Santo André Apóstolo

Quando lemos a narração evangélica sobre o encontro de Jesus com seus primeiros discípulos, não podemos deixar de louvar a fidelidade de Santo André.

Fiel a São João Batista, ele não hesitou um instante em obedecer à orientação do Precursor que lhes apontava o Cordeiro de Deus a ser seguido. Nosso Senhor era a realização da profecia do Batista. E Santo André, dócil à voz da graça, teve a glória de dar início à grandiosa história dos apóstolos.

Plinio Corrêa de Oliveira

Um auge de amor de Deus

Comentando afrescos de Giotto, Dr. Plinio afirma entre outras coisas que logo após o nascimento de Jesus, Maria Santíssima observou o olhar lúcido e cheio de amor que Ele deitava sobre Ela. O Filho tomava conhecimento da fisionomia de sua Mãe e Ela de seu Filho. Foi um momento sublimíssimo da vida de ambos. Podemos imaginar o auge de amor de Deus a que Nossa Senhora chegou nesse momento.

 

O  afresco pintado por Giotto na Cappella degli Scrovegni, em Pádua, representando o casamento de São José com a Santíssima Virgem, tem como fundo um pequeno edifício que, segundo a imaginação do pintor, corresponde a uma parte do Templo de Jerusalém.

Nossa Senhora com porte ereto e virginal

O sacerdote está revestido de uma capa vermelha, debaixo da qual há uma espécie de camisa e uma meia-túnica que desce da cintura até o chão. É um ancião já de cabelos brancos, abundantemente barbado, numa atitude de piedade e recolhimento, que não visa ser a de um santo, mas de um prelado digno, respeitável, pois não tem em torno da cabeça a auréola de santidade. Ele está exercendo funções na cerimônia.

Identificamos São José pelo fato de ele estar com a mão direita passando uma aliança a Nossa Senhora, e com a esquerda segurando uma vara com flores. Era o tal bastão que floresceu, indicando ser ele o esposo escolhido pela Providência para Maria Santíssima.

Segundo uma antiga tradição, São José é apresentado como muito mais idoso do que Nossa Senhora. Daí notar-se na pintura a diferença de idade entre ambos. Ela ainda mocinha e com o recato, a compostura de uma pessoa toda virginal está vestida com uma túnica de um cor-de-rosa muito claro, quase se diria branco. O colorido não é bem exatamente o da meia-túnica do sacerdote, nem de uma espécie de meia-túnica de São José, mas são cores muito claras todas elas, que falam a respeito de virgindade, pureza, delicadeza de sentimentos levada ao mais alto grau. Nossa Senhora está cingida com uma coroa de flores. Todo o seu porte é ereto e virginal.

São José toma um pouco o papel de esposo e de pai diante d’Ela. Sua atitude já é um tanto protetora em relação a Nossa Senhora, que Se deixa proteger. Ela está muito bem, apesar de sua aparente timidez junto ao sacerdote respeitável e a São José.

Em volta encontram-se as pessoas que estão assistindo às bodas. Não sei que papel terá no quadro esse personagem vestido de um verde muito claro. Alguns estão comentando o acontecimento, vestidos em trajes semelhantes aos romanos, mas com coloridos que não parecem ser de tecidos romanos, são mais orientais. Tudo indica que na mente de Giotto esta cena se desenrola no Templo de Jerusalém.

Realizado o casamento, organiza-se um cortejo com os esposos. É uma vista do cortejo que, com certeza, se encaminha para a festa. Nota-se que todos estão adornados, vestidos para uma solenidade, cabelos muito bem penteados.

Comunicações místicas do Menino Jesus com sua Mãe virginal

Esse outro afresco representa Nossa Senhora chegando à casa de Zacarias e sendo acolhida por Santa Isabel. A Santíssima Virgem está muito bondosa, muito meiga. Mas Santa Isabel, sobretudo, está respeitosa. Notem como ela faz uma inclinação e contempla Nossa Senhora, maravilhada. Esta olha comprazida para sua prima, mas não Se inclina. É natural: cada uma delas trazia em si um menino; mas no claustro de Santa Isabel não se encontrava senão o precursor do Menino que estava no claustro virginal de Maria. Sem dúvida é uma honra imensa ter concebido São João Batista – Nosso Senhor o comparou a Elias –, mas conceber o Homem-Deus não há comparação com nada!

No afresco representando o Nascimento do Menino Jesus, São José está dormindo, as ovelhinhas estão ali perto, o burrico também e os Anjos enchem o céu, cantando a glória de Deus. Os pastores estão ouvindo o cântico celeste. “Glória a Deus no mais alto dos Céus, e paz na Terra aos homens de boa vontade” (Lc 2, 14). É exatamente o que a Liturgia, no dia 24 para 25 de dezembro, deverá estar cantando.

É noite. Nossa Senhora acaba de dar à luz o Menino-Deus de um modo misterioso e maravilhoso. A atitude d’Ela é de uma pessoa inteiramente sadia, que está aconchegando melhor seu Divino Filho numa manjedoura. Mas com um desembaraço de movimentos que não é o de uma mãe da qual acaba de nascer sua criança. Compreende-se: o processo de nascimento é dolorido e difícil em virtude do pecado original, mas em Nossa Senhora não. Ela foi virgem antes, durante e depois do parto. Esse nascimento se deu de modo milagroso, de maneira a não representar um esforço para Ela. Ali está seu Filho, e Ela, como quem tivesse acordado de um sono brando, abrisse um pouco os olhos para ver o Menino, e vai dormir dali a pouco de novo.

De fato, é uma cena lindíssima, que empolga! Pode-se imaginar a situação de Maria Santíssima ao ver, pela primeira vez, o fruto do Divino Espírito Santo nas suas próprias entranhas. E que fisionomia tinha o Homem-Deus que acabava de nascer d’Ela! O Menino Jesus tomava toda a atitude de uma criança dessa idade. Ele teve, durante toda a vida, a atitude própria às idades que foi percorrendo, até os 33 anos com que Ele morreu.

Porém, como Ele possuía a natureza humana ligada à divina pela união hipostática, em uma só Pessoa, teve de fato uma inteligência plena desde o primeiro instante em que sua Santíssima Mãe O concebeu. Já no claustro materno Ele rezava, oferecia a Deus reparações, O adorava e implorava pelos homens. O Menino Jesus começou a sua vida inteiramente consciente, desde o primeiro momento em que passou a existir.

De maneira que essa Criança, com o todo de um bebê, teve, entretanto, incontáveis comunicações místicas, talvez diretas, não se sabe como, com sua Mãe virginal já desde o período da gestação. Nossa Senhora sabia que seu Filho era uma Criança inteiramente inteligente. Mas olhava para Ele, um Menininho, a quem a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade estava unida hipostaticamente.

Maria Santíssima compreendia ser lúcido e cheio de amor o olhar que Ele deitava n’Ela, e que os dois estavam Se conhecendo: o Filho tomava conhecimento da fisionomia de sua Mãe, e Ela de seu Filho. Foi um momento sublimíssimo da vida de ambos. Podemos imaginar o auge de amor de Deus a que Nossa Senhora chegou nesse momento!

Serenidade medieval que exprimia a graça de Deus

De acordo com uma bela tradição, os magos vindos do Oriente eram reis. Por isso, no afresco de Giotto vemos esses dois reis em pé, atrás, com coroa ou um diadema cingindo a cabeça. Eles vêm trazendo os seus presentes, recebidos pelo Menino Jesus no colo de Nossa Senhora, que está sentada numa espécie de troneto sobre um estradozinho ricamente atapetado. Ela mesma está também ricamente vestida. Para receber reis tinha que Se vestir com aparato. Mais adiante há uma tribunazinha onde estão vários personagens santos; nota-se isso pelas auréolas. Atrás de Nossa Senhora há um Anjo e São José.

É interessante o seguinte: um dos reis está adorando o Menino Jesus e osculando os pés d’Ele. Os dois outros monarcas estão tranquilos, comprazidos em oração diante de Nossa Senhora e de seu Divino Filho, vendo o seu companheiro de viagem, seu irmão na realeza, adorar assim o Menino. Estão contentes com tudo e esperam chegar a vez deles, sem impaciência, com essa tranquilidade, serenidade medieval que exprimia bem a presença, o espírito, a graça de Deus na alma desses personagens.

Logo atrás dos três reis há um gorducho que está freando ou dando um jeito qualquer no camelo, para este não criar problemas. Esse já não tem nada do sobrenatural, do tranquilo, do sereno dos demais; é um homem movimentado e prestando atenção em tudo, de nariz pontudo, olhos saltados e mandão. Está bem à altura de tratar com camelos.

Até o Templo tem algo de esguio e virginal

Outro afresco traz a cena da Apresentação do Menino Jesus no Templo. Vemos a Santíssima Virgem e São José de um lado, de outro o Profeta Simeão e atrás está a Profetisa Ana. Interessa principalmente a atitude de São José e de Nossa Senhora. Quem apresentou ao Profeta o Menino foi Ela, que está com as mãos estendidas como quem O acaba de entregar. São José, recolhido e modestamente em segundo plano, acompanha a cena. Não creio que haja meios para decifrar quem é o terceiro personagem.

Uma atmosfera de santidade e pureza domina o quadro todo, a ponto de o próprio templozinho ter qualquer coisa de esguio e virginal. Notem como Giotto coloca um fundo meio azulado com numa tonalidade um tanto escura, que dá muito relevo à parte central do tema, ou seja, o Menino Jesus, o Profeta Simeão, Nossa Senhora, São José e a Profetisa Ana.

Na pintura que representa a fuga para o Egito, Maria Santíssima vai montada num simples burrico, São José à frente guiando, e eles apresentam todos os sinais exteriores da pobreza. Entretanto, a dignidade d’Ela é de uma princesa; seu porte retilíneo, as costas sem a menor inflexão, a cabeça alta indicam a resolução com que Ela enfrenta os riscos da viagem, que parece estar no começo.

São José vai caminhando na frente, mas atentíssimo ao que acontece com a Mãe e a Criança. Nossa Senhora não. Ela parece confiar em São José e em Deus; por isso mantém-se recolhida em oração com o Menino que está como que dormindo e agarrado à Mãe, um pouco para dar a entender a intimidade entre os dois, e como é cheio de propósito que Ela reze a Ele por aqueles que estão contemplando o quadro.

O sangue dos primeiros mártires começa a subir ao Céu

O Rei Herodes mandou matar todas as crianças de dois anos para baixo porque os Magos tiveram a inocência de procurá-lo, perguntando se tinha ouvido falar do Rei dos Judeus que tinha nascido. Herodes achou que dois reis no mesmo reino não cabiam e que, portanto, era preciso eliminar esse menino. Houve, assim, uma matança geral de inocentes. Estes foram os primeiros mártires da Igreja Católica. Por que mártires? Por uma razão muito simples: eles foram mortos por ódio à Fé, a Deus, ao Menino que lhes dera a honra de nascerem na mesma cidade que Ele. Mortos assim, embora não tivessem consciência de si mesmos, foram todos para o Céu como mártires. E são os Santos Inocentes cuja festa se celebra no dia 28 de dezembro, com um nexo, por motivos óbvios, com a festa de Natal.

É interessante notar o seguinte: quando os Anjos aparecem na noite de Natal, eles cantam “Glória a Deus no mais alto dos Céus, e paz na Terra aos homens de boa vontade” (Lc 2, 14). Os primeiros atos que se desenrolam a partir do Natal são cheios de luz, de bênção e de paz, é verdade, mas carregados de ameaças para o futuro. O que parece, para um espírito superficial, estar em contradição com a ideia de “paz na Terra aos homens de boa vontade”, porque pareceria que os homens de boa vontade não sofreriam nem perseguições, nem lutas, nem qualquer dificuldade. Dentre os pais e as mães desses meninos, provavelmente alguns seriam homens de boa vontade. Entretanto, o que eles tiveram? O morticínio de seus filhos. Uma coisa, portanto, de assustar!

Vê-se numa espécie de tribuna um personagem que proclama um edito. Imediatamente lotam a cena os algozes, os executores, à procura das crianças, e as pessoas tentam se esquivar. No primeiro plano uma mulher que evidentemente não quer entregar o filho. Mais adiante percebem-se cenas de uma agitação e de uma violência, que leva a admitir como provável que já nesse magma estão sendo mortas as primeiras crianças. O primeiro sangue de mártires começa a subir ao Céu. É uma coisa extraordinária!

