Rainha dos Apóstolos

Como Nossa Senhora exercia sua realeza sobre os Apóstolos?

A situação era, debaixo de todos os pontos de vista, delicada; uma dessas situações que a sabedoria divina, por assim dizer, se empenha em resolver com brilho especial. A Santíssima Virgem era Rainha do Céu e da Terra. Portanto, Rainha e Mãe da Santa Igreja Católica. Porém, na Igreja, Ela não possuía um cargo especial de jurisdição.

Quer dizer, a Hierarquia Católica foi, desde o primeiro instante, constituída essencialmente pelo papa, pelos bispos e pelos sacerdotes incumbidos de participar, com os bispos e sob a ordem destes, do governo da Igreja. Ora, Nossa Senhora, sendo do sexo feminino, não podia pertencer à Hierarquia. Isso criava, então, uma situação bonita e complexa: Ela era Rainha da Igreja, mas na Igreja era súdita daqueles de quem Ela era Rainha. E Maria Santíssima devia prestar, enquanto membro da Igreja discente, homenagem, reverência, obediência àqueles de quem Ela era Rainha.

Mas, de outro lado, ponham-se, por exemplo, na posição de São Pedro — o Chefe da Igreja, o Príncipe dos Apóstolos: dar ordens a Nossa Senhora, sua Rainha? Ele ordenava e Ela obedecia. Mas, pensem um pouco… Que Rainha!

Imaginemos — para termos uma pálida ideia dessa situação — que a esposa de um rei fosse, de repente, parar numa ilha que é dirigida por um governadorzinho qualquer das terras de seu marido. A função de governador é dele, a rainha reinante propriamente não governa. Mas como ele vai dispor a respeito da rainha?

E essa comparação não é inteiramente verdadeira. Porque Nossa Senhora não era Rainha apenas, mas Esposa do Divino Espírito Santo e Mãe do Rei da Igreja, que é Nosso Senhor Jesus Cristo. Ela possuía uma autoridade de outra natureza, de outro tipo, sobre a Igreja Católica.

Ela obedecia a São Pedro, de uma obediência efetiva, humilde, enlevada, cheia de entusiasmo; nunca ninguém obedeceu melhor à Sagrada Hierarquia do que a Santíssima Virgem, porque, sendo a obediência à Sagrada Hierarquia uma virtude essencial, então Nossa Senhora a praticou de um modo inconcebivelmente perfeito. Mas, de outro lado, Ela possuía esse reinado sobre as almas dos Apóstolos, que Ela exercia de modo perfeito.

Quer dizer, Nossa Senhora tinha um conhecimento, antes de tudo, profundo, bem entendido, sobrenatural, da mentalidade de todos os Apóstolos, sacerdotes e discípulos de Nosso Senhor. Ela privava, conversava com eles.

O que era esse conversar? Não pensemos que consistia apenas numas consultinhas. Devia ser normalmente um trato por onde eles e Nossa Senhora discorriam; não iam eles contar novidades insípidas, banais, mas falavam das coisas de Deus e de tal maneira que havia uma comunicação de alma, propriamente uma conversa.

Naturalmente, compreendemos como seria a conversa de qualquer pessoa com Nossa Senhora. Quer dizer, a pessoa balbucia alguma coisa e Ela se põe a falar. O resto é enlevo, veneração, admiração, é absorção e tudo quanto podemos imaginar.

Mas eles também diziam algo. Não eram solilóquios em que apenas Ela falava. Eles conversavam. E, como boa Mãe, Maria Santíssima gostava de ouvir o que eles tinham a dizer. E Ela sabia qual a missão de cada um na Igreja, porque conhecia o passado, o presente e o futuro; na economia da Providência, Nossa Senhora conhecia não só a função que eles tinham, ou teriam, mas o que Deus queria que fizessem: de um, que convertesse um povo; de outro, que morresse lapidado; de outro, que construísse uma igreja; de outro, que transpusesse o mar e fosse fundar uma cristandade num ponto remoto.

Conhecendo tudo isso, em todo trato que tinha com eles, Ela ia dispondo a alma de cada um de acordo com os desígnios de Deus. Daí decorria um convívio lindíssimo, maravilhoso, que os Apóstolos e os que se aproximavam d’Ela sabiam notar e respeitar no mais alto grau.

Vemos assim o efeito de Pentecostes. Os Apóstolos, que tinham tratado com Nosso Senhor, foram tão frios com o Redentor na hora extrema; dir-se-ia que não entenderam Nosso Senhor. Mas depois de terem recebido o Espírito Santo, a vista deles ficou inteiramente clara; conhecendo a Mãe de Deus, insondavelmente perfeita, mas infinitamente inferior a Nosso Senhor Jesus Cristo, eles, entretanto, sabiam admirá-La, dar-Lhe o apreço e a veneração que deviam.

Assim, na Igreja nascente Ela irradiava, para um círculo inicial de pessoas, toda essa beleza. Houve, então, um altíssimo grau de devoção a Nossa Senhora. E a primeira expansão da Igreja foi intensamente iluminada por este fogo maravilhoso: a presença e a ação de Maria Santíssima.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência  de 31/5/1972)

 

Rainha e Mãe…

Trazendo em seu seio virginal o Salvador do gênero humano, Maria Santíssima foi, de algum modo, Rainha do sagrado fruto de suas entranhas, o Messias esperado das nações!

 

Qual é o fundamento da realeza de Nossa Senhora? Por que Ela é Rainha? Em que consiste esse título?

Antes de tudo, cumpre considerar que convém a um rei ser filho de uma rainha. Ora, sendo Nosso Senhor Jesus Cristo Rei de todos os homens — quer enquanto Deus, quer enquanto homem —, a realeza de Nossa Senhora resulta do fato de ser Ela a Mãe do Rei. Entretanto, há também uma razão muito mais profunda.

Virgem concebida sem pecado original, cujas orações trouxeram o Salvador ao mundo

Desde o pecado de Adão, havia quatro mil anos de separação entre Deus e os homens, durante os quais não se podia ir para o Céu, ficava-se no Limbo à espera do momento em que Nosso Senhor Jesus Cristo nascesse e resgatasse a humanidade.

Aguardava-se, então, que Deus criasse aquela Virgem excepcional, dotada de uma santidade e de uma perfeição que os homens jamais poderiam imaginar, de cujo ventre nasceria o Salvador.

Vendo qual era o estado miserável da humanidade, Maria Santíssima pedia a Deus que enviasse o Salvador à Terra nos seus dias. Ela ansiava também conhecer a Mãe do Salvador e poder servi-La como criada ou escrava. Podemos imaginar o que deve ter sido o estremecimento de alma de Nossa Senhora quando teve conhecimento, pela saudação angélica, de que essa pessoa era Ela mesma. Qual foi o sobressalto virtuoso, santo e ao mesmo tempo jubiloso da alma d’Ela, vendo que era escolhida para ser a Mãe de Deus?!

Então compreendemos bem a perfeição da resposta da Virgem ao Anjo: “Eis a escrava do Senhor, faça-se em Mim segundo tua palavra” (Lc 1, 38). Quer dizer: “Eu julgava que não merecia, não estava ao meu alcance, mas, uma vez que vem de Deus o convite, faça-se em Mim segundo a tua palavra”. Nesse momento o Espírito Santo atuou em Nossa Senhora e foi concebido n’Ela Nosso Senhor Jesus Cristo.

As relações de alma entre o Filho e a Mãe durante a gestação

Começava então o período belíssimo em que Nosso Senhor Jesus Cristo vivia em Maria. Durante todo o tempo da gestação, Ela foi o sacrário dentro do qual Nosso Senhor dava glória ao Padre Eterno.

Pelo conhecido processo do desenvolvimento da criança no claustro materno, Ele recebia d’Ela, continuamente, os elementos necessários para a formação de seu corpo. Mas não devemos imaginar que esta relação tão íntima entre a mãe e o filho, quando este vive no claustro materno, fosse apenas física e corpórea. Era também uma relação espiritual e sobrenatural.

