Maria fons

No hino “Flos virginum”, Nossa Senhora é chamada “Maria fons”. Ora, como se deve entender esta invocação? Em que sentido Ela é fonte?

Nossa Senhora é simbolizada por uma fonte encontrada por alguém que está vagueando pelo deserto, com sede.

Quer dizer, Ela é a fonte na qual podemos nos dessedentar.

Mas fonte de quê? Ela é a fonte de todas as graças, pois estas nos vêm de Nosso Senhor Jesus Cristo através d’Ela.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 18/8/1965)

Coração Sapiencial e Imaculado de Maria

A principal alegria de Nosso Senhor durante a vida terrena estava numa lâmpada acesa na casa de Nazaré: o Coração Sapiencial e Imaculado de Maria, cujo amor excedia o de todos os homens que houve, há e haverá até o fim do mundo.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 7/4/1984)

Chenonceaux: um castelo-cisne

Harmonia, equilíbrio e elegância feita de leveza são as características ressaltadas por Dr. Plinio, ao comentar um dos mais célebres castelos do Loire.

 

Creio que o verdadeiro modo de projetar Chenonceaux numa tela, seria o seguinte: não fazer uma longa “statio”(1) olhando para a foto dele, porque todas as emoções desgastam — sabemos bem disso —, mas correr uma cortina e, de repente, levantá-la.

Assim, haveria um primeiro inebriamento e uma espécie de entusiasmo — palavra de origem grega, que significa “estar cheio de Deus” —, uma sensação de algo extraordinário e maravilhoso!

Vejamos qual a razão do feérico que esse castelo apresenta. Imaginemos que ao invés desse rio, houvesse junto dele uma estrada poeirenta, por onde transitassem carroças e automóveis, teríamos a sensação de que o edifício perderia, pelo menos, cinqüenta por cento de sua beleza.

Além de ser muito bonita e elegante, a construção explora particularmente o seguinte princípio: todas as coisas que se refletem na água ganham em pulcritude.

Embora a teoria grega dos quatro elementos não possua nenhum valor científico, ela, por assim dizer, tem um significado sensitivo: de fato, para se tocar e ver há quatro elementos: o ar, a terra, o fogo e a água.

Dentre os quatro elementos, a água tem algo de especial: tudo quanto se “debruça” sobre ela, reflete, e tudo quanto nela se reflete toma um caráter de beleza celeste. Uma beleza quase irreal, de sonho, de mundo das maravilhas, para dizer tudo numa palavra só, de paraíso perdido.

Tem-se uma sensação paradisíaca vendo as águas do rio Cher correrem, tão plácidas, cristalinas, marcadas pelo azul do céu, e a imagem do castelo que nelas se reflete. Percebe-se que a sua maior beleza provém da ideia de construí-lo sobre uma ponte, de maneira tal que ele, por assim dizer, está como um cisne na superfície da água.

Pode-se dizer que é um castelo-cisne. Está “flutuando” com leveza, parece uma fantasia, algo de irreal, um sonho…

Imaginemos numa bonita noite de luar, o castelo todo iluminado, as janelas abertas, e em seu interior havendo uma festa. Os risos, a música, os perfumes, os luzir das lâmpadas refletindo no rio que corre, transmitem a sensação de uma espécie de nau na qual se leva uma vida de elevação, de requinte, de distinção, de nobreza, de grande classe; em suma, uma vida totalmente diferente da contemporânea.

Se há algo contrário a um arranha-céus “moloch”, a uma construção escarrapachada, ao cimento armado, é exatamente esse castelo, que parece não ter base e flutuar.

Vemos quanta harmonia o espírito francês introduziu nesse conjunto, composto de três elementos distintos.

O primeiro é a ponte, sobre a qual foi construído. Há uma parte maciça, que contrasta com outra muito leve; se apenas existisse a primeira, o edifício perderia a graça. A parte mais “leve” ainda é medieval, como se nota pelas torrezinhas agudas. Trata-se de um período de transição entre a Renascença e a Idade Média; as pequenas torres que flanqueiam o castelo dão ideia de uma velha fortificação.

Percebe-se o contraste entre os arcos diáfanos leves de um lado, e a base pesada onde se tem a impressão de que passa uma água que sai das masmorras e banha prisioneiros causando-lhes tormentos, devido à umidade, com lagartixas, rãs, mofo; é uma espécie de reino tenebroso. As janelinhas da parte inferior parecem dar acesso a horríveis porões ou cárceres.