Alguém perguntará: “Eles não são batizados?” Essas crianças foram batizadas no próprio sangue. Constituem, portanto, as primeiras almas batizadas, decorrentes da vinda de Nosso Senhor Jesus Cristo, pouco depois de Ele ter nascido.

Uma resposta afirmada majestosamente

Essa outra cena mostra o encontro de Jesus no Templo. Nela vê-se um aspecto interno do Templo de Jerusalém, todo meio romanizado. Por exemplo, aquela espécie de abóboda seguida de dois outros compartimentos colaterais é de estilo romano a conta inteira.

Dentro do Templo, de um lado e de outro, encontram-se os doutores da Lei discutindo a interpretação desse ou daquele ponto da Escritura. Mas o Menino Jesus já Se destacou tanto entre eles que ocupa a presidência dos sábios e está falando como verdadeiro Doutor. As pessoas estão perto d’Ele pasmas com o que Jesus diz, procurando ouvi-Lo com muito interesse e aproveitando as lições que Ele dava.

À esquerda, de pé, Nossa Senhora e, mais atrás, com sua vara florida, São José. A cena faz entender que o Santo Casal não compreendia a atitude do Menino Jesus. Maria Santíssima está numa atitude de quem pronuncia a famosa pergunta: “Meu Filho, por que agistes assim conosco?” (Lc 2, 48). Nosso Senhor parece estar dando doutoralmente – eu quase diria majestosamente – a resposta: “Por que me procuráveis? Não sabíeis que devo estar na casa de meu Pai?” (Lc 2, 49).

No céu chamejam raios e brilhos de glória

No Rio Jordão, São João batiza Nosso Senhor Jesus Cristo. O batizado se dava na forma de um verdadeiro banho e Nosso Senhor é apresentado, portanto, com uma parte do tronco desnuda por causa do banho. No céu chamejam raios e brilhos de glória.

Notem a situação um tanto paradoxal: dir-se-ia que a grande figura ali seria quem batiza, e o neófito, uma figura secundária. Mas Nosso Senhor é apresentado, apesar da grandeza de São João Batista, com uma majestade divina, uma seriedade e uma tranquilidade extraordinárias, que fazem d’Ele um verdadeiro Rei e dominador. Ele não está com nenhum atributo da realeza, ao contrário, apresenta-Se com o busto desnudo. Entretanto, vejam o jeito d’Ele e a própria atitude de São João Batista, como é respeitosa e até um pouco inclinada, embora segura, e em nada intimidada. No céu, a Glória de Deus transparece.

Nas Bodas de Caná – outro afresco presente na Cappella degli Scrovegni –, a narração do Evangelho dá a entender que havia muitas pessoas, a ponto de esgotar a provisão de vinho da família, o que deu origem ao milagre da transmutação da água em vinho. Porém, para economizar espaço, Giotto representou apenas a cena central, ou seja, a mesa principal das bodas, onde se encontram Nossa Senhora, São José e Nosso Senhor Jesus Cristo que está dando ordem para a água se transmutar em vinho.

É interessante ver como o pintor imaginou a cena: as várias talhas alinhadas nas quais estava a água que se transmutaria em vinho.

Por se tratar de uma festa, os anfitriões queriam ocultar a rudeza da pedra e por isso estenderam sobre a parede uma cortina de bom tecido, suspensa a uma altura maior do que a de um homem comum. Esse era um costume frequente na Idade Média.     v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 30/11/1988)

A glória excelsa de Maria Santíssima

Por mais grandiosa que seja a Criação, há entre as meras criaturas e Nosso Senhor Jesus Cristo um abismo infinito. A Santíssima Virgem é o grampo de ouro que une toda a Criação ao Divino Redentor.

 

Nossa Senhora é a Medianeira de todas as graças. Portanto, através d’Ela sobem a Deus todos os pedidos feitos pelos homens e vêm todos os favores concedidos pela Divina Providência.

Princípio da gradatividade

Para entender bem a importância de Maria Santíssima na Doutrina Católica é preciso compreender, antes de tudo, o papel de Nossa Senhora nos planos de Deus, Quem é Ela e qual sua fisionomia espiritual.

Quando observamos a natureza material que nos circunda — os bonitos panoramas, a mudança de cores e de luz durante o dia, etc. —, notamos serem frequentes formas de beleza, as mais excelentes, que se manifestam por meio de tonalidades intermediárias.

Por exemplo, o arco-íris: ele é composto por uma série de tonalidades intermediárias que combinam entre si e se sucedem, não de um modo brusco, mas harmonioso. Quando contemplamos os dois extremos de um fragmento do arco-íris, percebemos que, através de cores intermediárias, Deus fez a ótica humana passar harmoniosamente de um extremo de uma cor ao extremo de outra. Nessa conjugação de dois extremos, através de formas intermediárias de beleza, está verdadeiramente o encanto do arco-íris.

Nota-se algo semelhante em certas flores cujas pétalas vão mudando gradativamente de cor à medida que se distanciam da corola.

O princípio da gradatividade é um dos mais belos da natureza, segundo o qual todas as coisas se dispõem em graus. Há uma harmonia constituída de elementos diversos que se justapõem, fazendo-nos passar de um extremo a outro paulatinamente.

Ao avaliar colares, por exemplo, os joalheiros dão muita importância a este princípio. Há colares compostos por pérolas de diferentes tamanhos, nos quais as pérolas bem pequenas ficam junto ao fecho e, à medida que se aproximam do centro, elas vão aumentando sucessivamente, até dar numa pérola bem grande. É preciso que a diferença de uma pérola para outra seja proporcional. Esses graus sucessivos e harmônicos dão tal beleza ao colar a ponto de os joalheiros darem, muitas vezes, mais valor a um colar com pérolas de tamanhos diversos e gradativos, do que um colar onde todas as pérolas são grandes e iguais. Aliás, é mais difícil encontrar uma série de pérolas com tamanhos inteiramente adequados, e há uma forma de beleza mais artística nessas pérolas que formam, assim, uma coleção, do que um conjunto de pérolas grandes circundando o pescoço de uma senhora.

Observa-se este mesmo princípio em toda a natureza criada.

Minerais, vegetais, animais

Tomemos o brilhante mais estupendo, ou a pérola mais magnífica, e o comparemos com uma folha de alface, a mais ordinária que possa haver. Embora o brilhante tenha uma beleza extraordinária e um preço enorme, a folha de alface possui um predicado que deixa o brilhante longe: ela tem vida. Qualquer ervinha vale, do ponto de vista ontológico, incomparavelmente mais do que o brilhante.

Subindo a escala dos seres, a superioridade de um animal em relação a uma planta é simplesmente fabulosa! Pelo fato de que o animal tem sensibilidade e a planta não.

Se nos dermos ao trabalho de examinar, por exemplo, um gato andando sobre um telhado, veremos o mundo de finura e sensibilidade empregadas pelo felino. Cada passo é dado com “critério”; ele olha em volta de si e, quando percebe que a situação não é muito segura, não se precipita; examina, move um pouco a orelha, e quando está muito “preocupado” ele mia. Um gato só se joga quando percebe que pode jogar-se. Então, ele dá o pulo, cai com naturalidade e sai andando como se não tivesse acontecido nada; e às vezes são alturas vertiginosas! É uma sensibilidade muito aguda, muito perfeita, que o gato tem. Para algumas coisas, é mais perfeita do que a sensibilidade humana.

Comparem isso com uma árvore frondosa que deita galhos enormes onde pousam os pássaros, e cobre grande extensão de uma planície. Sem dúvida, é uma glória; mas que cativeiro! Ela está atada ao chão pelas raízes, incapaz de se defender. O próprio solo, do qual a árvore suga os elementos vitais, é a prisão onde ela permanecerá até morrer.

O ser humano, miniatura do universo

Acima dos animais estão os seres humanos, compostos de espírito e matéria e também dispostos hierarquicamente. Em seguida vêm os anjos, seres puramente espirituais.

Quando examinamos o universo dos seres intelectuais — homens e Anjos — notamos existir também uma gradação.

Os Anjos estão distribuídos em nove categorias dentro das quais não há um igual ao outro. Se fôssemos representar graficamente o mundo angélico, deveríamos imaginar, no caso dos Anjos bons, uma fileira fabulosa de espíritos, cada vez mais lúcidos, mais fortes, mais virtuosos e mais próximos de Deus, até chegar aos supremos, os Serafins que têm uma visão mais clara e direta do Altíssimo do que todos os outros Anjos, e repetem eternamente o “Sanctus”: “Sois Santo, Santo, Santo, Senhor Deus dos Exércitos…”, aquela adoração muda e, ao mesmo tempo, feita continuamente de exclamações, no mais alto de toda a série dos Anjos.

Vemos, portanto, em todo o universo uma gradação: os seres sem vida, minerais; os vegetais, seres vivos sem nenhuma forma de conhecimento; os animais, com conhecimento meramente instintivo; os homens, dotados de conhecimento instintivo e intelectivo, mas ainda imersos na matéria; os Anjos, pairando acima da matéria. Assim, há uma escala que vai da última pedra, ou da poça de lama mais ordinária até Deus Nosso Senhor, por meio de uma gradação magnífica, na qual há uma hierarquia e uma harmonia extraordinárias.

Outro aspecto deste princípio é a ideia de que em todos os conjuntos hierarquicamente constituídos deve haver um elemento máximo, em torno do qual se ordena a beleza de todos os outros.

Quando nos perguntamos qual é o mais alto desses seres criados, devemos naturalmente dizer que é um Serafim. Mas as obras de Deus são cheias de subtilezas, entre as quais esta:

Sem dúvida, no alto da hierarquia das criaturas temos os Serafins, mas é verdade também que o homem apresenta uma qualidade especial: só ele contém em si o universo inteiro. Nós temos espírito como os Anjos, corpo como os animais, vida vegetativa como as plantas, e materiais tirados do mundo mineral. O homem é uma espécie de miniatura do universo.

Diz a Bíblia que Deus, depois de ter criado todos os seres, viu que cada um deles era bom, mas o conjunto era ainda melhor. E se é verdade que o Anjo é superior a nós por ser puro espírito, poderíamos, forçando um pouco a nota, dizer a ele, depois de lhe ter feito, evidentemente, uma profunda reverência à qual ele tem direito: “Vós sois incomparavelmente mais nobre do que nós, enquanto puro espírito. Contudo, o conjunto, em nós, está representado mais adequadamente do que em vós”.

Trata-se de um aspecto da realidade, cuja enorme importância no plano da Criação veremos a seguir.

Com a Encarnação do Verbo toda a Criação uniu-se a Deus

Como explica a Teologia, uma das razões pelas quais convinha que a união hipostática se desse com a natureza humana é precisamente o fato de que Deus, unindo-Se a um homem, honrava de modo especial todos os graus da Criação. É tão grande a dignidade de sermos um compêndio de toda a Criação, que motivou essa honra especial a qual o Verbo de Deus quis nos dar: Ele Se fez carne e habitou entre nós. Creio que Ele Se teria feito carne e habitado entre nós ainda que não tivesse havido o pecado original, para assim, na sua misericórdia, honrar todas as criaturas.

Vemos, por estas considerações, quanto é belo e piedoso o pensamento expresso por diversos autores segundo os quais, quando Nosso Senhor Jesus Cristo nasceu, houve uma alegria em toda a natureza, e esta se revestiu de um novo esplendor: os astros brilharam com mais intensidade, o ar tornou-se mais puro, as águas das fontes ficaram mais cristalinas, as plantas tomaram maior viço, os animais se alegraram e se tornaram mais saudáveis; os homens bons adquiriram mais esperança. Por quê? Porque vinha ao mundo Aquele que, sendo o próprio Deus, ligara a Si todo esse conjunto por meio da natureza humana.

Quando olharmos a menor das pedras, a menor das plantas, o menor dos bichos ou o menor dos homens, devemos pensar isto: a natureza deles está, de algum modo, presente em Nosso Senhor Jesus Cristo e, assim, ligada a Deus, participando de sua glória no mais alto do Céu, no oceano de esplendor de santidade da Santíssima Trindade.

