Quem ouve o canto gregoriano pela primeira vez pode ser tomado pela impressão equivocada de que se trata de uma música no seu estágio rudimentar, exprimindo, com um “minimum” de movimentação, estados de espírito mais comuns à condição social de uma civilização nômade, entregue sobretudo aos labores manuais, que apenas começa a dar conta de si mesma e de suas vicissitudes de alma. E que, portanto, tem necessidades muito limitadas e circunscritas para serem expressas através de melodias e cânticos.
Daí uma música, enquanto sonoridade, pouco desenvolvida, um canto monótono, próprio desses espíritos primitivos e de uma liturgia igualmente elementar, sóbria, com movimentos escassos, não obstante os adornos e paramentos eclesiásticos de indiscutível beleza.
Segundo essa concepção, a Igreja terá passado séculos e séculos atraindo almas neurastênicas, debilitadas ou não desenvolvidas, um beatério que correspondia à camada mais rudimentar da sociedade, a única disposta a se sentir tocada e enlevada na tediosa ambientação criada pelo canto gregoriano.
Sem dúvida, uma ideia errada. No universo das maravilhas engendradas pelo espírito católico, o gregoriano aparece exatamente com predicados contrários aos do que essa falsa impressão lhe empresta. Ele surge nos albores da Idade Média, numa civilização que ainda não conhecera os poetas clássicos nem a literatura convencional, que não usou ruge nem batom, que não pretendeu ter ciências esclarecidas e modernas, mas possuía um extraordinário ímpeto para o belo e para a pulcritude.
Tinha-se um vigor e uma fecundidade espiritual imensos, com uma profusão de percepções, de concepções primevas, de observações e contemplações que redundava numa produção artística e social potentíssima, cada alma elevando-se no seu próprio espaço, erguendo-se como palmeiras, sem disputar terreno umas com as outras, formando uma linda e vasta floresta.
Um dos produtos dessa grandeza de alma foi o canto gregoriano. E se este não apresenta os acentos retumbantes das músicas que nasceram nos séculos posteriores, é porque foi concebido com o cuidado da discrição, da humildade daquilo que precisa do seu isolamento, que evita de se expor à luz do sol do convívio com quem poderá entendê-lo mal, banalizá-lo e que, no total, não foi feito para a intimidade com ele. Íntimos, são poucos…
Então, ele como que hesita em pôr a pleno som para uma igreja os seus sentimentos. Há nele uma certa “retenue”, assim como há, de outro lado, o receio de, à força de se exteriorizar, apegar-se vaidosamente ao seu timbre.
Porque, de si, é tão inebriante a faculdade de se exprimir, que a pessoa se põe a falar e facilmente desliza para a conversa solta, pelo simples gosto da loquacidade. Cumpre refrear essa tendência, com aquela harmonia suave e cadenciada do gregoriano, onde se nota a vontade de não aparecer, de ser modesto, de conservar o frescor da humildade e da sua própria inocência.
Talvez, pelo desconhecimento de algumas regras musicais adequadas, haja algo de realmente incipiente no gregoriano, que não chegou a se exprimir em seu completo desdobramento, mas que aponta para ele. Seria como a orla de uma floresta. Dentro desta estão todas as gamas do heroísmo e da ternura, da reflexão e dos esplendores da sadia despreocupação.
Ele é sóbrio, e se não transpõe essa orla, carrega entretanto dentro de si a sua própria floresta, formidável que é uma potencialidade quase inexaurível de gerar civilizações e maravilhas em qualquer parte do mundo. É a força da inocência aliada à graça, que transformou, por exemplo, os pântanos e vales mefíticos da antiga Europa em jardins salpicados de vida e de cor, onde, entre arvoredos e lagos lindíssimos, avantajam-se grandiosas abadias, imponentes castelos e majestosas catedrais. Uma Europa “gregorianizada”.
Agora, qual é o efeito do gregoriano sobre a alma do homem contemporâneo que sabe admirá-lo? Sobre a minha própria alma, portanto? Eu diria que dele emana uma forma de temperatura que transmite todo o aconchegante do quente e todo o agradável frescor do frígido, de um frio que não corta nem maltrata, onde uma brisa tépida de vez em quando faz sorrir. Ele tem as temperaturas da vida, que estão para além das algidezes e calores do mundo mineral. É uma composição de outra natureza, que nos comunica refrigério, luz e paz; que ajuda a despertar e a dar vigor, em nossas almas, a mil ordenações da inocência que o choque com o mundo contemporâneo — no qual encontramos uma selva com macacos, tigres, cobras e javalis, que são os assuntos alheios à nossa salvação eterna — tenderia a fazer esquecer e a adormecer, desviando nosso olhar espiritual.
Outro efeito que o gregoriano produz nas almas é o de tornar-lhes patente o lugar do murmúrio na expressividade do homem. É falso que este, para se exprimir por inteiro, tenha de fazê-lo nos registros mais altos de sua voz e nas ondulações maiores de seus movimentos. Não. Existem harmonias, composições, santidades por assim dizer supra-sônicas que se veriam maculadas e traídas caso fossem descritas pelo som na sua máxima intensidade. Só o murmúrio é capaz de expressar o que é supra-sônico.
Por isso o gregoriano é o cântico do murmúrio.
E enquanto tal, aliás, faz ele sentir que esta é a terra de exílio para a qual viemos em conseqüência do pecado original. Há nele algo de penumbra ascética, de sonoridades meio penitenciais, de almas do purgatório que passam sussurrando, gemendo e entoando canções de esperança. Se lhe prestarmos bem atenção, veremos nele a inocência que se sabe a si mesma em estado de prova, tomando todos os cuidados consigo mesma. Há um quê de mortificado, de vigilante, dentro do celeste desembaraço do gregoriano, à maneira do capuz colocado na cabeça de um frade jovem: lembra o aspecto penitencial, adverte contra o vazio das coisas terrenas, contra o mentiroso dos “élans” excessivos do próprio homem.
Assim é o gregoriano. Das alegrias exultantes do “Te Deum”, aos recolhimentos solenes do “Tantum ergo”, é a música que tem essa qualidade incomparável de exprimir a atitude perfeita, o exato grau de luz da alma reta e verdadeiramente inocente quando se coloca diante de Deus.
Plinio Corrêa de Oliveira