À medida que, do corpo e do sangue de Maria, Nosso Senhor ia formando o seu próprio Corpo, estabeleciam-se relações de alma entre Ele e Ela cada vez mais íntimas, de maneira tal que, no momento do nascimento, o processo de união de Jesus com Nossa Senhora também chegou a seu termo. E em Belém, quando Ela, pela primeira vez, O contemplou com seus próprios olhos, havia terminado um processo intimíssimo de união cujo verdadeiro alcance só poderemos compreender no Céu, na medida em que não haja nessa realidade tão sublimes mistérios que sobrepujem a qualquer compreensão.

Nossa Senhora foi, de algum modo, Rainha de Nosso Senhor Jesus Cristo

Mas não devemos imaginar que, nascendo Nosso Senhor, a união d’Ele com Ela diminuiu; pelo contrário, sendo a Virgem Maria cada vez mais santa e perfeita, a união d’Ela com Ele se desenvolvia sempre mais, de maneira que aquela união havida durante toda a gestação de Nosso Senhor Jesus Cristo, depois do nascimento foi crescendo ainda mais. E Nossa Senhora tinha mais união com Ele no momento da morte de Jesus do que em qualquer outra ocasião da vida, porque ali as relações entre os dois tinham chegado a um ápice.

Ou seja, quando vivia em Nossa Senhora, Jesus estava em relação a Ela numa dependência completa, como está o filho no claustro materno, o qual não tem vontade própria, mas depende inteiramente da mãe. Nosso Senhor não iria ficar “independentoso” depois que nasceu. Pelo contrário, celebra-se  a obediência, a união d’Ele com seus pais. Quer dizer, Nossa Senhora foi tendo uma autoridade materna cada vez mais enriquecida em relação a Nosso Senhor, até o momento d’Ele morrer.

Então, a esse título, Nossa Senhora foi, de algum modo, Rainha de Nosso Senhor. E quem é Rainha de Nosso Senhor é Rainha de tudo, evidentemente. E a realeza de Maria vem do poder e autoridade que Ela exerceu sobre Aquele que é o Poder e a Autoridade, e que Nossa Senhora conservou até o fim de seus dias, e tem no Céu.

Assim compreendemos por que Nossa Senhora é chamada a onipotência suplicante. Ela não é senão uma criatura humana, uma escrava de Deus. Mas, como Mãe de Deus, sua súplica é onipotente. É pela vontade de Deus que todos os desejos d’Ela são atendidos. Aquela que sempre é atendida por Aquele que é o Rei do Universo, evidentemente é a Rainha do Universo. A realeza de Maria tem como ponto de partida a realeza d’Ela sobre Nosso Senhor Jesus Cristo.

Então é uma realeza que contém todas as outras realezas, todas as alegrias, todos os direitos, etc. A autoridade d’Ela sobre a Igreja, sobre cada católico, resulta deste fato: Ela é a Mãe de Deus e tem com Deus essa relação. Então Ela é a Rainha.

Por ser a Medianeira Universal, Nossa Senhora é a Rainha de cada alma individualmente

O que significa a realeza de Maria vista, não desse ângulo altíssimo, mas num aspecto mais acessível à consideração de todos nós, homens?

Todas as nossas preces, todos os nossos atos de adoração, de ação de graças, de reparação, de louvor que queremos fazer subir ao trono de Deus, devem ser feitos por meio de Nossa Senhora.

E, em sentido inverso, todos os dons que recebemos dos Céus nos vêm por meio de Nossa Senhora. De maneira que Ela é o canal necessário entre nós e Deus. Não necessário pela natureza das coisas, mas Deus, por um ato de sua vontade livre, estabeleceu que fosse assim. Ela é, portanto, a Medianeira de todas as graças.

É verdade de Fé que tudo aquilo que todos os santos pedissem, não por intermédio de Nossa Senhora, eles não receberiam. Mas tudo quanto Maria Santíssima pede, sem que nenhum santo peça, Ela recebe. Compreendemos, então, que qualquer oração que um de nós faça, ou é encaminhada por meio de Nossa Senhora, ou Deus Nosso Senhor ignora. Ela é a Medianeira Universal de todas as preces que vão para Deus, o canal de todas as graças que Deus concede aos homens.

Esta grande verdade coloca Nossa Senhora na posição que Ela deve tomar no culto católico. E está, em larga medida, imbricada no livro de São Luís Grignion de Montfort a respeito da verdadeira devoção a Maria Santíssima. Quer dizer, o princípio da escravidão a Nossa Senhora se funda em grande parte nessa verdade, que faz par com a verdade de que a Santíssima Virgem é a onipotência suplicante.

Minha vida é, em última análise, dirigida, ritmada, orientada segundo os desígnios da Providência, de acordo com as graças que eu recebo. Então, Nossa Senhora é minha Rainha, e Ela dispõe de mim como quer. Minha vida espiritual tem Maria Santíssima como centro. Ela é, portanto, Rainha de cada alma individualmente, pois, concedendo essas graças, Nossa Senhora governa as almas. Ela é, portanto, Rainha de todas as almas, Rainha dos Corações.

A Rainha dos Corações, pela ação da graça

Esta é uma linda invocação, cujo sentido é preciso entender, e que está muito relacionada com a devoção a Nossa Senhora conforme a escola de São Luís Maria Grignion de Montfort.

O que vem a ser a Rainha de todos os corações?

O coração não é principalmente símbolo da ternura e do afeto. Na linguagem da Escritura, que é evidentemente o sentido empregado pela Igreja quando fala de Nossa Senhora Rainha dos Corações, o coração significa o ânimo, a mentalidade, a vontade do homem.

Ser Rainha dos Corações significa que Maria Santíssima tem poder sobre a mente e a vontade dos homens. Ela pode desvencilhar os homens dos defeitos que eles têm e tornar tão vivo o atrativo para o bem, que os leve — não por uma imposição tirânica, mas pela ação da graça — para onde Ela entenda. Então, Nossa Senhora Rainha dos Corações é, por excelência, Nossa Senhora Rainha.

Nossa Senhora é também a Rainha da sociedade humana

Como Maria Santíssima é Rainha do coração, da mentalidade de cada homem individualmente considerado, podemos dizer que Ela é Rainha da sociedade humana, da opinião pública, porque esta não é senão todas as mentalidades enquanto imbricadas umas nas outras, influenciando-se reciprocamente.

O que quer dizer isso concretamente?

Deus não criou o universo ao acaso; tudo que Ele faz é com conta, peso e medida. Consideremos o número enorme de camarões que existem no mar, e o número dos que houve desde o início do mundo e haverá até o fim. Essa imensa quantidade de camarões forma uma coleção que exprime a natureza “camarônica”, se assim se pudesse dizer, em todos os seus aspectos, de maneira que quando chegar a vez do último camarão criado se extinguir, está constituída uma série admirável de camarões que desapareceram, mas ficam nas realizações de Deus, na história do universo como uma perfeição que Deus fez.

Assim também, quando estiverem reunidos no vale de Josafá para serem julgados, os homens notarão que são uma coleção e que tudo quanto há na natureza humana de possível foi de algum modo expresso por cada homem. De maneira que na obra de Deus faltaria algo se tal homem não tivesse sido criado. Cada um tem um papel num plano sublimíssimo, que se revelará por ocasião do Juízo Final. E depois ficará revelado para todo o sempre qual foi o plano de Deus com o gênero humano, e quais pessoas foram chamadas para o Céu porque mereceram, e quais foram para o Inferno.

Assim, os homens são passíveis de serem vistos num olhar de conjunto. E o gênero humano visto em torno d’Aquele que é a sua expressão mais perfeita, e contém e sublima tudo quanto há no gênero humano de belo: Nosso Senhor Jesus Cristo. E, infinitamente depois d’Ele, mas incomensuravelmente antes de todos os homens, a Mãe de Nosso Senhor Jesus Cristo, Nossa Senhora.

Essa coleção dos homens que há, houve e haverá se chama gênero humano. E dentro do gênero humano não existe um salto. Os grandes saltos não estão na regra geral da obra do Criador. Entre o gênero humano e cada homem individualmente, existem os grandes grupos humanos, que são as raças. Dentro das raças, as nações; dentro das nações, as regiões; das regiões, as cidades; das cidades, as famílias; e dentro das famílias, os homens. Quer dizer, formam um conjunto de grupos que ligam o homem ao grupo supremo, que é o gênero humano; constituem então, de A até Z, a estrutura da humanidade.

