A verdadeira devoção a Maria

Damos início neste número à publicação de alguns trechos dos comentários de Dr. Plinio ao “Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem”, escrito por São Luís Maria Grignion de  Montfort. Conhecida por Dr. Plinio quando moço, esta obra era por ele considerada como um marco fundamental de sua espiritualidade.

 

São Luís Maria nos explica o motivo que o levou a escrever o Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem: “Meu coração ditou tudo o que acabo de escrever com especial alegria, para demonstrar que Maria Santíssima tem sido, até aqui, desconhecida, e que é esta uma das razões por que Jesus Cristo não é conhecido como deve ser” (nº 12). 

Eis a razão da introdução e de todo o livro. Maria Santíssima é desconhecida, e deve ser conhecida, pois assim virá o reino de Cristo. O livro se destina, portanto, a propagar a devoção a Nossa  Senhora para que venha o reino de Nosso Senhor. Por “desconhecida” entenda-se “muito menos conhecida do que sua excelência e seus admiráveis predicados exigem”. 

Trata-se, por conseguinte, de uma obra de larga visão e alcance histórico muito amplo, fixando-se no desejo de trazer o reino de Cristo para um mundo que não o possui, através da devoção a Maria Santíssima. 

O fundamento teológico, São Luís Grignion o coloca no tópico 1: “Foi por intermédio da Santíssima Virgem Maria que Jesus Cristo veio ao mundo”, isto é, se Maria Santíssima não tivesse existido, Jesus Cristo não teria vindo; “e é também por meio d’Ela que Ele deve reinar no mundo”, ou seja, a devoção a Jesus Cristo deve expandir-se a toda a humanidade por intermédio de Maria Santíssima. Difundir a devoção a Nossa Senhora é, pois, nesta perspectiva, de importância capital. O afervoramento da piedade: passo essencial Esse objetivo de São Luís Grignion se presta desde logo a um comentário. 

O Santo profeta se propõe a preparar o futuro reino de Cristo fazendo o que lhe parece ser o mais essencial,  importante, urgente, e que, na ordem concreta dos fatos, produzirá quase que automaticamente o resto: difundir a perfeita devoção a Maria. 

A derrota do espírito do mundo e a restauração da civilização baseada nos princípios da Igreja Católica não se começam, portanto, por meio da política, das obras, do talento ou da ciência.

Na época mesma de São Luís Grignion, Bossuet deslumbrava Versailles e Paris com seus sermões; entretanto, para evitar a derrocada religiosa da França, não foram decisivos. O começo da regeneração de todas as coisas está na piedade, no afervoramento da vida interior, nos fundamentos religiosos da vida de um povo. O apostolado essencial é de caráter estritamente religioso: afervorar, educar na piedade, formar caracteres; as outras coisas são conseqüências, complementos, importantes realmente, mas complementos.

Eis a grande lição que São Luís Maria Grignion de Montfort fixa já no início do Tratado, e depois desenvolve mais longamente: na formação dos caracteres a condição básica e indispensável é a devoção a Nossa Senhora. Possuindo-a de modo autêntico, as pessoas terão todos os meios sobrenaturais necessários para, com a correspondência da vontade, florescerem. Não se formando esta devoção, o próprio regime de expansão da graça na alma fica comprometido. Portanto, a devoção a Nossa Senhora é condição vital para tudo quanto diz respeito à salvação individual e da civilização, bem como à salvação eterna de todos quantos constituem, em dado momento, a Igreja militante. 

São Luís Grignion tinha, pois, em mente, com este livro, fazer uma obra da mais alta importância para a renovação dos séculos futuros. Cabe-nos, portanto, ser sôfregos em possuir esta devoção a Nossa Senhora por ele pregada. Em outros termos, fomos chamados pela Providência para uma obra definida, com objetivos definidos, e só a realizaremos se tivermos em nosso espírito esta devoção. Sendo ela, como vimos, indispensável para que o mundo se regenere em Nosso Senhor, se queremos com este escopo trabalhar, é necessário ir em busca desta devoção.

O Tratado não é, pois, um livro qualquer de piedade, apresentando uma devoção a algum santo, boa por certo, mas que se pode ou não ter, indiferentemente, “conditio sine qua non” para nosso trabalho. E só a atingiremos no mais alto grau, utilizando a forma com os fundamentos desenvolvidos por São Luís Grignion de Montfort;

Maria é a obra-prima do Altíssimo

Escreve o Santo: “Maria é a obra prima por excelência do Altíssimo, cujo conhecimento e domínio Ele reservou para Si” (nº 5).  Que belíssima noção! Maria Santíssima é tão grande que São Luís Grignion, sendo apenas um seu pequeno menestrel, é quase inesgotável quando fala d’Ela. Ele afirma ser Nossa Senhora tão extraordinária, colossal — pouco dizem estes adjetivos, aos quais de longe Ela transcende — que só Deus conhece em toda a extensão suas perfeições. Não podemos sequer ter uma pálida ideia disto. Há n’Ela belezas, culminâncias, encantos, perfeições, excelências 
que escapam e sempre escaparão completamente ao nosso olhar, e são somente por Deus contempladas. Imaginemos esses universos, essas constelações imensas de estrelas que o  homem não conhece e possivelmente jamais conhecerá, cujas maravilhas ficam reservadas à exclusiva contemplação de Deus:  assim é Maria Santíssima. 

