A severidade de São Corbiniano

Precisamos ter uma visão global da Doutrina Católica e, portanto, timbrar em conhecer as verdades esquecidas. Uma delas é a que os santos de nossos dias devem ser como São Corbiniano, em  muitas ocasiões de suas vidas. Pois nossa época é de extraordinária obstinação no pecado, sobretudo o de heresia, e a pior delas é a Revolução. Para vencer essa obstinação, em muitas  circunstâncias, o remédio é a severidade.

 

Segundo o Martirológio, em 8 de setembro se comemora São Corbiniano, Bispo de Freising, na Baviera, falecido nesse dia, em 730(1).

Recriminações a um príncipe

Regressando de Roma, onde se entrevistara  com o Papa Gregório II, São Corbiniano, ao chegar à fronteira dos Estados pertencentes a Grimoaldo, foi detido por guardas que este duque ali postara, com ordem de não permitir a passagem do bispo, se ele não aceitasse em fazer-lhe uma visita.

O Santo consentiu. Mas, ao dirigir-se ao castelo do príncipe, declarou que lá só entraria se Grimoaldo deixasse Piltrude, a viúva de seu irmão, com quem se casara. Como o príncipe não  obedecesse, perseverou na recusa, admoestando-o incessantemente com suas recriminações a fim de conduzi-lo à penitência.

Ao cabo de quarenta dias, Grimoaldo e Piltrude prometeram separar- se e o santo bispo mandou-os vir à sua presença. Absolveu-os, depois de terem pedido perdão de joelhos e lhe beijado os pés,  impôs-lhes penitências de esmolas, jejuns e orações. Depois entrou no palácio.

Jantando certo dia em companhia desse mesmo príncipe, São Corbiniano abençoou os alimentos servidos à mesa. O príncipe, que se distraíra, atirou um bocado ao seu cão favorito.

Imediatamente o santo homem derruba a mesa com um pontapé, dizendo que quem atirava a um cão semelhante bênção não era digno dela, e que desse dia em diante não comeria mais em sua  companhia.

Profundamente ferida pelo fato de São Corbiniano tê-la separado do príncipe, com suas admoestações, Piltrude aproveitou a ocasião para acusá-lo de crime lesa-majestade, merecedor de morte.

O príncipe, entretanto, que o tinha em grande e alta estima, mandou fechar as portas da cidade, temeroso de que o homem de Deus, em sua cólera, dela se retirasse. Acompanhado maiorais de sua corte, foi pedir–lhe perdão.

Noutra ocasião, quando se dirigia ao ofício da noite na Igreja de Santa Maria, o santo bispo encontrou no caminho uma camponesa, que se retirava carregada de ricos presentes. Já fora apontada como dada à prática de sortilégios. Interrogou-a sobre a razão dos presentes. Respondeu ela que curara o filho do príncipe, que estava atormentado por demônios, e que por causa disso fora  presenteada. Horrorizado, o bispo desceu do cavalo, espancou a mulher com suas próprias mãos, arrancou-lhe tudo quanto carregava e distribuiu entre os pobres à entrada da cidade. Mais do que tudo, lamentava a infidelidade do príncipe.

Para vencer a obstinação no pecado, em muitas circunstâncias o remédio é a dureza

Toda virtude concebida de maneira unilateral não é autêntica virtude. Se fôssemos imaginar um santo apenas muito suave, bondoso, invariavelmente amável em todas as circunstâncias de sua  vida, não estaríamos em presença de um verdadeiro santo, mas sim de um arremedo de santo. Como também se imaginássemos um santo que procedesse durante toda a sua vida explosivamente  como São Corbiniano agiu nesses episódios, nós estaríamos diante de um santo muito singular, porque não se pode conceber que um bispo, mesmo na era constantiniana, para remédio de todas as situações jogue as mesas no chão, etc. Mas há situações em que o dever consiste em agir assim, como existem ocasiões em que o dever se cifra em ter um procedimento diverso.

O que explica nossa insistência nesse exemplo de São Corbiniano? É que temos muitos exemplos em sentido contrário, e as virtudes “corbinianas” são extraordinariamente raras. De maneira que  encontramos aí uma razão muito boa para pôr em realce essa ficha.

Mas há uma razão mais profunda, evidentemente. Precisamos ter uma visão global da Doutrina Católica e, portanto, devemos timbrar em conhecer as verdades esquecidas.

Uma delas é que os santos devem ser assim, como São Corbiniano, em muitas ocasiões de suas vidas, sobretudo quando se trata de santos de nossa época. Época de uma dureza, de uma obstinação no pecado – e o pior deles que é o de heresia, e a pior das heresias é a Revolução, com o laicismo a ela inerente –, uma obstinação tão extraordinária que realmente não se sabe o que dizer. É claro que, para vencer a obstinação, em muitas circunstâncias, o remédio é a dureza.

Hoje, a prova de coragem consiste em enfrentar aqueles que promovem a Revolução

O primeiro exemplo do procedimento de São Corbiniano com o príncipe se explica pelo fato de que este era casado com uma mulher, a qual tinha com ele um grau de parentesco por ser viúva do  seu irmão e, portanto, precisava de uma dispensa da Santa Sé para contrair matrimônio com ela. Eventualmente, o príncipe não tinha pedido essa dispensa e vivia maritalmente com ela, e casou-se mesmo com ela, mas de um modo ilícito, sem a licença da  Santa Sé. Ele estava, portanto, numa situação que São Corbiniano não poderia tolerar.

Vimos com que extremos de severidade ele censurou a atitude do príncipe, e que humildade o Santo exigiu dele, como pedido de perdão.

Quem seria um personagem equivalente ao príncipe nos dias de hoje para um santo humilhar assim? Como poderíamos imaginar um confronto entre a fortaleza da autoridade espiritual e os  poderes temporais atualmente?

A Revolução deslocou das mãos dos príncipes, ou ao menos da maior parte deles, o poder e a riqueza. Enfrentá-los já não é grande prova de coragem. Mas é prova de coragem enfrentar aqueles  que hoje têm muito poder, ou muitos meios de subornar, de comprar. Entre esses nós temos em primeiro lugar, evidentemente, os ricos. Mas não só eles; também a imprensa, o rádio, a televisão, os instrumentos que manipulam a opinião pública, os demagogos, os chefes de correntes revolucionárias; a todos esses, se favorecem o mal, é preciso que um bispo saiba enfrentar.

O exemplo do Cardeal Mindszenty

Como é bonito, por exemplo, vermos um bispo proceder por essa forma, enfrentando o comunismo, a demagogia, a desordem e a Revolução! Nós temos hoje em dia um exemplo que vem a  propósito lembrar porque, ao menos pelo que se conhece, não é menos belo do que o exemplo de São Corbiniano. É o Cardeal Mindszenty(2), que está preso na Hungria, e a respeito do qual baixou  um tal silêncio que quase nos esquecemos de que ele existe. Pois bem, temos aí um exemplo de fortaleza extraordinária, que lembra a fortaleza de São Corbiniano.

A ficha narra outros dois episódios: um é do Santo que joga a mesa no chão porque o príncipe deu de comer alimentos abençoados a um cachorro. Alguém perguntará: “Mas ele não podia fazer de modo diferente? Por exemplo, dizer: ‘Príncipe, eu me levanto.’ Ou simplesmente manter silêncio sentido, em relação ao príncipe”. Uma pessoa mais moderada indagaria: “Ele poderia  simplesmente dizer: ‘Príncipe, para seu cachorrinho não seria demais um pão bento?’

Assim, São Corbiniano não captaria mais a simpatia e a benevolência do príncipe?”

Seriedade, respeito, confiança

É preciso sempre lembrar que a arte de tratar com as almas não consiste principalmente em incutir-lhes simpatia, mas sim, antes de tudo, em lhes granjear o respeito. E o respeito se granjeia pela seriedade. E a seriedade se documenta muitas vezes pela severidade. É tomando as coisas até as últimas consequências e punindo de acordo com a gravidade, que se mostra ser sério. E, mostrando-se sério por essa forma, impõe-se respeito, inspira-se confiança e  desse modo se dirigem as almas.

Um erro da propaganda hollywoodiana, e que o ambiente de hoje incute nas almas de um modo terrível, é a ideia de que o perpétuo “smiling”, o sorrir para todo mundo, arrasta as pessoas. Arrasta  coisa nenhuma. Os norte-americanos têm distribuído dólares e sorrisos à farta. Se houve uma potência no mundo que garganteou pouco o seu poderio foi a norte-americana. O grande poder  temporal mundial, anterior ao norte-americano, foi o da Inglaterra.