Nesse sentido o que é uma nação, um país? É, por sua vez, uma espécie de coleção, um dos aspectos da humanidade que se revela de certo modo; um denominador comum de todos os homens que constituem aquela nação e que exprimem uma virtualidade da natureza humana. Esse todo repete de algum modo dentro de si o que é o gênero humano. Essa coleção é como um mosaico constituído pelos indivíduos vivos, mas que têm uma projeção na História e uma continuação naqueles que viverão. É propriamente isto que constitui, na sua visão completa, a sociedade humana.

Nossa Senhora é, então, Rainha desta enorme alma coletiva — se se pudesse usar esta metáfora — da humanidade, que é a opinião pública, com todas as interações, as interinfluências que a constituem.

Uma sociedade que aceita o governo de Nossa Senhora

Como é uma sociedade que obedece a Nossa Senhora? Santo Agostinho definiu isso perfeitamente, apresentando uma imagem magnífica da sacralidade, do respeito, da ordem, do bem-estar da alma e do corpo.

Contra a afirmação dos pagãos de seu tempo de que a causa de tantas desordens no mundo era o fato de haver católicos, o Bispo de Hipona fez a seguinte apóstrofe: “Imaginai um reino onde o rei e os súditos, os generais e os soldados, os pais e os filhos, os professores e os alunos são católicos e procedem de acordo com a Doutrina Católica! Vós tereis a ordem humana perfeita. Ordem de paz, de glória, de sabedoria, de esplendor, de felicidade”.

Essa é a ordem que nasce do fato de todo mundo fazer a vontade de Deus, e, portanto, a de Nossa Senhora, que é a Rainha. Essa é a descrição da ordem humana, tão completamente diversa da desordem que hoje reina.

Qual é a razão pela qual reina essa desordem? No livro “Revolução e Contra-Revolução” tentamos explicar isso. A humanidade rompeu com Nosso Senhor Jesus Cristo e com Nossa Senhora, rompendo com a Santa Igreja, porque só está unido a Nosso Senhor Jesus Cristo e a Nossa Senhora quem está unido à Santa Igreja Católica. Rompendo cada vez mais com a Santa Igreja, a desordem foi entrando no mundo até esse auge em que estamos atualmente.

Então há os que são chamados para restaurar essa ordem, implantar o Reino de Maria: a sociedade humana fazendo a vontade de Nossa Senhora. Porque Nossa Senhora é a Rainha efetiva de cada alma, dos grupos humanos menores: família, município, região; e dos grupos humanos soberanos: nações. Porque Ela é a Rainha efetiva do gênero humano. Daí deve nascer aquela ordem perfeita que algum dia existirá na sua plenitude, antes do mundo acabar.

Rainha de cada um e do mundo inteiro

Então nós não olhamos apenas com saudades para as épocas católicas que foram, mas, sobretudo, com esperança para a época católica que virá, o Reino de Maria, onde todas as coisas serão assim.

Devemos viver apenas de uma grande saudade e de uma grande esperança? Não. Nós temos a possibilidade, cada um dentro de si mesmo, de proclamar o Reino de Maria, dizendo: “Em mim, ó minha Mãe, Vós sois Rainha. Eu reconheço o vosso direito e procuro atender às vossas ordens. Dai-me ‘lumen’ de inteligência, força de vontade, espírito de renúncia para que as vossas ordens sejam efetivamente obedecidas por mim. Ainda que o mundo inteiro se revolte e Vos negue, eu Vos obedeço”.

E nessa torrente de desordem e de pecado que há na Terra, a alma de quem afirma isso é como um puro e adamantino brilhante. Assim, Nossa Senhora continua a ter uns enclaves no mundo: aqueles que a Ela se consagram, reconhecem todo o poder d’Ela sobre eles e dizem: “Esteja o mundo revoltado como for, eu me levanto e declaro: em mim Maria Santíssima manda, e por causa disso começo a Contra-Revolução, para que Ela mande também nos outros”.

É a realeza de Nossa Senhora vista por dois lados: enquanto mandando em mim e, em segundo lugar, fazendo de mim um soldado da Contra-Revolução. Quer dizer, um varão que luta para tornar efetiva a realeza de Nossa Senhora na Terra.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências de 31/5/1972,  31/5/1974 e 31/5/1975)

Rainha da graça

Maria é o receptáculo no qual se encontram todas as graças criadas por Deus. Ela é tão imensa na ordem da virtude e da santidade, que corresponde de modo superexcelente a essa torrente de graças, que A faz grande como ninguém.

Proclamada a Rainha da graça, é a Rainha da ordem sobrenatural e, portanto, Rainha por plenitude.

Eu gostaria de ver uma catedral dedicada a Ela, onde se unissem num só olhar, estes dois aspectos: Rainha intangível, mas curvada, com um sorriso, sobre os mais indignos e miseráveis, a dizer-lhes: “Continuo sendo vossa Mãe, e por isso me curvo até vós, por mais que estejam baixo. Até lá chega minha misericórdia e vos salva!”

Essa harmonia que reúne os dois extremos da Criação é mais um título da grandeza d’Ela.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 25/9/1990)

Santa Helena

Santa Helena, Imperatriz e mãe de Constantino Magno, foi o grande tipo de mulher que vive só para Nosso Senhor Jesus Cristo. Matrona de alma elevada, de horizonte largo, compreendendo as coisas a partir dos seus aspectos mais sublimes, e que, com sua extraordinária influência, contribuiu para transformar um Império pagão em ordem temporal católica. Acima de tudo, foi a santa que encontrou e deu ao mundo um presente imensamente grandioso: a verdadeira Cruz de Cristo.

Plinio Corrêa de Oliveira

São Pio X, modelo de varão católico

Quero que o último ato de meu intelecto e o último pulsar de meu coração seja um brado de amor e fidelidade ao Papado”, costumava repetir Dr. Plinio até seus derradeiros dias. Na verdade, depois  e sua entranhada devoção ao Santíssimo Sacramento e a Nossa Senhora, por nada tinha ele mais apreço do que à divina instituição do Papado, pela qual nutria imensa veneração. Sentimento que transparece nas palavras aqui transcritas, com as quais recorda a figura de um dos maiores Pontífices que já ocuparam a Cátedra de Pedro: São Pio X, cuja festa se celebra no dia 21 de agosto.

 

Em 1903, após um dos mais longos pontificados da História, e numa idade muito avançada, faleceu o Papa Leão XIII. Logo depois das exéquias, de acordo com o secular costume da Igreja, todos os cardeais se reuniram na Cidade Eterna para o Conclave que elegeria o novo Sumo Pontífice.

Conta-se que o então Cardeal Sarto, Patriarca de Veneza, foi um dos poucos, se não o único, a se dirigir a Roma tendo já em mãos o bilhete de passagem da volta, tão certo estava de que sobre ele não recairiam os votos de seus pares.

E os fatos pareciam confirmar as despretensiosas expectativas daquele Purpurado, pois, ao final de alguns escrutínios, o sucessor de Leão XIII estava praticamente escolhido. Tratava-se do Cardeal Rampolla del Tindaro, que fora Secretário de Estado do falecido Papa, e cuja orientação de governo ele haveria de manter durante o novo Pontificado.

Manteria, se uma inesperada atitude não viesse mudar o rumo dos acontecimentos. Tão logo se tornou claro qual seria o resultado da votação, levantou-se, trêmulo e indeciso, o Cardeal-Arcebispo de Praga, dizendo: “Eu tenho uma comunicação a fazer da parte do meu soberano, o Imperador da Áustria. Prevalecendo-se do direito que têm os monarcas austríacos de vetar alguém eleito para o Papado, quando tal escolha lhe parecer nociva aos interesses e às conveniências da Igreja Católica no seu país, o Imperador Francisco José, meu senhor, dá ordem de vetar o Cardeal Rampolla del Tíndalo para Papa”.

