Ascese da Companhia de Jesus – I Vigoroso torreão da Cidade de Deus

Em 1941 celebrou-se o IV centenário da fundação da Companhia de Jesus por Santo Inácio de Loyola. No marco das comemorações pela efeméride, foi Dr. Plinio convidado a falar para um seleto público na Sala João Mendes Júnior, da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, em 22 de maio. E o fez com o eloquente desembaraço de quem conhecia de perto a obra e a fisionomia moral jesuíticas, à luz da grandiosa missão para a qual os filhos de Santo Inácio foram suscitados.

 

Pretendo tratar daquilo que o espírito da Companhia de Jesus tem de mais essencial, íntimo e caracteristicamente seu, isto é, da ascese inaciana.

Num mundo em crise, surge a Companhia de Jesus

O ambiente em que nasceu a Companhia de Jesus é assaz conhecido. Ninguém ignora as profundas comoções de ordem intelectual, artística, social, política e econômica que assinalaram a passagem da Idade Média para os Tempos Modernos. As novas concepções religiosas, pretendendo proclamar a independência do homem perante a autoridade infalível da Igreja, sujeitaram a doutrina bíblica aos caprichos da livre-interpretação. E, através dessa fenda imensa, aberta na armadura psicológica da Europa católica, não houve erro nem rebeldia que não se mostrassem à luz do sol, ataviando-se com os ilusórios enfeites de uma teologia ou de uma filosofia errônea. Seria, entretanto, manifestar singular superficialidade de espírito, pretender que o surto tumultuário de idéias subversivas, ocorrido na Renascença, constituísse um movimento de completa anarquia doutrinária. No entrechoque dos pensamentos diversos e dos extremismos que entravam em colisão, havia uma nota constante e uniforme, que atraía o desejo dos reis, príncipes, burgueses e plebeus, para uma ordem de coisas que mais abertamente lisonjeasse seu amor-próprio e suas vantagens indivi­duais. O mesmo surto de egoísmo que levava os soberanos a favorecer os propugnadores da monarquia absoluta, levava os burgueses a investir contra as desigualdades que beneficiavam a aristocracia, e a baixa plebe a se revoltar contra a diferença de fortunas.

À ordem política e social da Idade Média, caracterizada pela distribuição equitativa dos deve­res e direitos entre as várias ordens e classes do corpo social, sucedia uma ruptura profunda, em que cada classe ou indivíduo optava pela doutrina unilateral que mais abertamente ­favorecesse seus interesses. No mais profundo do homem, a causa das desordens se estabelecera. O mesmo non serviam orgulhoso, que explodira nas fileiras angélicas, se manifestava agora na Terra. A crise da pseudo-Reforma e da Renascença não foi meramente especulativa. Os debates a que ela assistiu não foram simples entrechoques de idéias. Havia na Renascença uma crise de mentalidade, e não só na inteligência, mas também na vontade o veneno penetrara.

O modo de agir da Contra-Reforma

Evidentemente, a Contra-Reforma deveria solucionar esta crise de duas maneiras: em primeiro lugar, tonificando e restaurando o vigor das convicções católicas, nos países atingidos pela influência paganizante e naturalista da Renascença; além disso, coordenando os recursos de todas essas nações para conter as investidas da heresia, e, quiçá, eliminá-la inteiramente.

A terrível parábola do Evangelho do sal insípido que não tem outra serventia, senão o ser atirado pela janela e calcado aos pés pelos transeuntes [Mt 5, 13], não se aplica exclusivamente ao cumprimento dos deveres do clero. Quando em um país as convicções, os sentimentos, o teor de vida, as camadas mais profundas da personalidade como da vida social, estão impregnadas de Catolicismo autêntico e sem restrições, não há heresia que prevaleça nem erro que logre infiltrar-se. Pelo contrário, se a debilidade das convicções, a superficialidade dos sentimentos, a incoerência da vida social com a doutrina da Igreja, fazem de um país outrora católico uma coletividade apenas relativamente católica, não há perigo que não se possa recear para ele no dia de amanhã.