Como a Inglaterra levava a coisa de outro jeito! Antes da Inglaterra foi Napoleão. Os Estados Unidos exercem uma dominação velada, por detrás dos bastidores, com dólares, e garantindo a  independência desses países, pelo menos a independência política, e amenizando o conjunto com sorrisos. Contudo, eles estão sendo gradualmente abandonados pelo mundo inteiro. Por quê? Porque os Estados Unidos não incutem admiração. E não incutem admiração pelo fato de que não são sérios. Eles depositam toda a sua confiança no sorriso. O sorriso tem um certo papel na vida do homem, não tem dúvida. Não estou dizendo que nunca se deva sorrir. Mas que essa seja a guia régia, é um engano.

O sorriso precisa ser temperado, consertado com atos de grande valor, de grande energia. Quem não é capaz de meter um pouco de medo não é verdadeiramente santo. E por isso nós temos um  Santo de requintada bondade, mas que sabe impor medo, e consegue fazer o príncipe ficar quieto.

Na Idade Média, a virtude e a contrição dos pecadores são encantadoras

Por outro lado, é uma maravilha a atitude do príncipe. Na Idade Média, muitas coisas encantam. A virtude encanta, mas também a contrição dos pecadores é encantadora. O príncipe andou mal  porque, afinal, ele devia ter prestado atenção. À sua mesa estava um Santo que ele venerava como tal; o varão de Deus dá uma bênção nos alimentos, mas ele está pensando no cão. Contudo, em comparação com as coisas que fazemos hoje, quão ingênuo, quase se diria quão gracioso!

O príncipe leva uma admoestação tremenda, e sua primeira ideia é: “Segura o Santo porque eu quero pedir perdão para ele!” E como o Santo vai embora, manda fechar as portas da cidade. Depois pede perdão, ajoelha-se, o Santo se reconcilia e volta tudo à bonança. Nota-se que contrição entra nisso, que cordura, que brandura de alma, que inocência há numa atitude como essa. Não é verdade que, mesmo nessa penitência, há uma inocência mais profunda do que a falta cometida e que nos deixa maravilhados?

Finalmente, a sova na mulher que era uma espécie de bruxa e feiticeira e havia usado algum feitiço para curar o filho desse homem. Qual foi a atitude do Santo com ela? Eu pergunto: há casos semelhantes atualmente? Ainda hoje eu estava lendo a seguinte notícia: Houve a inauguração de um parque municipal em São Paulo, durante a qual foi realizada uma sessão ecumênica. Falou um padre, um bispo católico, logo em seguida um espírita e depois um rabino. Numa mesma sessão, em comum com o bispo. Onde está o exemplo de nosso Santo? Como estão mudadas as coisas…

Plinio  Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 8/9/1969)

1) Cf. ROHRBACHER, René-François. Vida dos Santos. São Paulo: Editora das Américas, 1959. v. XVI, p. 106-107.

2) Cardeal József Mindszenty (*1892 – †1975). Opôs-se tenazmente ao regime comunista, particularmente em seu país, Hungria. Foi perseguido, preso e morreu no exílio. Seu corpo, exumado em  1991, foi encontrado incorrupto, e em 1996 foi apresentada à Santa Sé a documentação para o processo de sua beatificação.

 

“Saint-simonianismo”: destreza na arte de conversar

Ao tratar uma vez mais desse tema que lhe era muito caro — a arte de conversar, como meio de apostolado — Dr. Plinio evoca a figura do Duque de Saint-Simon, contemporâneo de Luís XIV, que possuía como poucos a qualidade de dizer as verdades mais pontiagudas, com elegância e nobreza. A exemplo de Nosso Senhor Jesus Cristo, modelo infinitamente mais nobre e elegante de cortesia e doçura no trato humano.

 

A propósito do tema de que anteriormente tratamos, envolvendo a cortesia cristã e o que chamamos de “saint-simoniamismo”, poder-se-ia perguntar se o principal papel do trato a la “Saint-Simon” é o de não ferir o respeito humano das pessoas.

A questão comporta certa precisão de termos.

Não para acobertar, mas censurar o defeito alheio

De fato, segundo os moralistas, costuma-se chamar “respeito humano” a atitude de alma de quem, por motivos meramente humanos — a linguagem é um tanto anacrônica — envergonha-se de praticar a virtude e de manifestar sua fidelidade a Nosso Senhor Jesus Cristo.

Ora, o “saint-simonianismo” não é um recurso para poupar o respeito humano, pois não deve acobertar os defeitos de ninguém. Pelo contrário, visa censurar o indivíduo atingido pelo respeito humano, sem que ele possa dizer que se lhe faltou com a educação. Portanto, não é um recuo, uma pirueta ou ladeamento perpétuos, mas, muitas vezes, consiste numa ofensiva “de esporas nos pés e lança na mão”, feita com elegância e nobreza correspondentes à vida de salão, sobretudo a dos ambientes frequentados por Saint-Simon.

Quando, porém, uma imperiosa razão nos leva a não combater o respeito humano de outro, sendo conveniente ladeá-lo, então o “saint-simonianismo” se verifica muito apropriado para fazê-lo de modo lícito. Trata-se de uma arte, uma destreza.

Exemplo augusto de “saint-simonianismo”

Numa civilização cristã autêntica, os homens deveriam manifestar menos susceptibilidades, menos assomos de amor próprio ferido e, por causa disso, as verdades poderiam ser ditas com mais franqueza do que em nossos dias. Entretanto, cumpre fazer uma distinção.

Das narrações evangélicas se infere que Nosso Senhor, a todo momento, criticava de frente e sem matizações os defeitos das pessoas?

Não. Mostra-nos o Evangelho que o Redentor muitas vezes dizia aos fariseus coisas desagradáveis, frontalmente e com rudeza (se se pode falar em rudeza, pois n’Ele tudo é adorável). Em outras ocasiões, porém, Jesus o fazia com uma inefável delicadeza. Por exemplo, como parece, ao escrever no chão os pecados dos acusadores da mulher adúltera, os quais, à medida que os liam, se retiravam da cena. Nosso Senhor não os delatou publicamente, pois na situação em que estavam lhes faria mais bem sentir sua doçura do que sua energia; sua delicadeza do que sua fortaleza divinas.

Recurso que eleva o convívio humano

Creio que no Reino de Maria, essa época de renovado esplendor que esperamos para a Cristandade, haverá nas pessoas uma fortaleza ao lado de uma delicadeza de alma superlativas, pelas quais terão discernimento para saber quando convém serem fortes, quando delicadas.

Na hora da suavidade, o “saint-simonianismo” nos ajudará a dizer palavras amenas, sutis; sem ele, feriríamos a sensibilidade do próximo. E no momento da severidade, o “saint-simonianismo” contribuirá para falarmos com elevação e nobreza, sem degenerar em xingatório. A conversa, então, ganhará tal brilho que se poderá dizer: “Saint-Simon? Que homem pouco educado!”

Ao se ler as “Memórias” de Saint-Simon é interessante notar as descomposturas, os argumentos irretorquíveis e fogosos que ele empregava. Eram altos vôos de espírito, plenos de lógica e com garras polidas…

“Saint-simonianismo” e a perfeição evangélica

Outro aspecto desse tema que envolve particular interesse se liga à abnegação e à humildade cristãs.

Sabe-se que em certos mosteiros existe o costume de proceder ao “capítulo de culpas”: os monges apontam claramente as faltas e defeitos reparados num confrade, o qual permanece prosternado no centro da sala em que se reúnem, por isso mesmo chamada “sala capitular”. Ou, então, qualquer um deles se adianta e se apresenta voluntariamente para se auto-acusar. Poder-se-ia perguntar como esse belo costume monástico se coaduna com o “saint-simonianismo”.

Acontece que na trajetória de santificação das almas existem a via normal e a especial. Na primeira há coisas que esta última — não por deficiência, mas por requinte — não comporta. Assim, numa comunidade constituída por pessoas escolhidas, abnegadas e desapegadas das coisas terrenas, é belo que as almas renunciem a qualquer forma de susceptibilidade, ou mesmo de sensibilidade legítima, para ouvirem humildemente todas as acusações que lhes são feitas. Porém, isso não se aplica à maior parte dos homens.