Esse uso do veto ou seja, de proibição escandalizou todo o Conclave, porque há muito tempo os soberanos austríacos não exerciam esse direito. Era, portanto, um papel por demais antigo que Francisco José retirava da gaveta. Mas… retirou e mandou: não podia ser. O Cardeal Rampolla estava fora de cogitação.

Sabendo que não seriam possíveis tratativas nem apelações, os cardeais dão início a novos escrutínios, fazendo valer a célebre subtileza da diplomacia romana dos grandes tempos. A cada turno de eleição eram proclamados os resultados, e em duas ou três vezes os votos para o Cardeal Rampolla retomaram por baixo e foram crescendo o suficiente para significar um desafio ao Imperador da Áustria, não porém o bastante para elegê-lo. Foi uma jogada astuta e inteligente, bem ao estilo do Vaticano…

A eleição do Cardeal Sarto, futuro São Pio X

Como era de se  esperar, caiu em definitivo a votação do Cardeal Rampolla, enquanto se levantava outro candidato: o Cardeal Sarto, Patriarca de Veneza, futuro São Pio X.

Em suas Memórias do Papa Pio X, narra o Cardeal Merry del Val então monsenhor e secretário do Conclave que, depois de um daqueles decisivos escrutínios, fora encarregado de procurar o Cardeal Sarto, a fim de demovê-lo da resistência que este opunha à sua eleição. Entrando ele na Capela Paulina, reservada aos Purpurados, encontrou ali o Patriarca de Veneza, ajoelhado no solo de mármore, a cabeça entre as mãos, chorando e rezando diante de uma imagem de Nossa Senhora do Bom Conselho de Genazzano.

O prelado se ajoelha por sua vez junto do Cardeal Sarto, e com voz baixa lhe confia a mensagem de que era portador. Lentamente, o Patriarca levanta a cabeça, volta para o secretário a face sulcada de lágrimas, e lhe pede que anuncie a sua recusa formal ao sólio pontifício. Santo como era, tinha plena consciência de que o Papado significava uma responsabilidade tremenda, em meio a árduos combates em defesa da Igreja. Parecia repetir, daquele modo, as palavras do Divino Redentor no Horto das Oliveiras: “Pai, se for possível, afasta de mim este cálice”…

Compadecido daquele varão que dava tais mostras de humildade, Monsenhor Merry del Val -, ele mesmo homem de rara virtude e futuro braço direito de São Pio X –, a fim de animá-lo e fazê-lo aceitar o cargo, disse-lhe:

Coragem Eminência, o Senhor o ajudará!

Novamente ocultou o Cardeal Sarto a cabeça entre as mãos, para terminar sua prece. O secretário do Conclave se afastou. “Nunca esquecerei” comenta ele “a impressão que me produziu este encontro, à vista de uma angústia tão intensa. Era a primeira vez que me punha em contato com Sua Eminência, e pressentia ter me achado em presença de um santo”.

Poucas horas depois, o Cardeal Sarto, premido pelas reiteradas e insistentes  solicitações de vários membros do Sacro Colégio, decidiu desistir de sua oposição. Na manhã seguinte, era eleito por uma grande maioria, e aceitava a missão de suceder a São Pedro, sob o nome de Pio X.

“O Anjo guardião do Paraíso”

Homem de origem assaz modesta, o Cardeal Sarto (em italiano, sarto quer dizer alfaiate) nasceu na pequena aldeia de Riese, na qual até hoje se conservam a casa em que ele veio ao mundo e todas as lembranças de sua história desde menino. Riese tornou-se um lugar de peregrinação. Adolescente, Giuseppe Sarto deixou o lar paterno para ingressar no seminário da diocese de Treviso. Depois de completar seus estudos em Pádua, foi ordenado sacerdote, e, três décadas mais tarde, sagrado Bispo de Mântua. Em 1893 tornou-se Cardeal e Patriarca de Veneza, de onde partiu para ser eleito Papa.

Apesar de sua ascendência humilde, São Pio X possuía tanta dignidade moral, e uma tal estampa pessoal que um jornalista francês, depois de entrevistá-lo, fez o seguinte comentário: “Quem se encontra e conversa com o Papa, conhece um homem tão forte e tão puro, que tem a impressão de estar diante do Anjo que a Escritura descreve como guardando a entrada do Paraíso Terrestre, com uma espada de fogo à mão”.

De fato, diversos traços da vida de São Pio X revelam que ele foi realmente uma figura angélica, um modelo super-acabado de pureza e de fortaleza. Homem de alta estatura, muito robusto, como são em geral os italianos da região do Veneto, era dotado de vigorosa personalidade, e sobretudo, formado numa integridade e firmeza de princípios, bem como numa completa renúncia de si mesmo, que caracteriza o verdadeiro Santo da Igreja Católica.

Por isso, assim que o mundo conheceu o nome do novo sucessor do Príncipe dos Apóstolos, uma intensa manifestação de júbilo e de louvores a Deus perpassou a Cristandade. Estavam os fiéis convictos de que Nosso Senhor lhes havia dado um Pastor sábio e virtuoso, atilado e prudente, em cujo coração pulsava zelo e amor ardentes pela Esposa Mística de Cristo, que a Providência acabava de confiar a suas firmes mãos de Soberano Pontífice. E ele de tal maneira a dirigiu com maestria e paternalidade, que a Igreja passou a viver um período de esplêndido florescimento, de brilho extraordinário, de profunda unidade e coesão na sua estrutura sagrada.

O papa das primeiras comunhões

Entre os inestimáveis benefícios que a Religião Católica lucrou no governo de São Pio X, destaca-se o de ele ter estabelecido a Primeira Comunhão para as crianças. Até então, a tendência corrente era de que uma pessoa só a fizesse quando inteiramente adulta, não sendo raro o caso de homens e mulheres que comungavam pela primeira vez nas vésperas de seu casamento.

Essa atitude era determinada pela compreensível ideia de que a Comunhão é algo por demais sagrado para que as crianças se aproximem dela, pois não teriam critério para comungar com o respeito e a devoção necessárias.

São Pio X, entretanto, entendia de modo diferente, e colocou a questão em outros termos. Dizia ele: “Não se trata de saber o que a criança é capaz de pensar, e sim que grau de inocência ela tem. Porque se fôssemos raciocinar em função de sua capacidade intelectual, então não deveríamos batizá-la nos primeiros dias após seu nascimento”.

Um juízo muito acertado, cujo desenvolvimento é este: no momento do Batismo, embora o recém-nascido ainda não pense, a recepção do Sacramento significa para ele uma comunicação de graças extraordinárias, que agirão sobre sua alma até o dia em que comece a fazer uso da razão. E mesmo nesse início da vida de pensamento aquelas graças do Batismo lhe serão de extrema valia, guiando seus primeiros passos e o fortalecendo na Fé.

É este um dos principais motivos pelos quais a Igreja inteira batiza as crianças logo depois do nascimento.

E análogo princípio aplicou São Pio X, ao instituir a Primeira Comunhão para as crianças. Quer dizer, tomando em consideração que estas, via de regra, ainda conservam sua inocência, ser-lhes-á ocasião de graças superabundantes receberem a Sagrada Eucaristia. Para tanto, basta compreenderem a mudança de substância operada na hóstia no momento em que é consagrada, passando a ser, verdadeiramente, Nosso Senhor Jesus Cristo, em seu corpo e sangue, alma e divindade.

Observadas essas condições, São Pio X determinou que a festa da Primeira Comunhão para as crianças fosse cercada de grande solenidade. E datam daí os ornamentos de que se revestem as igrejas e capelas nos dias de Primeira Comunhão, e os trajes cerimoniosos com que meninos e meninas se apresentam para receber a Jesus Sacramentado, símbolos da alma inteiramente inocente e virginal que vai de encontro ao seu Salvador.

Atmosfera santificante cobrindo a Igreja

Outro  precioso fruto do governo de São Pio X foi o espraiar-se de uma atmosfera sacrossanta por todos os ambientes católicos que dele recebiam a influência, produzindo um efeito vantajoso, santificante e magnífico. De tal maneira que, anos depois de sua morte, ainda persistiam o perfume e os ecos de seu pontificado. Tal se verificou sobretudo nos países distantes da Europa, aos quais naqueles tempos tardavam em chegar as transformações ocorridas no Velho Continente.

