Tudo quanto o homem admira e ama, de algum modo penetra nele. Por isso, embora um santo possa ser, sob muitos aspectos, menos culto do que um indivíduo não santo, a santidade é a seiva no tronco da verdadeira cultura.
A palavra “cultura” tem um sentido distinto daquele de palavras afins, tais como “inteligência”, “instrução”, “educação” e “civilização”. Empregarei o termo “cultura” não como este ou aquele especialista pode utilizá-lo, mas conforme ele é usado na linguagem portuguesa-brasileira e na dos povos ibero-americanos, tanto quanto eu possa conhecer.
A inteligência, como é fácil notar, é a capacidade do homem de penetrar, de tomar conhecimento da realidade. Ela se distingue da cultura porque a inteligência é uma qualidade nativa, e a cultura, enquanto tal, não o é.
Informação, instrução, erudição e cultura
A instrução é o conjunto de conhecimentos que o homem adquire mediante a inteligência. Quer dizer, não é uma pura memória, mas uma memória pela qual as coisas estão explicadas e entendidas. Não é, portanto, a memória de um bicho, nem a memória de uma criança.
A memória entendida, explicada, das coisas se atinge por meio do estudo e da reflexão; ou seja, por meio de um esforço intelectual que não é inteiramente o comum, feito pelo homem a qualquer hora do dia. É por causa disso que certas informações estão excluídas do conceito de instrução. Por exemplo, conhecer o horário dos trens, dos ônibus, não é instrução, mas sim uma informação corrente; não é uma informação sobre algo que a pessoa adquire por uma concentração, por um maior esforço do pensamento.
Erudição é o ápice da instrução, mas não é ainda propriamente a cultura. Chamamos de erudito aquele que tem um notável cabedal de conhecimentos adquiridos com um esforço intelectual árduo. Quer dizer, a instrução arduamente adquirida, de alta categoria e copiosa, se chama erudição.
A cultura está para o homem como a agricultura para a terra. Se quiséssemos fazer uma espécie de paralelismo implicante, poderíamos falar de “antropocultura”, ou de “homocultura”, quer dizer o cultivo do homem. O que é então cultura? É o aprimoramento que a alma humana recebe pelo fato de, não só ter uma grande instrução, mas degustar devidamente a sua instrução. De maneira que ela se enobrece, se eleva com a sua própria instrução.
Dou um exemplo. Na Europa há excelentes museus com excelentes guias. Através destes últimos pode-se compreender o que é uma instrução sem cultura. Em relação aos objetos de um museu, eles são notavelmente instruídos e transmitem o que sabem como verdadeiros papagaios. Um guia, por exemplo, se coloca diante de um quadro e diz: “Este quadro é de El Grecco; foi pintado em tal época e se destaca por tal tonalidade; no fundo está tal personagem; olhem tal jogo de luz…” Instruído ele é, mas não tem o mínimo de cultura. Quer dizer, a sua personalidade não assimilou nada daquilo; ele não teve uma admiração por aquelas coisas, não se deixou penetrar nem embeber por elas.
O erudito, muitas vezes, não é um homem culto; é um indivíduo que adquire uma grande soma de conhecimentos com um esforço árduo, mas não inalou aquilo, não assimilou. Ele não admirou, não amou e não se modelou de acordo com aquilo. O resultado é que a pessoa dele teve um aprimoramento apenas de superfície, meramente intelectivo, mas seu interior não é de um homem culto.
Aprimoramento do homem considerado como um todo
Então o que vem a ser a cultura? A cultura resulta do princípio de que tudo quanto o homem admira e ama, de algum modo penetra nele e se incorpora a ele. Aquilo que o homem rejeita faz crescer nele o contrário do que rejeitou. Se, por exemplo, eu entro num quarto imundo e tenho uma rejeição proporcionada àquela sujeira, o meu senso de limpeza cresceu. Se passando pela Rua Pará ou Avenida Angélica(1) percebo uma coisa imoral e a recuso, a minha pureza aumentou. Quer dizer, a rejeição do mal, do erro, do que não deve ser visto, aumenta em mim o contrário daquilo que vi.