N’Ela há esta nota de incognoscibilidade: paramos extasiados a seus pés, compreendendo que, após ter entendido muito, quase nada compreendemos. Estamos sempre no seu pórtico, que é para nós demasiadamente grande, tal a sua excelência.  

Ao olharmos uma noite de céu estrelado, em lugar de considerarmos apenas as grandezas de Deus — pensamento aliás muito louvável — sabemos contemplar também Maria Santíssima, incomparavelmente maior e mais formosa do que cada um dos astros do céu e do que todos eles no seu conjunto? Porque, sendo Ela a obra-prima da criação, toda a beleza, grandeza, excelência que Deus colocou no firmamento é pequena em relação às postas n’Ela pelo Criador; este céu não é senão uma imagem, uma figura da magnificência de Nossa Senhora. Apesar de ser mera criatura, tudo quanto n’Ela há, excede muito em perfeição todas as belezas criadas, de um modo inexprimível. Continua São Luís Grignion: “Maria é a Mãe admirável do Filho, a quem aprovou humilhá-La e ocultá-La durante a vida para Lhe favorecer a humildade, tratando-A de mulher — mulier — (Jo 2, 4; 19, 26), como a uma estrangeira, conquanto em seu coração A estimasse e amasse mais que a todos os anjos e homens” (nº 5). O Santo defende aqui a ideia de que, durante sua vida, também Nosso Senhor A manteve ignorada; apenas Ele A conhecia.

“Maria é a fonte selada (Ct 4, 12) e a esposa fiel do Espírito Santo, onde só Ele pode penetrar” (idem). É o retorno à ideia de Nossa Senhora como criatura reservada ao conhecimento de Deus.

“Maria é o santuário, o repouso da Santíssima Trindade, em que Deus está mais magnífica e divinamente que em qualquer outro lugar do universo, sem excetuar seu trono sobre os querubins e serafins…” Os anjos da guarda ocupam os graus inferiores na hierarquia celeste. 

Porém, tendo certa vez aparecido a uma santa o seu anjo da guarda, ela se ajoelhou, pensando estar na presença do Altíssimo. A grandeza dos anjos é tal que, no Antigo Testamento, em várias de suas aparições, os homens julgavam tratar-se do próprio Deus. E no Céu há miríades de anjos. Em que assombro ficaríamos se os víssemos todos e ao mesmo tempo! Nossa Senhora, contudo, está  acima de todos eles reunidos. Assim, diante de sua insondável alma, deparamo-nos novamente com termos de comparação, embora os melhores que possamos empregar, imperfeitos e totalmente insuficientes. 

“…e criatura alguma, pura que seja, pode aí penetrar sem um grande privilégio”. Existe, pois, uma categoria de criaturas privilegiadas que podem penetrar no conhecimento de Nossa Senhora. Tais criaturas, o Santo no-lo explica, são aquelas a quem Deus dá, por liberalidade, o dom que o comum das pessoas não têm, de conhecerem e praticarem a devoção a Nossa Senhora conforme o modo especial por ele ensinado. E os “apóstolos dos últimos tempos”, de que ele nos fala, possuirão este dom; por isso, serão terríveis no combate ao mal e eficacíssimos na defesa do bem. Serão almas elevadíssimas, que terão a graça de penetrar neste umbral da devoção a Nossa Senhora.

O paraíso do novo Adão

Continua São Luís Grignon: “Digo com os santos: Maria Santíssima é o paraíso terrestre do novo Adão…” 2 (nº 6). 

O paraíso terrestre era cheio de encantos, delícias, perfeições. São Luís Grignion diz que Nosso Senhor estava no ventre puríssimo de Maria Santíssima de modo análogo àquele — excelente e perfeito — com que Adão permanecia no Éden. Portanto, durante  gestação, Nossa Senhora era o paraíso do novo Adão, Jesus Cristo. Quando, na comunhão, recebemos este mesmo Jesus Cristo acostumado que está a tais paraísos, perguntamo-nos o que Ele achará da nossa hospitalidade? Oferecemos-Lhe ao menos, a Ele que condescende em descer à nossa choupana, o modestíssimo luxo de uma casa limpa? “… no qual Este se encarnou por  obra do Espírito Santo, para aí operar maravilhas incompreensíveis…” 

Nosso Senhor, durante sua vida em Maria Santíssima — e esta é uma belíssima ideia que São Luís Grignion desenvolverá mais tarde —, quando Ela era o tabernáculo no qual Ele habitava, já aí operou maravilhas. 

