestes!”.

E acho que não haveria nada de mau nisso. Ali estava, em raiz, o desejo da “Consecratio Mundi” [Consagração do Mundo] e da sacralização da ordem temporal.

Oração Mental

Hoje percebo que a minha atitude nesses momentos era de verdadeira oração, entretanto não vocal. Eu pensava sobre muitas coisas, encantando-me por ver que eram boas e relacionando-as implicitamente com o Sagrado Coração de Jesus, o que constituía portanto uma meditação profundamente religiosa. Nessas horas de silêncio, eu tinha uma paz e um contentamento muito intenso em sentir a minha virtude e minha união com Ele. E essa era a minha alegria de viver!

Se alguém me afirmasse com provas de evidência que o Sagrado Coração de Jesus não existia, eu era capaz de ter uma convulsão e morrer. Pois se Ele não fosse verdadeiro, eu me desagregaria e não seria mais eu mesmo!

 

(Transcrito da obra “Notas Autobiográficas” de Plinio Correa de Oliveira).

Prece ao Imaculado Coração de Maria

Dai-nos, ó Mãe, uma união com vosso Sapiencial e Imaculado Coração, de maneira tal que sejamos para convosco como uma gota d’água lançada no mar.

Nós Vos pedimos que nos concedais uma devoção intensa à Sagrada Eucaristia, ao Sagrado Coração de Jesus, ao vosso Sapiencial e Imaculado Coração e, ó Mãe, em meio às tristezas de todas as crises contemporâneas, dai-nos cada vez mais devoção ao Papado, à Santa Igreja Católica, Apostólica, Romana, com seu caráter hierárquico, ordenado por vosso Divino Filho, sem as abominações com as quais seus inimigos procuram desfigurá-la.

Que se cumpra, minha Mãe, tudo quanto previstes em Fátima. E, sobretudo, que venha o vosso Reino, no qual desejamos ser os vossos escravos mais atentos, humildes e amorosos.

Estes pedidos nós Vos apresentamos por meio de nossos Anjos da Guarda, ó Sapiencial e Imaculado Coração de Maria!

Uma das facetas do Imaculado Coração de Maria

Um dos meios bonitos de conhecermos o espírito e o Imaculado Coração de Maria consiste em estudar a vida de São João Batista. Por ter sido ele santificado no seio de Santa Isabel pela palavra de Nossa Senhora, vê-se que Ela comunicou-lhe ali, misteriosamente, o espírito d’Ela. E tudo quanto o Precursor realizou em sua vida era uma decorrência dessa graça inicial recebida e constantemente intensificada, pelos rogos d’Ela.

Podemos, então, ver São João Batista enquanto asceta austero, pregador do Cordeiro de Deus que viria, e como herói que enfrenta Herodes e morre como mártir, sublime de grandeza e de serenidade. É uma das facetas do espírito de Nossa Senhora.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 11/7/1967)

Excelências do Coração de Jesus

Graças a Dona Lucilia, desde muito criança Dr. Plinio desenvolveu uma profunda devoção ao Sagrado Coração de Jesus, faceta do Homem-Deus que ele procurou cada vez mais explicitar e amar durante toda a vida. Eis o excerto de uma de suas numerosas conferências sobre o tema.

 

Estando no mês em que se celebra a festa do Sagrado Coração de Jesus, parece-me muito oportuno admirarmos a beleza de algumas das invocações com que O honramos na sua Ladainha. Esta é um verdadeiro tesouro de maravilhas e louvores, próprio a encher nossas almas de amor e adoração a Ele.

Coração do Filho, Coração da Mãe

Tomemos, por exemplo, essa belíssima invocação: Coração de Jesus, formado pelo Espírito Santo no seio da Virgem Mãe.

Se considerarmos o Coração de Jesus em sua realidade material e carnal, objeto de nosso culto como símbolo da vontade de Nosso Senhor e, portanto, do seu amor para conosco; se o considerarmos enquanto formado no seio imaculado de Nossa Senhora, com a matéria que a Mãe fornece para a constituição do corpo do Filho, ligada à divindade d’Ele em união hipostática compreendemos que a carne de Jesus é a própria carne de Maria, o sangue de Jesus é o próprio sangue de Maria, e, portanto, o Coração de Jesus é de algum modo o Coração de Maria.

Se nos detivermos na evocação desse processo de geração tão admirável, pelo qual Jesus foi assim formado do corpo de Maria, num oceano, num incêndio de amor e de adoração d’Ela para com esse filho que se modelava em suas entranhas, compreenderemos ainda mais como o Coração de Jesus está ligado ao Coração Imaculado de Maria, e como podemos ter uma confiança sem reserva na eficácia da intercessão de Nossa Senhora junto a Nosso Senhor.

Com efeito, Ele jamais poderia recusar qualquer coisa a essa Mãe Santíssima, perfeitíssima, da qual Ele não tem nenhuma queixa, antes o mais superlativo e total contentamento que o Criador pode ter em relação à sua criatura. Mais ainda: de cuja carne virginal Ele sabe ter sido formada a sua própria carne, e cujo Coração pulsa em uníssono com aquele que lateja em seu sagrado peito.

Creio que, para os devotos de Nossa Senhora, essa invocação se reveste de imenso significado, e merece ser recitada com especial fervor.