Esse misto de firmeza e estabilidade com a delicadeza, forma um contraste harmônico de qualidades opostas que acentuam o encanto que há no castelo.

A chaminé tem um papel extraordinário; é uma espécie de ponto final vivo e agudo para dar a entender que o altaneiro castelo acabou. Imaginemo-lo sem ela…

Chenonceaux se prolonga por uma ponte levadiça que conduz à outra margem. E, como uma espécie de último eco do castelo, um torreão, que deve ser o resto de uma velha fortaleza medieval, sólido, atarracado, grande e levando a sensação de estabilidade ao último ponto.

Então, estabilidade máxima, estabilidade média, leveza diáfana.

São os três elementos sucessivos que dão encanto ao castelo e explicam sua beleza.

Imaginemos que não houvesse essa torre, faltaria algo que é imponderável. Ficaria leve demais, sem graça.

Aqui se percebe o espírito de medida do francês. Todo mundo costuma dizer que esse espírito consiste na simetria. Na verdade, porém, a simetria é apenas um dos modos pelos quais os franceses externam sua capacidade de medida. Nesse castelo vemos outro aspecto da medida: leveza e estabilidade.

Há ainda outro contraste: junto à parte, que bem pode ser uma masmorra ou um arquivo, encontra-se um jardim esplêndido. É um quadrilátero com desenhos em vegetação, lindíssimos e grama esmeraldina própria da Europa.

Depois de uma interrupção se vê, mais ao longe, outro jardim, penteado de tal maneira que não poderia a natureza ser mais arranjada e governada do que está ali. Em compensação, do outro lado existem os encantos de uma arborização puramente silvestre.

Suponhamos que nesses locais não houvesse mato, mas grama. Perder-se-ia o panorama. Quer dizer, tudo que parece espontâneo foi estudado com uma sagacidade extraordinária para um efeito de conjunto. Porém, com uma tal perfeição que a noção de harmonia nasce sem que a maior parte das pessoas saiba dizer de onde ela surgiu.

O bonito da harmonia está em que não se consiga precisar exatamente no que ela consiste. E é preciso muita atenção e explicitação para se definir onde a harmonia se encontra.

Nesse castelo há uma sinfonia de harmonia feita de um conjunto de coisas que produzem um primeiro entusiasmo; mas depois resistem a uma demorada visão, porque sua análise satisfaz o espírito.

Não é uma sensação irracional, mas sim de acordo com a razão, repentinamente satisfeita por algo de ótimo e que repercute nos sentidos.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência  em 2/1/1969).

1) Período preparatório

 

Solidão e convívio

Quando todas as relações sociais se impregnam do verdadeiro espírito católico, o homem nas suas solidões é introduzido no convívio humano de um modo reto, proporcionado, amoroso; dessa sociedade evola-se o bom aroma de Nosso Senhor Jesus Cristo.

 

Embora o homem seja um ser fundamentalmente sociável, por sua natureza, nas profundidades de si mesmo ele pensa, sente e elucubra só, ou seja, tem uma vida de solidão. Essa solidão é para ele, ao mesmo tempo, sumamente aprazível, mas em algo penosa, porque sente certa insegurança perguntando-se a si próprio — não é uma pergunta que ele se faça explicitamente — se o consenso universal está de acordo com o pensamento dele. Isso porque ele é levado a achar que o consenso universal é acertado.

Segurança e insegurança decorrentes do instinto de sociabilidade

Por exemplo: gostar muito de música. Se for um homem muito cauto, ele se perguntará se o seu gosto está na linha do equilíbrio humano verdadeiramente. Ele apreciará ver que outros arqui-gostam de música, tanto quanto ele. Esta noção de que há outros com ele dá-lhe uma espécie de segurança naquilo para onde ele ruma.

Por outro lado, essa segurança compensa de algum modo o instinto de sociabilidade que fica chocado por não ter essa forma de apoio. Ademais, ele percebe que no seu isolamento não é suficiente para abarcar tema nenhum. E, portanto, o próprio abranger global de um assunto não é praticável sem essa comunicação.

Mais ainda: quando se tratam de altas cogitações, o homem nota que aquilo que ele cogita segundo a ordem do universo mereceria ter outros que também pensassem. E que aquilo que ele sozinho estima fica meio depreciado. Há uma violação da ordem do universo que só ele admirará.

