Na continuação de seus comentários ao opúsculo de São Luís Maria Grignion de Montfort, Dr. Plinio nos faz compreender, uma vez mais, como todo aquele que ousa abraçar o sofrimento, a pobreza e as humilhações por amor a Deus, identifica-se com Nosso Senhor Jesus Cristo e dispõe sua alma para que nela habite a sabedoria.
Dirigindo-se aos membros da Confraria dos Amigos da Cruz, por ele fundada, São Luís Grignion assim escreve:
Eis, meus caros confrades, dois partidos que se defrontam todos os dias: o de Jesus Cristo e o do mundo.
Duas falanges de servos que lutam por dois senhores
Conforme ficou explicado no início dessas exposições, São Luís redigiu sua carta circular durante um retiro, e essa ideia dos “dois partidos” evoca a meditação das “duas bandeiras”, proposta por Santo Inácio de Loyola nos seus Exercícios Espirituais. Lembra, também, o que o próprio São Luís afirma no seu Tratado da Verdadeira Devoção: por natureza, o homem é escravo, e o será de Nosso Senhor Jesus Cristo ou do demônio, príncipe deste mundo.
Então, esses dois partidos são as duas grandes falanges de servos que lutam por dois senhores. Faço notar que há apenas dois partidos, sem possibilidade de uma terceira posição. Donde toda a História se resolver, em última análise, no seu sentido mais profundo, no confronto desses dois interesses, desses dois princípios, desses dois seres antagônicos: Jesus Cristo e o demônio.
Sempre pequeno, o número dos Amigos da Cruz
Conforme tal noção, o santo autor prossegue:
O [partido] de nosso amável Salvador está à direita, em aclive, num caminho estreito e que assim cada vez mais se tornou devido à corrupção do mundo. Caminha à frente o Bom Mestre, os pés descalços, a cabeça coroada de espinhos, o corpo todo ensanguentado e carregando uma pesada cruz. Apenas algumas pessoas, das mais corajosas, O seguem, porque sua voz tão delicada não se ouve no tumulto do mundo; ou porque não se tem coragem para segui‑Lo em sua pobreza, suas dores, suas humilhações e suas outras cruzes que necessariamente é preciso carregar, a seu serviço, todos os dias da vida.
À esquerda está o partido do mundo, ou do demônio, o mais numeroso, magnífico e fulgurante, pelo menos na aparência. Todos os indivíduos mais brilhantes correm para ele e, apesar de serem largos como nunca os caminhos que a ele conduzem, atropelam-se em virtude das multidões que por aí passam como torrentes. São caminhos juncados de flores, emoldurados de prazeres e de divertimento, cobertos de ouro e de prata.
O santo indica, pois, duas categorias de pessoas bem diversas. As que constituem o partido de Nosso Senhor estão à direita, em aclive. Ou seja, em ascensão, na subida que torna difícil a caminhada por se ter de vencer o peso da gravidade. Essa trajetória se faz cada vez mais estreita, isto é, o esforço pela salvação se apresenta a cada dia mais árduo, devido à corrupção do mundo, às solicitações maiores do pecado, à insistência das más influências e dos maus exemplos.
Porém, à frente vai o Bom Mestre, pés descalços, coroado de espinhos, coberto de sangue e carregando sua Cruz. Trágica visão de uma vítima que sofre em todo o seu corpo, seguida apenas por algumas pessoas, e das mais corajosas. Vê-se o numero sempre pequeno dos autênticos Amigos da Cruz, daqueles que ousam aceitar o sofrimento e compreendem que nesta vida estamos sujeitos a toda sorte de provações. Pelo contrário, incontável é o número dos homens que fogem do sacrifício e procuram não considerá-lo de frente.
Ensurdecedor ruído das paixões desordenadas
Na seqüência de seu pensamento, São Luís Maria fala do tumulto do mundo que abafa a delicada voz de Nosso Senhor Jesus Cristo. Quer dizer, há um barulho, um ruído ensurdecedor no mundo que seduz as pessoas e estas, em tais condições, não escutam a suave voz do Divino Mestre.
Esse barulho, embora possa ser tomado no sentido material da palavra, antes de tudo significa o tumulto das paixões humanas desordenadas que nos levam a agir e a nos movimentarmos de maneira igualmente desordenada. Donde uma espécie de perturbação difusa nas grandes cidades, uma agitação da vida moderna e seus acontecimentos, que embriagam e fascinam imensa parcela dos habitantes dos maiores centros urbanos. Ora, enquanto houver numa alma esse deleite com o tumultuar do século, algo da delicada voz de Nosso Senhor Jesus Cristo não chegará até ela. Nesta sua lamentável surdez irão esbarrar e se deter as inspirações da graça.
Daí, por outro lado, a necessidade de o verdadeiro Amigo da Cruz, desejoso de seguir o Bom Mestre, pedir-Lhe o horror e a aversão ao tumulto do mundo.
