Após levar uma vida pecaminosa, aos 29 anos Santa Maria Egipcíaca foi tocada pela graça de um modo inusitado… Então, converteu-se e viveu no isolamento, sujeitando-se à mais austera penitência.
Tenho em mãos um texto da Légende Dorée, de Jaques de Voragine, sobre Santa Maria Egipcíaca, que passarei a ler e comentar. Há quem pergunte se tal fonte é histórica. Ora, o mundo necessita da existência de coisas dessas, as quais realmente alimentam a alma, sem indagações históricas nem outras preocupações dessa natureza, pela beleza intrínseca que elas contêm.
Santa Maria Egipcíaca, também chamada a Pecadora, durante 47 anos levou no deserto uma vida de arrependimento e privações. Sua história foi por ela mesma contada ao Abade Zózimo, que certo dia a encontrou.
Ao pedir o religioso que lhe dissesse quem era e de onde vinha, aquela estranha figura de mulher, negra e curtida pelo sol, respondeu:
“Pai, perdoai-me, mas se vos revelar quem sou, fugireis como à vista de uma serpente e vossos ouvidos serão manchados por minhas palavras e vós sereis empestado por minha impureza. Eu me chamo Maria e nasci no Egito. Vim para Alexandria com 12 anos de idade, e durante 17 anos aí levei má vida. Mas um dia, como alguns habitantes dessa cidade fariam uma peregrinação para adorar a Santa Cruz, em Jerusalém, pedi aos marinheiros que me deixassem embarcar também.
“E assim se fez a viagem. Mas eis que em Jerusalém, como eu me apresentasse com os outros peregrinos na porta da igreja, senti-me repelida por uma força invisível que não me permitiu entrar no templo. Vinte vezes aproximei-me das portas e vinte vezes essa força invisível me reteve, enquanto que todos os outros entravam livremente, sem que nada os impedisse. De tal sorte que, voltando ao albergue, compreendi que aquilo era uma consequência da minha vida criminosa. Então comecei a ferir-me, a verter lágrimas amargas, a suspirar do mais profundo do meu coração.
Depois, vendo na parede uma imagem da Bem-aventurada Virgem Maria, supliquei-Lhe que me obtivesse o perdão dos pecados e a permissão de entrar na igreja para adorar a Santa Cruz. Em troca, prometi renunciar ao mundo e viver na castidade.
“Essa oração me deu confiança e de novo me apresentei às portas da igreja; então pude entrar sem nenhum impedimento. E enquanto adorava piedosamente a Santa Cruz, um desconhecido deu-me três moedas, com as quais comprei três pães. E ouvi uma voz que dizia para atravessar o Jordão e vir para este deserto, onde vivo há 46 anos, sem jamais ter visto figura humana, alimentando-me dos três pães que trouxe comigo, os quais, tendo-se tornado duros como pedra, ainda são suficientes para minha alimentação. Quanto aos meus vestidos, há muito que se fizeram em pedaços, e durante os primeiros 17 anos de minha permanência no deserto fui atormentada por tentações. Mas no momento, pela graça de Deus, eu as venci inteiramente. Eis minha história. Eu a contei para que peçais a Deus por mim”.
Então, o ancião, prostrando-se em terra, bendisse ao Senhor na pessoa de sua serva. E esta lhe disse: “Ouvi o que vou pedir-vos: no dia da Páscoa, atravessai novamente o Jordão, trazendo convosco uma hóstia consagrada. Eu esperarei na margem e receberei de vossas mãos o Corpo do Senhor, porque não mais comunguei, desde que aqui cheguei”.
O ancião voltou ao seu mosteiro e no ano seguinte, estando próxima a festa da Páscoa, voltou ao Jordão levando consigo uma hóstia consagrada. Eis que percebeu a mulher, de pé, na outra margem e, tendo feito o sinal da Cruz sobre as águas, ela andou sobre as mesmas e assim chegou até o ancião. Este, maravilhado, quis se prostrar humildemente a seus pés, mas ela lhe disse: “Meu pai, guardai-vos de vos prosternar diante de mim, sobretudo agora que trazeis o Corpo de Cristo. Mas dignai-vos voltar ainda o ano que vem”.
