Nos primeiros séculos da História da Igreja, milhões de mártires deram sua vida por Nosso Senhor. Por que não reagiram contra os tiranos? A Providência chamou-os para uma forma de heroísmo que correspondia aos desígnios d’Ela naquele tempo e que não era liquidar e vencer, mas aguentar e morrer. O testemunho dos mártires é uma das grandes provas da veracidade dos fatos narrados no Evangelho.
Tecerei comentários sobre Santa Marciana, virgem e mártir, cujos dados biográficos foram tirados da obra do Abbé Ferrier: “La grande fleur de la vie des Saintes”.
“Ó meu Divino Mestre, vou feliz para Vós!”
Em Rouzucourt, pequena cidade da Mauritânia, Argélia de hoje, vivia em fins do século III uma jovem chamada Marciana, tão piedosa quanto bela, que consagrou muito cedo sua virgindade a Deus e deixou tudo para viver numa cela perto da cidade romana.
Ora, um dia a virgem, inspirada sem dúvida pela voz do Senhor, saiu de sua cela e veio se misturar à multidão que circulava na cidade, agitada por uma emoção porque corriam os dias sangrentos da perseguição desencadeada no mundo inteiro pelo ímpio Diocleciano.
Marciana, chegando pela porta Tipásia, viu colocada numa praça uma estátua de mármore da deusa Diana. Aos pés da deusa corriam águas límpidas num tanque também de mármore.
A intrépida virgem não pôde suportar a visão do ídolo impuro e fez o ídolo em mil pedaços. Uma multidão furiosa se lançou sobre ela e a maltratou horrivelmente. Depois a arrastaram ao pretório, perante o juiz imperial.
A altiva cristã riu-se dos deuses de pedra e de madeira e gloriou-se de adorar o Deus vivo, e O exaltou no templo, com voz eloquente.
O juiz pagão irritou-se e entregou-a aos gladiadores para que servisse de joguete a infames ultrajes. A virgem permaneceu serena e sem medo. Durante três horas, com efeito, Deus a defendeu no meio desses brutos, atacados de terror e imobilidade. Pela oração da angélica mártir um deles se converteu a Jesus Cristo.
O tirano, confuso, redobrou seu ódio ímpio e, não podendo desonrar a virgem cristã, condenou-a a ser estraçalhada por animais ferozes.
Marciana, quando chegou a hora, caminhou para a arena como para uma alegre festa, bendizendo a Jesus Cristo. Amarraram-na ao local do suplício e contra ela foi lançado um leão furioso, que logo se atirou sobre a vítima, ficou em pé e colocou suas garras sobre seu peito. Depois se afastou bruscamente e não a tocou mais.
O povo, tomado de admiração, gritou que libertassem a jovem mártir, mas um grupo misturado à multidão e sempre sedento de sangue cristão pediu que lançassem agora contra Marciana um touro selvagem. A fera aproximou-se dela e com seus chifres furiosos lhe fez no peito uma horrível ferida. O sangue jorrou e a virgem caiu agonizante na arena.
Tiraram-na de lá por um momento, estancaram-lhe o sangue e, como ainda lhe restasse um pouco de vida, o bárbaro tirano a fez amarrar ainda uma terceira vez.
Marciana ergueu seus olhos ao céu, um sorriso iluminou seu rosto marcado pelo sofrimento. “Ó Cristo! — gritou — eu Vos adoro e Vos amo. Vós estivestes comigo na prisão, Vós me guardastes pura, e agora Vós me chamais. Ó meu Divino Mestre, vou feliz para Vós! Recebei a minha alma!”
Neste momento o tirano lançou-lhe um leopardo monstruoso que, com suas garras horríveis, despedaçou os membros da heroica virgem e lhe abriu o glorioso caminho do Céu.
Desafio à idolatria numa atitude carregada do mais belo espírito épico
Esta ficha belíssima merece alguns comentários debaixo de um ponto de vista que não será, talvez, o que ocorre logo de início.
À primeira vista temos o espetáculo de um heroísmo extraordinário, que nos deixa desconcertados. Para dizer tudo numa palavra só, um heroísmo milagroso.