Do mesmo modo que, por exemplo, o burel franciscano é próprio a um gênero de almas chamadas para a prática da pobreza evangélica, mas não se pode pretendê-lo como traje para o comum das pessoas. A via dos escolhidos para uma vocação particular não convém à regra geral. O mesmo se pode dizer do silêncio trapista, e assim por diante.

O “saint-simonianismo”, pois, é mais adequado para o comum da sociedade humana, e é essa forma de destreza que muito contribui para elevar a arte da conversa.  v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 22/5/1970)
Revista Dr Plinio 113 (Agosto de 2007)

 

O início da vitória!

Bendito o dia em que Nossa Senhora nasceu; benditas as estrelas que a viram pequenina; bendito o momento em que seus pais constataram o nascimento d’Aquela que, permanecendo sempre virgem, fora chamada a ser a Mãe do Salvador!

 

Por que se festeja o aniversário de alguém? A razão é muito simples: o aniversário de uma pessoa representa o momento em que esta entrou no cenário da vida, o momento em que a sociedade humana se enriqueceu com mais uma presença.

Cada nascimento constitui um favor, uma graça de Deus, porque todo homem — por mais que seja concebido em pecado original ou traga alguma deficiência de família — é uma criatura de grande valor. E essa criatura representa um enriquecimento altamente ponderável para a humanidade.

Concebida sem pecado e repleta de dons sobrenaturais e naturais

Nestas condições, a festa da Natividade de Nossa Senhora leva‑nos a perguntar qual o enriquecimento que Ela trouxe para a humanidade, e a que título especial o gênero humano deve festejar seu aniversário.

Colocando-nos nessa perspectiva, ficamos sem saber o que dizer… Pois Nossa Senhora foi concebida sem pecado original.

Sendo Ela livre de qualquer mancha, um lírio de incomparável formosura, seu nascimento deve alegrar não só o gênero humano, mas também todos os coros angélicos!

Além disso, Nossa Senhora possuía todos os dons naturais que uma mulher possa ter. Nosso Senhor deu a Ela, segundo a ordem da natureza, uma personalidade riquíssima, preciosíssima, valiosíssima e, a esse título, a presença d’Ela entre os homens representava um tesouro de valor verdadeiramente incalculável.

Além disso, com sua presença entre os homens, ganhamos os tesouros de graças que A acompanhavam e que são as maiores graças concedidas por Deus a alguém, graças verdadeiramente incomensuráveis.

Compreendemos, então, o que representa a entrada de Nossa Senhora no mundo.

O mais belo nascer do Sol é pálido em relação à beleza da entrada de Nossa Senhora no mundo; a mais solene entrada de um rei no seu reino nada é em comparação com isso.

A ação de Nossa Senhora nos períodos de provação

A Natividade de Nossa Senhora nos inspira também outro pensamento.

O mundo estava prostrado no paganismo; os vícios imperavam; a idolatria dominava a Terra; o mal e o demônio venciam inteiramente.

Mas, no momento decretado por Deus em sua misericórdia, tudo mudou! Nasceu Nossa Senhora, a raiz bendita da qual nasceria o Salvador da humanidade. Começava assim a derrocada do demônio.

Quantas vezes não se passa algo semelhante em nossa vida espiritual! Há ocasiões em que nossa alma está em luta, com problemas, contorcendo e revolvendo dificuldades! Sequer temos ideia de quando virá o dia bendito onde uma graça extraordinária, um grande favor acabará com nossos tormentos, proporcionando-nos um amplo progresso na vida espiritual. E, de repente, há um nascimento no sentido especial da palavra: Nossa Senhora aparece qual aurora em nossa vida espiritual.

Isso deve nos dar muita alegria e esperança, com a certeza de que Nossa Senhora nunca nos abandona. Nas ocasiões mais difíceis Ela nos visita, resolve nossos problemas, cura nossas dores, dá‑nos a combatividade e a coragem necessárias para cumprirmos nosso dever até o fim, por mais árduo que seja.

Desde o nascimento, influenciando o destino da humanidade

Assim como no Natal celebramos o momento bendito em que Nosso Senhor veio ao mundo e começou a fazer visivelmente parte da sociedade humana, a festa da Natividade de Maria exalta a ocasião em que Ela enriqueceu a humanidade com a sua presença.

Alguém dirá: “Mas o que um bebê, sem o uso da razão, pode acrescentar a uma sociedade?”

Ora, sendo concebida sem pecado original e possuindo o uso da razão desde o primeiro instante de seu ser, já no ventre materno Nossa Senhora tinha pensamentos elevadíssimos e sublimíssimos.

Se São João Batista, o qual não foi isento da culpa original, mas libertado dela antes de nascer, ao ouvir a voz de Maria saudando Santa Isabel estremeceu no seio materno(1), não poderia a Mãe do Redentor já em sua infância ter conhecimento do que se passava?

Nossa Senhora, desde o claustro materno, devido à altíssima ciência que lhe foi concedida pela graça de Deus, pedia pela vinda do Messias e pela derrota do pecado. Desta forma Ela influenciava os destinos da humanidade.

Diz-nos o Evangelho que da túnica de Nosso Senhor saía uma virtude capaz de curar(2). Se assim o era, também sua Mãe, o Vaso de Eleição, deveria ser uma fonte de graças a jorrar para todos que d’Ela se aproximavam.

E isto desde a sua mais tenra infância! Embora Ela fosse apenas uma criancinha, já em seu natal, graças enormes começaram a raiar para a humanidade. Seu nascimento constituiu o esmagamento do demônio e a vitória da Contra‑Revolução.

Compreende‑se, então, como a vinda de Nossa Senhora à Terra foi uma graça para todos os homens.

Qual “aurora” do luar…

Para concluir lembremo-nos da noite de Natal. Há séculos essa festa se repete, e nela temos a sensação de que uma bênção se renova, descendo do Céu sobre a Terra de maneira mais intensa. E, de algum modo, renova também as energias espirituais de todos os homens.

Nosso Senhor é o Sol que nasce para a humanidade, e seu Natal nos faz lembrar a aurora.

Assim sendo, sua Mãe Santíssima pode bem ser comparada à Lua. O nascer da Lua não tem a glória do nascer do Sol, mas quanto tem de análogo! Como ele é benfazejo, como ele alegra, como ele estimula, como ele consola!

O que pedir nesse dia?

Sendo filhos de Nossa Senhora — não por méritos, mas por vontade de Deus —, ao festejar seu nascimento podemos pedir a Ela uma graça especial. Peçamos, então, que a Santíssima Virgem estabeleça com cada um de nós uma aliança especial, um vínculo de filiação todo especial em nosso relacionamento com Ela, de maneira a tomar-nos sob seu amparo de modo todo particular.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 8/9/1963)

 

1) Cfr. Lc 1,41

2) Cfr. Lc 8,43-48

Um nascimento todo especial…

Quando Nossa Senhora nasceu, o mundo estava prostrado no paganismo; os vícios imperavam; a idolatria dominava a Terra; o mal e o demônio venciam inteiramente.

Mas, no momento decretado por Deus em sua misericórdia, tudo mudou! Nasceu Maria Santíssima, a raiz bendita da qual nasceria o Salvador da humanidade. Começava assim a derrocada do demônio.

Quantas vezes não se passa algo semelhante em nossa vida espiritual! Há ocasiões em que nossa alma está em luta, com problemas, contorcendo e revolvendo dificuldades! Sequer temos ideia de quando virá o dia bendito onde uma graça extraordinária, um grande favor acabará com nossos tormentos, proporcionando-nos um amplo progresso na vida espiritual. E, de repente, há um nascimento no sentido especial da palavra: Nossa Senhora aparece qual aurora em nossa vida espiritual.

Isso deve nos dar muita alegria e esperança, com a certeza de que Nossa Senhora nunca nos abandona. Nas ocasiões mais difíceis Ela nos visita, resolve nossos problemas, cura nossas dores, dá‑nos a combatividade e a coragem necessárias para cumprirmos nosso dever até o fim, por mais árduo que seja.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 8/9/1963)

A alegria do mundo inteiro

Por que a Santa Igreja Católica comemora de modo particular a natividade de Nossa Senhora? A razão é simples. O nascimento da Virgem Maria marcou o início de uma nova era na História, pois foi através d’Ela que o Sol da Redenção brilhou para a humanidade.