Assim, por exemplo, se um homem se visse o único admirador do Monte Saint-Michel na Terra, além de ter a insegurança quanto ao seu próprio bom senso, e da necessidade de outras repercussões para compreender bem o monte, ele teria uma espécie de frustração de notar que o monte não se fez venerar como deveria. E como aquele monte representa para ele um absoluto, seria um pouco como se o absoluto se tivesse deixado relativizar. E daí uma frustração perturbada que atinge a alma dele no fundo.

Se um homem, no fim do mundo, chegasse à conclusão de que o Monte Saint-Michel não tem mais condições de se fazer venerar pelos homens — não porque tivesse perdido a beleza, mas porque a humanidade mudou irreversivelmente —, se esse homem tivesse um senso axiológico(1) reto, fosse inocente, concluiria: “Vai acabar o mundo”.

Contudo, se for alguém sem um senso do ser reto, máxime se pertencer a uma religião ou corrente filosófica que não lhe tenha dado o ensinamento a respeito do fim do mundo, ele pensará que o mundo vai rolar eternamente, e nessa pessoa entrará um sentimento contra o Monte Saint-Michel, como quem diz: “Embora eu não saiba e não consiga ver, há em ti, ó Monte Saint-Michel, alguma coisa falha que não percebo”.

Um dos prazeres mais prenunciativos do Céu

Poder-se-ia perguntar: Por que o ressentimento não se volta contra os outros?

Pela ideia de que o senso universal não pode estar errado. E nesse caso o senso universal venceu.

Isso por que essa pessoa não está inteiramente convencida do absoluto. Seria alguém não compenetrado da ideia de que a opinião pública é versátil, falível. E há muita gente com mentalidade assim.

Se formos nos aprofundar no tema do convívio, notaremos que temos uma tendência a achar que as ideias ao encalço das quais nós caminhamos devem simbolizar-se de um modo excelente em algumas tantas pessoas. E descobrir as pessoas-símbolos de nossas ideias é o grande encontro da vida.

Isso constitui um dos prazeres mais internos que o homem possa ter na vida, realmente mais prenunciativos do Céu; é cercar-se de condições por onde essas várias formas de isolamento sejam harmonicamente rompidas. Isso vale muito mais do que ter um automóvel, um barco etc. É a busca do absoluto, da verdade e do bem, em função também do instinto de sociabilidade.

Compreendemos, assim, o caráter desinteressado do teor das relações no Reino de Maria. Não é, portanto, um relacionamento para fazer carreira, para arranjar um bom negócio, ou para qualquer outro interesse. É uma relação boa para conduzir a estados de alma assim. E que devem dar, por causa disso, também numa coisa inerente à natureza humana: faz parte do instinto de sociabilidade querer ser amado. O ser humano deseja que aquilo que o rodeie tenha um tipo de compreensão dele, por onde, entendido como ele é, nas suas retidões, seja querido como deve ser.

Quando a vida espiritual de uma sociedade é bem organizada, e todos em geral vivem essa vida, as relações naturais das pessoas — o ambiente familiar, a escola, a paróquia que elas frequentam devem oferecer-lhes, a vários títulos, jogos mais ou menos completos de relacionamentos assim.

Analogia entre as muralhas das cidades medievais e o relacionamento humano

Certos aspectos retratados em pinturas, iluminuras representando as sociedades medievais, cidades cercadas pelos próprios muros e com casas umas junto às outras, me dão uma ideia deste relacionamento. Eu sei que aquele muro tem como razão de ser o adversário que vai chegar. Mas percebe-se que ali se levava uma vida tão aconchegada, que se tem a impressão de que a muralha é uma condição para o aconchego de todas essas solidões bem ordenadas ali dentro, e que davam uma organicidade à vida, que era um motor, ou o próprio motor do resto da organicidade. Por isso também a destruição das muralhas traz-me uma dupla impressão: de um lado, o advento da era do otimismo em que tudo se resolveu, não vai mais haver dramas, as cidades não precisam de muralha; de outro lado, a impressão de uma cidade que se dispersa afetivamente, perde essa proximidade de um com o outro e se desconjunta, e a vida de individualismo começa.

Tudo tem que ser concebido a partir de pessoas que se relacionam desse modo.

