As cruzes bem aceitas diminuem as penas do Purgatório

A pessoa que compreende que o natural desta vida é sofrer tem suas paixões mais ordenadas, facilitando assim a prática da virtude. Contudo, se é avessa a todo e qualquer sofrimento ela se torna orgulhosa, pretensiosa, sensual, preguiçosa; enfim, desatam-se nela todos os desregramentos

As considerações externadas a seguir(1) desenvolvem a ideia de que uma das razões pelas quais devemos aceitar a cruz nesta Terra, é por ela nos abreviar as penas do Purgatório.

Expiar nesta vida as próprias faltas é um grande benefício

Mas se o castigo necessário dos pecados que cometemos for no tempo reservado para o outro mundo, a punição caberá à justiça vingadora de Deus, que leva tudo a fogo e sangue!

Castigo espantoso, inefável, incompreensível: “Quis novit potestatem iræ tuæ?”(2) Castigo sem misericórdia, “judicium sine misericordia”(3), sem piedade, sem alívio, sem méritos, sem limite e sem fim. Sim, sem fim: esse pecado mortal de um momento, que cometestes; esse pensamento mau e voluntário, essa palavra que o vento levou; essa açãozinha contra a Lei de Deus, que durou tão pouco, será punida eternamente, enquanto Deus for Deus, com os demônios no Inferno, sem que o Deus das vinganças tenha piedade de vossos soluços e de vossas lágrimas, capazes de fender as pedras! Sofrer para sempre sem mérito, sem  misericórdia e sem fim!

Será que pensamos nisto, queridos Irmãos e Irmãs, quando sofremos alguma pena neste mundo? Como somos felizes de poder trocar tão vantajosamente uma pena eterna e infrutífera por outra, passageira e meritória, carregando nossa cruz com paciência! Quantas dívidas temos a pagar! Quantos pecados temos, cuja expiação, mesmo após amarga contrição e confissão sincera, será preciso que soframos no Purgatório durante séculos inteiros, porque nos contentamos, neste mundo, de penitências leves demais!

Ah, paguemos neste mundo de forma amigável, levando bem nossa cruz! Tudo deverá ser pago rigorosamente no outro, até o último centavo, mesmo uma palavra ociosa (Mt 12, 36). Se   pudéssemos arrebatar ao demônio o livro da morte, onde anotou os nossos pecados todos e a pena que lhes corresponde, que grande débito verificaríamos e como nos sentiríamos encantados de sofrer, durante anos inteiros neste mundo, para não sofrer um só dia no outro!

Verdade que poucos tomam em consideração

São Luís Grignion desenvolve o pensamento em algumas considerações pormenorizadas, as quais merecem ser comentadas, tanto mais que fazem parte de um tesouro que todo mundo conhece, ou ao menos deveria conhecer, para conseguir a vida eterna.

Ele afirma que muitas pessoas, quando sofrem, não costumam pensar a respeito da vantagem que o sofrimento traz para elas em relação  ao Purgatório. Esta verdade é mais corrente do que se imagina. Entretanto, pouquíssimas são as pessoas que, ao sofrer alguma coisa, fazem o seguinte comentário: “Ainda bem, as minhas penas do Purgatório vão se tomar mais leves!” Embora esta verdade seja conhecida por todo mundo, quase ninguém a toma em consideração.

Porque há verdades tão surradas que nem nos lembramos delas. Entretanto, quando ouvimos serem  mencionadas, voltam ao espírito com enfaramento de nossa parte, tão conhecidas elas são. E quando alguém quer insistir sobre elas, vem a resposta: “Nós já sabíamos disso…”

Este é o último ponto de decadência em que uma verdade pode estar no espírito de alguém.

Infelizmente, esta verdade encontra-se neste estágio, até mesmo em muitos ambientes católicos. Por isso, julgo importante desenvolver este tema para refrescá-lo em nosso espírito.