Um céu de majestade

Outra lindíssima invocação é esta: Coração de Jesus, de majestade infinita.

Segundo o luminoso ensinamento de Santo Agostinho, onde está a majestade, ali se acha também a humildade. As duas são inseparáveis. Daí concluímos que o Coração de Jesus, abismo de humildade, é por isso mesmo um firmamento de majestade.

Se dons artísticos eu tivesse, muito me alegraria representar a figura de Nosso Senhor, exprimindo não apenas a sua majestade ou somente a sua humildade, mas retratá-Lo numa dessas apresentações em que se vê, num só relance, aquilo que a majestade tem de comum com a humildade, ou vice-versa, e que é aquela esfera superior de virtude onde essas duas excelências particulares como que se encontram e se fundem.

Algo dessa ligação da suma majestade com a suma humildade me parece existir numa imagem na qual não está visível o Sagrado Coração, mas nem por isso deixa de ser muita expressiva nesse sentido: trata-se do “Beau Dieu d’Amiens”. Ali O vemos como um rei digníssimo, um doutor nobilíssimo, mas ao mesmo tempo tão sereno, tão manso, tão senhor de si, que se percebe que Ele seria capaz de receber a pior injúria e de se conservar inteiramente quieto, pacífico, sem nenhuma reação de amor próprio, desde que fosse essa a atitude mais santa no momento.

Foco de todo o amor de Deus

Outra invocação: Coração de Jesus, fornalha ardente de caridade.

Caridade é o amor de Deus. O fato de o Coração de Jesus ser essa fornalha  ardente ou seja, não só uma fornalha, que de si já traz a ideia do ardor, mas uma fornalha ardentíssima exprime bem a ideia de que Ele é o foco de todo o amor de Deus. E que a devoção ao Coração de Jesus, por intermédio do Coração Imaculado de Maria, é especificamente esplêndida para quem se lamenta de ser tíbio, de estar se arrastando de maneira vagarosa na vida espiritual. É a devoção mais indicada e mais excelente, capaz de comunicar o fogo e o fervor da caridade a essas almas que deploram sua estagnação nas vias da piedade.

Modelo de verdadeira paciência

Também me parece muito importante, para nossa época, a invocação com a qual louvamos o Coração de Jesus, paciente e misericordioso.

“Paciente” significa aquele que sofre. É, portanto, o Coração de Jesus sofredor e misericordioso, pronto a padecer até mesmo as injúrias que Lhe fazem os homens. É o Coração d’Ele enquanto amando o sofrimento, compreendendo que é a grande lei da vida e que, sem isso, a existência não vale absolutamente nada. Pois, em última análise, consideradas as coisas sob certo ângulo, o valor de uma criatura humana se mede por sua capacidade de aceitar com coragem e resignação as dores que a Providência permite em seu caminho.

E então temos o Coração de Jesus como nosso modelo de paciência. E uma das formas importantes de sermos pacientes, nesse sentido superior da palavra, diz respeito à atitude que tomamos em relação aos nossos próximos. Quer dizer, sabermos aturar os desaforos e provocações, sermos amáveis e bondosos para com aqueles que nos fazem sofrer pelo seu mau gênio, pelas dificuldades de trato, etc. Para isso, é necessário pedirmos ao Sagrado Coração de Jesus essa paciência de que Ele é a fonte.

Além dessa forma preciosa de paciência, uma das expressões mais típicas da capacidade de sofrer é o espírito de iniciativa, pelo qual o homem vence a preguiça, a moleza, o tédio, o amor a si mesmo e se lança ao trabalho, à luta apostólica, e se joga até o mais grosso e ardoroso dessa luta, se necessário for, quites a deixá-la imediatamente se o interesse da Igreja conduzi-lo no sentido oposto.

Eis a melhor forma de paciência que devemos rogar ao Coração de Jesus, é esse espírito de iniciativa e de combatividade, em virtude do qual renunciamos a todos os nossos relaxamentos.

Paciente e misericordioso. É a misericórdia enquanto corolário da paciência, disposta a tudo aturar e a tudo perdoar. Sim, convençamo-nos dessa maravilhosa verdade: o Sagrado Coração de Jesus nos perdoa uma vez, duas vezes, duas mil vezes, e não quer que desanimemos de seu perdão.

Assim, esta é a magnífica invocação que nos exorta a nunca perder a confiança na clemência de Nosso Senhor, pela intercessão do Coração Imaculado de Maria: Coração de Jesus, paciente e misericordioso. Paciente com os meus defeitos, com os meus pecados; misericordioso em relação às minhas lacunas. Pelos rogos do Coração de vossa Mãe Santíssima, tende pena de mim, ó Senhor.

Vítima que pagou por nossos pecados

Envolvendo idéias análogas à da invocação anterior, é a do Coração de Jesus, propiciação pelos nossos pecados.

Às vezes acontece nos sentirmos fundamentalmente indignos e as almas mais puras e mais altas o podem sentir até com maior intensidade. E compreendemos que, diante da justiça infinita de Deus, não somos absolutamente nada. Donde essa invocação constituir inestimável motivo de tranqüilidade para nós. Ela significa que, se meus sacrifícios, sozinhos, não têm valor diante do Altíssimo, há entretanto uma Vítima que vale tudo: porque é uma Vítima sem mancha, sem jaça, ligada por união hipostática à própria divindade. E essa Vítima é Nosso Senhor Jesus Cristo, que se ofereceu por mim, de tal maneira que tudo aquilo que eu tenho receio de não conseguir, essa Vítima alcança.