Um abismo preenchido pela Santíssima Virgem

Contudo, pelo mesmo princípio de gradatividade acima mencionado, o espírito humano, sequioso de ordem e de razoabilidade em todas as coisas, busca um ser que preencha o abismo infinito ainda existente entre Nosso Senhor Jesus Cristo e a mera Criação: um ser tão próximo do Homem-Deus, que estivesse acima dos Anjos; mas que, sendo pura criatura humana, englobasse também todas as demais naturezas.

Esse ser é precisamente Nossa Senhora. Ela foi colocada numa altura insondável, e numa plenitude de glória, de perfeição e de santidade inimagináveis. Acima d’Ela está somente seu Divino Filho e a Santíssima Trindade.

Por um mistério também insondável, Maria Santíssima gerou virginalmente Nosso Senhor Jesus Cristo, permanecendo virgem antes, durante e depois do parto por ação do Espírito Santo, de Quem se tornou, assim, verdadeira esposa.

A dignidade de ser Mãe do Verbo encarnado, Esposa do Espírito Santo e Filha dileta do Pai eterno coloca-A, embora sendo uma criatura puramente humana, acima dos Anjos.

Criada com a missão de obter a vinda do Messias

Dante, na “Divina Comédia”, depois de ter passado pelo Inferno e pelo Purgatório, percorre os vários círculos dos bem-aventurados no Céu. Quando chega aos mais altos Serafins, vê acima deles Nossa Senhora que sorri para ele. Então, ele olha para dentro dos olhos de Nossa Senhora e ali contempla o reflexo da Santíssima Trindade.

Depois de ter contemplado os olhos celestes e virginais de Maria Santíssima, resta apenas ver a Deus face a face, no Céu. O olhar humano chegou tão alto quanto podia chegar. Fitou o olhar puríssimo, sacratíssimo, sumamente régio e indizivelmente materno de Nossa Senhora! A mais alta das cogitações humanas foi feita, a “Divina Comédia” terminou.

Esta concepção nos faz ver que o princípio da gradatividade por mim enunciado comporta uma aplicação excelente em Nossa Senhora. Porque Ela é o grampo de ouro que liga toda a Criação a Nosso Senhor Jesus Cristo, colocada no alto de todo o universo e contendo em Si toda a beleza das meras criaturas.

Qual é o papel dessa criatura tão excelsa em relação a nós? Qual é a missão de Nossa Senhora na história de cada homem e na História da Santa Igreja Católica Apostólica Romana, ou seja, no centro da História da humanidade? Porque o centro da História da humanidade é a História da Santa Igreja Católica.

A Santíssima Virgem sempre foi representada como estando em oração, no momento em que recebeu o anúncio do Arcanjo São Gabriel.

Sem dúvida, Ela pedia a vinda do Salvador que haveria de resgatar a humanidade e fundar a instituição a qual dispensaria a graça de Deus em tal abundância, que os homens afinal se tornassem, mais frequente e facilmente, virtuosos e, assim, a verdade, a beleza, o bem, a grandeza, o amor de Deus pudessem constituir-se no mundo e levar as almas ao Céu.

Nenhuma outra criatura humana tinha valor e virtude suficientes para impetrar e alcançar tal graça. Assim, Ela foi criada especialmente com a missão de obter a vinda do Messias esperado.

Seus sofrimentos durante a Paixão

Em certo momento, a Virgem Santíssima recebeu a revelação da Paixão pela qual passaria seu Divino Filho e dos sofrimentos atrozes que viriam sobre Ele e sobre Ela. Nossa Senhora deveria padecer em união com Aquele que sofreu como nunca nenhum homem tinha sofrido e nem sofreria até o fim do mundo. À “Passio” — Paixão — de Jesus se uniria a “compassio” — a compaixão, o “co-sofrimento” — de Maria.

Para que os homens pudessem ser salvos e dar glória a Deus, Ela consentiu em ser a Mãe do Redentor e suportar esses tremendos sofrimentos.

É possível conceber o que Nossa Senhora sofreu durante a Paixão?

Imaginemos o que sentiria qualquer mãe que, andando pela rua, ouvisse de repente um alarido e, aproximando-se, visse seu filho sendo chicoteado, deitando sangue por todos os poros, padecendo dores indizíveis, carregando uma cruz, objeto da selvageria de um populacho brutal, vil, dando risada dele, dizendo atrocidades e levando-o, junto com essa cruz, para ser crucificado e morrer no mais horroroso dos martírios, no alto de uma montanha.

Essa mãe desmaiaria, ficaria psicótica, louca, conforme o caso poderia até morrer.

Ora, Nossa Senhora queria a Nosso Senhor Jesus Cristo incomparavelmente mais bem do que qualquer mãe possa querer a seu filho. Em primeiro lugar, porque Ela é a melhor Mãe que houve e haverá; mas também porque Ela teve um Filho incomparavelmente melhor do que qualquer outro.

É difícil imaginar a graça e encanto manifestados por Nosso Senhor como Filho: todo o respeito, a ternura, a veneração, a delicadeza, a grandeza! Como terão sido os trinta anos de intimidade entre Ele e Nossa Senhora, durante os quais Ela O viu crescer em graça e santidade diante de Deus e dos homens e amou, com amor perfeito, cada estágio da perfeição d’Ele que ia se desenvolvendo? Qual era o abismo de adoração no qual Ela se desfazia em relação a Ele?

Pois bem, Ela vê esse Filho, o próprio Deus, a própria Santidade, tratado assim por aquele populacho!

Quando Ela teve o encontro com Ele durante a Via Dolorosa, quando O abraçou, O osculou, e recebeu a glória enorme de ter o seu rosto virginal e sua túnica tintos com o Sangue divino; quando Ela recolheu os gemidos d’Ele, e foi a seu lado subindo até o alto do Calvário; quando Ela viu seus estertores finais e Ele gritar: “Eli, Eli lamá sabactâni” — Meu Deus, meu Deus, por que Me abandonastes? —; e depois dizer: “Está tudo terminado”, inclinar a cabeça e exalar o espírito: ao contemplar tudo isso, qual terá sido do sofrimento d’Ela?

Ela pedia o perdão para cada um de nós

Nesses momentos em que Maria Santíssima sofreu de um modo indizível, Ela manteve uma serenidade tão perfeita que Se conservou de pé o tempo inteiro junto à Cruz, com uma resignação e uma força que fazem d’Ela o modelo da criatura humana posta no sofrimento.

Até o último momento, Ela dizia ao Padre Eterno: “Eu consinto em que aconteça isso a meu Filho, para que Ele Vos dê a glória devida, salve as almas para Vós, ó meu Pai, e para que elas gozem da felicidade eterna junto a Vós no Céu”.

Dizem os teólogos que do alto da Cruz Nosso Senhor, cuja inteligência é infinita, conhecia todos os homens pelos quais Ele haveria de derramar até a última gota de seu Sangue. Via, individualmente, todos os pecados que cada um cometeria, sofria por todos esses pecados, e dava a sua vida para resgatar os pecadores que correspondessem à graça da Redenção.

Creio que para a compaixão de Nossa Senhora ser completa, Ela também nos conheceu individualmente naquela ocasião, e rezou em favor de cada um de nós. De maneira que, enquanto o Verbo de Deus via aquela multidão de pecados que se desprenderia dos homens ao longo dos séculos, Ela pedia perdão para cada um, e Ele ia perdoando pelo pedido d’Ela, pois, sendo inocente, Ela merecia o perdão que nós não merecíamos.

Foi, portanto, por causa das súplicas de Maria que cada um de nós obteve o dom de ser batizado, de conhecer a Igreja Católica, de receber os demais sacramentos, de ter devoção a Ela, e de manter-se fiel à Igreja nesses dias tormentosos em que vivemos. Será também pelo favor d’Ela que alcançará o Céu.

Nossa Mãe e Advogada

Eis o papel de Nossa Senhora como nossa Mãe e Advogada:

Mãe de Cristo, Ela é a Mãe de todos aqueles que nasceram para a graça pelo Batismo. Mãe do Redentor, tornou-Se também a Mãe dos pecadores, desempenhando um papel que, de algum modo, o próprio Deus não poderia exercer. Porque Deus é juiz, mas Nossa Senhora, como Mãe, é naturalmente a advogada dos filhos.

É próprio ao papel de mãe defender o filho, por mais miserável, imundo, asqueroso, por mais crápula que ele seja. A mãe perdoa e pede a Deus que o perdoe também. A mãe está solidária com o filho até quando o pai o abomina completamente.

Nossa Senhora, Mãe supremamente boa, reza por cada um de nós e, considerando que as chagas de Nosso Senhor foram causadas, em parte, por nossos pecados, Ela pediu a Ele: “Meu Deus, meu Filho: pela minha inocência, pela minha virgindade, pelo amor que Vós sabeis que Vos tenho, Eu Vos peço por este filho pecador. Em nome dessa chaga que Vós sofreis por causa dele, peço-Vos que o perdoeis”. E assim cada um de nós foi perdoado.

Foi, então, por meio de Maria Santíssima que Deus veio a nós na Encarnação e deu-se o Natal do Salvador, e é por intermédio d’Ela que vamos a Ele e recebemos os benefícios da Paixão e Cruz, isto é, da Redenção.

Por isso, morto Nosso Senhor, Nossa Senhora continuou a ser a grande intercessora junto a Ele, a Advogada que nunca abandonou homem algum, por mais pecador que fosse. A ponto de ensinar a Teologia que se São Pedro, depois de ter cometido o pecado horroroso de negar o Divino Mestre, não desesperou, arrependeu-se e se salvou, foi pelos rogos de Maria que lhe obteve a graça do arrependimento e o perdão.

E se Judas Iscariotes, o mercador péssimo que vendeu Nosso Senhor por trinta moedas, tivesse recorrido a Nossa Senhora, Ela o teria recebido com toda bondade e misericórdia, e obtido o perdão também para ele.

Após a morte do Salvador, é a Santíssima Virgem Quem reúne os Apóstolos em torno de Si, está junto a eles em Pentecostes, acompanha a Igreja nos primeiros passos e é a sua grande protetora ao longo de toda a sua existência, presente nas batalhas onde os guerreiros católicos venceram os exércitos inimigos da Fé, presente nos combates contra as heresias, e na luta que noite e dia cada homem trava contra seus defeitos, para adquirir maiores virtudes. E ainda que não nos lembremos de Nossa Senhora, Ela está Se lembrando de nós do alto dos Céus, pedindo por nós com uma misericórdia que nenhuma forma de pecado pode esgotar. Basta nos voltarmos para esta misericordiosa Mãe para que, cheia de bondade, Ela nos atenda e nos limpe a alma, dando-nos força para praticarmos a virtude e nos transformarmos de pecadores em homens bons.

Nunca nos faltarão forças para os sacrifícios necessários à prática da Lei de Deus, desde que as peçamos a Nossa Senhora. Aqueles que se voltam a Ela recebem tudo; aqueles que se afastam d’Ela não recebem nada.

Rainha do universo

Maria Santíssima é chamada pela Igreja a “Porta do Céu”. É por esta Porta que todos os homens obtêm as graças: por Ela nossas orações chegam a Deus, e também todas as graças descem para os homens. Tudo nos vem por intermédio de Nossa Senhora.

São Luís Grignion de Montfort utiliza uma bela imagem para ilustrar essa realidade.

Imagine alguém do povo que quer presentear o rei, mas não tem outra coisa para oferecer-lhe a não ser uma maçã. Mas não tem coragem de oferecê-la ao monarca, por ser um presente muito comum. Então, pede à mãe do rei que oferte ao rei essa maçã.

A mãe do monarca coloca a fruta numa bandeja de prata e lhe diz: “Meu filho, essa pessoa é minha filha também e pede-me para vos oferecer isto”.

O rei sorri e a recebe como se fosse uma esfera de ouro.

Por vezes, as melhores ações dos homens têm o valor de uma maçã; mas, oferecidas pelas mãos virginais e acompanhadas com o sorriso de Maria, Deus as recebe com encanto, agradece, e as recompensa. Quanto mais unidos a Nossa Senhora, mais poderemos praticar a virtude e nos tornarmos agradáveis a seu Divino Filho.