Até então, o mundo estivera prostrado no paganismo, gemendo sob o ímpeto dos vícios e da idolatria. Durante séculos, enquanto o mal e o demônio venciam inteiramente, almas santas haviam rogado a Deus pela vinda do Redentor, porém, a hora designada por Deus ainda não havia chegado…

A partir do momento bendito em que Maria iniciou sua trajetória entre os homens, as relações de Deus com humanidade se modificaram: através das portas do céu, até então trancadas, começaram a como que filtrar luzes de esperança no sentido de que seriam abertas em breve, de par em par.

Desde a mais tenra idade, Ela começou a pedir o advento do Messias e o fim daquela ordem de coisas estabelecida pelo pecado. A ação de presença d’Ela era o prenúncio da salvação que seu Filho viria trazer.

***

Em outras épocas, Nossa Senhora opera uma repetição daquilo que então se passou, e podemos dizer que, na época presente, há uma nova interferência d’Ela na história do mundo. Prova disso é o fato de haver almas que anseiam pelo Reino de Maria, trabalham e rezam para que ele venha.

Dr. Plinio, durante toda a sua vida, não quis ser senão um arauto do Reino de Maria, e viver na perspectiva dele. Quem assim atende ao apelo marial faz o papel de Nossa Senhora no Antigo Testamento: ainda não veio a Luz, a libertação, a vitória; mas algo que é prenúncio da vitória já está presente, começa a espalhar as suas graças e a determinar movimentos entusiásticos de adesão.

Atitudes como estas são como que natividades, que preparam o dia pleno de alegria em que Nossa Senhora reinará no mundo.

***

Que Ela nos dê graças abundantes para que, também nós — assim como foi Dr. Plinio — vivamos no desejo ardente da vinda do Reino d’Ela, pedindo que cesse o quanto antes o domínio do pecado e do demônio sobre a terra.

Plinio Corrêa de Oliveira

Olhos postos em Maria

A natividade de Nossa Senhora, celebrada em 8 de setembro, representa a aurora da redenção do gênero humano, posto que, com o nascimento de Maria, inicia-se a realização das promessas divinas de enviar ao mundo o seu Salvador”, comentava Dr. Plinio. “No momento decretado por Deus em sua misericórdia”, acrescentava, “Ele faz surgir Nossa Senhora, raiz bendita da qual brotaria Nosso Senhor Jesus Cristo, começando assim a obra de destruição do reino do demônio — no exterior, bem como no interior dos homens.

“De fato, na vida espiritual de quantas almas não se verifica situação semelhante à do mundo em que surgiu Nossa Senhora, imerso no império dos vícios e do pecado! A pobre alma está em luta com seus defeitos, se contorce em dificuldades, sem vislumbrar o dia bendito em que uma grande graça, um grande favor celestial porá fim aos seus tormentos e lhe franqueará o progresso na piedade. Pois na história dessas almas há como que irrupções de Nossa Senhora. Na noite das maiores trevas e aflições, Ela aparece e começa a solucionar todos os problemas. Maria surge então como uma radiante aurora em nossa existência, incutindo-nos um alento que não conhecíamos.

“Nesse sentido, vem muito a propósito a conhecida exortação de São Bernardo, aplicando a Nossa Senhora o simbolismo da Estrela do Mar: Ó tu que nesta vida andas flutuando entre borrascas e tempestades, antes que vagando por terra, não tires os teus olhos do fulgor desta estrela, se não quiseres que te arrastem os vagalhões. Quando te vires arremessado aos escolhos da tribulação, se te surgirem os ventos das tentações, olha a estrela e invoca Maria. Quando te vires perecer nas ondas da soberba e da ambição, da detração e da luxúria, olha para a estrela, invoca Maria.

“Contrárias às ilusões de que esta vida é um constante jardim de rosas onde tudo nos sorri, as palavras de São Bernardo — conformes ao ensinamento da Igreja — nos falam do vale de lágrimas no qual expiamos o pecado original e nossos pecados atuais. Segundo o conselho do santo, o quotidiano terreno é permeado de borrascas e tempestades, de rochedos que insidiosamente aguardam o navegante durante seu trajeto, e dos ventos das tentações que podem soprar e nos solicitar para o mal.

“Ora, sob essas condições adversas, não devemos nunca deixar de pôr os olhos em Maria Santíssima, senão os vagalhões nos arrastam. A exemplo dos antigos navegantes que se orientavam pela estrela polar a fim de alcançar o porto seguro, cumpre seguirmos as maternais coruscações da Estrela do Mar. Na incerteza das ondas, no singrar atribulado, jamais percamos de vista essa luz que nos orienta para a salvação; jamais nos esqueçamos de invocar Maria Santíssima.”

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências em 8/9/63 e 24/9/66)

Harmonia e felicidade no Céu entre anjos e santos

Baseando-se nas revelações de Santa Francisca Romana, Dr. Plinio nos propõe interessante paralelo entre a harmonia existente no Céu e a beleza de uma sinfonia, na qual cada nota, distinta uma da outra, contribui com sua beleza própria para formar um lindo e melodioso conjunto. Ali, anjos e bem-aventurados, unidos na diversidade de seus sons, entoam a Deus um magnífico hino de louvor.

 

Célebre por suas visões e revelações a respeito dos anjos e demônios, Santa Francisca Romana descreve de modo admirável o conhecimento que teve de toda a ordem celeste. O pressuposto desta revelação é o ensinamento da doutrina católica segundo o qual os lugares no Céu deixados vacantes pelos anjos apóstatas, serão preenchidos pelos homens que se salvarem.

Como notas de uma sinfonia

Não se trata, é claro, de lugares materiais, pois os anjos, sendo puros espíritos, não ocupam um espaço físico. Para se entender o significado de “lugar” aqui empregado, devemos pensar que cada coro angélico é como uma sinfonia de notas em que cada elemento — cada anjo — representa um papel. Digamos que algumas dessas notas se tenham revoltado e abandonado a partitura. As lacunas desse imenso concerto serão, graças à misericórdia divina, cobertas pelos bem-aventurados, os quais completarão assim a harmonia do conjunto celestial.

Imensa alegria no Paraíso pela chegada de um novo santo

Pelas descrições de Santa Francisca Romana somos levados a imaginar, por exemplo, a alma de um justo que ascende pelos vários coros angélicos até alcançar o lugar na mais elevada categoria de anjos a que foi destinada. E como os anjos situados num grau inferior, à medida que aquela alma sobe, manifestam uma extrema alegria pela glória por ela alcançada.

E a vidente nos mostra que, ao chegar a alma no lugar que lhe compete, o gáudio dos anjos ali presentes é incomparável, pois cada posição vaga ocupada é mais uma parte da beleza daquele imenso conjunto que se completa. Diz a santa:

São enormes demonstrações de alegrias e de amizade, de cânticos de louvores e bênçãos para dar graças a Deus por sua felicidade. E este júbilo dura mais longo tempo nuns coros do que noutros. Na ordem dos serafins,  uns penetram mais do que os outros na compreensão divina. Há entre eles uma gradação de inteligência que  existe igualmente em todos os coros.

Ou seja, até mesmo entre os serafins, que são os mais altos, há distinções de inteligência e de capacidade de compreender a infinita perfeição de Deus. Essa desigualdade, segundo a narração de Santa Francisca Romana, existe em todos os demais coros angélicos.

Quanto maior a sutileza de entendimento, maior a saciedade na visão beatífica

E continua:

O que digo dos anjos, digo igualmente dos espíritos humanos que lhes estão associados. Todos os espíritos de um mesmo coro não estão igualmente próximos de Deus. Ora, quanto mais de perto uma inteligência vê a Deus, melhor n’Ele penetra e, portanto, mais feliz é.

Todos os espíritos humanos colocados na glória não a  possuem no mesmo grau. Alguns, quando viviam em sua carne mortal, receberam uma inteligência mais sutil e, segundo suas operações intelectuais e capacidade, penetram mais no abismo da divindade. Eles levaram ao Céu um espírito mais arguto e penetrante.

Assim, quanto mais uma alma tem capacidade e sutileza de entendimento, mais é saciada da visão beatífica. É verdade que no Céu todas as almas são plenamente saciadas, mas cada uma o é segundo a medida de sua capacidade.

Quando os Apóstolos receberam o Espírito Santo, não obtiveram todos a mesma medida de graça. Aqueles que tinham mais capacidade e sutileza em seu entendimento as receberam em mais alto grau. Ora, o que se dispõe a uma maior graça, dispõe-se igualmente a uma maior glória.