Ela carregou os meus pecados, por eles sofreu, e em virtude desse holocausto eu considero minhas faltas com vergonha, com contrição, pelo menos com atrição, mas em todo caso com imensa confiança, porque Alguém se imolou e derramou por mim, pela minha salvação, todas as gotas do seu sangue. Por isso eu devo ter confiança, não em mim, mas nesse sangue infinitamente precioso que por mim foi vertido à exaustão.

Esse é o Sagrado Coração de Jesus, propiciação pelos nossos pecados.

Fonte de toda consolação

Consideremos uma última invocação: Coração de Jesus, fonte de toda consolação.

A palavra “consolação” encerra dois sentidos: num deles quer dizer fortalecimento; no outro, alegria, suavidade, unção do Divino Espírito Santo na alma. E em ambos os sentidos o Sagrado Coração de Jesus é fonte de toda consolação.

Sabemos quanto Ele enche de júbilo e de satisfação espiritual as almas que Lhe são devotas, os corações que se abrem para a sua bondade infinita. Mas importa compreendermos também que a nossa força vem d’Ele. E quando nos sentirmos fracos, tíbios, desorientados, sobretudo quando estivermos sem coragem diante de algum grande ato de generosidade, não devemos avançar sozinhos, imaginando que por nosso próprio mérito o conseguiremos. Não! O Coração de Jesus é a fonte de toda a força. Por meio do Coração Imaculado de Maria, canal único e necessário para nos aproximarmos do Coração de Jesus, temos de nos dirigir a Ele e implorar as forças de que carecemos.

E seguramente não seremos frustrados em nosso pedido. Em determinado momento sentiremos a força de que precisamos, inclusive e acima de tudo, para realizarmos as coisas mais árduas e difíceis com relação à nossa vida espiritual.

Aqui ficam, portanto, algumas considerações que nos podem ser úteis em nossa piedade. Por exemplo, quando comungarmos, procuremos nos lembrar dessas invocações, pensando que recebemos na alma, por presença real, física, verdadeira e viva, esse Coração no qual adoramos todas as perfeições expressas nessa Ladainha.

Sagrado Coração de Jesus

Na imagem do Sagrado Coração de Jesus contemplamos a força, a varonilidade, a seriedade, a decisão do Rei e Mestre por excelência. Mas, ao lado disso, vemos n’Ele tanta doçura, tanta harmonia e um modo tão bondoso de tomar todas as coisas, que sentimos algo a nos dizer: “É feliz quem está com Ele, acerta na escolha do caminho da vida quem se põe afim com Ele, porque é objeto dessa bondade”. E Ele tem o poder de dar aquilo que o afeto d’Ele promete. Nosso Senhor Jesus Cristo não mente: de alguma maneira, custe o que custar, Ele nos concederá o prometido.

Plinio Corrêa de Oliveira

Contemplando o Sagrado Coração de Jesus

Junho é o mês do Coração de Jesus. Dr Plino tinha essa devoção arraigada em sua alma desde a mais remota infância, e a desenvolveu ao longo de toda a sua vida, como se pode ver no texto da conferência que transcrevemos a seguir.

 

A devoção ao Sagrado Coração de Jesus é tão antiga em mim que — como já contei aos senhores — antes mesmo de eu saber dizer “papai” ou “mamãe”, quando minha mãe me perguntava: “Onde está o Sagrado Coração de Jesus?”, eu apontava para a imagem d’Ele.

Conhecer uma devoção é, sem dúvida nenhuma, debaixo de certo ponto de vista, degustá-la. E o degustar alguma coisa, para o meu modo de ser, nunca é completo enquanto eu não conhecer essa coisa até ao fundo. Uma das razões que me empolgaram tanto no livro de São Luís Maria Grignion de Montfort, “Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem”, é que ele toma o assunto central e vai até onde se pode e se deve ir para ter conhecimento da questão. Vendo a montagem racional desse assunto, em função da doutrina católica, eu o compreendi. E compreendi bem, como gosto de compreender.

Entendendo desse modo, eu me sinto muito mais eu mesmo, sinto-me muito mais em casa para amar, porque a mente humana gosta de ver a insondabilidade das coisas, se com praz em de ver a força do raciocínio, se alegra em sondar palmo a palmo uma questão e ir até ao fundo dela.

É assim que o homem ama. Ao menos é assim que eu sei amar. Não sou, nem um pouco, amigo desses espíritos cartesianos que pensam que tudo se resume em compreender e que, uma vez compreendido, está tudo acabado. Não. É preciso ter o raciocínio, mas também o sentimento. Por que fazer a escolha entre o raciocínio e o sentimento? Se Deus fez o homem capaz de raciocínio e sentimento, tenhamos ambas as coisas, para fazer a vontade de Deus e para sermos nós mesmos.

O que se deve entender por “coração”?

Tomo os elementos que me parecem fundamentais nesse grande e misterioso assunto que é a devoção ao Sagrado Coração de Jesus.

Por “coração” os antigos entendiam não precisamente o que se entende hoje, mas algo que é ao mesmo tempo mais vasto e, em certo sentido, diferente.