Pobreza, dores e humilhações
Ou porque não se tem coragem para segui‑Lo em sua pobreza, suas dores, suas humilhações e suas outras cruzes que necessariamente é preciso carregar a seu serviço todos os dias da vida — acrescenta São Luís Grignion.
Ou seja, quem deseja servir a Nosso Senhor deve estar disposto a abraçar três coisas: pobreza, dores e humilhações.
A pobreza é, de algum modo, a virtude católica por excelência, pois para fazermos inteiramente a vontade de Nosso Senhor, temos de ser desapegados de tudo o que possuímos. Do contrário, ao nos ser pedido, em nome do serviço de Deus, a renúncia de algo a que nos afeiçoamos, bem mais difícil será a nossa conformidade com o superior desígnio divino. Portanto, para ser fiel à vocação de seguir o Mestre, a alma precisa ser pobre, desapegada.
Além da pobreza, as dores. A vida de todo homem comporta sofrimentos, e estes serão talvez maiores para os poucos que souberem aceitá-los com o autêntico espírito de Amigo da Cruz.
Por fim, as humilhações. Não é fácil discernir qual das três coisas é a mais pesada, pois as dificuldades variam de pessoa a pessoa conforme o temperamento de cada uma. Estas aceitarão melhor as dores e sofrerão mais com as humilhações; aquelas se alegram na pobreza, mas se arrepiam com as humilhações; enquanto outras padecem de boa mente as penúrias materiais e as humilhações, mas sofrem demasiado com as dores físicas e morais.
Claro está, naturalmente falando, sem o concurso da graça homem algum se dispõe a esses três tipos de sofrimento, e menos ainda estão inclinados a tal os que compõem o partido do mundo. Portanto, devemos compreender que Nosso Senhor Jesus Cristo concede graças e dons especiais aos seus seguidores, para que estes aceitem e abracem o duro preço dessa admirável vocação.
O aparente brilho do partido do demônio
Em seguida, São Luís Maria Grignion de Montfort descreve o partido do demônio, “o mais numeroso, magnífico e fulgurante, pelo menos na aparência”.
É curioso notar como a felicidade confere certo brilho ao indivíduo. Tome-se, por exemplo, alguém que tenha sido sorteado numa loteria, ganhando avultada soma. Nesse dia ele se torna mais luminoso, mais bem disposto, sente-se seguro de si e demonstra um garbo invulgar, proporcionado pelo êxito. E não há coisa que mais tire o garbo de uma pessoa do que o insucesso. Um general perder a batalha, um rei perder a guerra, um advogado perder a causa, e aparecerem garbosos num jantar de gala? Não se pode concebê-lo.
Pois esse esplendor do êxito e da felicidade possuem os que seguem o partido do mundo ou do demônio. Daí ser este grupo, na aparência, o mais reluzente, magnífico e numeroso. “Todos os indivíduos mais brilhantes correm para ele”, afirma São Luís. De fato, a experiência da vida nos mostra que, por uma razão difícil de definir, o indivíduo naturalmente brilhante, dotado de maiores qualidades apreciadas pela gente do mundo, é mais propenso a se perder do que aquele que não possui esse brilho pessoal.
Além disso, existe a imensa falange dos que se abalam para o partido do demônio por causa de reflexões oportunistas: “Eu, me alistar sob a bandeira da pobreza, da dor e da humilhação, enquanto no outro lado terei brilho e fortuna? Não há dúvida na escolha”.
Inútil dizer até onde essas reflexões podem levar a alma que lhes dá ouvidos.
Largas e cobertas de ouro, as vias da perdição
Esses caminhos do mundo, assevera o santo autor, “são mais largos do que nunca, e neles as pessoas se atropelam, em virtude das multidões que por aí passam como torrentes. São caminhos juncados de flores, emoldurados de prazeres e de divertimento, cobertos de ouro e de prata”.
Percebe-se, pela ideia exposta por São Luís, que a impiedade no tempo dele se mostra maior do que nas épocas anteriores. Então, as vias do mal nunca foram tão largas, e as multidões que passam por elas, perdendo-se, são tais que esses caminhos se dilatam.
Essa situação me faz recordar o caso de uma freira carmelita que, tendo de se deslocar para outro convento, viajou pela primeira vez por uma estrada asfaltada. Indagada sobre as impressões que tivera da “moderna” rodovia, ela respondeu:
— Creio que assim deve ser o caminho que leva ao inferno: agradável, largo, asfaltado, e as pessoas correndo sobre ele…
A meu ver, uma observação muito sagaz e verídica. Não raro, ao considerarmos a trajetória de certos ímpios, vemo-los a correr, desimpedidos, na estrada do mundo, enquanto o homem que procura trilhar as vias da retidão caminha passo a passo, em meio a dificuldades de toda espécie. Por quê? Porque as sendas da perdição são espaçosas e lisas; as de Nosso Senhor são estreitas e penosas, e seu fim é o Calvário.