No ano seguinte, Zózimo não a encontrou na margem. Ele atravessou o rio e se dirigiu ao local onde a vira pela primeira vez. E lá a encontrou morta, estendida sobre a areia. Então, ele chorou amargamente e não ousava tocar seus restos. E, enquanto pensava como enterrá-la, leu uma inscrição sobre a areia: “Zózimo, enterrai meu corpo, dê minhas cinzas à terra e pedi por mim ao Senhor, pois fui liberta do mundo no segundo dia de abril”. Assim, o ancião abriu-lhe uma cova, sendo para isso milagrosamente auxiliado por um leão, que aí apareceu. E o ancião voltou ao mosteiro glorificando a Deus.
Pulcritude do contraste entre o pecado e a penitência
A Légende Dorée está inteira nessa narração. Podemos analisá-la ponto por ponto. Preliminarmente, consideremos a pulcritude do contraste aqui estabelecido entre o pecado e a penitência. Ela era uma pecadora péssima, uma mulher que durante 17 anos tinha vivido na pior das situações. Mas de repente, ela é tocada por vias imprevisíveis da Providência, e chega até o momento da conversão. Sabendo que haveria uma festa em Jerusalém, ela viaja por curiosidade e chega até à igreja; então à noção do pecado — do pecado escancarado e com sua hediondez — opõe-se a visão de um Deus três vezes santo e que tem horror ao pecado. Por vinte vezes, ela procura entrar na igreja, mas uma força invisível a impede: é Deus, infinitamente puro, infinitamente santo, que tendo horror ao pecado não quer a presença do pecador maculado em seu santuário.
Entretanto, há ao mesmo tempo a graça e a misericórdia de Deus. Ela volta para a hospedaria e começa então a cair em si, na solidão de seu quarto. Ela pensa:
“O que fiz eu? Ah! o meu crime é o meu pecado: “peccatum meum contra me est semper”, eu pequei contra Ti só e o meu pecado está continuamente de pé, increpando-me e censurando-me. Então percebo o mal que fiz; a cólera do Céu me aparta do resto das criaturas. E enquanto as portas do santuário estão abertas misericordiosamente para todo mundo, a mim Deus rejeita. Como eu caí baixo!”
Notamos como isso é teológico e explica o grande arrependimento e a grande penitência que vieram depois.
Providencialmente há uma efígie de Nossa Senhora em seu quarto; Maria Egipcíaca encontra então a Mãe de Misericórdia e a Porta do Céu, reza para obter o perdão e é convidada para uma penitência extraordinária: ela se afasta completamente dos homens e vai fazer uma dessas penitências de assustar. O pecado de assustar recebeu uma prevenção ou advertência de assustar, que é um convite admirável e de deslumbrar para uma penitência de assustar: ela atravessa o rio Jordão e se coloca num deserto, onde passa 47 anos sem ver ninguém. Então sua beleza de pecadora se esfuma no sol; ela está torrada, preta, causticada, endurecida, os seus trajes caem como andrajos. Ela está continuamente a rezar, numa solidão cheia de amor de Deus.
Para receber a Comunhão, Santa Maria Egipcíaca caminha sobre as águas
Numa primeira fase, Maria teve tentações, mas depois as tentações se retiram e ela fica fazendo uma penitência que é mais a penitência da inocência do que a do pecado. Porque ela se colocou num nível tão alto de virtude, que o perdão é inteiro. Quer dizer, faz uma penitência que já não é só por ela, mas naturalmente por todos os pecadores. E Deus queria que, antes de morrer, ela recebesse essa suprema prova da reconciliação: a Comunhão.
Então acontece que um santo varão — varão como era comum naquele tempo: de barba branca, todo vestido de preto, com um capuz comprido e pontudo, usando um bordão — vai andando pelo deserto, parando para abençoar uma coisa, exprobar um crime, condenar um tirano, fazer um milagre, curando um doente, rezar diante de um ícone. E depois continua a caminhar sozinho pelas estradas. Eu só encontrei, em nossa época, algo de semelhante na vida do Bem-aventurado Charbel Makhlouf, cuja leitura recomendo. É admirável, toda feita desse encanto primitivo, magnífica!
Então, o santo varão chega até o outro lado do deserto e a vê; pergunta quem ela era, e sua resposta é bem no tom sentencioso e grave daquele tempo: “Pai, perdoai-me, mas se vos revelar quem sou, fugireis como à vista de uma serpente, vossos ouvidos serão manchados por minhas palavras e vós sereis empestado por minha impureza. Eu me chamo Maria e nasci no Egito”.