Em nossos dias, o coração é quase o símbolo do sentimento desacompanhado da razão. Diz-se que o coração de uma pessoa vibra quando ela sente um certo enternecimento, quando é alvo de um ato de bondade, ou quando tem uma condescendência com algo.

Mas coração é só isso?

Para os antigos, não era assim. Eles tomavam o coração como o órgão que nós conhecemos, que pulsa, que tem aurículas, ventrículos, faz sístoles e diástoles, e em razão de cujo funcionamento — uns mais solidamente na sua jovem idade, outros mais precariamente nas idades avançadas — todos estamos vivos. Mas coração significava para eles algo mais. Era o conjunto das coisas que o homem vê, ama e guarda na sua mente, por assim dizer, como se fossem “slides”, porque lhe falaram mais.

A palavra coração representa esse conjunto de coisas enquanto amadas pelo homem com um amor que não é apenas uma conaturalidade ou uma simpatia, mas é um ato racional. As coisas que foram julgadas segundo certa doutrina verdadeira — que é o ponto de referência de tudo — e foram encontradas conformes a essa doutrina, e, por isso mesmo, amadas. A sensibilidade é um eco harmonioso, delicado e nobre, desse amor. Mas, é preciso ter compreendido bem e ter chegado bem até ao fim no julgamento, para amar inteiramente. É necessario compreender até ao fundo, para admirar e amar de corpo inteiro, de coração inteiro.

O coração do católico. O Coração de Jesus

O coração do católico representa, nesse sentido, a mentalidade dele, que inclui a sua sensibilidade, mas indica sobretudo aquilo que — estando de acordo com a doutrina católica, apostólica, romana — ele conhece pela Fé como verdadeiro. Aquilo que ele ama acima de tudo e toma como uma “linha rectrix” de todas as outras coisas, porque é conforme à verdade verdadeiríssima, à verdade soberana, à verdade padrão, segundo a qual todas as outras verdades são de fato verdades, e contra a qual todas as aparências de verdade não são senão erros enganosos.

Em todo caso, tendo já como pressuposto que o coração é o símbolo da mentalidade, nós podemos nos perguntar como era a mentalidade de Nosso Senhor Jesus Cristo. É um tema audacioso, é uma navegação tão alta que o homem tem medo de chegar até lá. Mas, de outro lado, esse ar atrai. Quanto mais alto se voa nele, mais se tem vontade de subir, e medo de ser obrigado a descer. É o contrário da aviação terrena.

O que nos é dado entrever daquilo que seria a mentalidade de Nosso Senhor Jesus Cristo em algum de seus aspectos?

Devemos considerar essa mentalidade muito mais na sua Humanidade Santíssima do que na sua Divindade. Nesta última, o tema subiria tanto que não seria fácil, pelo menos a um leigo, tratar da questão. Mas a Humanidade santíssima d’Ele está mais perto de nós. Um “perto” cuja distância vai de uma ponta a outra do universo, porque a perfeição d’Ele não tem comparação com nada e com ninguém.

A Fé nos ensina que o Verbo se encarnou e habitou entre nós. A natureza humana d’Ele está ligada pela união hipostática à natureza divina. A Segunda Pessoa da Santíssima Trindade encarnou-se e desse acontecimento único resultou Nosso Senhor Jesus Cristo. Essa dualidade de naturezas numa só pessoa significa que a sua Humanidade santíssima tinha com a Divindade um contacto mais íntimo que que teria com Deus o Santo mais perfeito.

Mistérios da união hipostática

Essa união, porém, não deixa de ter aspectos misteriosos para nós. Por exemplo, na Oração do Horto das Oliveiras, parece que a natureza humana de Jesus teve uma como que treva, uma como que noite escura, em relação à natureza divina, de maneira que Ele se sentiu abandonado e rezou:

— Meu Pai, se for possível afaste-se de Mim este cálice.

E veio um Anjo que o consolou, e Ele se reanimou.

Também, no alto da Cruz, Ele teve uma exclamação que parece lançar uma luz especial sobre o mistério das relações entre a sua natureza humana e a natureza divina. Ele bradou:

—Meu Pai, meu Pai, porque Me abandonastes?

É verdade que este é o primeiro versículo de um salmo que prenuncia a sua vitória, e, recitando-o, afirmava que ia ressuscitar. Mas, de qualquer forma, havia ali um brado de abandono.

Foi tão grande esse abandono que pouco depois Ele disse: “Consummatum est!” E entregou o seu Espírito.

Os senhores estão vendo, por aí, que havia mistérios, havia dores e padecimentos nesta humana natureza tão ligada à natureza divina. E como nesta vida há uma certa proporção entre os sofrimentos e as alegrias, que tremendos padecimentos devem ter sido os d’Ele, uma vez que devem ter sido tão extraordinárias suas alegrias! Os senhores podem imaginar, numa alma unida a Deus, formando com Deus uma só Pessoa, a alegria que isso pode dar! Nenhum Anjo do Céu tem essa alegria! Ele tinha e tem no Céu. Mas, de outro lado, se há uma proporção das alegrias com as dores, que dores, e que dores, e que dores Ele deveria sofrer!