Como ensina a Doutrina Católica, se Nossa Senhora é de tal maneira a distribuidora de todos os dons, Ela é a Rainha do universo. E se Ela governa o universo inteiro, é também verdade que devemos nos consagrar a Ela como seus servos, deduz São Luís Maria Grignion de Montfort, para em tudo fazer a vontade d’Ela.

Alguém me dirá: “Mas Dr. Plinio, eu sinto minha fraqueza, minha imperfeição. Será que Nossa Senhora quererá uma elevação dessas a mim, tão cheio de pecados?”

Eu respondo: Não tenho dúvida, porque Ela não recua diante do pecado de nenhum homem.

Símbolo eloquente da misericórdia de Nossa Senhora

Há na Venezuela um santuário consagrado à padroeira nacional, Nossa Senhora de Coromoto, onde se encontra, num ostensório, um pergaminho no qual está gravada a figura de Nossa Senhora sentada num trono, com o Menino Jesus nos braços e com um olhar de Rainha e de Mãe. A história dessa imagem da patrona da Venezuela é maravilhosa.

No tempo da colonização, havia na Venezuela uma tribo de índios chamados Coromotos, a alguns dos quais — entre eles o cacique — Nossa Senhora apareceu.

Os indígenas ficaram deslumbrados com aquela Rainha gloriosa que perguntou ao cacique se ele queria morar na cidade onde Ela reinava. Ele respondeu que sim. Então Nossa Senhora disse-lhe para procurar os homens que lhe colocariam água sobre a cabeça e lhe ensinariam o caminho do seu Reino, ou seja, o Céu.

O cacique mudou-se, com outros de sua tribo, para a região a eles reservada e, durante algum tempo, recebeu com gosto a catequese. Entretanto, em certo momento revoltou-se, abandonou tudo, voltou para a sua choça e deixou a Religião.

A Santíssima Virgem lhe reapareceu na entrada da cabana, risonha, amável, convidando-o para voltar às graças d’Ela.

Tão péssimo era seu estado de alma que ele tomou o arco e tentou atingir com uma flecha a celeste visitante. Não obtendo êxito, procurou agarrá-La, quando subitamente Ela desapareceu deixando-o com os braços paralisados. Quando o miserável conseguiu movê-los, encontrou entre eles a bela estampa que hoje é venerada no santuário.

Um verdadeiro milagre! Não obstante, ele, com raiva, escondeu a estampa no teto de sua choça. Mas Nossa Senhora, ainda assim, o perdoou. Infatigavelmente perseguia esse homem para convertê-lo.

Em determinado momento, ele não resistiu mais à graça, pediu perdão, recebeu o Batismo e morreu em paz, reconciliado com Nossa Senhora.

Quer dizer, depois das maiores ofensas, a Rainha do Céu o venceu e o perdoou. Este é o símbolo mais eloquente da misericórdia de Nossa Senhora, mostrando como nem os piores pecados daqueles a quem Ela ama são capazes de constituir uma barreira à bondade e à misericórdia d’Ela.

Em nossa época, a Santíssima Virgem está sofrendo agressões piores do que as recebidas da parte desse índio. Os pecados do mundo contemporâneo são muito mais cheios de malícia do que os desse miserável aborígene.

Nossa Senhora, entretanto, não quer o fim da humanidade, mas deseja o perdão para ela. E quando, em Fátima, Ela prenunciou castigos para o mundo, e disse até que várias nações desaparecerão, ao mesmo tempo anunciava a misericórdia, pois, diante dos castigos, pelo menos certo número dos homens contemporâneos vão se arrepender e ainda irão para o Céu. E muitos hão de viver perdoados por Ela para entrarem no Reino de Maria. Assim, Ela afirmou: “Por fim, o meu Imaculado Coração triunfará!”

Nós devemos pedir a Maria Santíssima que, em relação a cada um de nós, Ela use da graça que teve para com o índio Coromoto: vença nossos obstáculos, aniquile nossas maldades e que seja verdadeira para o mundo contemporâneo, como para cada um de nós, a promessa do triunfo de seu Imaculado Coração, tornando-nos apóstolos dos últimos tempos, perfeitos filhos e escravos d’Ela, para que, por essa forma, o Reino de Maria substitua o reino do demônio sobre a face da Terra.

É isso que devemos pedir a Nossa Senhora depois dessa meditação sobre a glória excelsa d’Ela.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 7/2/1971)

Flashes com a santidade da Igreja

As graças atuais, dons divinos que iluminam nossa inteligência e auxiliam nossa vontade para realizar o bem e nele perseverar, constituem fator inestimável para a nossa santificação. Dr. Plinio nos contará a seguir circunstâncias de sua vida nas quais, à maneira de “flashes”, essas graças lhe foram concedidas a fim de compreender e contemplar verdades eternas, como a divindade da Santa Igreja Católica Apostólica Romana.

 

Ao dissertar a respeito dos flashes(1), procuro descrever antes o que se passa na alma dos outros, em vez de analisar os meus próprios movimentos interiores. Instado, porém, a dar um testemunho pessoal, volto-me para minhas lembranças dos vários fla­shes que tive desde menino, enriquecidos, avolumados com o passar dos anos, e conservados por mim numa espécie de síntese de todos eles.

Os meus flashes de infância são tão remotos e, naturalmente, marcados por algo de tão incipiente e pueril, que evocarei apenas dois exemplos, esperando satisfazer assim a filial curiosidade dos meus ouvintes.

O órgão, um universo de sons

Recordo-me da primeira vez que prestei atenção no timbre do órgão. Encontrava-me na Igreja do Coração de Jesus para assistir Missa e, de súbito, começaram a tocá-lo. Certamente já o tinha ouvido em outras ocasiões, mas nunca lhe dera importância. Entretanto, naquele momento recebi um verdadeiro flash, pois tive a impressão de uma plenitude de sons capaz de ser expressa pelo instrumento, de modo muito adequado, embora sintético. Não como o universo de acordes ao alcance de qualquer piano de bairro, mas cada som trazendo consigo a conotação de uma miríade de outros acentos, de maneira que um dó varia num mundo de dós, o mesmo sucedendo com o ré, o mi, etc.

Mais ainda. Com a profusão de registros, o universo sonoro do órgão é desencadeado, manipulado e posto em movimento pela pessoa que o dedilha, acompanhado da ideia de haver nele ressonâncias prodigiosamente harmônicas, pois cada som é um protótipo que se multiplica, desdobra-se, fomenta-se pelas diferentes vibrações. Esta harmonia interna em cada nota se reproduz, por sua vez, na relação de umas com as outras, e o teor desse comércio no mundo dos sons é um lindo símbolo de todos os estados de espírito, normais, dignos e bons, no convívio humano.

Logo, há uma reversibilidade entre o universo moral do homem e o dos sons. Acima de tudo, paira a ideia de que só a Igreja Católica pode ter inspirado, presidido e levado a cabo essa visão de conjunto. Daí a conclusão: a Igreja Católica é santa; portanto, divina.

Naturalmente, essa concepção não vinha ao meu espírito com essa clareza. Era um flash, como qualquer pessoa pode ter, pois é conforme à nossa natureza, quando meninos, termos essas impressões instantâneas, riquíssimas, análogas a um inopinado nascer de sol, sem aurora, surgindo direto na plenitude do meio-dia.

Não me foi difícil perceber que no flash haveria uma verdade — “il y a de vrai là dedans”, dizem os franceses — a ser escavada de modo indefinido. E no decorrer dos anos consegui explicitá-la, como acabei de fazê-lo. Não se imagine, pois, ter sido eu um menino genial, uma espécie de “Mozartzinho” da Filosofia… Minha capacidade intelectual não chegava a tanto.

Compreendendo a divindade da Igreja

Certo tempo depois, tive essa mesma sensação na Igreja de Santa Cecília, onde, pela ação do Divino Espírito Santo, discerni a santidade e a divindade da Igreja Católica, em oposição à Revolução. E compreendi como me seria concedida a graça de pertencer inteiramente à Esposa Mística de Cristo, no momento em que todas as potências de minha alma vibrassem em uníssono com aquele órgão. Então meu espírito teria alcançado sua plena realização.

Foi um flash deveras intenso, corroborado pelas vívidas impressões determinadas por alguns aspectos do edifício sagrado.  Por exemplo, os vitrais dessa igreja são autênticos, com belas policromias, e mais atraentes que os comuns dos templos da cidade de São Paulo (em geral, apenas janelas com vidros coloridos, sem maiores labores artísticos).

Na mencionada ocasião, levado por minha família para alguma cerimônia litúrgica, entrei na Igreja de Santa Cecília numa hora em que os raios do sol atravessavam os vitrais da capela-mor e também os situados ao longo da nave central, do lado esquerdo de quem olha para o altar principal. Estavam iluminados, com as suas tonalidades imersas em maravilhosa harmonia, tomando rutilância e brilho extraordinários.

Admirei aquele esplendor e pensei: “Que cores! Como seria agradável morar dentro de um desses vitrais! Se houvesse um espaço habitável, onde tudo fosse como essa apoteose de colorido, e eu pudesse passear de vitral em vitral por vários ambientes, sem qualquer empecilho, apenas me alimentando dessas cores, do ar e do perfume condizentes com elas, eu seria capaz de perceber harmonias e belezas de uma ordem do ser maravilhosa, que não pertence a esta Terra.

“Se eu pudesse morar nesse espaço, perceberia também que minha alma se sentiria completamente realizada ao fazer tal excursão através do mundo dessas cores banhadas pelo sol. Então, penetrar num verde ou azul absolutos, observar todo o percurso da luz — desde a aurora até o crepúsculo — através dessas cores que iriam mudando de tonalidades, sem ninguém me interromper nem perturbar! O tempo todo estaria ali, tecendo reflexões e contemplações baseadas nesses coloridos…”

Não é difícil entender que essas meditações seriam de caráter religioso, e que se fosse materialmente possível semelhante situação, eu me sentiria feliz ao extremo, por me ter sido franqueado o conhecimento de umas tantas coisas muito mais valiosas que aquelas pelas quais os homens têm apreço.

Compreendi, pois, o que era a santidade, a perfeição e a divindade da Igreja Católica, aplicando aos vitrais o mesmo raciocínio feito a propósito do órgão.

“Nunca me separarei da Igreja Católica!”

Num passo seguinte, corri os olhos sobre uma galeria existente na nave central, com pinturas em estilo mosaico, retratando bispos antigos do Brasil, revestidos de seus paramentos, cada um deles no seu pequeno pedestal, em atitudes convencionais, provavelmente bem diferentes da realidade histórica, mas exprimindo algo do bispo ideal.

Eu os observava e pensava: “Meu Deus, que coisa fantástica! Na ordem espiritual, esses bispos são o que as cores daqueles vitrais significam na ordem natural. Cada uma dessas almas é como um vitral da Igreja Católica. Isso é maravilhoso!”

Em seguida, vi os quadros do martírio de Santa Cecília e outros objetos de arte. Aquilo tudo encheu minha alma, tocada com um verdadeiro flash.

Ao sair de lá, concluí: “Da Igreja Católica não me separo nunca! Fui feito para ela e sem Ela a vida não tem sentido. É mesmo divina, e n’Ela creio. A apologética será útil para outros. Para mim, a prova dessa divindade está dada”.

 

Plinio Corrêa de Oliveira

Revista Dr Plinio 80 (Novembro de 2004)

 

1) Sobre a doutrina dos “flashes”, ver “Dr. Plinio” nº 55, págs. 16-20.

Porte régio e virginal

Certa noite, uma belíssima imagem de Nossa Senhora das Graças, de tamanho natural, foi transportada para o auditório onde Dr. Plinio fazia conferências aos membros do Movimento por ele fundado. Diante dessa imagem, ele teceu as considerações que a seguir reproduzimos.

Não me lembro de quando vi, pela primeira vez na minha vida, uma representação de Nossa Senhora das Graças. Mas na minha mais tenra infância — oito, nove, dez anos — já esse sorriso expresso na imagem me acompanhava. Não como algo no qual eu pensasse de modo ininterrupto, mas à maneira de uma recordação: alguma coisa que vi e ficou na minha memória, na minha veneração, no meu afeto, sem que constituísse objeto contínuo de minhas cogitações. De vez em quando, vejo essa invocação, encontro uma imagem, uma estampa, uma medalhinha, ou alguma outra coisa que me fala de Nossa Senhora das Graças.