Ela, então, nos dá a compreender que os bem-aventurados, ao ocuparem os lugares vagos no Céu neste ou naquele coro angélico, obedecem também a essa espécie de regra pela qual os mais inteligentes e perspicazes vêem e compreendem mais da perfeição divina. Além disso, a saciedade que terão pela visão beatífica será determinada pelo grau de correspondência que deram às graças recebidas por eles na Terra.

Cântico harmonioso entre anjos e bem-aventurados

Temos, pois, dois interessantes aspectos a considerar nessas descrições de Santa Francisca Romana.

Primeiro: todos os anjos e santos no Céu gozam de plena felicidade. As almas dos homens se encaixam ao longo da hierarquia angélica, ocupando as lacunas deixadas pelos anjos rebeldes. A felicidade maior de uns não ofende a menor de outros, pois todos são inteiramente felizes de acordo com a capacidade de inteligência e de percepção que lhes foi dada por Deus.

Segundo: embora sendo superiores aos homens por sua natureza, os anjos manifestam extremo contentamento ao verem uma alma bem-aventurada galgar os maiores escalões da hierarquia celeste, sobrepujando aos próprios anjos de coros inferiores.

Há nisso uma esplêndida lição de harmonia e de humildade. No Paraíso celestial, onde impera a mais perfeita ordem das coisas, os anjos e os santos são desiguais, e nenhum deles sofre com as diferenças que os distinguem. Pelo contrário, todos se unem num cântico perpétuo e inexcedível de louvor a Deus, como notas desiguais que compõem uma maravilhosa sinfonia.

Comprazer-se com a superioridade do próximo

Essas considerações devem nos levar a um propósito concreto de nos examinarmos quanto às nossas disposições de alma nesta vida. Em que sentido?

Se as coisas bem ordenadas e belas da Terra são reflexos da ordenação celeste, cumpre sê-lo também as atitudes que tomamos em relação ao nosso próximo no que diz respeito às desigualdades que nos distinguem. Noutros termos, sentimos, como sentem os anjos e os bem-aventurados, alegria em constatarmos a superioridade de um semelhante sobre nós? Manifestamos nosso júbilo ao vê-lo crescer, igualar-se a nós e, mais, tornar-se maior, sobrepujando nossas próprias qualidades? Entoamos um Magnificat em louvor de Nossa Senhora, em agradecimento a Deus por essa desigualdade?

As respostas a essas perguntas nos dirão até que ponto estamos preparados para a insondável e maravilhosa harmonia de grandezas distintas existentes no Céu.

Roguemos a todos os anjos e santos que, pela intercessão de Maria Santíssima, nos alcancem a graça de sermos como eles, isto é, de desejarmos o bem maior para o próximo, e de termos alegria pela superioridade alheia.

Lembro, a esse propósito, das preces redigidas pelo Cardeal Rafael Merry del Val em sua Ladainha da Humildade, entre as quais, esta: “que os outros sejam mais santos do que eu, embora me torne santo o quanto me for possível, Jesus dai-me a graça de desejá-lo”.

Portanto, é levar ao auge o desapego de si e a alegria pela glória do seu semelhante. É desejar, de fato, que os mais inteligentes e capazes brilhem mais do que eu nas vias do serviço de Deus. Sobretudo, é querer, segundo dos desígnios da Providência, que os outros sejam mais santos do que eu, porque me alegro com todas as superioridades que estão acima de mim. Esse é o timbre de voz da alma autenticamente católica quando reza. v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 1/11/1965)
Revista Dr Plinio 125 (Agosto de 2008)

 

Lugar onde a Providência quis reunir suas maravilhas – I

Dr. Plinio sempre teve encanto pelo mar. Eis uma das razões pelas quais apreciava sobremaneira Veneza, a cidade construída sobre as águas. A causa mais profunda do surgimento de tal maravilha é o Sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo, de Quem resulta tudo quanto há de bom e de belo na Terra.

 

Antes de comentarmos alguns aspectos de Veneza, parece-me conveniente considerarmos um pouco o que se passa no interior de nossa alma, vendo essa cidade. Externo aqui minhas reflexões ao visitá-la, pois o que vou dizer a meu respeito se dá mais ou menos com todo mundo.

Fascínio pelo mar

Tanto quanto me lembro, em pequeno eu tinha impulsos que me levavam a lamentar de não poder viver, não propriamente no mundo da fantasia, mas num mundo que não era aquele no qual eu vivia. Portanto, levar uma vida real numa atmosfera diferente da qual eu vivia.

Assim, por exemplo, recordo-me de, muitas vezes, estando em Santos ou, muito mais modestamente, numa estação de águas hidrotermal que eu frequentava por causa de minha mãe, onde havia um riachinho um pouco nutrido, corria um pouco de água, formava uma ilhota e umas coisas assim; olhava para as águas e sentia o fascínio que esse elemento produz. A água salgada do mar me fascinava além de todo limite. Foi toda a vida o encanto de minha alma considerar o mar.

Lembro-me do meu tempo de deputado, quando o prédio onde se reunia a Assembleia Constituinte ficava numa praça do Rio de Janeiro, no fundo da qual há um braço de mar. Meu gosto pelo mar era tal que, às vezes, eu estava sentado assistindo à sessão e me vinha à mente:  “Como seria interessante se eu pudesse estar olhando para o mar, por exemplo, sobre uma espécie de terracinho de madeira amarrado em estacas, posto na água de maneira a acompanhar o movimento da maré!” Aquilo me distraía a ponto de ter que fazer esforço com a minha inteligência para prestar atenção nas arengas, tanto era o meu gosto pelo mar.

Entretanto, nunca me passou pela cabeça imaginar um homem que, estando no mar, começasse a pensar na terra. Então, alguém se encontrando num navio, vendo a terra de longe, pensasse: “Ah, que delícia aquela terra! Pisar em solo firme…” O chão não é firme, mas duro; é diferente de firme. Para acharmos graça no chão é preciso calçá-lo com pedras bonitas, pôr um tapete para disfarçá-lo a fim de nos sentirmos à vontade em cima dele.

Pelo contrário, no mar não. Ele é delicioso! Debaixo de certo ponto de vista, quanto mais a pessoa possa estar no mar, sem pisar em nada que lembre a terra, melhor é. Se ela estiver nadando, metida na água que exerce sobre ela uma atração extraordinária, tanto melhor. É o fascínio produzido por um elemento onde o homem realmente não vive, mas no qual ele tem a impressão de que a vida seria ideal.

Palácios e jardins, nostalgia do Paraíso

Certa ocasião, estando em Petrópolis, no Rio de Janeiro, vi pela primeira vez um homem voar em asa delta. Percebi que do local onde me encontrava até o panorama marítimo da Baía de Guanabara não levava muito tempo. E notei que lá de cima o homem estava olhando para aquela baía, realizando assim a convergência de dois sonhos: a água e o ar. Pareceu-me delicioso estar lá em cima, apesar de umas inseguranças não pequenas. Mas ele se movia com tal desembaraço no ar, que percebi estar inteiramente seguro. Então, a ideia de estar seguro, planando no ar, longe da terra e olhando o mar, era uma coisa deliciosa.

De outro lado, há uma coisa que também atrai o homem. Não é propriamente a terra, mas o palácio. Folheando álbuns, vendo palácios lindamente decorados, os mais antigos com belos vitrais, os outros com pinturas lindas, ou tapeçarias bonitas, com um chão precioso, macetado com madeiras de cores diferentes, formando desenhos, com quadros, móveis luxuosos, e com o teto alto, o homem tem sedução por algo que esconde de todos os modos a realidade comum da terra onde ele vive. O palácio é uma espécie de esconderijo onde, sem sentir a instabilidade da água e da flutuação no ar, a pessoa também foge de algum modo da terra concreta e constrói um sonho dentro do qual ela entra. Este é o palácio.

Ademais, para encobrir ainda de algum modo a terra, o homem elabora jardins, por vezes ornados com chafarizes que fazem a água brincar no ar, caindo depois em tanques onde o elemento líquido fica refletindo o céu, o próprio jardim e o palácio.

Como se explica que o homem goste tanto de disfarçar a terra? A meu ver, porque ela é exatamente o elemento que mais traduz a punição e o desterro do homem por causa do pecado original. “Amaldiçoada será a terra por tua causa. Com sofrimento tirarás dela o alimento todos os dias de tua vida. Comerás o pão com o suor do teu rosto, até voltares à terra da qual foste tirado” (Gn 3, 17.19).