“Tudo está consumado”: a dor do inexplicável

Poucas coisas fazem sofrer tanto o homem quanto a dor do inexplicável. Quando ele tem explicação para a sua dor, ele sofre menos. Mas, quando a dor é inexplicável e cai sobre ele como algo que ele não entende… Não é porque ele queira tomar satisfações de Deus, mas é que do não-entender lhe vem o medo de que aquilo seja um castigo por alguma culpa, que aquilo seja algo fora dos desígnios divinos.

Nosso Senhor não podia ter culpa, e Ele sabia disso, e nada para ele era inexplicável. Porém, que misteriosos sofrimentos Ele teve? Nós não o sabemos. Só sabemos uma coisa: é que Ele passou pelos tormentos mais pasmosos que jamais um ser tenha padecido na História. Esses sofrimentos de alma eram tão extraordinários que deixariam qualquer homem com a saúde arrasada em poucas horas: poderiam sobrevir enfartes, derrames cerebrais, e tudo o que os senhores possam imaginar. Ele aguentou até o fim, e seu último ato foi um ato de lucidez: “Consummatum est — Tudo está consumado”.

Depois de criar o universo, Deus o viu em seu conjunto e considerou que cada coisa era bela, boa e verdadeira, mas que o conjunto era mais belo do que cada uma das coisas em particular. Tem-se a impressão de que Nosso Senhor Jesus Cristo, ao morrer, considerou tudo o que sofreu e viu que tinha sofrido tudo o que devia padecer, e que era uma beleza, uma torrente de sangue e de dores, como nenhum oceano poderia conter. A última gota de sangue estava derramada, a última dor, a mais inexplicável, a mais pungente, estava sofrida. Estava tudo pronto. Ele contemplou a formosura deste horror e disse: “Está tudo oferecido pela Redenção do gênero humano: “Consummatum est”. Eu sofri tudo o que tinha que sofrer, e tudo o que se pode sofrer, Eu sofri de maneira a minha tarefa redentora estar inteiramente pronta: “Consummatum est”. Só me falta o último lance, que é a separação da alma do corpo. Depois disso, cessarei de sofrer. Mas esse último lance, Eu ainda tenho que dar: morrerei!”

E morreu… Que coisa maravilhosa! Com que sensibilidade, mas com que compreensão profunda de sua missão, com que força e continuidade Ele sofreu aquilo tudo! É algo que não se pode medir suficientemente.

Harmonia de perfeições

Ora, devemos imaginar o Homem Deus com todas essas forças e grandezas implícitas na alma, imaginá-Lo assim, vivendo os vários aspectos de sua vida terrena.

Por exemplo, quando Ele acariciou as crianças que vieram falar com Ele e disse: “Deixai vir a Mim os pequeninos, porque deles é o Reino do Céu”. Os senhores estão vendo o afeto, a bondade, a doçura… Não há homem de qualquer idade que vendo-O dizer: “Deixai vir a Mim os pequeninos”, não pense: “Bem, então há um lugarzinho para mim também, por mais que eu seja um pequenino, porque, em comparação com Ele, todo mundo é pequenino. Eu vou me aproximar”.

Que doçura nessas palavras! Essa é a suavidade de Nosso Senhor Jesus Cristo, o qual era ao mesmo tempo tão forte e, no sentido mais sublime da palavra, tão decidido. Resolveu sofrer, sofreu até ao fim e até ao ápice tudo, e de bom grado, sem excluir nada. Tão terrível e tão misericordioso, a ponto de dirigir-se ao bom ladrão e fazer a primeira canonização na Igreja Católica:

— Tu hoje estarás comigo no Paraíso.

Os senhores podem imaginar como o bom ladrão se sentiu reconfortado e animado com essa promessa. Ficasse com inveja dele. Cada um de nós que, na hora da morte, ouvisse essas palavras: “Hoje estarás comigo no Paraíso”, se levantaria da cama para glorificar a Deus e dizer: “Mas então, Senhor, o que esperais? Vamos! Vamos, levai-me!”

Mas como pode uma alma humana compor esses quadros de conjunto, de maneira a, quando vir Nosso Senhor expulsando os vendilhões do templo, pensar n’Ele acariciando uma criancinha ou contando a parábola do Bom Samaritano; imaginá-Lo, com uma bondade indizível, curando este, aquele, e aquele outro, espargindo em torno de Si alegria, consolação, tranqüilidade, saúde; pensar n’Ele encantando os Apóstolos que O ouviam enlevadíssimos?

Como conjugar essas duas visões: Ele tão forte, tão incomparável, tão único, e, ao mesmo tempo, tão misericordioso e tão acessível aos pequeninos?

É preciso lembrar-se d’Ele como está no Santo Sudário, e aí se compreenderá como Ele era, no sentido mais nobre da palavra, o atleta de Deus, o herói de Deus! Siegfrid, Lohengrin, toda espécie de “heróis” dessa ordem, sublimados por Wagner, aqueles homens da mitologia antiga, tudo isso é quinquilharia em comparação com o Varão do Santo Sudário!

Como imaginar no Menino Jesus, apenas nascido em Belém, como imaginar que nessa Criança, cuja alma contém todas as canduras e inocências imagináveis e excogitáveis, estava o Herói que iria sofrer de maneira a impressionar os homens até ao fim do mundo?!

N’Ele todas essas perfeições se ajustavam de maneira a não se poder compreender. Ele é muito maior do que o campo de nossa visão. Ele é uma maravilha que, ou nós O consideramos por partes, ou não O conseguimos considerar.