O trabalho de tonificação, radicalização, restauração, revigoramento do espírito da Igreja nos países católicos se impunha, portanto, para Inácio e todos os paladinos da Contra-Reforma, como a grande condição essencial de qualquer triunfo sobre a heresia.

Com isto, o espírito da Companhia de Jesus estava definido. Na Santa Igreja de Deus, naquela época como hoje, não faltavam instituições admiráveis que, produzindo os mais autênticos frutos de contemplação e apostolado, constituíam a alegria das almas santas e o terror dos homens pérfidos. A Companhia não vinha, própria e essencialmente, fazer uma obra diferente. Estudos, colégios, congregações, missões, tudo isto não é exatamente a finalidade da obra de Santo Inácio, mas apenas seus principais e mais constantes meios de ação, quites para ela se valer também de quaisquer outros recursos lícitos, desde que úteis à maior glória de Deus. O programa próprio da Companhia de Jesus, sua finalidade suprema que, insistimos, não é exclusivamente dela, consiste essencialmente nesse empenho pela autenticidade da vida católica nos países e nos ambientes católicos, não só pelo bem que daí decorre, como ainda para a dilatação generosa e invencível desse sadio, autêntico e sólido catolicismo, nas regiões assoladas pela heresia ou pelo paganismo.

Esposo místico da dama Ortodoxia

A Companhia teria falhado em sua missão se tivesse apenas promovido obras geralmente compreendidas e aplaudidas, afirmado as verdades por todos aceitas e apregoadas, ou recomendado os preceitos comumente observados e cumpridos. Por isso ela se esmerou sobretudo em promover, diretamente ou através de terceiros, as obras que o espírito do mundo não pode nem compreender nem aplaudir; defender, com amor particularmente ardente e insistência especialmente apostólica, as verdades que o orgulho humano mais facilmente nega ou deturpa; inculcar o cumprimento dos deveres mais freqüentemente sujeitos à revolta da carne ou da cobiça. Na Cidade de Deus, não veio a Companhia para ser somente um novo palácio, e sim ocupar lugar entre as obras de vanguarda, sendo mais um vigoroso bastião na muralha fortíssima, contra a qual se devem quebrar todas as investidas da cidade do demônio. São Francisco de Assis, sem ter nem pretender o monopólio — aliás, austero — da renúncia às riquezas, foi o trovador e o esposo místico da dama Pobreza. Santo Inácio de Loyola, sem ter nem pretender o monopólio da verdade, foi o esposo místico da dama Ortodoxia.

Grande sentinela dos perigos que ameaçam a Igreja

Evidentemente, não quer isto dizer que a Companhia de Jesus tenha exclusividade em tão alta e nobre tarefa. O jesuíta não possui o privilégio da ortodoxia, como o franciscano não tem o da pobreza, o beneditino o da piedade, o trapista o do recolhimento, ou o dominicano o da ciência. Assim como cada uma dessas Ordens tem sua missão própria, sua faceta mais saliente, sua espiritualidade peculiar, e serve de meio providencial para a manifestação de especiais grandezas e bondades de Deus, a Companhia de Jesus é destinada a ser a grande sentinela dos perigos, mormente daqueles que ninguém ainda vê; o grande remédio dos males, especialmente daqueles que ainda ninguém discerne; o martelo das heresias, sobretudo daquelas cujo murmúrio incipiente ou cuja germinação imperceptível, escapa aos olhos da maior parte dos observadores. Contra a malícia humana e o espírito das trevas, que procuram desnaturar ou falsear nos homens os conceitos das verdades que ainda não conseguiram arrancar, a Companhia de Jesus é o vigia avançado, a muralha resistente, a torre elevada, que permite discernir de longe o inimigo, e quebrar o ímpeto de suas primeiras e mais fortes investidas.

Sendo essa a missão do jesuíta, tal deverá ser sua mentalidade.

(Continua em próximo artigo.)

 

Plinio Corrêa de Oliveira

Revista Dr Plinio (Março de 2007)

(Extraído dos “Anais do IV centenário da Companhia de Jesus, Ministério da Educação e Saúde, Serviço de Documentação, 1946, pp. 369-382.)

 

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