Assim como há um perfume que se evola do turíbulo, quando falamos de Cristandade sentimos também um perfume que provém fundamentalmente deste relacionamento. Quer dizer, quando todas as relações sociais se impregnam disso, tomam o homem nas suas solidões, introduzem-no assim na sociabilidade e o instalam dentro do convívio humano de um modo reto, proporcionado, amoroso, evola-se, a meu ver, o bom aroma de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Uma coisa fantástica para mim é constatar como, ao considerar Nosso Senhor Jesus Cristo e tudo quanto Ele disse e fez, a pessoa se sente atendida neste relacionamento de todos os modos, formas e graças possíveis. Quer dizer, é um dos traços que nos fazem sentir na presença d’Ele mais “em casa” do que diante daquilo que nos for mais chegado.

Então, a Cristandade, antes de ser uma federação, uma união, uma coligação de povos para expandir a Fé, redigir os estatutos para uma mesma lei, originariamente era uma sociedade da qual se evolava esse perfume sem o qual não adianta falar em Civilização Cristã.

Entretanto, há nisso uma determinada ordenação, porque o homem bem constituído, embora seja sequioso de romper o seu isolamento, é sedento, sobretudo, de não destruir as muralhas e não se perder no meio da sociedade. Ele quer ser inteiramente ele mesmo, com sua legítima individualidade.

“Élans” de alma representados na arquitetura

A arquitetura medieval, elaborada por intenções de caráter estratégico, tático e econômico, tem esses “élans” de alma que representam o contrário harmônico do que estou dizendo.

Por exemplo, um castelo-fortaleza com a casa do senhor feudal. A certa altura encontra-se o “donjon”. Na muralha, de vez em quando, se erguem torres também. O “donjon” se levanta, mas há outras torres que não são “donjons”, nem estão nas muralhas. De cá, de lá, de acolá, erguem-se como uma espécie de desafio de torres que querem ir para o céu.

A torre representa, em relação ao corpo do castelo, algo como é a alma quando ela se destaca para cima, de dentro da coletividade, onde ela está perfeitamente bem instalada. Ela por alguns lados tem a necessidade de subir sozinha. Este isolamento não é uma ruptura do convívio, mas quase um produto deste. Está em harmonia com o convívio.

No “donjon” há algo que fala disso ainda mais: é um torreãozinho suspenso do lado de fora. Fica um encanto! É como quem diz: “Em relação a esse castelo para o qual fui feito, sem o qual não existo e em função do qual me explico, há certos lados de minha alma que me levam a me isolar legitimamente.”

Não se trata de ser inimigo do pátio, onde está a entrada da casa do castelão, um homem pregando a ferradura do cavalo e uma mulher lavando roupa, e onde se vê o vigário entrando na capela. Não é isso! É amar a harmonia dessas coisas posta por Deus.

Creio que tudo quanto falei da sociabilidade do homem ficaria meio adulterado se eu não fizesse esta ressalva. É preciso ter esse equilíbrio, e ao mesmo tempo entender que a guarita e a torre rompidas com o castelo viram prisões, mas que o castelo concebido como uma mera aldeia super-fortificada por construções horizontais atrás de muralhas, não corresponde ao instinto de sociabilidade bem ordenado.

Não obstante, há um elemento nas construções mais recentes que dá uma impressão parecida com a da guarita: em certas casas há mansarda na qual se abre de repente uma janela e há um quarto dentro da mansarda, com uma espécie de autonomia dentro da casa, onde quem mora pode levar a sua própria vidinha, entretanto, muito ligado à casa. Ali há uma condição que simboliza esse desejo da alma de ser só ela mesma, onde existe uma solidão bendita.

Na Roma antiga há umas coisas assim pitorescas. Umas casas, mas leprosas, sobre as quais faltou espaço para mais dois ou três “bambini” que nasceram. Então, construíram em cima uma casa de pedra que pode datar dos romanos, mas junto a um muro que talvez tenha pertencido a um palácio imperial. Puseram em cima um andar de madeira e, para aproveitá-lo melhor, fizeram uma projeção sobre a rua, apoiada em duas vigas aparentes.

Gáudios do convívio e do isolamento

Uma manifestação muito curiosa, pitoresca, desses vários estados de alma é a existência de frisas e camarotes nos teatros antigos. O que faz para a audição da peça aquele biombozinho à altura da cintura de um homem, que separa uma família da outra? Se em vez daquilo houvesse um cordão de seda, ou não houvesse nada não seria a mesma coisa? Aquilo indica uma vida própria dentro da vida geral. A família está contente de estar com todos, mas ela tem seu espaço.