A terra é apresentada como um lugar de degredo onde é duro trabalhar, é preciso regar com o suor do rosto, ou seja, é penoso obter algum resultado. Ela é prosaica, não apresenta cores lindas, nem maravilhas de nenhuma espécie. A meu ver, por onde mais sentimos a nostalgia do Paraíso é precisamente no contato com a terra.

Palafitas para se proteger contra as feras

Reportemo-nos, agora, a uma remota reminiscência para compreendermos os desígnios da Providência, e como Ela dispõe tudo de modo maravilhoso.

Como demonstram as pesquisas arqueológicas, na Pré-História houve povos que, levados pelo receio dos animais ferozes, construíram as chamadas palafitas, conjuntos de estacas que sustentavam habitações construídas sobre as águas. Durante a noite, eles retiravam uma espécie de tabuleiro que lhes servia de ponte entre a palafita e a terra, e assim os animais podiam rondar em torno deles, mas não incomodavam. A água protetora os separava.

Podemos imaginar a sensação de progresso experimentada por esses primitivos quando eles construíram a primeira casinha e, à noite, ouviam as feras uivar dentro do mato; ao invés de ficarem apavorados, como no tempo em que viviam em grutas ou cabanas, dentro das quais um animal feroz podia de repente irromper, eles dormiam sossegados e se abanando deliciosamente, porque a fera não constituía mais um perigo. Que “civilização”!

Foi de uma situação análoga a essa que, do pânico de primitivos habitando um lugar pantanoso e inconsistente, nasceu uma das maiores belezas do universo. O local hoje ocupado por Veneza, outrora era muito pantanoso.

Um dos lugares mais bonitos da Terra

Em certo momento, um guerreiro terrível, Átila, desceu com seus hunos através da Hungria, invadiu a Itália e foi surrando tudo no caminho. O pavor que os latinos civilizados tinham dele era tal que se exprimiu por uma metáfora muito poética: por onde a patas do cavalo dele pousavam nunca mais nascia erva.

As populações daquelas regiões ficaram com pavor de Átila e se aprofundaram em seus pântanos, procurando lugares de mais resistência para se fixarem. Ali mais ou menos repetiram as palafitas.

Esses povos depois foram batizados, e o Batismo operou em suas almas o efeito regenerador que lhe é próprio; e de primitivos, mais ou menos vagabundos, passaram a ser homens de trabalho que, seduzidos pelas águas do Mar Adriático, entregaram-se à navegação. Tornaram-se grandes navegantes e se dedicaram ao comércio, passando a ser a maior potência marítima do Mar Mediterrâneo.

As riquezas voltavam para Veneza e com elas as possibilidades de trabalho, de organização. Aquelas ilhas resultantes do antigo pântano foram consolidadas, ajeitadas, fizeram correr água onde havia lodo outrora. As casas foram melhorando, as águas se tornaram de trânsito fácil e, no lugar do antigo pântano, constituiu-se um arquipélago que foi se enchendo de palácios de uma beleza famosa no mundo inteiro.

E ali, em vez do jardim que Veneza não tem, nasceu para o homem este sonho que se realizava: morar num palácio à beira d’água, com um céu lindíssimo. O céu de Veneza é uma espécie de céu dos céus, o colorido e as brumas são uma beleza, os anoiteceres são lindíssimos. E realiza-se assim esse ponto de eleição que é uma espécie de paraíso feito pelo homem, pela sua fantasia, pelo seu talento, pela sua capacidade de trabalhar, pelo seu desejo do maravilhoso, coisa tão distante do homem contemporâneo.

Então, realizou-se em Veneza esse ponto de encontro onde a terra feia, outrora pântano, é disfarçada pelo chão dos palácios, o pântano é coberto pelas águas do mar que correm, o céu maravilhoso e as águas se osculam, formado um dos lugares mais bonitos da Terra.

Maravilha que nasceu do Sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo

No centro desta narração está o desvendar de um enigma. Como povos tão primitivos puderam realizar uma coisa tão maravilhosa? Será por que se mesclaram com outros povos? A meu ver, se eles não fossem batizados isso não saía. Pode ser que se tenham mesclado com latinos decadentes. Mas do pântano do primitivismo e da decadência das grandes cidades em decomposição sair uma coisa assim, não era preciso um terceiro elemento que fizesse uma coisa verdadeiramente mais bela?

A meu juízo é evidente que sim.  É o Corpo e o Sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo, cuja imolação no alto do Calvário obteve as grandes regenerações morais. É deste Sangue, a propósito de cuja efusão Nossa Senhora chorou e do qual resulta tudo quanto há de bom, de grande, de belo na Terra, que nasceram maravilhas dessas, pela regeneração do homem. Batizou-se, ficou trabalhador. Intensificou e disciplinou o seu desejo do maravilhoso, as maravilhas começam a nascer.

Foi à procura desse auge de realização do maravilhoso na Terra que me pus a sonhar sobre Veneza e a querê-la. Desde minha primeira viagem àquela cidade, meu espírito estava tomado por esta ideia: eu estava visitando uma junção incomparável e paradisíaca de coisas maravilhosas.

Poder-se-ia dizer, entretanto, haver mais algo ocupando no meu espírito um grande espaço, um ponto importante que procurarei condensar: das várias obras-primas existentes em Veneza, – oh, mistério! – nenhuma é tão grande e tão maravilhosa quanto o homem.

A “Sereníssima República de Veneza”

Se Deus tivesse criado Veneza, mas a cidade houvesse ficado sozinha para ser habitada pelos pombos, que valor ela teria? Muito mais do que simplesmente aquilo, há em Veneza o estilo de vida, o estilo artístico veneziano, a cultura, as instituições venezianas, que modelaram as fisionomias dos palácios. E, no plano da Providência, o palácio é modelado pela cultura do homem, mas o auxilia a modelar depois a sua própria cultura. Ajuda-o a se requintar. O céu, o mar e a terra foram feitos para, iluminando a casa ou o palácio do homem, iluminar a alma de quem ali reside.

Esta é a dignidade do ser humano. Tudo isso nos reporta ao fato de que a chamavam de “Sereníssima República de Veneza”. “Sereníssima” é quase mais bonito do que Imperial e Real. Dá a impressão de orvalhada por todas as calmas da noite. “Sua Alteza Sereníssima”, por exemplo, eu acho um título lindíssimo! E a República de Veneza, por ser soberana e querer se encaixar na hierarquia nobiliárquica e feudal da Europa, considerando que seu chefe tinha uma verdadeira dignidade de um duque, tomou para si o título de “Sereníssima”.

Veneza era uma república aristocrática, dirigida por uma nobreza inscrita num livro chamado “Livro de Ouro”. As famílias promovidas à nobreza tinham seus nomes inscritos nesse livro, e pertenciam a uma classe social que elegia uma espécie de Câmara dos Lordes. Havia também, para as várias categorias da plebe, câmaras, conselhos, etc.

Casamento de Veneza com o mar

À testa disso estava o Conselho dos Dez, chefiado por um doge que usava o barrete frígio das repúblicas contemporâneas, cercado de uma pequena coroa. Tratado como um príncipe, eleito de dez em dez anos, podendo ser reeleito, o doge era o ponto de partida de politicagens finíssimas, rasteiras jeitosíssimas, mais elegantes do que passos de minueto; com a beleza de quem se habituou muito cedo a burilar a política como quem burila um cristal. Aliás, por uma coincidência bonita, as fábricas de cristal começaram a aparecer. Daí vem o famoso cristal Murano. Há qualquer coisa de cristalino na República de Veneza.

Todo mundo conhece a festa anual de esplendor de Veneza. O doge, vestido com trajes fabulosos, ia até o alto-mar num navio todo folheado a ouro, chamado Bucentauro, seguido de um cortejo de embarcações com gente a bordo tocando violinos e outros instrumentos. Ao chegar a certa altura, fazia-se o casamento de Veneza com o mar, lançando no fundo do Mar Adriático um anel. Nesse momento, a música dava o seu todo, o pessoal aclamava. Ao cair da tarde, todos voltavam, em meio aos reflexos da água do mar de Veneza, e a festa continuava na terra. Aqueles canais eram percorridos por gente em gôndolas, lanternas bonitas iluminavam os terraços, de fora dos palácios se percebia a luz das festas que se estavam dando ali dentro. O tilintar dos copos de cristal, os vivas, os cânticos se prolongavam pela noite afora.