Revelações a Santa Catarina Labouré

Não tenho palavras para lhes exprimir com que cuidado tomei conhecimento das revelações de Nossa Senhora a Santa Catarina Labouré, cujo texto li com uma atenção com que um tabelião não leria uma escritura pública. Quer dizer, palavra por palavra, pormenor por pormenor, procurando entender, observar e compor bem o conjunto de fatos que caracterizaram aquelas revelações. Evidentemente, não houve uma ocasião em que, estando em Paris, eu não fosse mais de uma vez à Rue du Bac, onde se deram as aparições.

Tudo isto está presente em meu espírito, mas, como dizia, não é objeto de uma cogitação contínua. Entretanto, nunca aconteceu que, olhando para uma imagem, estampa, figura de Nossa Senhora das Graças, ou simplesmente para o verso da Medalha Milagrosa — onde tem aquele “M” com o Sagrado Coração de Jesus e o Imaculado Coração de Maria —, eu não sentisse, de modo muito distante, muito vago, ou muito próximo, o que a imagem a qual estamos contemplando diz de um modo tão esplêndido.

Como sinto e como se me afigura a imagem de Nossa Senhora das Graças?

Descrição da imagem

Há nela dois aspectos que se completam: Ela está simplicíssima, seu traje não comporta um adorno. A imagem foi concebida de tal maneira que as dobras de seu manto são todas muito bonitas, caem muito bem, mas é o traje de uma dama, de uma mãe de família qualquer, de Belém, de Nazaré, de Jerusalém, naquele tempo, apresentando-se na simplicidade de sua vida cotidiana. Ela possui uma túnica e sobre esta um manto; e outro manto que cobre a cabeça e os ombros. Tudo o mais simples possível.

Entretanto, há qualquer coisa que incute um profundo respeito e nos faz notar que a pessoa representada veio de muito alto. De uma altura que é o Céu, mas do ápice do Céu; acima d’Ela está apenas Nosso Senhor Jesus Cristo.

Além do respeito, a imagem incute uma veneração que não se sabe como exprimir! Será a virginalidade do rosto? A fisionomia é indiscutivelmente virginal, todo o porte é virginal. Será o régio? Não houve rainha que tivesse tanta majestade. Para fazer uma comparação inadequada: a encantadora Maria Antonieta fica reduzia às proporções de uma boneca de pano perto d’Ela.

Mas, de outro lado, tão presente, tão íntima, tão afagante! Tem-se a impressão de que se Ela nos olhasse, algo do Céu apareceria.

Benignidade, benevolência, doçura

Ela está na atitude de quem olha para a pessoa que estivesse aos seus pés, rezando. E estende as mãos, como quem diz: “Persuada-se! Sou Eu mesma, estou aqui para ajudá-la, favorecê-la e cumulá-la de graças”.

Fica-nos também a impressão de que as mãos acabam de entregar presentes magníficos, e a pessoa foi beneficiada com dons não provenientes desta Terra, e que, evidentemente, são graças. Da imagem se evola uma benignidade, uma benevolência, uma doçura à maneira de um sorriso. Ela propriamente não sorri, mas tem um comprazimento que eu chamaria de “trans-sorriso”.

Alguém que fosse sorrir não estaria em condições de exprimir tudo quanto há nesta imagem. É, ao pé da letra, um “trans-sorriso”, algo que vai além de toda expressão.

E o gesto das mãos parece nos dizer: “Vinde, pedi mais, desejai mais, Eu vos darei tanto quanto pedirdes! Aproximai-vos, não tenhais medo, sou Eu mesma que vim aqui para estar convosco!”

Em meio às mil batalhas, preocupações e aflições, pormenores e providências, e ao fragor — não recuo diante da palavra — das angústias de que nosso caminho está cheio, não é possível termos um repouso melhor do que parar, olhar para a imagem de Nossa Senhora das Graças e, compreendendo tudo isso, pensar: “Ah, então nessa guerra onde é preciso realizar o irrealizável, vencer o invencível, ter forças que não sabemos de onde vêm, necessitamos ter uma enorme confiança porque, nas horas oportunas, Nossa Senhora virá, nos sorrirá e nos ajudará!”

Virá, não necessariamente à maneira de uma visão. É uma grande graça ter uma visão, mas notar numa imagem essas coisas, ter conhecimento de uma graça que nos toca nessas horas e sentir esse orvalho dentro da alma, isto já é tudo.

Graças sobrenaturais e auxílios de toda espécie

Creio que, neste sentido, a invocação é muito acertada: “Nossa Senhora das Graças”. Quer dizer, Nossa Senhora que concede graças. Mas o que quer dizer “graças”? O termo tem dois sentidos: um é o sentido da graça sobrenatural, que é o favor dos favores, o dom gratuito ao qual não temos direito, mas que Nosso Senhor Jesus Cristo nos conseguiu do alto da Cruz, e que Ela esparge, por ser a Medianeira de todas as graças. É graça sobrenatural por onde temos Fé, Esperança e Caridade, e as virtudes cardeais.

Mas são também auxílios de toda espécie, por vezes favores pessoais, personalíssimos, terrenos, os quais desejamos muito em ordem a Ela, para fazer sua vontade, para servir a Causa d’Ela, para lutar por Ela, pedidos por nós com insistência, e que Maria Santíssima acaba concedendo de modo, muitas vezes, inesperado. Na curva de um caminho, na dobra de uma angústia, de repente, surge o favor. Às vezes, não vem automaticamente, demora, e parece suceder o contrário. Mas no fim percebemos que, quando vem, vem mesmo, e com tanta plenitude que somos recompensados de modo superabundante.

Essa é a impressão comovedora que esta imagem me causa. De um modo mais intenso, até, do que tive na própria Rue du Bac, onde, entretanto, encontram-se relíquias tão preciosas: ali está sepultada Santa Luísa de Marillac — fundadora da Congregação religiosa à qual pertenceu Santa Catarina Labouré —; estão os restos mortais desta Santa para quem Nossa Senhora apareceu; a capela da aparição na qual está exposta à veneração dos fiéis a cadeira na qual a Santíssima Virgem sentou-Se para falar com Santa Catarina Labouré, que permaneceu tão perto da Mãe de Deus a ponto de apoiar os cotovelos sobre os joelhos d’Ela.

Será algum predicado natural da escultura? Meramente natural não pode ser, porque aquilo que é ocasião de um ato de amor a Nossa Senhora não pode ser meramente natural. Pode haver algo de natural ali que sirva de ocasião, mas o amor a Ela é sobrenatural, vem de uma graça. Sem uma ação sobrenatural da graça, não seríamos capazes sequer de pronunciar piedosamente os nomes de Jesus e de Maria. Tudo quanto diz respeito à Fé e à vida da Fé, vem do sobrenatural.

A alvura da imagem

Há algum desígnio de Maria Santíssima por onde Ela torna mais sensível essa graça, quando se olha para esta imagem de Nossa Senhora das Graças? Não um intuito arbitrário, pois a palavra “arbitrário” aqui toma a má conotação de “caprichoso” — a Rainha da Sabedoria não tem nada de caprichoso —, mas algo que é um desígnio d’Ela, que nós não conhecemos. É possível; e se for realmente, eu agradeço muito.

O fato positivo é que não tenho possibilidade de olhar para esta imagem sem que, de um modo mais intenso ou menos, não me sinta enormemente propenso a lutar ainda mais, mas com uma forma de refrigério, de luz e de tranquilidade que são peculiares. E que me vêm da ideia de que Ela acaba de distribuir muitas graças e oferece ainda mais.

Eu não posso deixar de ligar isso à alvura extraordinária da imagem. Esse branco corresponde à cor da alma de Nossa Senhora. A inocência da Sancta Virgo Virginum — que é inocente sem comparação com nada e com ninguém, acima de tudo, exceto de Nosso Senhor Jesus Cristo — se exprime nesse branco de um modo maravilhoso. Mas também a generosidade, a bondade. Ela dá tudo porque tem as intenções mais alvas possíveis, em relação a todo mundo. Ela quer conceder, quer ser generosa. É verdadeiramente magnífico!

Anéis com pedras preciosas

Não poderíamos encerrar este comentário sem uma palavra a respeito dos anéis. Em suas revelações, Santa Catarina Labouré conta que Maria Santíssima tinha em seus dedos muitos anéis, como usavam as senhoras daquele tempo. Ela quis aparecer assim. E os anéis eram dotados de diversas pedras coloridas, das quais partiam raios de luz. Entretanto, algumas pedras, embora luminosas, não ejetavam luz.

Então Santa Catarina Labouré, com a liberdade que possuía com Nossa Senhora, perguntou-Lhe por que algumas daquelas pedras não reluziam. E Ela deu esta resposta que me impressionou muito: “São as graças que não me foram pedidas. Se pedirem essas graças, Eu darei. Então o reluzimento dos anéis aumentará”.

Poderíamos nos perguntar: para nós, quantos anéis estão por reluzir ainda, e quantos já reluziram? O “thau”2 que anel será? Existem anéis com uma pedra preciosa em torno da qual estão cravejadas outras pedras preciosas. Quantas pedras preciosas cercarão o “thau”? Que anel soberbo será ele? Nós o contemplamos o bastante para que ele reluza com toda a sua plenitude? Ou seja, pedimos muito a Maria Santíssima para que realmente o “thau” nos venha na abundância que desejamos?

Pedir, pedir, pedir, suplicar, implorar! “Pedi e recebereis, batei e a porta vos será aberta…”3 Isso se aplica à imagem; Nossa Senhora, a bem dizer, está com as portas abertas, como quem diz: “Meus filhos, vós não pedistes do lado de fora, não batestes na porta; então Eu a abri e aqui estou. Aqui estão meus anéis. Vinde, meus filhos, e aproximai-vos!”

Ao cabo de um dia com dificuldades, um refrigério incomparável

Imaginem, assim, qual foi a minha impressão, entrando neste auditório, ao encontrar de um modo inteiramente inesperado esta imagem. E me perguntei: “Por que eu estava tão longe de pensar nisso?” E vieram-me à mente várias pequenas razões: em primeiro lugar, o peso e o risco do transporte, que é a menor das razões: “Se esta imagem se danifica, se quebra um dedo ou um pouco do manto, que coisa perigosa!”

Mas, depois, também a ideia de que a imagem representa a Rainha, a qual não se move. Ela atrai a Si; dir-se-ia que a Rainha não vai atrás de ninguém.

Sem dúvida, entrou algo de meus hábitos mentais. Eu sou muito estático e imagino as coisas como sempre permanecendo, não se movendo. Sou bastante contínuo, e a ideia de transportar uma imagem assim, parece-me qualquer coisa difícil de conceber.

Tudo isso junto concorreu para que a mim fosse uma verdadeira, enorme e agradabilíssima surpresa encontrar aqui esta imagem. Uma surpresa que veio ao cabo de um dia com dificuldades, problemas e perspectivas de toda ordem, dando-me esse refrigério que é incomparável, e uma emoção que eu não quis esconder. Fiquei realmente gratíssimo!

O Paraíso de Deus

Depois, pensando melhor, será que a Rainha não vai atrás de seus súditos? Ela não é Mãe do Bom Pastor, que deixa noventa e nove ovelhas e sai à procura de uma? Por que não supor que a imagem d’Ela seja deslocada por filhos muito devotos para que um outro filho a veja? E, assim, todos A amarem, A festejarem, A glorificarem e A celebrarem juntos? Isso é tão adequado, tão magnífico!

Eu rezo frequentemente, sobretudo no momento da Comunhão, pedindo a graça de levar minha devoção a Nossa Senhora absolutamente tão longe quanto a Doutrina Católica permita. Não desejo ir um milímetro além disso, mas quero levá-la até o último ponto onde caiba dentro da Doutrina Católica. E isso representa um céu, porque o homem não consegue sondar com o olhar o firmamento da devoção a Ela.

Tomemos em consideração que Ela é chamada por São Luís Grignion de Montfort “o Paraíso de Deus”. Quer dizer, na felicidade eterna e perfeitíssima que Deus tem em Si mesmo, quis ter Maria Santíssima como seu Paraíso. Compreendemos, assim, qual é a elevação e quais são os dons d’Ela, e até onde deve ir a nossa admiração e nosso amor Àquela a Quem, num certo sentido da palavra, o próprio Deus admira, e que Ele criou para ter o gosto de admirar.