Todos esses gáudios juntos, do isolamento e do convívio, nós teremos no Céu. Nas nossas relações com Deus somos, ao mesmo tempo, elementos vivos desse imenso castelo que é o Céu, mas somos torre, e até guarita, em alguma coisa de confidencial entre Deus e nós e que só nós sabemos, e é o ponto da requintada intimidade com Ele, e que não podemos contar aos outros.

Se uma pessoa, voltando-se a Nosso Senhor Jesus Cristo — representado nas boas imagens como, por exemplo, a de Turim — se ajoelhasse diante daquele Varão tão inflexível e tão soberano que está no Sacro Volto e dissesse o que tem de mais “guarita” na alma, tenho certeza de que seria compreendida por Ele a cem por cento, como ninguém, e encontraria n’Ele o Arquétipo daquele aspecto de sua alma.                v

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 12/3/1982)
Revista Dr Plinio 219 (Junho de 2016)

 

1) Termo derivado de “Axiologia”: ramo da Filosofia que estuda os “valores”, isto é, os motivos e as aspirações superiores e universais do homem, as condições e razões que dão rumo à sua existência, para os quais ele tende por insuprimível impulso da sua natureza.

 

 

Nobreza, severidade e dignidade

A praça onde se encontra o Paço Municipal de Siena — juntamente com a Praça de São Marcos, a de São Pedro e a Place Vendôme — é uma das mais bonitas da Cristandade.

 

Um dos prédios mais bonitos que existe é o Paço Municipal da cidade de Siena, situada a uma distância considerável de Orvieto. Há ali uma grande praça pública e veem-se uns prédios de construção mais ou menos antiga. A praça no seu conjunto forma uma moldura adequada para o Paço Municipal. O prédio merece uma análise.

Equilíbrio arquitetônico

O edifício se compõe de três corpos diferentes: um principal, que é o prédio propriamente dito, composto por sua vez de uma parte central guarnecida de uma de torre, com um círculo bem no meio. Em cima, ameias, e nos dois extremos da fachada, como que dois torreõezinhos vazados.

Como essa construção data aproximadamente do fim da Idade Média, e as guerras entre senhores feudais, entre cidades, estavam terminando, o aspecto de castelo fortificado que o Paço Municipal conserva é mais uma reminiscência artística do que uma necessidade tática para defender o paço. As ameias continuam no alto, e terminam agradavelmente o prédio.

Há um equilíbrio arquitetônico muito bonito entre os dois lados, os dois corpos de edifício mais abaixo e, no centro, um mais alto onde se encontram os tais torreõezinhos.

A torre grande forma praticamente um edifício separado do Paço Municipal e possui um relógio, o qual, para o tempo em que foi instalado, representava um grande progresso. No alto está o campanário dos sinos do Paço Municipal, por meio dos quais se davam os avisos aos habitantes da cidade, em caso de perigo, de incêndio, etc.

Em baixo, encontramos uma espécie de tribuna de mármore branco encostada na torre, mas não constitui um só todo com a torre. É também uma beleza!

Esses três elementos juntos formam uma verdadeira maravilha.

Nessa praça realiza-se a famosa festa do Pálio de Siena, que atrai turistas do mundo inteiro. Vários bairros da cidade, denominados “contradas”, comparecem a cada ano com seus trajes, bandeiras e hinos característicos, e realizam uma corrida de cavalos em honra de Nossa Senhora, em meio a uma festa tão fabulosa que todas as janelas em torno da praça são alugadas a um preço enorme, e com muita antecedência.

Este é um dos aspectos dessa praça que faz dela, junto com a Praça de São Marcos, a de São Pedro e a Place Vendôme de Paris, uma das mais bonitas da Cristandade.

Severidade e dignidade do Palácio

Mas o que é muito menos conhecido e perfeitamente notável é a parte interior do edifício municipal, o qual é um palácio com lindas ogivas e salas com alguma coisa ainda do arranjo medieval. De maneira que se pode saborear com toda a intensidade o que seria um palácio medieval no período em que a Idade Média estava caminhando do meio para o fim.

Vejam a nobreza — eu quase diria a severidade e a dignidade — desse prédio, curiosamente côncavo.

Notem na parte alta da torre o mármore branco próprio à região, como é bonito! Por outro lado, como essas reminiscências de ameias e de contrafortes para escorar as ameias tornam bonita a cena do campanário. No alto encontramos ainda o local para pendurar os sinos, que tocavam para dar avisos à cidade.