Os sofrimentos desta Terra e os do Purgatório

O primeiro argumento dado por São Luís é de se tratar de um alto negócio trocar as penas do Purgatório pelos sofrimentos desta Terra. Porque estes são frutíferos, enquanto a pena do Purgatório não tem mais mérito. Nesta Terra, os padecimentos bem recebidos nos obtêm um lugar mais alto no Céu;   os do Purgatório, não. Portanto, tendo em vista a eternidade, é vantagem sofrermos nesta vida.

A maior parte das pessoas, ao receber uma adversidade, fica inconformada, revoltada, aborrecida, e este pensamento pode nos ajudar a carregar não sei quantas provações pelas quais temos de passar: “Estou sofrendo isto, mas, afinal de contas, o justo peca sete vezes ao dia; e na hipótese favorável de que eu seja justo, peco pelo menos sete vezes ao dia. Logo, estou expiando meus pecados aqui, mas conquistando méritos para o Céu, enquanto que no Purgatório eu não vou expiar com mérito”.

Outra consideração feita por São Luís é de que a pena nesta vida é rápida, passageira, enquanto no Purgatório pode ser longuíssima. Por exemplo, dez minutos sofridos aqui com paciência podem expiar um pecado que levaria dez ou cem anos para ser expiado no Purgatório. Lamentavelmente, há por vezes uma espécie de recuo da Fé, por onde esses pensamentos pesam pouco e não temos suficiente energia de Fé para transformá-los em convicção, em elemento dinâmico dentro da alma. Porém,  é um raciocínio de grande valor.

O fogo do Purgatório queima misteriosamente a alma Continua São Luís Grignion: Quantas dívidas temos a pagar! Quantos pecados temos, cuja expiação, mesmo após amarga contrição e confissão sincera, será preciso que soframos no Purgatório durante séculos inteiros…

Aqui está uma ideia a respeito da severidade das penas do Purgatório muito pouco usual para nossos dias. Na realidade, se tomarmos em consideração qual é o alcance de um pecado, mesmo venial, compreenderemos que podemos sofrer muito tempo no Purgatório por causa de pecados bem confessados.

Consideremos que, segundo certos teólogos, o fogo do Purgatório é o mesmo do Inferno, e queima misteriosamente a alma. E isso pode levar séculos! Que tremendo se tivéssemos que passar dez minutos com o dedo queimando na chama de uma vela, sem anestésico e depois sem os mil cuidados da cirurgia moderna! Seria para nós um delírio, uma tragédia.

Imaginem o que seria passar dez anos com o dedo queimando no fogo de uma vela! É uma coisa inconcebível. Pois bem, no Purgatório está a alma posta inteira dentro do fogo, e às vezes durante um século! De 1867 para cá, quanta coisa aconteceu? Em 1867, Napoleão III ainda era imperador; Dom Pedro II, com sua barba loura, ainda reinava no Brasil… Durante esses cem anos, uma alma expiando um pecado no Purgatório!

Há revelações privadas que nos falam de pessoas que terão de ficar no Purgatório até o fim do mundo. Podemos nós saber o que nos espera?

Então, como devemos receber de boa vontade, com alegria uma penitência nesta Terra!

É preciso preparar-se para o sofrimento nesta Terra

Mais adiante ele diz: E como nos sentiríamos encantados  por sofrermos anos inteiros neste mundo para não sofrer um dia só no outro. Querem ver a repercussão sociológica desse pensamento?

Imaginem que a maior parte das pessoas estivesse compenetrada dessa ideia, da qual resulta a seguinte convicção: esta existência, de si, é uma existência de sofrimento. O homem é feito para sofrer enquanto ele não chegar ao Céu.

Logo, a primeira coisa que se deve ensinar a uma pessoa, para ela tomar atitude perante a vida e, em última análise, para sofrer pouco, é conformá-la à ideia de que ela vai sofrer muito.

Porque todos os homens que existem sofrem muito. Portanto, é preciso preparar-se para isso. E, segunda ideia, se não sofrer aqui, sofrerá no Purgatório. Com isso as pessoas perderiam muito de seu orgulho e de sua sensualidade. Sem dúvida, é uma consideração que humilha o homem, mas a alma fica apta a toda espécie de virtude. E quando lhe acontece algum revés, em vez de tomar a posição de alguém que está diante de um absurdo, já vai compreendendo que é o normal e estava previsto, pois o natural é sofrer.