Imagens existentes no quarto de Dona Lucilia

No oratório de minha mãe em minha casa, colocada sobre uma peanha, há uma imagem do Sagrado Coração de Jesus. À frente, em um nível mais baixo, há três imagens: uma de marfim, dada a ela por um padrinho de casamento, que por coincidência era também juiz, e a quem mamãe chamava de “meu juiz”. Não conheci este homem e nem sei seu nome. E tampouco ela sabia de que santa era aquela imagem. Mas a conservava por respeito, por saudades.

Há também uma imagem do Menino Jesus, e depois, correspondendo à mão direita da imagem do Sagrado Coração de Jesus, uma imagem de Nossa Senhora das Graças.

Por seu estilo, esta última parece ter sido feita antes de meu nascimento, pois é da mesma escola da imagem do Sagrado Coração de Jesus, que é certamente anterior ao meu nascimento. Portanto, desde a minha primeira infância foi uma das imagens de Nossa Senhora das Graças para a qual olhei.

Eu vi Dona Lucilia rezar muitas vezes para essas imagens, com muita devoção, muita atenção, muita confiança. Sem acontecer nada de milagroso ou de extraordinário, eu notava uma consonância entre ela e a imagem do Sagrado Coração de Jesus, mais ou menos como se Ele estivesse refletindo-Se nela. E havia também uma consonância, quando mamãe rezava para a imagem de Nossa Senhora das Graças. E cada vez que ela a osculava, eu tinha a impressão de que toda essa doçura se refletia também em mamãe. E, no modo de ela rezar, punha aquilo ao nosso alcance.

Alguém poderia me perguntar: “Mas se é assim, por que o senhor não tira aquela imagem daquele oratório e a põe ao alcance dos seus olhos continuamente?”

A resposta é: Não se deve estar a provocar coisas de modo contínuo. Quando minha mãe morreu, a imagem estava lá. Inúmeras vezes, durante minha vida, eu a olhei. Mas acho que não a devo tirá-la de lá. Ela está onde mamãe a deixou quando faleceu, tendo ali passado grande parte de sua vida. Eu nunca vou ao quarto sem olhar para a imagem e rezar um pouco. Mas não seria homem de, por assim dizer, forçar a continuidade da graça, pondo uma imagem de Nossa Senhora das Graças diante dos meus olhos, e dizendo: “Agora eu Vos agarrei”. Não é do meu gênero. Há imponderáveis que levam a uma outra atitude. É o que eu teria a dizer.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 3/10/1981)

Nossa Senhora das Graças

A invocação de Nossa Senhora das Graças quer dizer que Ela tem em suas mãos todas as graças, porque é a depositária de todos os tesouros de Deus. Mas também significa Nossa Senhora dadivosa, misericordiosa, que tem as mãos abertas para mostrar que Ela quer dar tudo.

Ela é a Mãe de misericórdia, que deseja tocar todas as almas, inundá-las de benefícios, encher o mundo inteiro das manifestações soberanas e celestes de sua bondade e de seu poder.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 26/11/1970)

Mãe da Divina Graça e da perseverança

Estreitamente unido a Maria Santíssima por meio da escravidão de amor, segundo o método de São Luís Grignion de Montfort, tinha Dr. Plinio grande devoção à invocação “Mater Divinæ Gratiæ” — Mãe da Divina Graça —, neste mês comemorada na festa da Medalha Milagrosa.

Sobre a efígie impressa na Medalha, cuja confecção foi pedida pela própria Mãe de Deus, abaixo reproduzimos um profundo comentário de Dr. Plinio(1), relacionando-a à Contra-Revolução, à realeza de Maria e à graça da perseverança que deve ser almejada por cada um dos filhos da Santa Igreja: Nós temos, numa das faces da medalha, Nossa Senhora pondo os pés sobre o mundo, na afirmação de sua realeza sobre toda a Terra. É exatamente essa a doutrina da realeza de Nossa Senhora que vem lembrada em Fátima e afirmada com uma vitória sobre a Revolução.

Ela calca também uma serpente, o que está inteiramente coerente, concludente, porque desse lado está escrito: “Ó Maria concebida sem pecado, rogai por nós que recorremos a Vós”.

Quer dizer, é a Imaculada Conceição. Mas não é pura e simplesmente a Imaculada Conceição, porque há aqui um atributo que não se encontra nas imagens da Imaculada Conceição como tal: Nossa Senhora está com as mãos abertas em sinal de aquiescência, de atendimento, e de suas mãos partem fachos luminosos imensos, simbolizando as graças e os favores que pelas mãos d’Ela — quer dizer, pela ação e por meio d’Ela — descem sobre o mundo.

Essas graças são concedidas para a conversão dos pecadores, dos hereges, mas também para o castigo dos irredutíveis e proteção daqueles que se mantiveram fiéis até o fim. São graças para a perseverança dos fiéis. Tudo isso sai das mãos de Nossa Senhora como de um manancial.

Ela está afável, risonha, acolhedora, para todos aqueles que tendo em vista esse conjunto de fatos, de símbolos, de atributos, de noções, se dirigem confiantes a Ela, pedindo as graças de que precisam.

Vamos pedir a Nossa Senhora que pelas graças da Medalha Milagrosa, Ela apresse o dia de sua vitória, de um lado. E de outro lado, também nos ajude a sermos fiéis durante todas as tormentas que se aproximam. Porque devemos nos lembrar bem disso: a perseverança é uma graça inestimável. Do que adianta ter virtudes, se depois cair no pecado?

Essa perseverança não é fruto de nossas qualidades pessoais, mas da graça que se trata de pedir humildemente, de implorar com insistência, e à qual se trata de corresponder. Portanto, precisamos pedir as graças que nos assegurem a perseverança.

Essa invocação de Nossa Senhora das Graças — ou de Nossa Senhora da Medalha Milagrosa — é particularmente eficiente na luta contra o poder das trevas, que tanto e tanto nós devemos conduzir nos dias de hoje.

 

Plinio Corrêa de Oliveira – Revista Dr Plinio 212 (Novembro de 2015)

1) Conferência de 27/11/1964.

Uma porta do céu se abriu para o mundo

Neste ano a Capela da Rue du Bac celebra o jubileu das aparições de Nossa Senhora a Santa Catarina Labouré. Como melhor modo de associar esta revista e seus leitores a data tão significativa, estampamos a seguir um eloquente comentário de Dr. Plinio sobre aquelas visões de alcance inapreciável para todos os homens.

Quem visita a Capela da Rue du Bac, em Paris, onde Nossa Senhora apareceu a Santa Catarina Labouré e lhe pediu a cunhagem da Medalha Milagrosa, sente-se envolvido por uma intensa impressão de paz, de calma, de céus abertos, como se não existissem obstáculos entre a Terra e a feliz eternidade. No íntimo de sua alma, o fiel ouve a voz de Nossa Senhora, exorável, disposta a atender todos os nossos pedidos, com sua maternal benignidade transpondo distâncias incontáveis para se tornar acessível a nós. Tudo isso faz daquela capela um lugar de serenidade realmente privilegiado.

Serenidade, calma e paz autênticas, ou seja, toques de sobrenatural que afagam nossa alma com verdadeira unção, verdadeira consolação e verdadeira confiança, e nos infunde a plena certeza de que, em última análise, Nossa Senhora nos alcançará as graças tão desejadas por nós.

A época das aparições da Rue du Bac

As aparições da Santíssima Virgem se deram em 1830, sendo a mais importante delas no dia 27 de novembro, quando revelou a Santa Catarina os tesouros de dádivas celestiais destinados ao mundo com a difusão da Medalha Milagrosa.

Cumpre recordarmos que, naquela época, a par de um grande reflorescimento da prática da religião Católica, havia também fortes manifestações de laicismo e ateísmo hostis à Igreja, de maneira que um fosso abismal separava o catolicismo do anticlericalismo. Ecos dessa animosidade eu mesmo conheci, no Brasil dos anos 20. Portanto, quase um século depois das aparições da Rue du Bac.

Tão profundo era esse valo divisório entre as coisas da Igreja e as da sociedade civil que, ao se transpor os umbrais do ambiente profano e ingressar no religioso, era como se deixássemos um país para entrar em outro. Lembro-me de quando comparecia à bênção do Santíssimo Sacramento na Igreja do Coração de Jesus, após a qual, saindo do templo, observava o edifício daquilo que então era o internato do Liceu, desdobrado em duas alas em torno de todo o quarteirão.

As janelas dos andares inferiores permaneciam fechadas e protegidas por grades. Ao contrário daquelas dos andares superiores através das quais, no lado onde eu sabia situado o dormitório dos meninos, podia-se ver algumas luzes azuis acesas: sinal de que as crianças já dormiam. E o relógio da torre ainda não marcava nove horas da noite…

Recordo-me da impressão que causava em mim o entrar na sociedade profana — insisto, dos anos 20 — e perceber o contraste entre o coruscante, o assanhado, o divertido daquele mundo, e o dormitório extenso, onde um grande número de meninos repousava sob a supervisão de um padre pronto a acordar ao menor sinal de perturbação, para restabelecer a ordem e a tranqüilidade!

Encantava-me saber que aqueles meninos dormiam placidamente, aos cuidados de um sacerdote que representava ali a eterna tradição da Igreja ordenativa, moralizante, disciplinadora. Alegrava-me ver que, enquanto todos se achavam imersos no sono noturno, as luzinhas azuis simbolizavam a maternalidade da Igreja a envolver seus filhos em brumas amigas; a vigilância de quem sabe sorrir sem fechar os olhos, sempre ciente do que se passa. Tudo isso me dava a impressão de haver naquele ambiente uma austeridade, uma sacralidade, uma ordenação que o mundo fora não conhecia. Era outro universo.

Pois bem, numa atmosfera análoga a essa tiveram lugar, na Paris de 1830, as revelações de Nossa Senhora a Santa Catarina Labouré.

O sobrenatural se desenrola numa modesta capela

Era esta uma freira da congregação das Filhas da Caridade, fundada por Santa Luísa de Marillac e São Vicente de Paulo. Essas religiosas se distinguiram sempre por sua extrema e abnegada solicitude cristã, dedicando-se ao cuidado dos pobres, órfãos, e enfermos nos hospitais e Casas de Misericórdia. Até há pouco eram conhecidas pelo seu hábito característico: túnica escura com gola branca engomada, a cabeça adornada por uma touca bretã, estilizada pela inspiração e pelas mãos da Igreja. Essa cobertura se desdobrava em duas abas largas, lembrando vagamente as asas de uma gaivota em voo. Na cintura, como é natural nos hábitos religiosos, pendia um grande rosário.

Não tive contato assíduo com essas freiras, mas encontrei-me com muitas delas. Em geral pessoas robustas, fortes e prontas para o trabalho. Olhar límpido, reto, atitude despretensiosa de quem preferia passar desapercebida. Realizavam obras de misericórdia temporal como ocasião para obras de misericórdia espiritual. Ou seja, elas aproveitavam a ocasião de cuidar de um paciente terminal para trazer um padre junto a ele, para convidar uma criança a ir ao catecismo da paróquia, ou se encontravam uma pessoa desventurada na rua, procuravam ajudá-la em todo o necessário, etc. Enfim, faziam tudo quanto pudessem para atender aos infortúnios, as carências materiais e, sobretudo, as espirituais, nos mais variados ambientes por onde costumavam se infiltrar.

A elevação desse apostolado das Irmãs de Caridade de São Vicente de Paulo era tão grande, e as admiravam tanto por isso, que costumavam ser tidas como o próprio símbolo da religião numa de suas expressões mais belas e comovedoras.

O seu principal convento situa-se num antigo e aristocrático bairro da capital francesa, o Faubourg Saint-Germain, e se tornou conhecido pelo nome da rua em que foi edificado: Rue du Bac.

Devemos imaginar a cidade de Paris nos idos de 1830, bem menor e menos populosa do que é hoje, silenciosa, tranquila, ainda sem ruídos de motores e luzes de néon. Podemos pensar na rua calçada com pedras, sobre as quais, vez por outra, o eco das patas de um cavalo ou das rodas de uma carruagem interrompia a longa calada da noite. No dormitório das freiras de São Vicente, não havia luzinhas azuis, mas talvez alguns candeeiros acesos. Todas as religiosas repousam, entre elas Santa Catarina Labouré.