No interior do Paço Municipal, o único objeto moderno é o lustre com lâmpadas elétricas encarapitadas ali. Percebe-se a indústria do latão e do bronze do século XIX, com muito menos nobreza do que as tochas que na Idade Média se colocavam. O resto é estritamente medieval e muito bem conservado, com chão encerado de modo exímio e as pinturas das paredes muito bem conservadas também.

Percebe-se a riqueza do ambiente. Essa impressão de fausto é causada, por exemplo, pelas pinturas. É de notar também a grossura das paredes. Basta percorrer com o olhar as pilastras que separam os arcos para ver como as paredes são grossas e como todo o edifício é sólido. Isso corresponde, até certo ponto, à ideia de edifício-fortaleza, por causa da guerra urbana. Pode-se imaginar o esplendor de uma festa noturna dentro de uma sala dessas…

Há ali uma capela separada do restante da sala por um gradeado lindíssimo. Nas paredes, belas pinturas de cunho religioso, muito adequadas à capela. Depois, por outro lado, a sala se prolonga para outros fins.

No pátio interno do Paço Municipal vemos as lindas ogivas e bandeiras colocadas em um dos corpos de edifício. Já o outro corpo de edifício mais adiante é digno, mas menos bonito e mais recente, e também está adornado por alguns estandartes.

A catedral e as residências fortificadas

A Catedral de Siena é lindíssima, construída segundo a mesma técnica da matriz de Orvieto. Nela encontramos lindos mosaicos, por exemplo, nos tímpanos das portas, esculturas, e a torre listrada de mármore branco de acordo com o estilo existente em Florença e em outras cidades mais ou menos dessa região.

Em certas igrejas antigas, a pia batismal ficava colocada num apêndice do edifício sagrado. É o caso da Catedral de Siena.

Outro aspecto interessante é o púlpito, inteiramente destacado de qualquer coluna ou parede, e amplo, possibilitando ao pregador mover-se em todas as direções. Havia para isso uma razão prática: essas igrejas eram muito grandes e se enchiam de fiéis inteiramente. E não havia luto-falantes e coisas desse gênero. Então, o pregador tinha que se colocar em posições diversas no púlpito para fazer ouvir sua pregação ora para um lado, ora para outro, evitando desfavorecer excessivamente uma parte do público que estava na igreja.

Em Siena veem-se prédios antigos que, embora não sendo palácios, possuem ameias. Não se trata apenas de uma reminiscência da Idade Média. As lutas de cidade com cidade tinham cessado, mas as querelas entre famílias na mesma cidade ainda existiam. Então eram lutas de casa contra casa. Por isso, às vezes, as residências eram fortificadas.

Em muitas casas encontramos lindas janelas medievais, junto às quais são colocadas, por vezes, bandeiras, todas muito originais. Quiçá são as bandeiras das tais “contradas” que ali permanecem até o momento de serem entregues aos que participam daquele espetáculo.

As ruas da cidade são sempre pitorescas. São as antigas ruas da velha Itália.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 17/11/1988)

Revista Dr Plinio 219 (Junho de 2016)

 

São Guilherme: A beleza dos extremos harmônicos

Comentando a vida de São Guilherme, Dr. Plinio aponta o sublime modo de proceder da Igreja, encaminhando a sociedade e as almas por um determinado sentido, enquanto a algumas almas eleitas indica o rumo oposto, obtendo assim o equilíbrio e a harmonia social.

 

Gostaria de comentar uma ficha biográfica tirada do livro “La Vie des Saints”, de autoria de Daras.

São Guilherme nasceu no ano de 1085, numa cidade do Piemonte. Seus pais eram nobres e ricos.

Muito jovem ainda, decidido a viver para Deus, fez uma peregrinação a Roma, retirando-se depois a um monte abrupto e elevado, chamado Virgiliano, para lá viver como solitário.

Guilherme reuniu discípulos e ergueu no local um mosteiro e uma igreja a Nossa Senhora. O santuário deu um novo nome à montanha: o Monte da Virgem.

Um dia, os monges indispuseram-se contra seu superior por causa de sua liberalidade para com os pobres.

Guilherme não deixou de orar por eles. Fundou outra casa e visitou o reino de Nápoles, onde aconselhou sabiamente o soberano. Perto de morrer, voltou à sua primeira fundação, na qual encontrou grande disciplina e paz, devido, supõe-se, às suas infatigáveis preces.