Se passarmos daí para as palafitas que constituíram a primeira Veneza, compreenderemos a enorme trajetória percorrida nesse lugar verdadeiramente privilegiado, onde a Providência quis reunir as suas maravilhas.

(Continua no próximo número)

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 2/12/1988)

A "Oração da Restauração"

No Antigo Testamento – tanto quanto me lembre isso não ocorre no Novo – encontramos preces nas quais o orante dirige perguntas a Deus. Por exemplo: “Senhor, por que dormis?”, e outras interrogações análogas que esperam uma resposta do Criador.

De passagem, é interessante notar que as súplicas presentes nas páginas do Antigo como nas do Novo Testamento são inspiradas pelo Divino Espírito Santo, ou ensinadas diretamente por Nosso Senhor Jesus Cristo. São diferentes de uma prece privada, como esta que agora passo a comentar.

A pergunta-chave

A Oração da Restauração contém uma indagação, que é o ponto chave dela: “Não tendes também Vós , Senhora, saudades deste tempo?”

É a impetração de um pecador que se encontra no início ou na plenitude de um processo de arrependimento, e por isso se lembra com nostalgia do tempo em que ele era bom. E se recorda do convívio espiritual que tinha com Nossa Senhora, através da graça. Essa lembrança o enche de contrição e de saudades, pois ele quereria reviver aquela felicidade matutina do começo de sua vida, e que depois não teve igual.

Argumento do faltoso em seu favor

Então ele deseja dar a Maria Santíssima um argumento que A leve a atender seu pedido. Porque, precisamente por ser pecador, sente a insuficiência de seus próprios meios. Sozinho, nada obtém, e só alcançará algo se os seus argumentos forem aceitos. Então, com ânimo redobrado, parte à procura de uma razão para apresentar, e diz a Nossa Senhora: “Se eu, que sou filho, tenho saudades de Vós, quanto mais Vós, que sois Mãe, deveríeis ter saudades de mim!”

É a essência da oração.

E tão grande é a certeza da reciprocidade de sentimentos, que o suplicante não espera resposta. Como se Nossa Senhora lhe tivesse dito: “Sim, meu filho, tenho saudades de ti”, ele tira a conclusão: “Vinde, pois, minha Mãe, e por amor ao que desabrochava em mim, restaurai-me!”

Quer dizer, “por amor ao bem que ia surgindo em mim (está subentendido: ‘que eu sufoquei’), restaurai-me”.

“Recomponde em mim o amor a Vós”. Significa que ele não sente tanto quanto deveria o amor a Nossa Senhora, merecedora de maior devoção sua. Então pede-Lhe recomponha na sua alma esse amor, como conseqüência das saudades que Ela, por sua vez, tem dele: “Se Vós, minha Mãe, lembrais de mim, restaurai-me!”

“Dai-me aquilo que perdi…”

“E fazei de mim a plena realização daquele filho sem mancha que eu teria sido, se não fosse tanta miséria”.

Ou seja: “Eu era um filho que Vós amáveis inteiramente, pois não tinha manchas. Nesse tempo, estabelecia convosco um convívio amado por mim e por Vós. Entretanto, agora apresento essas nódoas. Vós não podeis desejar tal relacionamento com esse homem manchado. Então, tirai-me as máculas! Se tendes de fato saudades de mim, compadecei-vos e dai-me aquilo que eu perdi!”

Esse é o pensamento contido na oração.

Trata-se, portanto, de uma prece estruturada com lógica, embora não o pareça à primeira vista, devido ao intenso sentimento que a repassa. Mas este e a lógica não se excluem. O reto sentimento é o fruto da lógica. E a oração de tal maneira é confiante que, depois disso, não faz insistência. Termina dando ao pecador a tranquila certeza de que será atendido.

Oração da confiança filial

Ela pode chamar-se a “oração da confiança filial”. E acontece que, quanto mais uma prece incute confiança, tanto mais ela tem condições de ser ouvida pelo Céu. E o pecador, de si, não tem nenhum título para ser acolhido. Porém, se confia, apesar dos seus pecados, sua atitude adquire mérito, pois é duro confiar quando se ofendeu a Deus. Esse ato difícil o faltoso realiza. E assim, essa oração não é a do pecador que se arrependeu e se converteu, mas daquele que se sabe um pulha, um nada, sem nenhuma qualidade que agrade a Nossa Senhora, senão sua confiança.

Diz ele a Maria Santíssima: “Vós me favorecestes e me amastes tanto outrora – e aí entra o lado bem brasileiro da oração –, não tendes saudades desse tempo? Minha Mãe, se tenho saudades, será que Vós não tendes também?”

Imagine-se uma mãe que expulsou seu filho de casa, por grave e justo motivo. Certo dia, andando pela rua, ela se encontra com o rapaz. Procura manter uma fisionomia severa, condigna com a situação imposta pelos fatos. Contudo, se o filho lhe disser: “Mamãe, mereci ser expulso, mas que saudades tenho de vossa casa!”, qual será o efeito disso no coração materno?

Por mais que ela deseje manter a cara amarrada e séria, a misericórdia fala mais alto e a inclina para a clemência. A fim de que esse movimento seja completo, o filho pergunta: “Será que vós, vendo minhas saudades, não tendes também saudades do meu afeto?”

Isso é muito psicológico e cogente. É a súplica esperançada do desesperado.

Triste situação do que retorna ao pecado

Para se compreender o que caracteriza essa oração, devemos considerar que o mundo de hoje naufragou num tal abismo de relaxamento moral que bem poucos são os que ingressam no nosso movimento sem nunca ter cometido um pecado grave. A maioria são dos que se converteram, abandonaram os maus hábitos e abraçaram as vias da virtude. Depois, infelizmente, pode suceder que algum recaia no pecado. Então, é uma miséria que se soma a outra. Na linguagem acerba e veraz de São Pedro, “o cão volta ao seu vômito”. Quer dizer, o indivíduo vomitou o pecado, mas, ao recair, procura alimentar-se do que lançou fora de si, à semelhança do procedimento de alguns cachorros.

Segundo o Evangelho, Nosso Senhor fala de um homem infestado pelo espírito maligno. Ele foi exorcizado, expulso o demônio que o atormentava, e sua alma se tornou como uma casa limpa.

Entretanto, da narração se pode deduzir que ele pecou de novo, e sua casa, ou seja, sua alma, ficou ainda mais infestada que antes, atormentada por vários demônios. Nosso Senhor fala em sete, mas sabe-se que este é um número simbólico. Na realidade, sobreveio uma falange de espíritos imundos para povoarem a alma daquele que tinha sido exorcizado.

Mas, a oração apelando para a misericórdia de Nossa Senhora obtém a segunda desinfestação, que é definitiva.

Gancho que liberta o pecador do pecado

Então, a Oração da Restauração é composta tendo em vista essas verdades. É a prece de uma alma outrora possuidora de grande inocência, perdida por causa do pecado. Tendo se afastado de Nossa Senhora, ela se volta para a Santíssima Virgem e Lhe diz: “Ai, que saudades!”. E apesar do seu pecado, ela – a devedora! – cobra da Mãe de Deus a reciprocidade: “Tenho saudades. Não é natural que Vós tenhais também?!”

Essa pergunta, dirigida a uma mãe, produz o resultado que conhecemos.

Forma-se, assim, uma espécie de gancho no qual o pecador se agarra e sobe. É uma súplica muito adequada para uma época como a nossa, onde as ofensas a Deus são superabundantes, terríveis, e as infestações, medonhas. E para qualquer homem que alguma vez amou Nossa Senhora, essa prece ficará bem em seus lábios.

Se, porventura, alguém declarasse: “Mas, Dr. Plinio, nunca amei Nossa Senhora”, eu lhe recomendaria que dissesse à Virgem Bendita: “Minha Mãe, quem vos amou, pode rezar a Oração da Restauração. Muito pior é a situação em que me encontro, pois nunca vos amei, e não posso sequer dirigir-vos essa súplica. Hoje, porém, compreendo quão lastimável é o estado de um homem que nunca vos teve por Mãe. Não posso perguntar se tendes saudades de mim, porque nunca fui vosso! Mas, se tendes pena de quem foi vosso, quanto mais não deveis ter de quem nunca o foi?!

“Vendo minha situação, ó Mãe, não vos compadeceis? Vinde e salvai-me!”