Nesse ambiente modesto, puro e elevado, completamente diverso do mundo exterior, o maravilhoso sobrenatural começa a se desenrolar.

Colóquios com a Rainha do Céu

A primeira aparição ocorreu na véspera da festa de São Vicente de Paulo, em 18 de julho de 1830, como que preparada por uma atitude da vidente repassada de ingenuidade, inocência e caráter filial muito bonitos. Ela ouvira no dia anterior uma exposição sobre a devoção a Nossa Senhora, e sentiu um ardente desejo de vê-La. E foi se deitar com o pensamento de que, naquela mesma noite, encontrar-se-ia com a Santíssima Virgem.

E foi o que aconteceu. Como nos relata a própria Santa Cataria Labouré, por volta das onze e meia da noite, ela ouve alguém lhe chamar. Corre a cortina de seu leito e vê um menino de 4 ou 5 anos que lhe diz: “Vinde à capela, a Santíssima Virgem vos espera”.

A santa demonstra um pouco de receio, temendo que as outras religiosas a surpreendessem fora da cama, mas o menino a tranquiliza, ela se veste e começa a segui-lo pelos corredores do convento. Detalhe curioso, registrado pela vidente que muito se admirou do fato: por todos os lugares onde passaram as candeias estavam acesas.

Ela entra na capela e sua surpresa é ainda maior ao notar todas as velas acendidas nos candelabros, como se estivessem preparados para uma Missa do Galo. O menino a conduz até o presbitério, ao lado da cadeira em que se sentava o vigário. Santa Catarina se ajoelhou, enquanto a criança permaneceu de pé. Ela, sempre com o receio de que alguma freira passasse por ali e os encontrasse, pedindo-lhe explicações que não saberia dar…

Afinal, o menino lhe advertiu: “Eis a Santíssima Virgem”. A vidente ouviu um “frou-frou”, um roçagar de vestido de seda, mas ainda não distinguia Nossa Senhora. Então o menino insistiu — já não com voz de criança, mas em tom vigoroso — que a Rainha do Céu estava presente. Nesse momento Santa Catarina viu a Mãe de Deus sentada na cadeira do vigário, deu um salto para junto d’Ela e, genuflexa, apoiou suas mãos nos joelhos de Maria.

Quer dizer, uma cena fabulosa, uma aparição cercada de afabilidade extraordinária. Compreende-se, pois, que Santa Catarina tenha registrado esse instante como o mais doce de sua vida, impossível de ser descrito em palavras. Recebeu ali diversos conselhos e orientações de Nossa Senhora, os quais preferiu manter em sigilo.

A Medalha Milagrosa

Podemos bem conceber como Santa Catarina se sentiu após esse encontro com Nossa Senhora, e como seu coração latejava de um intenso desejo de revê-La. Alguns meses depois, ela seria largamente atendida. O segundo e mais importante encontro se deu na tarde do sábado 27 de novembro de 1830. Assim o relata um cronista das diversas aparições de Maria:

“Na sua capela da Rue du Bac, as Filhas da Caridade — Irmãs e noviças — se reúnem para a meditação vespertina. Recolhimento e religioso silêncio. De repente, em meio à sua piedosa contemplação, Catarina Labouré julga ouvir o roçar de um vestido de seda… A Santíssima Virgem, ali!

“Qualquer pensamento é impossível diante da inconcebível beleza de Maria. Ela usa um vestido de seda alvíssima como a aurora. Da mesma cor é o véu que Lhe desce da cabeça até os pés. Estes repousam sobre volumoso globo, que parece fixo num ponto do espaço. As mãos, elevadas à altura do peito, sustentam graciosamente um outro globo, menor que o pedestal e encimado por uma cruz. A Virgem tem o olhar voltado para o céu. Seus lábios oram. Ela oferece o globo ao Mestre, seu Filho.

“De súbito o globo desaparece e as mãos permanecem estendidas. Os dedos se cobrem de anéis guarnecidos de cintilantes pedrarias, que emitem raios deslumbrantes para todos os lados. Mil fulgores preciosos se fundem num só brilho transcendente. Mil irradiações circundam a santa figura.

“A Virgem pousa os olhos sobre Catarina em contemplação, abismada num mundo de sensações, de sentimentos, de descobertas, de revelações inexprimíveis. No fundo de seu coração, a noviça ouve uma voz que lhe diz:

“— Este globo representa o mundo inteiro, e especialmente a França, e cada homem em particular.
“— A chuva de raios redobra em força, em magnificência.
“— Eis o símbolo das graças que Eu derramo sobre aqueles que mas pedem. As pedras que permanecem na sombra (dirá ainda, uma outra vez, a Santíssima Virgem) simbolizam as graças que se esquecem de me pedir…”

Segundo narração de Santa Catarina, formou‑se em torno de Nossa Senhora um quadro de forma ovalada, no alto do qual estavam escritas em letras de ouro as seguintes palavras: “Ó Maria concebida sem pecado, rogai por nós que recorremos a Vós” . E novamente ela ouviu uma voz que lhe mandava cunhar uma medalha conforme aquele modelo. E a promessa: Todos os que a usarem, trazendo-a ao pescoço, receberão grandes graças, que serão abundantes para quem a portar com confiança”.

Em seguida, diz a vidente, o quadro pareceu girar e ela viu o reverso da medalha: no centro, o monograma da Santíssima Virgem, composto pela letra “M” encimada por uma cruz, a qual tinha uma barra em sua base. Embaixo, os Corações de Jesus e de Maria, o primeiro coroado de espinhos, e o outro, transpassado por um gládio.

Era o desenho da Medalha Milagrosa, como esta seria amplamente conhecida e difundida pelo mundo inteiro, alcançando graças e favores celestiais para incontável número de pessoas, milagres de ordem física, como a cura de doenças, e também de ordem espiritual, reformas de vida e conversões das mais inesperadas.

Desígnios de alta misericórdia para o mundo

Por exemplo, célebre se tornou a conversão de um prelado apóstata, o arcebispo francês Mons. Duprat. Ele abandonou a Igreja Católica e se tornou secretário de finanças de outro famoso bispo renegado, Talleyrand.

Conta-se que Mons. Duprat, sabendo chegado aos seus últimos dias, relutava em se confessar e emendar. Algum zeloso parente ou conhecido, preocupado com a salvação eterna dele, prendeu a Medalha Milagrosa no travesseiro do arcebispo. Foi o bastante para que a graça o tocasse. Dias depois ele pedia que lhe trouxessem um padre: “Mudei de ideia, desejo me confessar”. O sacerdote se apresentou, e o filho pródigo fez as pazes com Deus, com a Igreja e com a sua consciência. Não se passou muito tempo, e morreu readmitido no seio da Esposa mística de Cristo.

Casos como esse se multiplicaram ao longo dos anos e ainda hoje se verificam pelo mundo afora. Assim como tantas outras formas de amparo e benefício oriundos do uso da Medalha.

Lembro-me, aliás, deste outro fato. Uma senhora da aristocracia francesa mantinha no salão nobre de sua residência, magnificamente decorado, um quadro com a Medalha Milagrosa, manchada e amassada no centro. Os visitantes que ela recebia em casa, estranhavam aquilo exposto com tanta evidência num recinto esplêndido, em meio a objetos de alta categoria, e perguntavam a razão disso. A senhora respondia:
“— Guardo esta medalha porque meu filho era um estroina, e estando num mau lugar, levou um tiro. A bala acertou diretamente na medalha, e em vez de perfurá-la, de modo inexplicável apenas a danificou, como para autenticar o fato extraordinário, e caiu no chão. Diante do prodígio, meu filho se converteu e hoje é um católico modelar. Eu desejo, então, que minhas visitas conheçam este favor recebido de Nossa Senhora e saibam agradecer. Por isso esta medalha está aqui.”

É simplesmente incontável o número de episódios semelhantes, onde foram obtidas graças preciosas através da Medalha Milagrosa. Motivo pelo qual ela é objeto de tanta devoção, tendo sido destinada por Maria Santíssima a ser um maravilhoso meio de se realizarem desígnios de sua alta misericórdia para o mundo.

Expressão do carinho materno de Maria

É interessante frisar, ainda, que essa particular proteção da Virgem Santíssima em relação a nós transparece muito na sua prerrogativa de Mãe da Divina Graça.

Quantos já não nos sentimos, ao aproximarmos de uma imagem sob essa invocação, recebidos por um sorriso d’Ela, envolvidos por uma espécie de doçura que nos prometia compaixão, pena, a convicção de sermos atendidos e favorecidos por um ato de inesgotável bondade?

É a certeza de que Nossa Senhora sempre se acha disposta a nos socorrer e amparar com sua clemência, seja em nossas carências materiais e físicas, seja marcadamente em nossas lacunas espirituais, ajudando-nos a vencer nossos defeitos, as tentações e o pecado. Portanto, Nossa Senhora das Graças podia se dizer Nossa Senhora da Misericórdia, que nunca, nunca, nunca nos deixará desamparados.

E creio jamais ser suficiente insistir nesta verdade: Mãe da Divina Graça significa a tesoureira de todas as graças de Deus. As dádivas celestiais constituem um tesouro inexaurível, posto nas mãos de Nossa Senhora e por Ela difundido àqueles que recorrem à sua intercessão.

Maria é a dispensadora de todas as graças e também a Mãe dos que Lhe suplicam favores. Mãe dos miseráveis, dos aflitos, daqueles que quase perderam a esperança, aos quais Ela reanima, e faz reacender em seus corações a chama da Fé.

Basta considerarmos uma imagem de Nossa Senhora das Graças para compreendermos o quanto esse título exprime o carinho materno de Maria em relação a nós. Acolhe-nos de braços abertos, o sorriso nos lábios, repassada de um convite amorável para nos aproximarmos e convivermos um pouco com Ela. Envolve-nos com uma afabilidade e uma promessa de perdão sem limites, insondável. E nos faz ouvir no fundo da alma a sua voz carinhosa: “Tendes a Mim, sou inteiramente sua. E por causa disso, todos os caminhos para o Céu lhe são franqueados…

Plinio Corrêa de Oliveira

Símbolo da Jerusalém Celeste

A catedral é figura da Cidade de Deus, da Jerusalém Celeste, imagem do Paraíso, como afirma a liturgia da sagração das igrejas.

As paredes laterais são símbolos do antigo e do novo testamento. Os pilares e as colunas são os Profetas e os Apóstolos que sustentam a abóbada, representação de Cristo, a sua chave.  As janelas translúcidas que nos separam da tempestade e derramam sobre nós a claridade, são os Doutores da Igreja. O portal é a entrada do Paraíso embelezada pelas imagens em pedra, pelos baixos relevos pintados e dourados e pelos suntuosos batentes de bronze.

A casa de Deus deve ser iluminada pelos raios do sol resplandecente da caridade como o próprio Paraíso, porque Deus é a luz, e a luz dá beleza às coisas. Assim também se deve aumentar a iluminação interior da catedral, abrindo janelas tão amplas quanto o permitam os vértices das grandes arcadas e as próprias abóbadas.

Belo, semeado de poesia, esse texto de um ótimo medievalista francês nos faz degustar, de modo intenso, a noção de símbolo.

Trata-se de considerar as magníficas catedrais góticas, não apenas como um recinto fechado onde se presta culto a Deus sem riscos de se expor às intempéries, mas, muito além desta finalidade prática e indispensável, como uma grandiosa imagem do Paraíso celestial. Algo que nos lembra a bem-aventurança eterna e dela nos oferece consoladora prelibação.  Desse modo, as catedrais são verdadeiras obras-primas de simbolismo, cada um de seus ricos aspectos encerrando significados e conceitos que nos remetem para as realidades do Céu.

Então, o templo majestoso e imenso é a figura do lugar onde Deus vive, cercado das almas dos justos. É a cidade do Altíssimo, a Jerusalém Celeste, como no Antigo Testamento a Jerusalém terrena foi a urbe santa, ela mesma representação da futura Igreja Católica, da Civilização Cristã, da sociedade temporal organizada de acordo com os princípios do Reino de Nosso Senhor Jesus Cristo.  De tudo isto a catedral é um extraordinário símbolo.