Chegamos então à conclusão de que a cultura é o aprimoramento do homem considerado como um todo; ela é fruto da instrução, mas não se identifica com a instrução, porque o indivíduo pode ser muito instruído e nem um pouco culto.
Creio que as ciências naturais, como são estudadas habitualmente hoje em dia, proporcionam uma instrução sem cultura. Pois a pessoa que as estuda não é levada, senão raríssimas vezes, a ter uma admiração filosófica ou artística pelo objeto de seu estudo. De maneira que é um puro jogo de dados, o qual não traz um aprimoramento. É preciso outra posição diante das ciências naturais para que elas nos sejam enriquecedoras, porque, à força de estudar sem admiração e amor, a capacidade de admirar e amar se embota. Então a capacidade de ser culto desaparece. É uma banalização.
Estudo das ciências naturais e plenitude humana
Podemos agora perguntar de que natureza é essa penetração que a coisa admirada ou amada produz no indivíduo.
Na ordem cronológica, ela começa por um ato de inteligência; é antes de tudo uma flexibilização, um adestramento da inteligência.
Pode haver formas de instrução que são anticulturais. Porque se a instrução consiste apenas em enfileirar raciocínios, a alma desenvolve apenas um dos aspectos de sua personalidade. Ela fica capaz do raciocínio quadrado(2), que às vezes contém a verdade inteira, mas outras vezes até se afasta da verdade. A verdadeira instrução deve exercer na alma todas as faculdades que puder.
Por causa disso eu fico muito encantado quando vejo, ainda hoje, a existência de grandes sábios — às vezes especialistas em ciências naturais ou outras matérias — que têm um grande interesse por um ramo qualquer da Literatura, da Arte, da Filosofia ou da História; isto prova uma plenitude humana: além de serem capazes daquilo que cuidam, o seu espírito os remeteu em outras direções.
Acho bonito que um homem seja, digamos, especialista em formiga e tenha ao mesmo tempo interesse por Homero, por exemplo. Ele não ficou do tamanho de uma formiga, mas tem uma dimensão humana; possui uma cultura mais ampla do que a pura especialização que adquiriu.
Essa é exatamente uma das recriminações que o verdadeiro católico deve fazer ao estudo das ciências naturais como geralmente é feito hoje em dia.
Por exemplo, uma das faculdades intelectuais mais próprias do espírito católico, e que o espírito tecnicista poda, é a capacidade de distinguir. São Tomás de Aquino dizia que distinguir é pensar. Tomar coisas análogas, distingui-las uma da outra e depois ver por onde elas são semelhantes ou diferentes, exige sutileza, ponderação, indica uma plenitude do espírito humano; e quem é capaz de fazer isto é uma pessoa culta.
Plenitude dos modos de operar da inteligência e enobrecimento da vontade
Assim, a cultura não é unicamente uma plenitude puramente filosófica ou técnica, mas sim uma coisa muito mais vasta do que isso: a plenitude de todos os modos de operar da inteligência humana.
Em segundo lugar, a cultura é um enobrecimento do fortalecimento da vontade. Esse enobrecimento é algo de imponderável. Até agora não consegui uma definição que me satisfizesse inteiramente para a palavra “nobre”. O que é uma vontade nobre? Mais importante do que ser forte é ser nobre. Há alguns sintomas que caracterizam a vontade nobre. Um deles é ser mais capaz de querer, de ser ávida de se apossar mais dos bens do espírito do que dos bens da matéria. Por exemplo, um homem que tenha mais vontade de ser virtuoso do que rico revela nobreza de vontade. Porque esta vontade quer uma coisa mais nobre.
A virtude é intrinsecamente um bem da alma. E sendo um bem da alma, é mais nobre do que um bem para o corpo. Então um homem que quer as coisas do espírito tem uma vontade mais nobre.
Mostraram-me uma estrofe de uma poesia de Molière(3), a respeito do covarde. Entre outras coisas, o covarde dizia: “Eu prefiro viver dois anos desta vida a mil anos de História, de maneira que me deixem fugir”.