Adorar todas as perfeições do Sagrado Coração de Jesus

Cada um adora Nosso Senhor como foi chamado a adorá-Lo. Como sou eu quem está falando, tenho de dizer o que me vai na alma. É meu modo de ser.

Eu nunca me contentaria de adorar só um desses aspectos sem procurar reuni-lo a todos os outros e, ao

menos muito sumariamente, fazer a ideia de como seria o conjunto. Eu tenho a impressão de que, se eu O conhecesse nesta vida terrena, uma das coisas que eu mais gostaria era de admirar e de adorar as transições de estados de espírito d’Ele, o como Ele passava de uma disposição para outra. De modo que eu pudesse compreender como é que uma disposição se encaixava na outra. E nessas transições, adorar a harmonia desses estados de espírito tão diversos. Parece-me que, com isso, o meu desejo das correlações, das reversibilidades e das harmonias, das ordenações em tudo, encontraria algo que o saciasse.

Há no teto da igreja do Coração de Jesus, em São Paulo, um afresco que é uma pintura boa, ao estilo do século

XIX. Esses quadros habituais de Nosso Senhor, muito respeitáveis e veneráveis, satisfazem muito a piedade, mas em geral fixam a atenção do homem num determinado estado de espírito de Nosso Senhor. Nos quadros do Sagrado Coração de Jesus, os autores fixam sempre — e a justo título, muito fundadamente — a sua misericórdia infinita. Mas a sua misericórdia infinita era só uma de suas perfeições. Não podemos sustentar que Ele não tinha outras perfeições, uma vez que Ele as tinha todas.

Como é belo esse afresco! Como é ótimo, como me tem feito bem ao longo de minha vida! Mas eu gostaria que outros quadros pintassem Jesus em outros estados de espírito.

Por exemplo, Ele meditando. O olhar absorvido, enlevado e contemplativo d’Ele, sozinho no deserto, durante quarenta dias de jejum. Gostaria de imaginá-Lo junto de uma pedra, no deserto árido, ou com uma vegetaçãozinha ordinária e muito rasteira, que seria o contrário da sublimidade da cena. Ou com uma bonita areia que se estende ao longe. No fundo, um pôr-de-sol em brasa e seu divino perfil se recortando sobre ele… Jesus meditando e orando. Portanto, sua natureza humana, por assim dizer, fazendo filosofia e teologia. Como é que seria a sua expressão fisionômica nessas ocasiões?

Se Ele já se tinha deleitado na contemplação do universo, quanto mais se deleitaria na contemplação daquilo que é mais do que todo o universo, Nossa Senhora! Gostaria de imaginá-Lo, então, na sua Humanidade e na sua Divindade juntas, olhando para dentro dos olhos de Nossa Senhora. Ela, enlevadíssima, num êxtase altíssimo. E Ele, enquanto Deus, pensando: “A minha obra-prima!”; e enquanto Filho e Homem pensando: “Minha Mãe! Que perfeição!”

O que um de nós daria para estar do lado de fora da porta e olhar pelo buraco da fechadura? Se nos exigissem como preço disso fazer qualquer sacrifício depois, nós faríamos. Morrer depois, não nos importaria! Ter visto essa cena e morrer… para que viver mais? E, de fato, me pergunto: haveria ânimo para viver, depois de ter visto isso? De que adiantaria, por exemplo, depois disso ver a beleza do mar? Eu gosto tanto do mar, mas depois de ter visto Maria, o que é ver o mar?…

Eis o Coração que amou tanto os homens!

Voltando àquele afresco da igreja do Coração de Jesus. Está Ele aparecendo a Santa Margarida Maria. O lugar da aparição está todo iluminado. Ele fala a ela com uma expressão de muita bondade, muito comprazimento, muita misericórdia. E ela está muito enlevada, naturalmente. A cena é ainda completada com as palavras tocantes de Jesus. Ele aponta o seu próprio Coração e lhe diz: “Eis aqui o Coração que tanto amou os homens e foi por eles tão pouco amado!”

Os senhores compreendem que é de cortar o coração! Que um tal Coração tenha amado tanto e tenha sido tão pouco amado, não se sabe o que dizer! Evidentemente, nós fomos amados por Ele muito mais do que nós O amamos, porque Ele é tão maior do que nós, que um ato de amor d’Ele deixa os nossos pobres amores muito atrás… Entretanto, o problema é que nós não O amamos até onde podemos, e era o que nós deveríamos fazer. Ele diz essas palavras com misericórdia e bondade. Mas eu gostaria de perceber ali todos os outros estados de espírito; gostaria de perceber essa correlação e de, por assim dizer, pela admiração, pela adoração — que é a palavra adequada quando se trata d’Ele — pela adesão, de algum modo tentar viver isso em mim. Enternecer-me como Ele, adorar como Ele, resistir como Ele, sofrer como Ele! Por que não?! Isso todos nós gostaríamos de fazer.

Uma coleção fabulosa

Se nós pudéssemos fazer uma coleção dos timbres de voz de Jesus ensinando como Mestre!… Ninguém foi mestre como Ele, que é o Divino Mestre! Explicando com clareza, com sabedoria, com profundidade, horizontes extraordinários, mas com uma simplicidade de desconcertar. Seu ensino é tão simples e, ao mesmo tempo, tão profundo! Santo Agostinho dizia que o ensinamento d’Ele era como um rio no qual um elefante se afogaria e um cordeiro passaria sem molhar senão os pés.