Por exemplo, no Brasil. Eu nasci em 1908, quando há cinco anos já se encontrava São Pio X à frente  da Igreja. E fiz a minha formação religiosa envolto naquela atmosfera sacrossanta, a qual conduzia os fiéis a um respeito, uma confiança e uma admiração indizíveis por toda a sagrada hierarquia eclesiástica. E não apenas pelo que essa hierarquia tem de fundamental e organizado por ordem de Nosso Senhor Jesus Cristo portanto, algo de suma perfeição como também pelos homens investidos nesses cargos, pois nos pareciam santos como era santa a missão deles, e como era santo o Papa Pio X.

Assim, no meu espírito, como no de incontáveis católicos, os padres, os religiosos, as freiras, os bispos, e daí para cima até o Soberano Pontífice, todos se nos afiguravam de uma venerabilidade sem nome, dignos do nosso maior acatamento e inteira dedicação.

Um remédio corriqueiro… e misterioso

Ao longo de onze anos viveu a Igreja sob essa firme, paternal e abençoada proteção de São Pio X. Em agosto de 1914, após o assassinato do Arquiduque Francisco Ferdinando aliás, amigo do santo Pontífice -, arrebentou a Primeira Guerra Mundial.

O Papa, que antevira o terrível conflito e suas trágicas conseqüências para os povos nele envolvidos, via redobrarem suas responsabilidades de pastor e guia das almas, aumentando-lhe o já pesado fardo que trazia sobre os ombros. Contudo, a despeito das graves e constantes preocupações, da grande amargura que lhe causavam os horrores da Guerra, seu estado físico não inspirava maiores cuidados. Animava-o o mesmo vigor e o zelo de sempre, até a noite de 18 de agosto, quando, depois de encerrados os compromissos do dia, despediu-se de seus assistentes e se recolheu aos aposentos pontifícios. Antes de se deitar, tomou um remédio corriqueiro que os médicos lhe haviam receitado para uma ligeira indisposição catarral. Nada de maior importância, afirmaram eles. Segundo estes, tratava-se de um incômodo trivial, motivado pela temperatura excessivamente alta daquele verão de 1914.

Na manhã seguinte, porém, o Cardeal Merry del Val é chamado às pressas ao Vaticano: o Papa despertara com muita febre, e seu estado de saúde agravara-se de modo alarmante. Assim que o secretário entrou no quarto de São Pio X, este o reconheceu, estreitou-lhe as mãos com força, e apenas lhe pôde dizer: “Eminência… Eminência!”. Passaram-se alguns minutos, e as últimas palavras que o Cardeal ouviu de seus lábios foram um ato de entrega nas mãos da Providência: “Resigno-me totalmente”, disse o santo Vigário de Cristo. Pouco depois ele perdia a capacidade de falar, embora permanecesse consciente e dirigisse àqueles que o circundavam seu olhar sempre vigilante e perscrutador.

Como piorou durante o dia, Papa recebeu o Viático e a Extrema-Unção com as menores formalidades possíveis, pois todos temiam um rápido desenlace. Ali estavam suas fiéis irmãs, chorando em silêncio, o secretário de todas as horas, e alguns de seus mais próximos auxiliares. Subitamente, ouviu-se o timbre do grande sino de São Pedro, que começava a dobrar pro Pontífice agonizante. A este sinal, foi exposto o Santíssimo Sacramento em todas as basílicas patriarcais de Roma, dando início às rogações especiais. Os graves acentos do bronze subiam aos céus, juntamente com as preces do povo fiel que, na praça do Vaticano, pedia a Deus por seu Pastor moribundo.

Algumas horas depois, na madrugada do dia 20 de agosto, São Pio X suavemente adormeceu no Senhor. Nas páginas de suas famosas Memórias, o Cardeal Merry del Val, deixa transparecer certa estranheza em relação a essa misteriosa morte. “Ninguém”, escreve ele, “pôde explicar ainda a brusca mudança que se produziu na saúde do Papa, durante aquela noite…”

A Igreja chorou a perda de seu “Anjo guardião”, que por ela velara com tanta diligência. Modelo de Pontífice e de varão católico, foi elevado às honras dos altares quarenta anos depois de partir para a eternidade.

Santa Rosa de Lima

Normalmente, imaginamos ser necessário arquitetar grandes planos, praticar ações dignas de louvor ou realizar vultosas obras para tornarmo-nos notáveis ante nosso tempo. Entretanto, uma jovem pode provar ao mundo como a santidade e o amor a Deus são de maior eficácia: Santa Rosa de Lima, Patrona da América.

No livro “El verdadero rostro de los santos”(1) há alguns dados biográficos sobre Santa Rosa de Lima.

“Nascida no dia 20 de março de 1586, em Lima, Isabel Flores de Oliva — mais tarde conhecida como Rosa de Lima — era da antiga nobreza espanhola. Porém, quando ainda jovem, seus pais empobreceram.

“Inclinada à vida religiosa desde a mais tenra idade, Santa Rosa sofreu contrariedades, sobretudo por parte de sua mãe, que se havia empenhado em casá-la.

“Aos vinte anos fez-se Terceira Dominicana, sob a proteção de Santa Catarina de Siena. Vivia em uma cela no jardim da casa paterna e ajudava seus pais fazendo bordados e cuidando das flores que a família depois vendia.

“No que se refere à mortificação, ninguém a superou. Certa vez, quando se achava acabrunhada por mil inquietações, ouviu a voz do Senhor que lhe dizia: ‘Aquele que deu a vida e o sangue por ti saberá cuidar também de teu corpo. As leis naturais foram criadas por ele e são para ele’. Rosa destinava dez horas do dia à oração, dez horas ao trabalho, e apenas o que sobrava concedia ao sono. A cada dia, no decurso de horas inteiras, via-se assaltada por terríveis tormentos, temendo que o Senhor a abandonara, considerando esse suplício pior do que a morte. Porém depois, sentia-se fortalecida por novas sensibilidades da graça divina.

“A uma comissão de teólogos que a interrogava acerca de sua oração, confessou: ‘Rezar não me custa nenhum trabalho. Minhas energias concentram-se no meu interior como o ferro atraído pelo imã e se sentem embriagadas por tal doçura que nenhum mal é mais possível. Meu coração arde. Sinto a Deus em todo o meu ser e tenho absoluta certeza de sua adorável presença. Tal contemplação não me cansa, e minha única alegria é sentir Deus presente em minha alma. Ver-me privada d’Ele seria para mim um inferno e nada criado poderia consolar-me.’

“O último pedido que saiu de seus lábios, na hora da morte, foi em benefício de sua mãe: ‘Senhor, deixo-a em vossas mãos. Dai-lhe forças, não permitais que seu coração se dilacere de tristeza’. Tão logo expirou, viu-se sua mãe tomada por um tal consolo e alegria que precisou retirar-se para ocultar a felicidade que seu rosto estampava.

“Faleceu em 26 de agosto de 1617.”

Família da antiga nobreza, porém empobrecida

Vários aspectos da vida de Santa Rosa são dignos de comentário. Em primeiro lugar, o fato de pertencer a uma família nobre, porém empobrecida, é notável.

À semelhança da Sagrada Família de Nazaré — a qual também não dispunha de recursos em abundância, mas era de estirpe real —, a família de Santa Rosa passava por uma situação sumamente penosa, difícil, e, a esse título, também sumamente abençoada, em que a dignidade da linhagem e do caráter deve brilhar sozinha, sem os recursos tão prestigiosos e tão úteis das riquezas.
Compreende-se, de imediato, um traço da predileção divina.

Símbolos da elevação de sua alma

Há episódios na história dos santos permitidos pela Providência com a intenção de ornamentar a história de suas almas, e proporcionar que vejamos, através dessa beleza secundária e quase episódica, algo de mais profundo dentro da santidade, e de nos atrair à admiração para com a vida virtuosa.