Trata-se de uma santa que é uma eremita no sentido próprio da palavra, quer dizer, ela vive inteiramente isolada, nas proximidades de uma pequena cidade da África, no tempo do Império Romano, época na qual o Norte da África era todo constituído de colônias romanas e estava tão latinizado quanto a Europa latina. Depois, a invasão dos vândalos derrubou o domínio romano e eliminou de lá a raça latina. Mas naquele tempo se tratava de uma região inteiramente latinizada. Ela era, provavelmente, uma latina; seu nome indica isso.
E como uma eremita, ela não se misturava com nada nem com ninguém.
Um dia, tocada pela graça e sem saber ela mesma por que, Marciana vai para a cidade e encontra, então, a cena típica das épocas de perseguição: uma praça pública para onde tinham transportado o ídolo de Diana, a deusa da caça. Foi colocada junto a uma fonte, cujas águas estavam represadas por um recipiente de mármore. E o povo era obrigado a ir adorar esse ídolo. Quem não o adorasse, seria morto.
Ela, tomada de um justo ódio contra esse ídolo que era a afirmação de uma religião oposta à de Nosso Senhor Jesus Cristo, revestida de uma força que não se sabe bem de onde lhe vinha — porque a imagem que dela nos dá a ficha é de uma jovem bela, graciosa, portanto frágil —, empurra o ídolo para o chão, a cabeça se separa do corpo e ele fica em pedaços.
O crime de si, debaixo do ponto de vista romano, era muito grande, principalmente se tomamos em consideração que essas estátuas não eram para eles o que são as imagens para nós. Uma imagem de Nossa Senhora, por exemplo, quem a quebra comete um sacrilégio porque rompe algo que é a figura de Nossa Senhora, mas não é Nossa Senhora em pessoa. Sabemos que essa estátua não faz senão representar a Santíssima Virgem, que está realmente no Céu em corpo e alma. Mas para os idólatras pagãos a estátua era o próprio deus. Este era um dos aspectos da idolatria deles, que acreditavam ser aquela estátua a deusa Diana. Havia várias Dianas, em diversas cidades, aquela era a deusa Diana daquela cidade.
Com uma coragem muito grande, numa atitude carregada do mais belo espírito épico, ela joga o ídolo no chão — e já entro na análise do épico do acontecimento. Vemos, então, uma virgem frágil, débil, uma eremita solitária, recolhida, reclusa, que sai do seu êremo e faz aquilo que os homens de vida ativa não realizariam, que os católicos da região, com certeza, não tinham coragem de fazer: ela vai ao ídolo, o derruba e o espatifa. Quer dizer, ela desafia a idolatria no que essa tem de mais central, de modo ostensivo. Ela não derruba apenas a imagem, mas esta se quebra em vários pedaços.
Atacada por gladiadores e animais ferozes
Marciana se encontra ali de pé, afrontando o tirano que, em nome do Imperador Diocleciano, está condenando à morte a todos os católicos. E ela enfrenta, então, a morte, com uma coragem e serenidade absolutas.
Por que ela não parte para matar o tirano? Entre outras razões porque é uma jovem e não tem forças para isso. Deus não lhe deu essa missão. Ela não é uma Santa Joana d’Arc. De momento, a sua missão é diferente. Ela deve desafiar, mostrar a força de Deus de um modo diverso.
Como Marciana mostra a força de Deus? Ela é exposta a vários tormentos e a epopeia continua. É sujeita aos ataques de um grupo de gladiadores, quer dizer, de homens da ralé, extremamente sensuais, que têm ordem de pular em cima da jovem, abusar dela como entenderem, e depois matá-la.
Então se dá este fato incrível: ela se encontra ali tranquila, e o que ela mais ama na Terra, sua virgindade, sua fidelidade a Deus, está exposta ao risco iminente, ou seja, que os gladiadores podem pular em cima dela de um momento para outro. Durante três horas esses homens estão ali imobilizados e não conseguem se aproximar dela. Uma força misteriosa vence os gladiadores.
Temos aí a primeira manifestação dos traços característicos da Idade Média: é o domínio do Direito sobre a força, do espírito sobre a matéria, da virgindade sobre a concupiscência. Na ordem natural das coisas, ela representa tudo aquilo que na Civilização Cristã é frágil. Mas ela desafia. E por uma força sobrenatural mostra que soou outra era da História: tudo quanto é frágil, reto, digno vai começar a dominar tudo quanto é turbulento e representa a força material, tudo quanto é bestial, tudo quanto, segundo a ordem natural das coisas depois do pecado original, costuma dominar, avassalar a Terra.