“É preciso ser conforme a imagem de Jesus Cristo ou condenar-se”
Prossegue São Luís:
À direita, o pequeno rebanho que segue Jesus Cristo só fala em lágrimas, penitências, orações e desprezo do mundo; ouvem‑se continuamente essas palavras, entrecortadas de soluços: “soframos, choremos, jejuemos, oremos, ocultemo‑nos, humilhemo‑nos, empobreçamo‑nos, mortifiquemo‑nos, pois o que não tem o espírito de Jesus Cristo, que é um espírito de cruz, não pertence a Ele”.
Trata-se do despojamento próprio àqueles que desejam ser escravos de Nosso Senhor e de Nossa Senhora. Estes sofrem, choram, jejuam, humilham-se, rezam, mortificam-se e abraçam a pobreza. Atributos dos quais o mundo tem verdadeiro pavor. E por que essas almas se sujeitam a tais sofrimentos? Porque desejam adquirir o espírito de Jesus Cristo, receberem as graças d’Ele a fim de com Ele se identificarem.
Os que são de Jesus Cristo mortificaram a carne com as suas concupiscências; é preciso ser conforme a imagem de Jesus ou condenar‑se. “Coragem, exclamam eles, coragem! Se Deus está por nós, em nós e diante de nós, quem estará contra nós? Aquele que está em nós, é mais forte do que o que está no mundo”.
São Luís aponta a solução: se Jesus Cristo habitar em mim, serei capaz de aceitar o preço por segui-Lo; se Ele não estiver em mim, faltar-me-á coragem para tal.
Combater segundo o Evangelho e não conforme a moda
O servo não é maior que seu senhor. Um momento de leve tribulação redunda num peso eterno de glória. Há menos eleitos do que se pensa. Só os corajosos e os violentos arrebatam o céu de viva força; ninguém ali será coroado se não houver combatido legitimamente segundo o Evangelho, e não conforme a moda. Combatamos, pois, vigorosamente; corramos para atingir a meta, a fim de ganharmos a coroa. Eis uma parte das palavras divinas com que os Amigos da Cruz mutuamente se animam.
Portanto, a oposição entre os dois partidos está bem estabelecida. De um lado, Jesus Cristo, o modelo; de outro lado, a moda, os costumes do mundo, aos quais São Luís alude, dando a entender tudo quanto possuem de viscoso, de fascinação por coisas vãs, em última análise, de ilusões.
Pelo contrário, os mundanos, a fim de se animarem a perseverar na sua malícia sem escrúpulos, gritam todos os dias: “Vida, vida! Paz, paz! Alegria, alegria! Comamos, bebamos, cantemos, dancemos, brinquemos! Deus é bom, Deus não nos fez para nos perder; Deus não nos proíbe de divertir, nem seremos condenados por isso. Nada de escrúpulos!”
Temos aqui a ideia infelizmente muito difundida de que, no fundo, o vício não será punido, pois Deus é bom. Na verdade, trata-se, não do Deus de misericórdia que acolhe o pecador arrependido, mas de um Deus de falsa bondade, indiferente ao pecado. Mais uma vez, é a oposição entre duas mentalidades.
Amor à Cruz, sinal de que a sabedoria habita em nossa alma
Concluo essas considerações de hoje com uma observação a respeito dos mistérios que cercam a alma humana.
São Luís Grignion escreveu essas palavras porque as considerava úteis, e as concebeu sob um evidente sopro da graça. Ou seja, a graça divina teve a intenção de animar essas páginas. Entretanto, de tal maneira nos parece árduo carregar a Cruz junto com Nosso Senhor, que, ao lermos os pensamentos expressos pelo santo, dificilmente não nos virá ao espírito a seguinte ideia: “Isto tudo é um lero-lero surrado, já conhecido por mim e por todos, que não precisa ser relido”.
Quer dizer, esses princípios na verdade tão pouco repetidos, quase nunca ensinados, penetram em nossa alma uma vez e a repetição deles nos dá a sensação de algo fastidioso e monótono. Nós, que seríamos capazes de ouvir inúmeras vezes uma mesma música, assistir duzentas vezes uma mesma peça de teatro ou manter durante horas uma conversa com a mesma pessoa, desde que aproveitem ao nosso interesse e apego, julgamos tratar-se de lengalenga essas altas e inapreciáveis reflexões de um santo.
Vemos, por aí, como é de fato penoso elevar o espírito humano através do sofrimento; como há uma repulsa quase instintiva ao amor à Cruz. E, portanto, como a devoção a essa mesma Cruz é algo de suma importância e indispensável para a nossa vida espiritual.
Eu diria mais. Se nos empolgarmos ao ouvir falar da Cruz e do sofrimento, se admirarmos a dor cristãmente aceita e sentirmos o vazio de uma vida sem padecimentos, tais disposições serão um sinal de que a sabedoria habita em nossa alma. v
Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 1/7/1967)