Essa é a vontade sem nobreza. Porque, colocado entre a realização de um grande feito, que a alma magnânima quer, e a prática de uma série de pequenas ações, ele prefere as coisinhas. Porque ele prefere a vida do corpo; a vida da alma, a grandeza das ações, não lhe dizem nada.
O próprio da cultura — fazendo-nos apetecer as coisas do espírito, e dentre elas as mais altas, portanto as maravilhosas, as metafísicas, as sobrenaturais, o próprio Deus — é dar à nossa alma uma nobreza cristã, uma nobreza católica, e nos fazer santos.
Ordenação da sensibilidade
A cultura tem uma repercussão na sensibilidade. Pelo fato de o homem estudar, pensar muito e querer coisas nobres, há uma repercussão destas coisas na sua sensibilidade. Esta deixa de apetecer as coisas puramente materiais e começa a apetecer as espirituais; e depois a apetecer as sobrenaturais e divinas. Quer dizer, a sensibilidade se eleva.
Por exemplo, ela perde qualquer coisa de grossamente natural, material, que ela tem nativamente, em virtude de nossa condição animal e do pecado original. E sua sensibilidade não só se eleva, mas fica então em condição de ser combativa. Para ser combativa, supõe-se que se desenvolva o que nela é ordenado. Somente desenvolvendo as forças de ordem, dentro da sensibilidade, é que se podem toldar os elementos de desordem. Temos assim uma noção de cultura que toma o homem inteiro.
Agora, me restaria perguntar que relação há entre esse conceito de cultura e a santidade. Evidentemente, a cultura perfeita equivale à santidade. Esta é a mais alta forma de cultura, embora — e aqui existem matizes que se devem conservar — um santo possa ser, sob muitos aspectos, menos culto do que um indivíduo que não é santo; e até do que uma pessoa que certamente vai para o inferno.
Grandes reflexões sobre fatos comuns da vida
Perceberemos melhor esta relação entre cultura e santidade se considerarmos um outro ponto da questão, que é o seguinte: a cultura é necessariamente filha da instrução? Um analfabeto pode ser mais culto do que um alfabetizado?
Considerem, por exemplo, o tapete hindu que está na Sala da Tradição(4). Este tapete foi provavelmente feito por um analfabeto. Este analfabeto era um homem menos culto do que um eleitor alfabetizado, que saiba desenhar seu nome ou até ler um jornal? Que relação há nesse caso entre instrução e cultura?
Há certos povos onde o ambiente de muito pensamento, numa atmosfera de muita orientação da atenção para as coisas do espírito, leva o indivíduo a refletir notavelmente sobre coisas que estão ao alcance de todo mundo. E a deduzir, a partir delas, consequências muito altas, de ordem metafísica, religiosa, e também estética, ou de qualquer outra ordem.
Não está absolutamente provado que Homero soubesse ler e escrever. Há quem sustente até que Homero não existiu — eu acho que existiu —, e que a Ilíada foi um conjunto de canções populares compostas por analfabetos da Grécia primitiva, reunidas depois no período da literatura clássica num só todo. Seja como for, a pessoa que compôs a Ilíada, por exemplo, teve uma alta cultura ao lado de nenhuma instrução. Quer dizer, soube tirar grandes reflexões, grandes consequências de realidades que estão ao alcance de todo mundo. E na linguagem corrente, a meu ver, erroneamente, isto não é considerado instrução.
Segundo nos mostra o Evangelho, um espírito muito elevado, apetente das grandes coisas, pode chegar a uma grande cultura sem ter tido propriamente o que a linguagem corrente chama de instrução. Todas as parábolas do Evangelho são altíssimas conclusões tiradas dos fatos comuns da vida: um filho que foge e gasta a herança, fica reduzido à mendicância, e que volta para a casa do pai; o lírio do campo que não tece, não fia, cujas pétalas formam um tecido mais bonito que o manto de qualquer rei. Estas são observações comuns da vida do homem, há mais de mil anos, a partir das quais Nosso Senhor Jesus Cristo, que é a Sabedoria eterna e encarnada, soube tirar altíssimas consequências.