Quantas centenas de milhões de pessoas estão postas na ideia de que é perfeitamente possível levar a vida sofrendo muito pouco, colhendo os frutos  da diversão e do bem-estar que esperam encontrar na realização de sua vontade!

Para essas pessoas qualquer pequeno tropeço é algo que não se compreende como tenha acontecido, um verdadeiro azar. Logo, é preciso lutar de faca na mão para evitar que essas coisas  aconteçam.

Resultado: a caverna onde habitam todos os pecados se abre. Porque com essa ideia a pessoa fica orgulhosa, pretensiosa, sensual, preguiçosa, enfim, todos os vícios se manifestam. O indivíduo fica entregue ao pecado e desatam-se nele todas as desordens, todos os desregramentos.

Por quê? Porque não se é amigo da cruz e não se quer compreender que o natural desta vida é sofrer.

É normal acontecerem reveses na vida

Noto muito essa mentalidade errada na concepção com que certas pessoas tomam as próprias atividades. Por exemplo, lançam um negócio que tarda um pouco a se resolver. Então começa a aflição: “Não viu o que está acontecendo?! Esse meu negócio está tardando a se concretizar. E agora, o que será?” Passam, então, a lançar previsões insensatas: “Se esse negócio arrebentar agora, vou ter que vender tal coisa… Não. Vendo tal outra, faço isso e aquilo…”  Ora, admitida a ideia de que é normal acontecerem reveses na vida, ficamos com a alma preparada para sofrer, sabendo que a qualquer momento podem vir coisas desagradáveis em cima de nós.

Assim adquirimos outra sensibilidade, outro bom senso, outro estímulo para a virtude e — coisa curiosa — sofremos menos. Porque, por mais que se sofra nesta vida, o medo do sofrimento que vem creio ser o maior de todos os sofrimentos. E esse medo vem dessa falta de profundidade.

Do ponto de vista sociológico, isso é de uma importância fundamental. Não se pode ter o Reino de Maria e uma Civilização Cristã se a grande maioria das pessoas não estiver compenetrada de que é normal sofrer. Mais ainda: de que o verdadeiro sentido da vida do homem nesta Terra é aceitar bem os seus padecimentos e conduzi-los corretamente.

Isso é carregar a Cruz de Jesus Cristo. O homem, com os olhos postos em Deus, deve estar satisfeito consigo e grato, não quando logra evitar os sofrimentos, mas quando consegue carregar bem a cruz. Esta doutrina aplica-se também ao apostolado.

Toda ação apostólica é acompanhada de sofrimento e é próprio a ela enfrentar os mais graves reveses, passar pelas dores mais cruciantes, suportando isso com resignação para de fato impulsionar quem deve ser impulsionado.

Creio não haver apóstolo que possa ser tomado a sério se não for um varão das dores. Ele tem que sofrer, mas não como os outros; ele deve ser um ponto de atração e de concentração das dores. Os sofrimentos precisam confluir no apóstolo, e ele deve recebê-los, abraçá-los como Nosso Senhor abraçou a sua Cruz ou como,  por exemplo, o Profeta Jeremias abraçou todo o imenso  sofrimento que ele suportou para, de fato, realizar os desígnios da Providência sobre ele.

Almas irradiantes para o apostolado

Devemos, pois, ter uma conformidade enorme com o fato de estarmos continuamente provados. E não só em nossas pessoas — por doenças, cruzes interiores —, como também em nosso apostolado, em nossos negócios, etc.

Para correspondermos inteiramente à nossa missão, devemos ser, ao mesmo tempo, escravos de Nossa Senhora, apóstolos dos últimos tempos e amigos da cruz. Não se pode ser uma das três  coisas sem ser também as duas outras; isto é indissolúvel.