Sob esse aspecto, é muito bonito considerar Santa Rosa vivendo reclusa em uma cela, no jardim da casa paterna, e ajudando seus pais através da confecção de bordados e cuidando das flores que a família vendia.

Eram bordados feitos por uma jovem santa, que se retirara para reclusão inteira, e na clausura também cultivava flores.

Isso causa tal encanto ao início de sua vida, que não poderia deixar de ser comentado.

Missão de caráter universal

A mortificação à qual se dedicava era particularmente preciosa para os tempos em que Santa Rosa viveu.

A vinda dos ibéricos para a América colocava-os numa situação moral das mais perigosas. Encontrando aqui uma natureza tropical exuberante, com condições climáticas que infelizmente favoreciam a luxúria, muitos se deixavam dissolver num ambiente onde a vulgaridade e a corrupção moral debandavam.

Ora, nestas circunstâncias, ela suscitava em torno de si o espírito de penitência e de mortificação. Com tal atitude, naturalmente, ela freou em grande parte a corrupção dos costumes e criou condições menos favoráveis à Revolução, o que determinou, por sua vez, uma marcha mais lenta desta em nosso continente.

O admirável é que Deus não suscitou para a América inteira um grande pregador — Ele pôs, nas mais variadas partes, grandes pregadores, porém de âmbito restrito —, mas sim uma mulher que tivesse uma missão de caráter universal. Santa Rosa de Lima fez, no plano da comunhão dos santos, o necessário para salvar a América.

Vemos o poder de uma alma entregue a Nossa Senhora, à misericórdia de Deus e à penitência.

Sustentação nos sacrifícios, consolações na oração

Essa posição é quase incompreensível caso não consideremos o que, em contrapartida, está dito por ela a respeito da oração. Durante a oração, Santa Rosa recebia consolações extraordinárias, sentindo um verdadeiro Céu na Terra durante dez horas por dia. E isso dava-lhe ânimo para suportar depois uma vida de dor e sofrimento.

Vias de oração na santidade

Entre os santos há semelhanças e dissemelhanças.

Santa Teresinha do Menino Jesus dizia estar tão habituada ao sofrimento que, quando chegasse ao Céu, precisaria ela desabituar-se de padecer para se sentir verdadeiramente feliz. Nisto se vê uma enorme analogia com o conceito de Santa Rosa de Lima sobre o sacrifício.

Porém, no que diz respeito às vias da oração, como eram diferentes! Santa Rosa de Lima sentia muita sensibilidade ao rezar; Santa Teresinha do Menino Jesus passou muitas vezes por aridez durante a oração.

Entretanto, uma e outra oração eram igualmente aceitas por Nossa Senhora e encaminhadas a Deus Nosso Senhor como sendo variantes de uma mesma coisa, inteiramente coerente e uniforme consigo mesmo: a santidade.

Resignação, profunda paz de alma

Uma observação de proveito para a vida espiritual é a seguinte: sabendo que sua mãe sofreria muito com sua morte, Santa Rosa pediu a Deus, então, que esta tivesse forças para resistir a tal dor. Pois bem, ela foi tão amplamente atendida, que a mãe não só teve força, mas também uma inexplicável alegria com a morte da filha.

Como se pode explicar essa felicidade?

É que a resignação cristã constitui uma tristeza com tais contrafortes de paz e de alegria, que há mais felicidade numa alma cristã profundamente triste — mas resignada — do que noutra repleta de uma alegria natural.

A resignação cristã é filha da consolação

Consolar, do latim “consolare”, significa dar força, ou seja, conceder capacidade de aguentar a dor. A verdadeira consolação consiste em robustecer a alma para aguentar o sofrimento.

A resignação cristã é exatamente filha da consolação, filha da aceitação da dor. De maneira tal que essa consideração dá ao homem uma alegria superior em meio às suas tristezas.

Então, à vista de considerações tão elevadas, a alma ao mesmo tempo deplora a morte e encontra uma estabilidade, uma fixidez em face dela, uma posição de equilíbrio. Isto se chama resignação cristã.

A graça pode acentuar essa alegria que existe na resignação. E foi exatamente o que aconteceu com a mãe de Santa Rosa de Lima: ela recebeu tanta força, e sua alegria dentro da resignação foi de tal maneira acentuada pelo Divino Espírito Santo, que ela precisou se esconder para que não a julgassem mal.

No que essa alegria consistia? Com certeza, uma participação da alegria de Santa Rosa que já estava inundada pelas felicidades celestes.

Peçamos a Santa Rosa de Lima que interceda por nós, a fim de — à sua semelhança — termos a coragem de nos deixarmos fazer santos e assim realizarmos grandes obras.

Estão aqui algumas considerações a respeito da vida de Santa Rosa de Lima.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências de 29/8/1966 e 29/8/1967)

1) Wilhelm Schamoni: Barcelona, 1951.

São Bernado – Alma de fogo, de sofrimento e de luta

São Bernardo era um monge da Ordem religiosa cisterciense, uma rama dos beneditinos, reformada por ele e destinada a praticar uma austeridade maior do que a imposta pelas regras monásticas  ais duras de seu tempo. Ele tinha a convicção de que, por meio do sofrimento, o homem expia os próprios pecados e os dos outros.

oi uma alma de fogo, que queria de todos os modos evitar o paganismo o qual ia ressuscitando ignobilmente de dentro de sua própria sepultura, para dar no neopaganismo moderno: era a  Revolução nascente.

São Bernardo resolveu ser um homem de sofrimento e de luta, e recolheu-se no claustro, para onde chamou muitas almas generosas.

A Europa encheu-se de conventos cistercienses, cujos monges começaram a praticar uma regra que até hoje é o espanto e a admiração dos homens.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 24/9/1989)

São Bernardo – Venerado sobre os ombros do Imperador

São Bernardo é um dos sóis da Igreja Católica e da devoção mariana. É o “Doctor Mellifluus” – Doutor Melífluo – que como ninguém elogiou a bondade e a misericórdia de Nossa Senhora. Ele é, por excelência, o homem da penitência e da mortificação, como também da polêmica com os adversários da Igreja do seu tempo.

Este Santo Abade de Claraval era, ao mesmo tempo, um homem dulcíssimo e uma tocha ardente. Ninguém sabia falar da Santíssima Virgem com tanta unção quanto ele. De outro lado, era um polemista tremendo que alcançou sucessos extraordinários.

Certa vez, estando na Alemanha, São Bernardo entrou numa cidade onde se encontrava também o Imperador do Sacro Império Romano Alemão, o mais alto dignatário temporal da Cristandade. A fama de santidade do Abade cisterciense era tal que todo o povo foi correndo de encontro a ele. E São Bernardo teria sido esmagado pela multidão se o próprio Imperador não o tivesse tomado nos braços e feito montar sobre seus ombros. Desta maneira, foi ele um Santo que se apresentou à veneração pública montado num imperador! Glória extraordinária para uma época que possuía, muito mais do que outras, o sentido do valor simbólico dessas coisas.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 17/4/1971)

Confiança e alegria

Neste mês em que a Igreja celebra a realeza de Maria Santíssima, reveste-se de particular propriedade a recomendação que, com desvelada insistência, Dr. Plinio dirigia a seus discípulos para confiarem sem limites na Rainha e Mãe de Misericórdia:

“Ao discorrer sobre o pecado, São Francisco Xavier dizia ter mais temor, não da queda em si, mas do desânimo em relação à indulgência divina no qual pode cair o pecador após cometer a falta.

“Ora, a maneira de não incorrermos nesse desânimo é nos lembrarmos da Mãe inesgotavelmente misericordiosa que temos. E em possuindo essa misericórdia inexaurível, Nossa Senhora nos alcança as graças para nos emendarmos, e sua clemência se exerce perdoando, contemporizando, regenerando.

“De sorte que nunca será demasiado insistir: confiemos, confiemos e confiemos na Santíssima Virgem. Lembremo-nos sempre da extrema meiguice e da extraordinária condescendência de nossa Mãe para com as misérias de cada um de nós, individualmente considerado, e como, imbuídos dessa confiança, na oração da ‘Salve Rainha’ A honramos enquanto Soberana do universo, mas, ao mesmo tempo, A invocamos como Mãe, e Mãe de Misericórdia.