Santa Teresinha e Viollet-le-Duc
Então, estamos obrigados a reconhecer o seguinte: o conceito de instrução como é hoje apresentado — segundo o qual é necessário saber ler e ter um estudo sistemático num estabelecimento — é pobre. Pois um homem pode adquirir uma grande instrução sem ler nem escrever, pela consideração elevada de coisas puramente naturais e comuns.
Nesse sentido, convém lembrar Santa Teresinha do Menino Jesus, que tinha uma instrução como as moças então possuíam, e conhecia muito bem a Doutrina Católica. Ela fazia reflexões de um grande alcance, capaz de deter a atenção de teólogos de fôlego. Mais ainda, de abrir, de traçar um caminho novo para as almas e mostrar que este caminho tem uma cidadania no firmamento da vida espiritual. É uma literatura intelectual muito delicada, sendo que a instrução dela certamente não estava na proporção do que tudo isto significa. Já em pequena, ela era uma pessoa que tinha muito enlevo pelas coisas da natureza, enquanto conduzindo a Deus.
Somos então levados a perguntar se o verdadeiro nervo da instrução e da cultura não está exatamente nesta apetência que a alma deve ter das coisas elevadas que conduzem a Deus. Com esta apetência, a pessoa, mesmo não estudando, acaba, em certo sentido da palavra, se cultivando. Se estudar, ela se cultiva também, porque será capaz de uma análise profunda e elevada das informações que a instrução lhe dá.
Houve pessoas não santas que foram mais cultas do que Santa Teresinha?
Sem dúvida! Por exemplo, Viollet-le-Duc(5), um grande especialista em arte gótica, era um homem que pegou algo do espírito da arte gótica, do contrário não poderia ter feito a obra que realizou. Entretanto, possuindo um senso artístico provavelmente mais afinado do que Santa Teresinha, Viollet-le-Duc não viu no gótico o que Santa Teresinha veria, desde que a sua atenção se pusesse nisso. Porque o mais fundo, o mais elevado, não puramente estético, mas que estava além da estética, isso Santa Teresinha via, e ele, mesmo sendo artista, não via. Quer dizer, em um sentido minor da palavra, Viollet-de-Duc foi mais culto do que Santa Teresinha; no sentido major da palavra, não.
Cultura católica
A santidade é a seiva no tronco da verdadeira cultura. As outras formas de cultura são apenas manifestações de tal ou qual elevação de alma, mas que não chegam ao fundo como a santidade chega. Embora mereçam o nome de cultura, não são falsas culturas, mas cultura minor.
A consequência disto é que a única cultura, no sentido pleno da palavra, é a cultura católica. É evidente. A santidade é o que mais leva os homens à cultura, embora não se possa afirmar — seria um pouco simplório — que basta ser santo para ter uma grande cultura. São José de Cupertino(6), por exemplo, não daria origem, por ele mesmo, a uma grande cultura. Mas uma sociedade que tem santos é capaz de cultivar de modo incomparável seus próprios dotes naturais como ela nunca cultivaria não possuindo santos. v
Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 15/8/1971)
Revista Dr Plinio 161 (Agosto de 2011)
1) Situadas em São Paulo, no bairro Higienópolis.
2) Adjetivo empregado por Dr. Plinio, proveniente do termo “quadratice” com o qual ele significava uma inveterada estreiteza de vistas e, em consequência, de iniciativa (cf. “Dr. Plinio” nº 103).
3) Um dos grandes escritores franceses do Grand Siècle das artes e letras.
4) Sala existente na então Sede principal do Movimento fundado por Dr. Plinio
5) Eugène Emmanuel Viollet-le-Duc (1814 – 1879), francês, arquiteto famoso por suas restaurações de edifícios medievais.
6) São José de Cupertino, Presbítero, séc. XVII (cf. “Dr. Plinio” nº 150).