“Eu me chamo Maria e nasci no Egito”. Essa introdução da biografia dela tem uma grandeza e um senso literário verdadeiramente extraordinários.
Santa Maria Egipcíaca está de tal maneira elevada no amor de Deus que, para receber a Comunhão, ela caminha sobre as águas. Deus perdoou tudo, esqueceu tudo, Se fez completamente amor para ela, a qual vive num conúbio com a graça divina o mais íntimo que se possa imaginar.
No ano seguinte, o santo varão volta e ela não está à margem do rio. Ele atravessa o Jordão e encontra o corpo dela estirado no chão; sobre a areia ela escreveu algumas palavras, recomendando-lhe que a enterrasse.
Para os funerais dessa espécie de anjo do deserto, vem o rei do deserto. Quer dizer, é altamente poético e arquitetônico que também um leão ali apareça. O leão, que domina o deserto, é a glória e o brilho do deserto, vem para ajudar os funerais. O santo varão velho e o leão cavam a sepultura, na qual ela é colocada; mais nada. Resta apenas essa história de Santa Maria Egipcíaca, um “apenas” que é uma página de ouro dentro da Légende Dorée. Notamos que maravilha se pode fazer através de uma narração de um grande acontecimento referente a uma grande alma.
Contrição e amor de Deus
Vemos também aí a beleza da contrição, a respeito da qual nossa época faz uma ideia completamente falseada, julgando que a contrição nos vem exclusivamente do temor de Deus, o qual nos afasta do seu amor; de onde a contrição é, debaixo de certo ponto de vista, o contrário do amor de Deus.
Nada mais mal pensado do que isso. Em primeiro lugar, porque o autêntico temor de Deus é um dom do Espírito Santo. E o que procede do Espírito Santo não pode nos afastar do amor de Deus; pelo contrário, só nos une a Ele. Quem tem, portanto, verdadeiramente a graça de um saliente temor de Deus encontra nele um meio para subir ao amor. E notamos pela narração como, pelo arrependimento de seu pecado, Santa Maria Egipcíaca chegou até o auge do amor.
Além disso, precisamos considerar que a atrição é provocada pelo temor, o qual é, aliás, um sentimento salutar. Mas é o amor de Deus que provoca a contrição. E uma pessoa pode passar a vida inteira contrita pelo pecado que cometeu, até crescendo em contrição e, ao mesmo tempo, em amor e em sagrada intimidade com Deus, Nosso Senhor.
Por exemplo, São Pedro. Diz-se que até velho ainda chorava o pecado cometido ao negar Nosso Senhor, e que lágrimas percorriam sua face de maneira a abrir nela dois sulcos. Por quê? Com certeza, porque o olhar de Jesus permaneceu diante de seus olhos a vida inteira. E ele foi crescendo no amor a Nosso Senhor, na consideração daquele olhar, até extremos inimagináveis. Era a contrição que aumentava o amor, e o amor que aumentava a contrição e a intimidade com o Redentor.
Quer dizer, essas coisas se entrelaçam. E a vida de Santa Maria Egipcíaca não nos deve causar terror, mas enlevo pela figura patriarcal e primitiva dessa grande penitente. A Igreja é mais ou menos como um dia luminoso: o sol tem seu colorido da aurora e de todas as horas do dia. E todas essas cores são bonitas. A Esposa de Cristo possui um colorido para cada era de sua vida. E aqui é o colorido da Igreja primitiva: das grandes mortificações, das grandes penitências, dos grandes pecados, das grandes contrições, das inocências virginais, da austeridade requintada. É o velho som de um sino que nos vem do passado, lembrando-nos exatamente aquela velha gravidade, aquela seriedade da Igreja primitiva, tão capaz de empolgar as almas que verdadeiramente procuram amar a Nossa Senhora.
Assim, pensar em Santa Maria Egipcíaca é um refrigério para nós. E devemos pedir a ela que nos dê uma contrição verdadeira de nossos pecados, mas uma contrição na paz, sem escrúpulos; uma contrição verdadeiramente santa, que aproxime nossas almas de Nossa Senhora.
Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 31/3/1967)