“Importa termos continuamente presente essa ideia da insondável clemência de Nossa Senhora, pois qualquer devoção, qualquer vida de piedade que não a tenha, corre o risco de ser completamente estiolada. Sem esta noção da misericórdia de Maria nada caminha, nada se realiza. Pelo contrário, tudo anda e cobra vigor com a ideia dessa providência indizivelmente suave, materna e contínua de Nossa Senhora sobre cada um de nós.

“Portanto, pensemos nessa verdade e procuremos cumular nossa alma de confiança e de alegria, pois quem possui uma Mãe assim não tem razão para se desesperar nem se abater com nada.”

Nossa Senhora tudo resolve, desde que nos voltemos para Ela. Devemos pedir-Lhe sempre o seu amparo, recordando-nos daquela sentença de Santo Afonso de Ligório: “Quem reza se salva, quem não reza, se condena”. Aquele que pretendesse passar a vida praticando atos de virtude sobre atos de virtude, porém sem rezar, primeiro não passaria a vida praticando atos de virtude e, segundo, acabava se perdendo. Por outro lado, quem vive no pecado mas reza, este ainda é capaz de se salvar.

“Supliquemos muito à nossa Mãe de Misericórdia que tenha pena de nós. Olhemos para as nossas dificuldades espirituais, para os nossos problemas de apostolado, para as nossas necessidades da vida quotidiana e roguemos com insistência o auxílio de Maria Santíssima. Ela nos atenderá infalivelmente. O Coração Imaculado de Maria é a porta na qual, em se batendo, nos é aberta; ao qual, em se Lhe pedindo, nos é dado. Na Mãe de Misericórdia a promessa do Evangelho se realiza com toda a integridade: [pedi e recebereis, batei e ser-vos-á aberto (Mt 7,7)].

“E se me permitam dizer, não receio mentir garantindo-lhes: rezem, peçam, e serão atendidos.”

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 16/11/1964)

São João Eudes: Combate à tibieza e à heresia

Para evitar as tragédias e as apostasias causadas pela Revolução Francesa, Deus suscitou grandes santos, como São João Eudes que difundiu com ardor a devoção aos Sagrados Corações de Jesus e Maria e fustigou energicamente os vícios e os erros doutrinários de seu tempo. Não se intimidou inclusive diante de Luís XIV, ao censurar os costumes da corte, em Versailles.

Ao tratarmos de São João Eudes, convém tomar em consideração que a devoção aos Sagrados Corações de Jesus e Maria suscitou, nos séculos XVII e XVIII, toda espécie de movimentos destinados a evitar a Revolução Francesa. No século XIX, e durante uma parte do XX, foi também a devoção própria de to-dos os contrarrevolucionários.

É preciso notar que essa devoção, tão combatida pelos jansenistas, é de uma substância teológica extraordinária, muito recomendada pelos documentos pontifícios e por vários santos.

Grandes praças públicas se enchiam para ouvir suas prédicas

São João Eudes nasceu em Ery, pequena cidade da Normandia, a 14 de novembro de 1601. Era o filho mais velho do casal Isac Eudes e Maria Ruber. Depois dele, seus pais tiveram mais quatro filhas e dois filhos. Família profundamente religiosa, cresceram todos num ambiente sério, impregnado de vida sobrenatural. Receberam excelente educação, orientada pelos ensinamentos da Igreja.

Em 1615, sendo educado pelos jesuítas de Caen, fez voto de virgindade, doou-se a Maria e votou-Lhe, desde então, um culto fervoroso. Da Universidade de Caen entrou na Congregação do Oratório, fundada por Bérulle, onde permaneceu durante vinte anos.

Bérulle quisera restabelecer entre o clero a doutrina e a santidade, mas não havia pensado em seminários, e foi para instituí-los que São João Eudes, em 1643, deixou o Oratório e fundou a Congregação de Jesus e Maria; e com seus cinco companheiros padres abriu o primeiro seminário de Caen, logo seguido de muitos outros.

Para reconduzir os pecadores à vida cristã, fundou a Ordem de Nossa Senhora da Caridade e, para evangelizar as almas desamparadas, fez-se missionário durante longos anos, pregando nos campos abandonados, nas cidades e até na corte, com uma liberdade e uma eloquência que tinham como suporte a sua eminente santidade.

Pai, apóstolo e doutor da devoção aos Sagrados Corações de Jesus e de Maria, quando morreu já tinha conseguido a introdução dessa festa em um grande número de dioceses, não só da França, como de outros países. Foi ele também que compôs o seu primeiro ofício. Grande pregador, nas suas missões atraía multidões. E, muitas vezes, era obrigado a falar em grandes praças públicas completamente tomadas pelo povo. Novo São Vicente Ferrer, conquistava os ouvintes pelo ardor de sua fé, pela energia com que fustigava os vícios e pela caridade com que tratava os arrependidos e penitentes.

Existe um testemunho histórico de grande valor que comprova o seu êxito. É uma carta de São Vicente de Paula, comentando as missões que assistira. Diz ela:

“Alguns sacerdotes da Normandia, conduzidos pelo Padre Eudes, pregaram uma missão em Paris com uma bênção extraordinária. O pátio dos Quinze Ventos é muito grande, porém tornou-se pequeno, dado o grande número de pessoas que desejavam ouvi-lo.”

O Bispo pró jansenista, Ana d’Áustria e Luís XIV

Os hereges não lhe perdoavam o combate enérgico que movia contra os seus erros. Sendo a heresia o maior dos males, ele não compreendia ter, com os seus adeptos, nem a mais leve aparência de relações, chegando mesmo a não cumprimentá-los.

Conta-se um fato que, de um lado mostra o cuidado com que guardava a pureza de sua Fé, e de outro, a frivolidade, a prepotência dos eclesiásticos de então.

Um dia, o Bispo de Bayeux convidou-o a subir em sua carruagem na qual já se encontrava outro sacerdote. Quando ela se pôs em movimento, o bispo lhe perguntou se sabia com quem viajava.

Sendo um grande orador e um santo muito fogoso, ele fundou uma Congregação para ver se, com o prestígio de uma Ordem religiosa nova, essa devoção pegava na França.

Santos de fogo

Na vida de São João Eudes há uma coincidência entre a obra jurídica e a obra espiritual, que é muito bonito assinalar. Ele viveu num país católico, como era a França, e sua tarefa não foi a de combater os inimigos expressos e extrínsecos da Igreja. Ele estava num país corroído por uma profunda crise religiosa da qual haveria de nascer, afinal, a Revolução Francesa.

Essa crise religiosa provinha do fato de que o fervor tinha decaído inteiramente, o senso católico estava muito baixo. Para evitar as tragédias e, sobretudo, as apostasias provocadas pela Revolução, a Providência suscitava grandes almas que, de várias maneiras, procuravam reacender o fervor na França.

Todos os santos dos séculos XVII e XVIII foram santos de fogo. Não foram tanto grandes teólogos quanto santos que tomavam por intenção contaminar, com o amor de Deus, essa mecha que ainda fumegava, mas na qual havia apenas um fogo em estado de brasa e não mais em estado de chama.

Vemos, então, entre outros, São Vicente de Paula, que era um homem de um amor de Deus irradiante; São Francisco de Sales, que exercia uma penetração profunda de amor de Deus nas camadas da alta sociedade. Para essa obra de combustão de amor de Deus, de acender de caridade, encontramos, sobretudo, duas obras fundamentais: a de São Luís Grignion de Montfort, no século XVIII, na Vendeia e na Bretanha, da qual nasceu de-pois a Chouannerie; e a de São João Eudes, que devemos analisar mais especialmente hoje.

Quem lê as revelações de Nosso Senhor a Santa Margarida Maria Alacoque, nota que elas tiveram como intenção expressa enunciar a devoção ao Sagrado Coração de Jesus, dizendo que essa devoção, especificamente considerada, tinha um dom de tirar os tíbios de sua tibieza, de acender o amor de Deus nas almas frias. É a finalidade específica dessa devoção.