Como nós gostaríamos também de, por exemplo, colecionar os seus sucessivos olhares! Para não falar senão em dois : o olhar para São Pedro, que o converteu e o fez chorar a vida inteira, e um olhar para Nossa Senhora. Escolham o momento. Talvez o momento do último olhar nesta vida. Com certeza, antes de morrer, Eles trocaram um olhar em que transpareciam o carinho e a adoração da parte d’Ela, e o amor indizível, o apreço extraordinário e o carinho da parte d’Ele, ao se separarem.

Como seria a história de todos os seus olhares? E como seria o olhar d’Ele expulsando os vendilhões do Templo? Para Pilatos, desprezando toda a covardia do Procurador Romano? E o olhar de repreensão aguda e severa para Anás e Caifás?

Tudo isso era um reflexo do seu Coração. Esse Coração pulsou, ora com mais, ora com menos intensidade, ao longo de todos esses acontecimentos.

E por isso é belo pensar como a mente e o Coração d’Ele, numa união, viveram todos esses acontecimentos da sua vida terrena. Até ao fim do mundo haverá gente que adorará esses vários aspectos de Jesus.

Oração a fazer ao Sagrado Coração de Jesus

Que oração fazer a esse Divino Coração? Nós podemos repetir, olhando para Nosso Senhor crucificado, com seu Coração chagado pela lança do centurião, a jaculatória que está na Ladainha do Sagrado Coração de Jesus e que me encanta:

“Cor Jesu lancea perforatum, miserere nobis. — Coração de Jesus perfurado por uma lança”, tende compaixão de nós. Vós que levastes a pena de mim a ponto de quererdes que, depois de morto, vosso Coração ainda recebesse essa ferida, e que o resto de água misturado com sangue saísse de vosso lado por meu amor, tende pena de mim!”

E rezar também: “Anima Christi, sanctifica me. — Alma de Cristo, santificai-me”. Nada há de mais santo do que a Alma de Cristo… Que a Alma de Cristo, por assim dizer, toque em mim e me torne um Santo! Eu não quero outra coisa.

“Corpus Christi, salva me. — Corpo de Cristo, salvai-me. Sangue de Cristo inebriai-me. Água do lado de Cristo, lavai-me… e lavai-me mais ainda! Paixão de Cristo, dai-me forças. Olhai para minha miséria, minha moleza e minhas insuficiências. Dai-me força na luta contra os vossos inimigos. Ó Bom Jesus, ouvi-me, pelos rogos de Maria. Escondei-me nas vossas feridas. Cobri-me, com vossas feridas, da justa cólera do Padre Eterno. Na hora de minha morte, chamai-me e mandai-me ir para junto de Vós, para que Vos louve com os vossos Santos, com a Santa das Santas, por todos os séculos dos séculos. Amém.”

São Cirilo de Alexandria – Execração até o último limite

Partindo do exemplo de São Cirilo de Alexandria, arrojado defensor da Maternidade Divina de Maria, Dr. Plinio faz uma penetrante análise sobre como Deus execra aqueles que, entre a verdade e o erro, tomam uma posição intermediária, como está consignado no Apocalipse: Se fosses frio ou quente, Eu te aceitaria; mas como és morno, começo a vomitar-te de minha boca. Os mornos são o melhor dispositivo de proteção do erro, mas os execrados do Coração de Jesus.

 

Sobre São Cirilo de Alexandria, cuja memória é celebrada em 27 de junho, diz Dom Guéranger:

Defensor da maternidade divina de Nossa Senhora

Por carta, São Cirilo tentou reconduzir Nestório, mas esse sectário aferrava-se a suas opiniões. Por falta de argumentos, Nestório queixava-se ao Patriarca da ingerência de São Cirilo. Como sempre em tais circunstâncias, Cirilo encontrou homens apaziguadores que, sem partilhar o erro nestoriano, considerava que o melhor, com efeito, era não responder, por temor de o irritar, de aumentar o escândalo e de ferir a caridade.

A esses homens, cuja singular virtude tinha a propriedade de se abalar menos das audácias da heresia que da afirmação da Fé cristã, a esses partidários da paz a qualquer preço, respondia Cirilo:

“Como Nestório ousa deixar dizer em sua presença, na assembleia dos fiéis, anátema seja quem chama Maria Mãe de Deus; pela noção de seus partidários, ele chama de anátemas nós e os outros bispos do universo e os antigos Padres que em todas as partes e em todas as épocas reconheceram e honraram unanimemente a Santa Mãe de Deus? E não estamos em nosso direito de devolver-lhe sua palavra e dizer: Se alguém nega que Maria seja a Mãe de Deus, seja anátema? Se o medo de qualquer aborrecimento afasta de nós o zelo pela glória de Deus e nos faz calar a verdade, com que rosto podemos celebrar em presença do povo cristão os santos mártires, quando o que faz o elogio desses que morreram é unicamente o cumprimento desta palavra: pela verdade combatiam até a morte?”(1)

O trecho é verdadeiramente magnífico. São Cirilo, que viveu no século V, combateu a heresia de Nestório afirmando a maternidade divina da Bem-aventurada Virgem Maria. Nos primeiros séculos da Igreja houve pessoas que, impugnando o dogma da divindade de Nosso Senhor, afirmavam que Ele era só homem e não Deus. Outros afirmavam que Ele era Deus, mas não homem, e que tomava o aspecto, a aparência de homem, como um fantasma, porém negavam que Ele fosse o Homem-Deus. Dos dois lados a heresia tentou abalar a crença católica de que Nosso Senhor Jesus Cristo é verdadeiro Deus e verdadeiro Homem, como professamos até hoje.