Morreu no dia 25 de junho de 1142, em Guilhemeto. A Congregação chamada do Monte da Virgem não existe mais. Porém, o mosteiro não desapareceu. Pertence à reforma de Nossa Senhora do Monte Cassino. Os religiosos usam o hábito branco de São Guilherme para lembrar a sua união com esse grande santo.

A grande atividade da Idade Média

Esta ficha é muito bonita. Sobretudo quando vista em seu contexto, nela se notam admiráveis harmonias. Recordemos os tempos da Idade Média, onde esse santo constituiu seu mosteiro e onde levou a vida que passo a comentar.

A Idade Média, contrariamente ao que muitos imaginam, tinha uma vida de atividade intensa. Tal atividade era sobretudo agrícola, pois, apesar de o Império Romano ter conseguido aproveitar agricolamente boa parte de seu próprio território, restando somente algumas partes incultas devido à insuficiência de população, quando o Império foi invadido pelos bárbaros quase toda a agricultura sofreu grande ruína, a ponto de só restar o suficiente para manter miseravelmente a população local. Por outro lado, havia a parte selvagem e bárbara da Europa para ser cultivada.

Por isso, a atividade agrícola na Idade Média precisou ser muito intensa, e o foi de tal maneira, que de uma ponta a outra da Europa havia plantações, as quais se estendiam até mesmo pela Rússia, Suécia, Noruega, Dinamarca, Norte das Ilhas Britânicas, e outras regiões de cuja existência os romanos nem sequer tinham noção.

Naturalmente, a agricultura trouxe consigo o comércio. A abundância das plantações traz consigo a exportação e a permuta de seus frutos com outros artigos. Assim, iniciou-se também uma indústria caseira, a qual se transformou mais tarde numa indústria verdadeira, dotada de estabelecimentos especiais, desligados da atmosfera doméstica.

Abriam-se, então, estradas, iniciava-se uma organização à maneira de polícia, como os cavaleiros andantes e outras forças locais, as quais se encarregavam de manter a segurança das vias, impedindo roubos e assassinatos. Os medievais viajavam muito. Para só analisar as peregrinações que então se faziam, consideremos o seguinte:

De toda a Europa, peregrinos acorriam a Santiago de Compostela a ponto de, em certas épocas do ano, alguns trechos tornavam-se verdadeiras ruas, devido à intensidade do tráfego.

De outro lado, havia na Idade Média a atividade intelectual, da qual muito já se conhece. Mas havia também a atividade guerreira, sumamente glorificada por alguns historiadores, do ponto de vista das Cruzadas, mas tão denegrida e exagerada por outros no que diz respeito a guerras domésticas entre famílias, casas e feudos.

Isso tudo forma a verdadeira imagem da Idade Média: uma época borbulhante de vida.

A Igreja, centro e ponto de equilíbrio da Idade Média

Na raiz dessa vida estava a Igreja, enquanto fonte de toda harmonia e perfeição. Seu modo de proceder consistia em impulsionar a sociedade em determinada direção, o que fazia com tanta serenidade, sabedoria e naturalidade, que poderia até mesmo causar a impressão de irrefletida. Contudo, era ainda capaz de, ao mesmo tempo, incentivar alguns a seguirem o rumo extremamente oposto dos demais, conservando assim a harmonia do corpo social.

Um claro exemplo disso encontra-se no fato da Igreja ter estimulado extraordinariamente o desenvolvimento intelectual na Idade Média, ao mesmo tempo que impulsionava vigorosamente o trabalho manual, o extremo harmônico daquele.

Assim, toda a movimentação do corpo social na Idade Média era largamente estimulada pela Igreja; mas também, Ela estava constantemente suscitando a formação de grandes famílias de almas, as quais procuravam retirar-se a lugares ermos, a fim de viverem no completo isolamento.

A Igreja inspirava algumas almas a se afastarem inteiramente do convívio humano, vivendo a sós. Desta forma, perpetuava-se na sociedade o hermetismo absoluto, surgido na antiguidade e mantido, de certa forma, até os dias atuais.

Era grande o contraste entre o borbulhar de vitalidade que havia na sociedade medieval, e a vida tranquila, serena e meditativa de um número impressionante de eremitas, os quais abandonando tudo, iam viver em lugares distantes, na exclusiva consideração das coisas de Deus enquanto Motor imóvel, da eternidade e de outros assuntos cuja cogitação é geralmente evitada pela superficialidade de espírito de muitos homens.