Essa seria a Oração da Instauração que eu ensinaria a um filho nessas condições.

Há momentos minha Mãe, em que minha alma se sente, no que tem de mais fundo, tocada por uma saudade indizível. Tenho saudades da época em que eu Vos amava, e Vós me amáveis, na atmosfera primaveril de minha vida espiritual.

Tenho saudades de Vós, Senhora, e do paraíso que punha em mim a grande comunicação que tinha convosco. Não tendes também Vós, Senhora, saudades desse tempo? Não tendes saudades da bondade que havia naquele filho que fui?

Vinde, pois, ó melhor de todas as mães, e por amor ao que desabrochava em mim, restaurai-me: recomponde em mim o amor a Vós, e fazei de mim a plena realização daquele filho sem mancha que eu teria sido, se não fosse tanta miséria.

Dai-me, ó Mãe, um coração arrependido e humilhado, e fazei luzir novamente aos meus olhos aquilo que, pelo esplendor de vossa graça, eu começara a amar tanto e tanto!

Lembrai-Vos, Senhora, deste David e de toda a doçura que nele púnheis. Assim seja!

Entusiasmo e amor pelo Papado

Nunca será demasiado procurarmos recordar as grandezas do Papado, admirá-las, entender o seu papel na História e na vida dos homens, para assim crescermos no amor a essa instituição admirável que Nosso Senhor estabeleceu como cabeça da Igreja.

A fim de melhor fazê-lo, convém tomarmos em consideração a importância da própria Igreja no existir da humanidade.

A missão de ensinar e governar

A Santa Igreja Católica Apostólica Romana é especialmente constituída por aqueles que creem e declaram acreditar em toda a doutrina por ela ministrada. Naturalmente, estes devem praticar os Mandamentos e frequentar os sacramentos. Mestra, ela lhes ensina aquilo no que precisam crer: se o fazem, com o auxílio da graça divina e de Maria Santíssima, serão salvos; caso contrário, correm o risco de se condenarem.

No conjunto da Igreja, os leigos são os discípulos, enquanto à Hierarquia cabe a missão docente, cuja formação aceitamos com enlevo e respeito, deixando-nos educar por ela. Temos, portanto, uma sociedade constituída por aqueles que ensinam e pelos que são ensinados.

Porém, a Igreja não se limita a instruir. Ela governa, guia, oferece diretrizes aos homens, em ordem à salvação deles. Por exemplo: “Compareçam à Missa no domingo e dias de guarda; confessem-se e comunguem uma vez por ano; façam jejuns em certos dias”, etc. Além disso, ela promete indulgências a quem praticar determinados atos, e se reserva o direito de aplicar sanções e penalidades quando julgar necessário. A Igreja não é apenas Mestra, mas Mãe. Em relação aos seus filhos, a mãe os governa e educa, com bondade e firmeza, para levá-los a seu normal desenvolvimento, assim como a Igreja conduz as almas a fim de alcançarem o Céu.

Especial tarefa de santificar

Ademais de governar e ensinar, outra missão cabe ainda à Esposa Mística de Cristo: a de santificar.

Essa ação santificante da Igreja se realiza através do sobrenatural, ou seja, da graça divina. Para entendê-lo, imaginemos o homem mais dotado de boas disposições que tenha nascido, sem contudo conhecer a Igreja. Se lhe apresentarem os Dez Mandamentos, ele poderá se entusiasmar e dizer: “Vou cumpri-los!”

Mas, em virtude do pecado original, todos os homens se tornaram tão inclinados para o mal, que nem mesmo esse indivíduo privilegiado conseguirá observar na totalidade e de modo durável a Lei de Deus. Ele fracassará e cometerá faltas, arrastado por essa triste tendência. Então, é mister a ajuda sobrenatural para que o homem logre praticar os Mandamentos, bem como todas as virtudes necessárias para subir ao Céu.

Tal socorro, como dissemos, lhe vem pela graça, participação criada na vida incriada de Deus que o Senhor nos concede. Dom maravilhoso, cuja ação benéfica eleva nossa alma, a fortalece, dá-lhe a indispensável clareza de espírito para crer nas verdades eternas, infunde-lhe vigor e disposição para obedecer e cumprir os Mandamentos divinos e os preceitos eclesiásticos.

Ora, a distribuição da graça é a obra santificante da Igreja. Das mãos desta – notadamente através dos Sacramentos – o homem recebe as dádivas celestiais. Quer dizer, o Batismo, a Confissão, a Comunhão, a Unção dos Enfermos, etc., são meios pelos quais a graça penetra na alma humana, podendo ser obtida igualmente pelas orações recitadas com piedade e perseverança, pela intercessão dos santos e, claro, de Maria Santíssima, Medianeira universal de todas as graças.

Compreendemos, pois, como a Igreja realiza a obra da salvação. Ela ensina o que devemos saber e crer; nos orienta à prática da virtude; nos obtém as forças necessárias para atingirmos nossa salvação. É a Igreja docente, a que governa e, sobretudo, santifica.

Tal é a beleza da missão da Igreja, centro de tudo, para o qual devem convergir as atenções e o amor de todos os homens. Se estes a aceitarem e reconhecerem como Mãe e Mestra, todos se santificam, tudo floresce na Terra, e as almas se salvam. Se, pelo contrário, a Igreja não for vista como deve ser, em pouco tempo os espíritos se estiolam e se perdem.

O Papa, máximo representante de Cristo na Igreja

Agora, no ápice dessa constituição encontra-se o Vigário de Cristo, o Papa, máximo representante de Nosso Senhor na Igreja. A ele toca, em grau eminente, aquilo que os outros ministros eclesiásticos podem ter de um certo modo. O Soberano Pontífice é o mestre dos mestres, e exerce os poderes de ensinar e governar acima de toda a Hierarquia. Os bispos e párocos formam e orientam os fiéis, na medida em que estão unidos ao Sucessor de Pedro. Se romperem com este, perdem seu papel orientador e docente.

A esse propósito, lembro-me de ter tido notícia de um caso infeliz. Em meados do século XX, certo bispo de uma cidade paulista começou a propagar heresias, e a Santa Sé, muito clemente, avisou-o e o afastou da diocese, sem excomungá-lo. Tendo ele insistido nas doutrinas errôneas, o Vaticano advertiu: “Se continuar a difundir esses erros, será excomungado!”

O bispo não deu ouvidos, e acabou recebendo o castigo que merecia. Depois disso, esse prelado não teve nenhum poder sobre os fiéis. Ficou pulverizado. Rompeu com o Papa, rompeu com tudo.

Pedro é o tronco da árvore por onde passa toda a seiva. Unidos ao Papa, os homens se salvam. Desligando-se dele, se desviam. Não há, portanto, quem ocupe cargo mais alto na Terra do que o Papa. E não existe coisa mais bela do que amar , venerar e servir o Romano Pontífice.

Bela manifestação de amor ao Papa

No século XIX deu-se um lindo episódio ao qual os historiadores, exceto os que tratam do Papado, quase não se referem: uma espécie de cruzada em defesa do Vigário de Cristo. Menos ainda mencionam o fato de que desta cruzada fizeram parte vários sul-americanos, entre eles alguns brasileiros.

Naquele tempo, o Papa era rei da cidade de Roma e de territórios circunvizinhos. Movidos por inimigos da Igreja, o monarca Vitor Emanuel e o general Garibaldi, que o servia, resolveram conquistar a Cidade Eterna e arrancá-la ao Pontífice. Ao saberem da perigosa situação em que se encontrava o Pai da Cristandade, católicos do mundo inteiro acorreram para defendê-lo e lutar por ele. Eram os chamados zuavos pontifícios. Embora pouco numerosos, combateram heroicamente, infligindo grandes derrotas aos adversários, sobretudo na acirrada batalha de Mentana.

Devido às circunstâncias, o Papa acabou perdendo o reino de Roma, mas a epopeia dos zuavos ficou sendo para sempre uma das mais belas manifestações de veneração ao Papado.

E assim temos uma breve noção do esplendor da instituição pontifícia. Se não houvesse uma autoridade suprema em sua Hierarquia, a Igreja se tornaria um caos, e a salvação das almas estaria gravemente prejudicada. Tudo isso se evita, porque há um Papa.

Numa palavra, o Sucessor de Pedro é o ponto central da vida dos homens, e para ele deve se voltar todo o nosso entusiasmo e amor.