É próprio da escravidão a Nossa Senhora, quando é bem vivida, dar  valor à cruz. O amor à cruz consiste em considerar normal sofrer reveses, e conduzir isso com serenidade, equilíbrio, força de alma, sem estar a toda hora procurando evadir-se do sofrimento para o reino da frivolidade,  da dissipação, da bagatela; mas, pelo contrário, recolhendo essas cruzes e cultivando-as no interior da alma.

Um bom exame de consciência seria perguntar-se: Eu estou crucificado por tal ponto; como estou carregando minha cruz? Levo-a com toda a conformidade, com todo o amor?

Estou alegre de poder servir a Santa Igreja Católica Apostólica Romana e de sofrer por ela? Se isto for assim, então sou um varão das dores. E neste caso, poderei ser um apóstolo dos últimos tempos e um verdadeiro escravo de Maria.

Isto se dá, em nossa vida espiritual, até em relação às nossas faltas. Temos pecados, imperfeições. Ficamos com o nosso amor-próprio espicaçado? Ou temos paciência em suportá-los e fazemos esta consideração: “É verdade, este mundo, além de ser um vale de lágrimas, é um vale de pecados. Eu pequei, infelizmente, mas vou conduzir a minha pobre e miserável condição de pecador com paciência.

Vou aceitar a humilhação que assim recai sobre mim, vou procurar me reerguer mais uma, duas, cinco vezes, tratando-me a mim mesmo com a paciência com que Nossa Senhora me trata. Não perderei a tranquilidade, mesmo na maior miséria e na maior tristeza. Aceitarei a humilhação como quem aceita a  cruz, e continuarei a andar calma e alegremente, com um sorriso até o fim da vida”.

Isso é propriamente o que torna as almas irradiantes para o apostolado.

Um dos traços dominantes de nossa vida

Conta-se que, estando Napoleão prestes a fazer aclamar-se imperador — naquele período que, segundo alguns autores, foi o verdadeiro apogeu dele — um daqueles bajuladores perguntou-lhe por que ele não se proclamava deus. E ele teria respondido: “Não dá certo, porque depois de Jesus Cristo só existe um jeito de ser tomado a sério como um deus: subir no alto do Calvário e se fazer crucificar. E isso eu não quero”.

Ele apanhou muito bem esta verdade: só é tomado a sério para as coisas divinas aquele que sofre. Não é pelos sucessos que se arrastam aqueles a quem se quer conquistar, e sim pela dor, por algo   de inexprimível existente no contágio de uma alma abnegada e que não  se procura a si mesma. E isso só se sente em quem sofre e aceita o sofrimento. Eis o que verdadeiramente atrai e faz apostolado.

A meu ver seria temerário pedir sofrimentos a Nossa Senhora. Mas trata-se de ter uma atitude de alma pela qual digamos a Ela que gostaríamos de estar preparados para sermos assim. E embora não tenhamos coragem de sê-lo,  se Ela quiser nos dar esta coragem, nós aceitaremos. Porque entendemos não ser inteiramente consagrado à Santíssima Virgem quem não compreendeu que deve  estar consagrado à dor.

De maneira a considerarmos como normal, como o pão nosso de cada dia nesta vida, a dor carregada  com resignação, espírito sobrenatural e paciência; a dor prevista e a imprevista; a dor explicada, e a dor inexplicável. Temos que fazer dessa aceitação da dor um dos traços dominantes de nossa vida, pois cada um de nós deve tornar-se um “vir dolorum” — um varão das dores.

Assim adquiriremos aquela flexibilidade de alma, aquela bondade, aquela generosidade, aquele desapego,  aquela submissão, aquela aniquilação que caracteriza o verdadeiro apóstolo dos últimos tempos.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 16/9/1967)

1) SÃO LUÍS MARIA GRIGNION DE MONTFORT. Carta Circular aos Amigos da Cruz, n. 22 e 23.
2) Do latim: Quem conhece o poder de tua cólera? (Sl 89, 11).
3) Do latim: julgamento sem misericórdia (Tg 2, 13).

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