Os que mais atrapalham a Causa católica

A heresia de Nestório, ao negar a perfeita união entre as naturezas humana e divina em Nosso Senhor Jesus Cristo, constituindo uma só Pessoa divina, tinha uma consequência no que diz respeito a Nossa Senhora, pois afirmava ser Ela apenas mãe do homem Jesus, e não Mãe de Deus. Portanto, a maternidade divina de Maria não existia.

Estabeleceu, assim, a clássica distinção entre ortodoxos, que professavam haver em Nosso Senhor Jesus Cristo ambas as naturezas em uma Pessoa Divina, e heterodoxos, partidários de Nestório. Entre essas duas correntes havia os tais pseudo-equilibrados, querendo fazer ecumenismo e irenismo. Estes achavam, já no século V, ser melhor não fazer discussão porque irrita o adversário, tornando mais difícil a possibilidade de conversão, além de agir contra a caridade. Então, voltavam-se contra São Cirilo porque este Santo falava mal deles.

Pergunto se não é exatamente o que se passa em nossos dias. Há uma raça de almas que correspondem àquilo que está dito na Escritura: Se fosses frio ou quente, Eu te aceitaria; mas como és morno, começo a vomitar-te de minha boca (cf. Ap 3, 15-16). Isto é, se tu aceitasses a verdade, Eu te aceitaria; se tu aceitasses o erro e te arrependesses, Eu te perdoaria. Mas como és daquela espécie de gente morna, que não está nem do lado da verdade, nem do lado do erro, tu Me causas a náusea que a água morna provoca. Sabe-se que a ingestão de água morna em certa quantidade é nauseante. É até usada para provocar a náusea, em determinadas doenças. São os execrados de Deus, que Ele vomita de sua boca, com aquele tipo especial de horror que é o nojo, que caracteriza a náusea. É isto que Nosso Senhor tem em relação a esses.

São eles os que mais atrapalham a Causa católica. Porque sempre se aproximam dos outros dizendo para não seguirem os defensores da verdade, porque eles, mornos, são católicos também, mas não tão exagerados quanto os outros. É por causa disso que as fileiras dos verdadeiros seguidores da Causa católica contam muito menos adeptos do que deveriam contar. O melhor dispositivo de proteção do erro não está entre aqueles que o professam, mas entre os que dizem professar a verdade, porém nas táticas protegem o erro; são verdadeiramente a quinta-coluna que sempre existiu nesse tipo de luta.

Isto nos deve levar a compreender que espécie de horror devemos ter a esse tipo de almas. E se queremos ser inteiramente conformes a Nosso Senhor, imaginem a náusea que essas almas nos devem dar! Quando ouvirmos tais argumentos, o que devemos sentir é náusea. Porque se devemos ser perfeitos como nosso Pai Celeste, e se é legítima aquela jaculatória “Sagrado Coração de Jesus, tornai meu coração semelhante ao vosso”, então precisamos também ter náusea daqueles de quem o Pai Celeste tem náusea. E se queremos ser como o Coração de Jesus, devemos ter horror àqueles de quem Ele tem horror.

Aí está o pedido que devemos fazer a Nossa Senhora: compreender de modo vivo o horror dessa posição e ter contra ela toda a execração infinita que Deus possui em relação a esse tipo de gente. Uma execração que vai até o último limite: é o nojo, o asco, o desprezo. Essa posição intermediária atrai mais a cólera divina do que a definida posição contrária.            v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 8/2/1966)

Revista Dr Plinio 255 (Junho de 2019)

 

1) Cf. GUÉRANGER, Prosper-Louis-Pascal. L’année liturgique. Septuagésime. p. 324.

São João Batista – Modelo do perfeito devoto de Maria

São João Batista é uma alma tão ardentemente mariana que, ainda no seio materno, prestou a Nossa Senhora um ato de devoção intensíssimo. Ele é o apóstolo, o discípulo fiel, o devoto perfeito da Santíssima Virgem, que ouve sua voz, nela discerne os primeiros ecos da voz do Cordeiro de Deus que ele devia anunciar e estremece inteiramente de gáudio.

Devemos, portanto, venerar em São João Batista o modelo do verdadeiro e perfeito devoto de Nossa Senhora, pedindo-lhe que faça de nós perfeitos devotos d’Ela e tenhamos um ouvido interior por onde, quando ouvirmos a voz de Maria Santíssima, estremeçamos de gáudio também, de maneira a nunca um pedido d’Ela nos encontrar de má vontade, tristes, aborrecidos, com desejo de não atendê-La. Pelo contrário, sua voz nos faça estremecer de alegria até quando diga uma palavra austera de renúncia, de sacrifício e sofrimento.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 24/6/1964)

Revista Dr Plinio 255 (Junho de 2019)