E os detalhes de sua construção acrescentam belezas e expressões diversas nessa simbologia. Por exemplo, a linda ideia de se ver as paredes laterais como evocações do Velho e do Novo Testamento, ou de admirar aquelas esguias e sólidas colunas como se fossem os severos Profetas da Antiga Lei e os compassivos Apóstolos da era cristã. Mais ainda. Contemplar a vastidão da elevada abóbada e pensar que lá está a chave da Igreja, Nosso Senhor Jesus Cristo, sobre o qual tudo repousa e em honra de quem tudo foi edificado!

O pórtico imponente recorda a entrada do Céu. São portas de bronze, de carvalho, entalhadas e lavradas com requintes de perfeição e candura, emolduradas por centenas de imagens de santos e figuras históricas dispostas em esplendorosa ordenação. Ao transpô-las, devemos nos lembrar de que um dia — pela infalível intercessão de Nossa Senhora — as portas da catedral celeste se abrirão para nós e penetraremos na glória de Deus, unindo-nos aos Anjos e aos bem-aventurados que ali nos precederam.

A nota de poesia é dada pela claridade que inunda o interior do templo através das amplas janelas translúcidas, pelas refulgências policromadas dos vitrais tocados de sol. São os Doutores da Igreja esplendendo sua sabedoria, são os raios da caridade com os quais se ilumina o próprio Paraíso.

Como Deus é a luz, convém que a catedral tenha luz, e a tenha no pleno jorro da fulguração do sol, e na aconchegante, espetacular matização dos vidros coloridos.

Toda a arquitetura do gótico se desenrolou à procura das janelas cada vez maiores, sem prejuízo da estabilidade do edifício, até chegar a uma Sainte-Chapelle de Paris, verdadeiro escrínio cujas paredes são vitrais… É uma caixa de cristal onde todas as cores de luz brincam e folgam, constituindo desenhos maravilhosos que nos lembram a luz eterna do Paraíso.

Assim, ao entrarmos numa catedral, levemos conosco esse pensamento: “Graças à misericórdia infinita de Deus e à insondável bondade de Maria, passarei um dia pelas portas do Céu; verei os Profetas, os Apóstolos e os Doutores, como vejo aqui estas colunas. Sobretudo, serei inundado pela luz divina, como agora me envolve essa luminosidade que, de todas as partes, invade o recinto sagrado”. E então a nossa presença na igreja aumentará em nós a alegria e a esperança dos grandes triunfos do Céu.

Quanto mais nos sentirmos opressos, perseguidos nesta Terra, tanto mais devemos nutrir essa nossa apetência pelo Paraíso, onde as misérias presentes se extinguem por completo, dando lugar apenas à perfeita e eterna felicidade, sem que nada a possa perturbar. Pois ali não teremos somente todas as alegrias possíveis, mas o fundamento de todos os gáudios — Deus Nosso Senhor e o olhar indizivelmente afável de sua Mãe Santíssima.

Plinio Corrêa de Oliveira

Revista Dr Plinio 80 (Novembro de 2004)

Cristo Rei

Nosso Senhor Jesus Cristo é Rei da Igreja. E, antes da Revolução Francesa, o Divino Redentor era considerado Rei também da sociedade civil; de tal modo que as leis da Igreja eram automaticamente leis do Estado. Há quase cinquenta anos, Dr. Plinio percebia as negações ou as tímidas afirmações da Realeza de Cristo. O que recomendava ele naquela ocasião?

 

A ideia da realeza de Nosso Senhor Jesus Cristo veio desde a vida terrena d’Ele mesmo; interrogado por Pilatos se era rei, Jesus disse: “Sim, Eu sou Rei” (Jo 18, 37).

Encontramos manifestações várias e títulos diversos de Cristo como Rei, já na Igreja primitiva. Temos até a figura do Cristo Pantocrator, ou seja, Cristo Rei, porque “Pantocrator” quer dizer Senhor de todas as coisas. Ele está sentado sobre um trono que é o arco-íris, o sinal da aliança de Deus com os homens. E do alto desse trono Ele governa todas as coisas: a Igreja gloriosa, a Igreja padecente e a Igreja militante, como o Rei esperado por todos os séculos, Nosso Senhor Jesus Cristo dominando tudo e Senhor de tudo.

Rei por direito de nascimento e por direito de conquista

Essa ideia de Cristo Rei envolve uma noção que é a seguinte: não só de todas as coisas, mas especialmente de todos os homens Nosso Senhor Jesus Cristo é Rei. E é Rei no sentido de que, enquanto Filho de Deus encarnado e nosso Redentor, Ele adquiriu um direito verdadeiro da realeza sobre nós. E esses dois títulos não se confundem um com o outro.

O primeiro título, poder-se-ia dizer, é por direito de nascimento. Porque há um princípio que estabelece o seguinte: na hierarquia dos seres, quando um deles é imensamente superior ao outro, adquire uma autoridade sobre esse outro. E com fundamento nisto Ele, que é homem verdadeiro, ligado por união hipostática à Segunda Pessoa da Santíssima Trindade, tem uma superioridade infinita sobre todos os seres do universo. E não só como Deus, mas na sua humanidade, Jesus é Rei de todos os homens porque é a cabeça do gênero humano, a mais alta criatura existente no gênero humano. Nosso Senhor é Rei do gênero humano pela união hipostática e na sua humanidade santíssima.

Ele é Rei também como Redentor, porque conquistou o gênero humano, sacrificou-se, se imolou na Cruz, e essa imolação salvou a humanidade do Inferno, abriu as portas do Céu para os homens. Com seu Sangue, Jesus conquistou a humanidade, adquiriu sobre ela um direito régio.

De maneira que a realeza de Cristo tanto pode ser contemplada meditando-se Nosso Senhor sobre um trono, quanto no alto da Cruz. Porque do alto da Cruz, por direito de conquista, Ele se tornou Rei de todo o gênero humano.

A realeza de Nosso Senhor na sociedade espiritual e temporal

Qual é a conclusão disto?

O gênero humano pode ser considerado como pertencendo a duas espécies de sociedades: a espiritual e a temporal. Nosso Senhor Jesus Cristo é Rei da sociedade espiritual, a Igreja Católica. Se o Papa reina na Igreja, é como Vigário de Cristo, quer dizer, como representante de Cristo. Porque o verdadeiro Rei da Igreja Católica, no sentido pleno da palavra, é Nosso Senhor Jesus Cristo.

A Igreja é uma instituição monárquica, antes de tudo porque ela tem um Rei, que é Nosso Senhor Jesus Cristo. O Papa, como Bispo de Roma, é indissolúvel e definitivamente o Vigário de Cristo, reina sempre em nome de Cristo, e o poder das chaves exercido pelo Papa é um poder que Cristo deu a seu Vigário. O verdadeiro Rei da Igreja Católica é Nosso Senhor Jesus Cristo.

Devemos analisar a realeza de Nosso Senhor Jesus Cristo sobre a sociedade temporal. A esse respeito, fazem-se as seguintes considerações sobre a separação entre a Igreja e o Estado que não são muito exatas:

A Igreja tem uma finalidade espiritual, o Estado uma finalidade temporal. A Igreja conduz os homens ao Paraíso, e o Estado mantém a vida terrena. A partir disso, fica-se com uma ideia de que Nosso Senhor Jesus Cristo é Rei da Igreja, mas que o Estado não tem verdadeiro Rei, e sobretudo os Estados católicos não devem reconhecer Cristo como Rei.

Esse princípio é profundamente falso. O Estado, enquanto Estado, tem Nosso Senhor Jesus Cristo como Rei. E o efeito concreto disto é a obrigação que tem o Estado de aplicar as leis de Nosso Senhor Jesus Cristo; e se não as aplica se coloca em estado de revolta contra o seu verdadeiro Rei.

E qual é a aplicação dessas leis de Nosso Senhor?

Antes de tudo, reconhecer a Igreja Católica como a única Igreja verdadeira e oficial; aplicar todas as leis da Igreja como sendo automaticamente leis do Estado. É o que se fazia antes da Revolução Francesa. De maneira tal que não era preciso que uma lei da Igreja fosse ratificada pelo rei do país, pelo Poder Público; entrava em vigor pelo simples fato de que a Igreja as tinha promulgado. As autoridades eclesiásticas eram objeto de continências e honras oficiais, porque eram autoridades públicas, e autoridades públicas porque autoridades da Igreja verdadeira do Deus verdadeiro que era Rei do Estado.

Toda a vida civil se organizava no terreno cultural, artístico, e em todos os aspectos, de acordo com a lei de Nosso Senhor Jesus Cristo; isto era uma aplicação do princípio de que Cristo é Rei da sociedade humana.

Verdadeiros soldados de Cristo Rei

Isto, que entre nós são noções tão familiares, se esquece, e de vez em quando é preciso lembrar porque tudo quanto se ouve não só tende a fazer esquecer essas verdades, mas até a negá-las. De maneira que ficamos habituados à ideia de que o Estado é leigo, de que por sua própria natureza nada tem a ver com religião e por causa disso ignora, desconhece Nosso Senhor Jesus Cristo.

Então qual é a razão de lembrar essas noções?

Uma coisa é ter na mente esses princípios teoricamente. Outra é ter disso um senso vivo e contínuo, como algo que está à flor da pele. De tal maneira que em todas as ocasiões da vida civil em que notarmos estar sendo negada a realeza de Cristo, isso deve nos causar dor, tristeza e indignação.

Esse laicismo que caminha para um positivo ateísmo em todas as coisas, deve nos ferir de forma a vivermos na sociedade de hoje num estado de exilados, como alguém que reside num lugar onde tudo está posto de cabeça para baixo, e vive num protesto interno e contínuo disto. É assim que por toda a parte anda o fiel vassalo, o fiel militante de Cristo Rei.

É só assim que nós podemos ser verdadeiros soldados de Cristo Rei. Não adianta ter na cabeça, no “mundo da lua”, uma porção de ideias de Cristo Rei, sem que a todo o momento não estejamos percebendo as negações, ou as palidíssimas e timidíssimas afirmações da Realeza de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Lembro-me de que, quando fui constituinte em 1934 — depois isto se repetiu nas outras constituições, com estes ou aqueles termos —, vi um exemplo claro disso no preâmbulo proposto por um deputado católico muito ardoroso e muito aplaudido: “O povo brasileiro, pondo sua confiança em Deus e constituído em assembleia soberana, resolve tal coisa.” Como quem dissesse: “Deus, você é um Guaçu(1) que está lá em cima e pode me estragar ou ajudar muito as coisas. Quero, portanto, que você seja um amigo. Mas “ex auctoritate propria” eu faço o que desejo. E ponho minha confiança para que você faça dar certo”.

No próprio instrumento em que se afirma confiar em Deus, está negada a Realeza de Deus. Isto é uma coisa que um católico possa ver sem amargura? Não pode. E quando ele vê sem amargura, não é um verdadeiro devoto de Cristo Rei.

O modo mais autêntico, elevado e sublime de realizar o Reino de Cristo

O carregar dia e noite, a todos os momentos, em todas as ocasiões, essa amargura, essa tristeza — mas tristeza militante! — de que a realeza de Nosso Senhor Jesus Cristo está sendo subestimada aqui, negada lá, injuriada acolá, isto nos deve caracterizar.

E na festa de Cristo Rei devemos ter muito em vista essas considerações para compreendermos bem qual é a formação que precisamos adquirir; devemos ter aqui a atitude e a postura de exilados.

E lembrar que, para além dessa tristeza, Nosso Senhor Jesus Cristo Rei tem uma promessa para nós: a realização do seu Reino do modo mais autêntico, mais elevado, mais sublime que se possa imaginar, que é por meio da Realeza de Maria Santíssima. É o Reinado de Nossa Senhora, que na fímbria do horizonte se anuncia na promessa de Fátima: “Por fim o meu Imaculado Coração triunfará”.

Então precisamos ter um horror da situação atual e um desejo ardente da situação para a qual estamos sendo solicitados, e que nos é dado como uma promessa. Este deve ser o nosso estado de espírito contínuo, em todas as ocasiões e em todos os momentos.

Ter isto bem em vista e pedir a Nossa Senhora a graça da presença contínua dessa ideia é algo que convém muito rogar em nossas orações a Cristo Rei.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 20/10/1964)

Revista Dr Plinio 176 (Novembro de 2012)

 

1) Do tupi-guarani: grande.