Ela reza tranquila, e ninguém se comove. Era normal que várias pessoas se comovessem, que o tirano se abalasse. Um gladiador se converte; os outros, não. O gladiador que se converte é ele mesmo uma prova do caráter sobrenatural do que se passava.
E mandam logo vir outro animal para saltar em cima dela: é um leão. Mais uma vez se repete o contraste maravilhoso; é épico: a virgem que está de pé e o leão que avança sobre ela e, para trucidá-la, deita a pata nela. Podem imaginar o que representa uma patada de um leão numa donzela! De repente a fera para e sai. O povo todo se entusiasma, começa a aplaudir e pede clemência para ela.
Cria-se, então, uma agitação e começam a pedir que vá um touro por cima de Marciana. Soltam o touro que avança, lhe dá uma chifrada e ela cai. E então se vê o sangue purpúreo, o sangue virginal daquela donzela, daquela mártir, que sai generosamente da horrível ferida. Mas os perseguidores não se contentam com isso. Querem de fato matá-la e soltam então um leopardo que pula em cima dela e a estraçalha. Marciana morre docemente, chamando a Deus Nosso Senhor e confessando que ela vai para o Céu.
Conversão dos povos da bacia do Mediterrâneo
Alguém dirá: que sentido tem esse acontecimento? Ele é apenas manifestação de uma epopeia? Toda epopeia tem uma finalidade. Qual é a finalidade dessa? Era apenas mostrar que ela não queria ceder ante o paganismo? Ou somente desejava impressionar a opinião pública por meio de seu martírio?
Vê-se que foi tudo miraculoso, desde o princípio ao fim. Esse foi um dos milagres que deveriam atestar, junto ao povo ainda pagão, a veracidade da Religião Católica e com isso contribuir para a conversão da Bacia do Mediterrâneo.
A grande obra da Igreja Católica, nos séculos da antiguidade, foi a conversão dos povos da Bacia do Mediterrâneo, os quais converteram, por sua vez, os povos bárbaros que vinham do Norte. E foi porque estes se converteram também que nasceu a Europa católica, a Idade Média, a Civilização católica. As missões de todos os outros Apóstolos que partiram para outras terras — como São Tomé, na Índia, na Etiópia, etc. — foram mais ou menos, ou inteiramente, rejeitadas. No Mediterrâneo, por desígnio da Providência, a quantidade enorme de mártires e de milagres converteu os povos. E daí veio, por sua vez, toda a epopeia da Civilização católica.
Para abrir os olhos desses povos, era preciso um grande número de milagres e que, ao mesmo tempo, esses não fossem puros fatos materiais: o leão saltou em cima da virgem e não conseguiu devorá-la; os gladiadores tiveram missão de estraçalhá-la e não conseguiram avançar contra ela. Era necessário que nesses milagres se visse a beleza da Doutrina Católica, da Civilização Católica que ia jorrar daí. Era a civilização da virgindade, da castidade; a civilização dos fracos que recebem forças sobrenaturais e enfrentam todas as forças materiais; a civilização daqueles que sabem que para a alma que tem Fé nada é impossível, e que enfrentam todos os obstáculos, pouco ligando para estes, porque, Deus estando com eles, conseguem tudo. Aqui está verdadeiramente o senso de epopeia afirmado.
Argumento apologético para os séculos vindouros
Alguém dirá: “Dr. Plinio, então o senhor assinala dois pontos: milagres para converter os povos do Mediterrâneo, o perfume da Doutrina Católica e a beleza simbólica desses acontecimentos para atrair as almas a essa Doutrina. Mas por que essa santa, em vez de morrer dilacerada por um touro, não foi protegida por Deus até o fim? E o Criador não deu ordens para o touro liquidar com o governador romano? Não teria sido uma coisa muito mais bonita ver o touro, o leão, o leopardo de repente pularem, como um cavalo alado, por cima da tribuna do governador romano, matá-lo e depois fazer uma chacina e implantar ali o domínio dos católicos? Não seria então, muito antes de Constantino, uma espécie de revanche católica que nos daria as glórias da vitória? Para que tanta gente que morre praticamente sem resistir, tantos milagres que não dão numa vitória que só Constantino veio alcançar?”