Quando se toma um tíbio, um homem que está mais amando suas coisas pessoais do que as de Deus, a devoção indicada para acender nele o amor de Deus desfalecente é a devoção ao Sagrado Coração de Jesus, e naturalmente também ao Imaculado Coração de Maria.

Luís XIV recusou acolher o pedido de Nosso Senhor

Santa Margarida Maria, portanto, recebeu essa devoção, mas era uma freira visitandina reclusa e não podia sair do convento. Ela não tinha como missão difundir essa devoção, mas sim registrá-la, praticá-la, e com isso ser canonizada o que significaria uma espécie de aprovação dessa nova devoção. Ela possuía como missão fazer conhecer essa devoção aos homens que poderiam difundi-la. Entre outros, Luís XIV.

Ela mandou pedir a Luís XIV que fizesse uma alteração na bandeira da França, incluindo a figura do Sagrado Coração de Jesus, e realizasse a consagração desse país ao Sagrado Coração de Jesus. Luís XIV recusou- se a isso. Como resultado dessa recusa, no que diz respeito ao poder real, foi água abaixo a monarquia francesa.

Luís XVI, na prisão do Templo, fez essa consagração e prometeu que, se fosse salvo dos perigos da morte que já o circundavam, ele a realizaria de modo solene. Mas já era tarde! Ele ainda tinha o poder de direito, porém não mais o de fato. E a França estava em tais condições que essa consagração não podia mais ser considerada um ato nacional — como o seria se feita por Luís XIV —, mas era o ato de um rei desacompanhado da população, que estava naquelas convulsões da Revolução e não podia acompanhar esse ato.

Além do rei, Santa Margarida Maria quis também fazer chegar essa devoção a missionários. E assim, espalhando-se nos círculos piedosos, tal devoção tocou São João Eudes que chamou sobre si a tarefa de difundi-la.

Um profeta não atendido que combateu tenazmente contra a tibieza

Sendo um grande orador e um santo muito fogoso, ele fundou uma Congregação para ver se, com o prestígio de uma Ordem religiosa nova, essa devoção pegava na França. E aí nós vemos uma outra recusa, já não do rei, mas do povo francês, pecador solidariamente com o monarca. A devoção impressionou pouco.

Os escritos de São João Eudes foram muito aproveitados para a generalização que a devoção ao Sagrado Coração de Jesus teve, no século XIX. Mas no século XVIII não pegou.

Temos, então, um grande santo o qual é uma espécie de profeta não atendido, e que empregou todas as suas forças no campo espiritual para combater a tibieza francesa, por meio dessa devoção.

Com esse objetivo, São João Eudes utilizou dois métodos: um de caráter espiritual, fundando uma Congregação destinada a difundir tal devoção; outro de cunho jurídico, erigindo um tipo de organização de ensino, os seminários, já existentes em tese, mas ainda não de fato na França, e que ele constituiu dando-lhes as características atuais.

Os seminários eram destinados a tirar os seminaristas das respectivas famílias e educá-los num ambiente fervoroso, de maneira tal que, quando eles fossem padres, tivessem verdadeiro entusiasmo, verdadeira consagração à sua vocação e não ficassem presos às coisas do mundo. Os seminários constituíram um elemento realmente admirável para a formação do clero, e uma das grandes alavancas para a restauração religiosa da Europa, no século XIX.

Repulsa ao herege e respeito à autoridade eclesiástica

Eu gostaria de lembrar três aspectos mencionados por essa ficha biográfica de São João Eudes: a presença do herege na carruagem, o mal-estar do santo com esta presença e a atitude do bispo. Vê-se que o bispo, pregando ao santo aquela cilada, não era inimigo dos jansenistas. Para ter um jansenista viajando com ele, evidentemente é porque não sentia esse mal-estar.

O bispo tratava São João Eudes com a atitude com a qual a impiedade trata quem é verdadeiramente piedoso, ou seja, divertindo-se durante a viagem com o mal-estar de São João Eudes, pela vizinhança daquele herege. Enquanto o prelado, naturalmente, bancava que se encontrava com muito bem-estar com o herege, São João Eudes manifestava uma espécie de repulsa, de horror, de aversão, como se houvesse uma possibilidade de contágio. E o bispo, então, caçoando do santo, divertia-se com o fato. É a velha atitude do ímpio em relação ao piedoso que se recata e, por isso, defende-se contra coisas dessas, e é tido como imaginoso, fantasioso, medroso, homem sem coragem, sem decisão.

E, por se tratar de um bispo, São João Eudes, que era um homem tão enérgico, não queria tomar a atitude enérgica que adotara com Luís XIV. Nota-se o grande respeito de São João Eudes pela autoridade do bispo. Porque, quem era capaz de dizer ao maior rei da Terra o que ele afirmou, evidentemente teria facilidade também de dizer para o bispo. Não lhe faltava personalidade nem coragem.

Mas, uma é a autoridade eclesiástica, outra é a autoridade civil. E sempre que se pode tomar uma atitude submissa em relação à autoridade eclesiástica, a melhor via é a da submissão. De maneira que, diante da má atitude do bispo e do outro jansenista, a posição de São João Eudes nos mostra bem qual é o amor que o católico deve ter à obediência, sempre que, em consciência, lhe seja possível manter essa obediência. E, de outro lado, em que alta conta se deve ter a autoridade eclesiástica.

Pecados que preparavam as monstruosidades de hoje

O episódio com Ana d’Áustria mereceria ser narrado depois do fato ocorrido com Luís XIV.

Não pensem que a atitude dele elogiando Luís XIV, como vem narrada na ficha, não ia sem uma censura ao rei, porque era óbvio que Luís XIV sabia o que estava se passando ali, pois eram esses os costumes da corte precedida pelo monarca.

Havia, portanto, ao lado do modo cortês de começar por elogiar o rei, uma verdadeira censura. E, de fato, o mal que podia ser ali removido, de tal forma dependia do soberano, que bastou o rei olhar para os fidalgos que todos se ajoelharam.

Mas não é este o único fato da vida de Luís XIV em que ele ouviu — humildemente, como filho da Igreja — uma porção de verdades do alto do púlpito. Ele era, sem dúvida, um pecador público e prestou à Igreja, ao lado de alguns serviços, alguns desserviços insignes. Mas a profundidade e o modo de ser do pecado — e até do pecado grave — nas almas daquele tempo, não era a profundidade nem o modo de ser do pecado nas almas de hoje em dia.

Se considerarmos pecadores daquela época, às vezes de má vida, encontraremos neles restos de moralidade, de piedade, de fé, de humildade que, no pecador de hoje, absolutamente não se encontram.

Isso indica bem que naqueles tempos, em que se preparavam as monstruosidades de hoje, havia ainda muita seiva, muita possibilidade de resistência, a qual só não foi levada a cabo inteiramente por um conjunto de circunstâncias históricas, que não vem ao caso narrar no momento. Mas era, em todo caso, uma época muito mais católica do que a nossa.

Característico também é o caso com Ana d’Áustria, mãe de Luís XIV. Ela era uma soberana que, embora tivesse um oratório em seu palácio, absolutamente não se distinguia por uma piedade saliente nem deu uma educação muito piedosa a seus filhos. Entretanto, quando toma conhecimento de que São João Eudes falou fortemente na corte contra a imoralidade, ela o apoia e manda dizer-lhe que gostou. Ela mesma tinha como seu conselheiro São Vicente de Paula.

É uma atitude completamente diferente do afastamento sistemático de todo contrarrevolucionário, de todo aquele que reage e procura ser séria e sinceramente católico, nos dias de hoje.

Quer dizer, não havia o boicote completo do católico verdadeiro, como existe atualmente. O que indica, exatamente, que o vício, o erro, o mal ainda estavam num estado de debilidade, e não se permitiam as insolências, os despotismos que se permitem hoje.

Isso nos faz ver, com toda clareza, o tamanho de nossa decadência e acende em nós a esperança de um castigo, bem como de um auxílio de Nossa Senhora para nos tirar desta triste era histórica
na qual estamos.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências de 19/8/1965, 18/8/1966 e 19/8/1970)