São Luís Grignion compôs inclusive uma oração dirigida a Nosso Senhor enquanto vivendo em Maria Santíssima — “O Jesu, vivens in Maria”… “É o grande, o divino mundo de Deus, onde há belezas e tesouros inefáveis. 

É a magnificência de Deus (Ricardo de S. Lourenço, De Laud. Virg., lib IV.), em que Ele escondeu, como em seu seio, seu Filho único, e n’Ele tudo que há de mais excelente e mais precioso. Oh! que grandes coisas e escondidas Deus todo-poderoso realizou nesta criatura admirável, di-lo Ela mesma, como obrigada, apesar de sua humildade profunda: ‘Fecit mihi magna qui potens est’” (Lc 1, 49).

O sentido inteiro do cântico do Magnificat só o entenderemos se considerarmos quem é Nossa Senhora. Realmente, é preciso nos lembrarmos do poder de Deus, para compreender que Ele possa ter operado essas maravilhas que n’Ela operou. “O mundo desconhece estas coisas porque é inapto e indigno”. Se antes o Santo nos falou que Deus concede a pessoas privilegiadas o favor único de poder penetrar nos umbrais desta devoção, agora se refere a uma geração (no sentido teológico e não biológico) que por sua maldade, impureza, indignidade, de detesta tudo isto. É o reverso da medalha. 

A devoção mariana é característica de todos os santos 

Afirma São Luís: “Os santos disseram coisas admiráveis desta cidade santa de Deus; e nunca foram tão eloquentes nem mais felizes — eles o confessam — que ao tomá-La como tema de suas palavras e de seus escritos” (nº 7). 

Esse trecho nos evidencia uma verdade muito importante. Não se deve pensar que a devoção a Nossa Senhora é um estilo de santidade inaugurado por São Luís Grignion, ou levado por ele ao último grau de intensidade. A devoção especialíssima e intensíssima a Nossa Senhora é característica de todos os santos. E, embora não se possa dizer que todos a tenham conduzido ao ponto levado por São Luís Maria, estudando a vida de piedade de qualquer deles notamos sempre uma devoção ardentíssima a Ela, a qual é a dominante logo abaixo do culto a Deus Nosso Senhor.

Essa devoção, contudo, se reveste em cada um de aspectos particulares. É raro, neste sentido, encontrar algum santo que não tenha cultivado um aspecto novo de piedade em relação à Nossa Senhora. E nenhum deles desconhece dever à intercessão d’Ela, não só seu progresso espiritual, mas até mesmo sua perseverança. 

Todos passaram por duras provas espirituais, das quais se viram livres por uma intervenção especial d’Ela. São Francisco de Sales, por exemplo, teve em sua juventude uma terrível crise, relativa ao problema de sua predestinação. Pensando no assunto, ficou quase tragado pelo abismo do tema e foi duramente assediado pelo demônio, o qual lhe insuflava que estava condenado. Isto lhe causou uma tremenda depressão. Começou a emagrecer, perder a saúde, nada havia que lhe restituísse a paz à alma. Certo dia, rezando diante de uma imagem de Nossa Senhora, pediu-Lhe, ainda que tivesse de ir para o inferno, lhe fosse dado não ofender a Deus na Terra — pois seu pavor do inferno não provinha do tormento, mas da ideia de ultrajar eternamente a Deus — e recitou a ração
“Memorare o piíssima Virgo Maria”, a qual estava escrita no pedestal da imagem. Ele mesmo nos conta que, logo após o término da oração, restabeleceu-se em sua alma uma paz admirável; percebeu então, claramente, o jogo do demônio de que estava sendo vítima, e recuperou aquela serenidade que viria a ser a nota dominante de sua vida espiritual.

Encontramos, assim, na existência de todos os santos, esta constante de uma particular devoção a Nossa Senhora. Ela é, pois, uma característica segura da verdadeira piedade, e devemos absolutamente duvidar da santidade de alguém que não a possua. Seria sofisma dizer: algo que é especial para todos não o será, por isso, para ninguém. A isto se pode responder: uma mãe com muitos filhos tem, para cada um deles, um carinho especial; e cada filho ama a própria mãe de um modo particular. Assim, cada um de nós deve amar Nossa Senhora de maneira inteiramente própria, especial e inconfundível. Ela, por sua vez, terá para conosco um carinho, que não será genérico, como de quem dissesse: “Eu amo toda aquela gente”; mas sim um afeto particular, que pousará sobre cada um de nós, individualmente considerados, como se só nós existíssemos na face da Terra.

Plinio Corrêa de Oliveira

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