Uma pessoa, com muito fundamento, muita razão, muito bom senso, dias atrás me fez essa pergunta. Eu estava apressado, não dei a resposta, mas a dou agora: Uma das provas de que Nosso Senhor Jesus Cristo existiu e de que os fatos narrados pelo Evangelho são verdadeiros — provas válidas para os homens de hoje, de quinhentos anos atrás, para os homens até o fim do mundo —, está precisamente no testemunho dos mártires. Não se tratava apenas de vencer, mas de dar um argumento apologético para os séculos vindouros. Qual era esse argumento apologético? Os fatos narrados no Evangelho se deram na presença de muitíssima gente. Por sua vez, as testemunhas desses fatos, ou os filhos delas, foram dispersas por todo o Império Romano, pela pressão de Tito à nação judaica. Os inimigos acérrimos dos católicos poderiam alegar que os fatos narrados pelo Evangelho eram falsos, dizendo: fale com esse, com aquele, com aquele outro; eles dirão que isso não existiu, que esses fatos não são verdadeiros.
Havia judeus por todo o Império Romano. De mais a mais, muitos deles que ali viviam já não eram propriamente procedentes da Judeia, mas chamados da diáspora, que se tinham dispersado antes de Jesus Cristo. Esses judeus viajavam frequentemente a Jerusalém, o ponto de atração de interesse máximo para eles, e se inteiravam das coisas que lá aconteciam.
Todos eles poderiam ter desmentido o Evangelho, o que deveria criar nas pessoas que ouvissem os Apóstolos, ou seus seguidores, uma dúvida.
Entretanto, os judeus não desmentiam fatos públicos notoríssimos, e isso confirmava os cristãos na Fé. Estes estavam tão certos de que aqueles fatos eram verdadeiros que, como Marciana, deixavam-se estrangular, eram as testemunhas vivas da veracidade da narração do Evangelho.
Isso levou um escritor não católico, Pascal, a dizer uma coisa muito verdadeira: “Eu creio no que contam testemunhas que se deixam estrangular.” E é verdade. Essas testemunhas, para provarem que a Religião Católica é verdadeira, se deixavam estrangular. Nenhuma prova melhor da veracidade da coisa do que a estrangulação.
O testemunho dos mártires prova a veracidade do Evangelho
Então, durante muitos séculos e até hoje, uma das melhores provas de que a Religião Católica é verdadeira e de que os fatos narrados no Evangelho são verdadeiros, é o testemunho dos mártires por toda a extensão do Império Romano. Assim, se compreende que a Providência dava a esses homens o apelo para uma forma de heroísmo que correspondia aos desígnios d’Ela naquele tempo e que não era liquidar e vencer, mas aguentar e morrer. Se eles tivessem vencido, dir-se-ia: uma seita venceu. E não se teria um argumento inteiramente seguro. Dessa forma, ficou a prova: milhões e milhões tiveram tanta certeza que eles se deixavam matar. Quer dizer, a prova do sangue foi dada exuberantemente e todas as gerações vindouras creram por causa deles. E é por causa disso que a Providência não os convidou a uma cruzada contra os pagãos, mas, pelo contrário, a essa forma de reação cujo sentido profundo hoje se percebe, e naquele tempo não se percebia.
Fica, então, patente o milagre da Providência. Se Ela deu a Santa Marciana a força para derrubar o ídolo, não lhe concederia energias para ir até a tribuna do representante do imperador, do procônsul, para esbofeteá-lo, jogá-lo no chão, apunhalá-lo, liquidá-lo? É evidente que sim. Para Deus nada é impossível. Mas que prova seria para nós a vida de Marciana, se ela tivesse ficado pro-consulesa depois? Que prova seria para os séculos futuros? Nenhuma. Era preciso que houvesse dois milagres: primeiro, da resistência contra todos os obstáculos; e depois, em determinado momento, um obstáculo que vem e a respeito do qual Deus não dá mais resistência.
Então, volto a dizer, existem três operações sobre a opinião pública: ela vai e quebra o ídolo; há a prova do milagre e a prova do martírio. Essas provas são tão boas que duram até nossos dias.
Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 18/2/1972)