Desta forma, como fruto da verdadeira Igreja, constituiu-se o ponto de equilíbrio da sociedade medieval, bem como de cada alma individualmente.

Pelo contrário, a atitude de uma igreja falsa seria a de estimular exclusivamente o hermetismo, ou a atividade, causando assim a desestabilização.

Do auge da atividade ao máximo recolhimento

São Guilherme é um característico exemplo deste modo de proceder da Igreja, enquanto propulsora dos contrários harmônicos. Ele, por sua condição de nobre, era naturalmente destinado a uma vida de guerra, de corte, de governo e de movimento. No entanto, com o consentimento de seus pais, ele abandonou tudo e se retirou para um lugar ermo e solitário a fim de glorificar Nossa Senhora. Para ter garantia de não ser importunado por ninguém, dirigiu-se a uma alta e fria montanha, onde pretendia levar vida de penitência. Porém, é admirável verificar como as almas que se isolam por amor a Deus, acabam tendo muito mais poder de atração.

Assim, como tantas vezes aconteceu ao longo da História da Igreja, em torno dos eremitas se constituem comunidades, a ponto de, muitas vezes, aqueles que tinham deixado tudo para viver isolados acabam por se transformar em cenobitas, levando vida comunitária.

Tal foi o que se deu com São Guilherme, cujo exemplo atraiu muitos outros.

Certamente, muitas pessoas passavam aos pés daquela montanha: cavaleiros, estudantes que caminhavam conversando, rindo e cantando, peregrinos entoando canções sacras. Pode-se supor que no alto do monte houvesse um cruzeiro junto ao qual se encontrava a choupanazinha de São Guilherme.

Os que por lá passavam, inevitavelmente, deviam procurar saber quem vivia no cume daquela montanha, sendo-lhes respondido tratar-se de Guilherme, um nobre, que deixou tudo para viver em oração.

Com isso, cada vez mais pessoas desejavam poder um dia subir aquela escarpada montanha a fim de conhecer o nobre Guilherme.

Além disso, deviam circular notícias de que alguns, estando em dificuldades, foram ter com Guilherme, e este rezando por eles obteve-lhes imediata solução.

Assim crescia o número de pessoas que subiam ao monte para rezar. Em baixo havia o bulício próprio às estradas medievais, enquanto em cima se gozava da quietude e da serenidade da companhia de Guilherme.

Ao longe, talvez alguns permanecessem contemplando São Guilherme rezar ou preparar lenha para fazer sua refeição, após a qual começa a varrer sua pobre habitação. Tudo isso feito de modo tão direito, sábio, calmo, piedoso e composto, que devia dar às pessoas uma indizível paz, ânimo e arrojo interior.

Aprendendo pela contemplação

Conta-se a respeito do Bem-aventurado Miguel Rua, segundo Superior Geral dos salesianos, sucedendo a São João Bosco, que sendo ainda seminarista, este frequentemente era destacado para servir de secretário a São João Bosco. Perguntaram-lhe, então, certa vez, se não lhe incomodava o fato de não poder estudar durante esses dias. Ele respondeu: “Em três dias que passo servindo a D. Bosco eu aprendo mais Teologia do que estudando em livros o ano inteiro”.

Do mesmo modo, quantos podiam contemplar por alguns momentos a São Guilherme, deviam em sua presença aprender mais a respeito da Igreja do que através de muitos estudos e pregações.

Então começaram a surgir alguns que decidiam permanecer na companhia do santo. Estes talvez dissessem aos que os tinham acompanhado: “Ficarei aqui. Diga àqueles com quem tenho relações que eu fiquei ao lado de Guilherme, mas que no Céu nos encontraremos. Aqui estarei rezando por eles.”

Desta forma, aos poucos foi se constituindo um cenóbio, depois uma Ordem Religiosa, e começavam então as maravilhas de Guilherme.

A força de um santo

Porém, não tardou em acontecer-lhe algo de muito trágico e doloroso. Sendo pai de uma família religiosa, dela foi expulso por seus próprios filhos espirituais, os quais certamente andavam mal e não davam contentamento a ele. Porque, sobretudo o que é muito mais sério, eles não davam a glória devida a Nossa Senhora. São Guilherme, aos olhos de seus discípulos, devia atrapalhá-los na vida torta que tinham adotado. Apesar de terem vindo morar no alto da montanha a fim de gozar da companhia de São Guilherme, chegaram ao desvario de expulsá-lo.

Então, o santo desce sozinho a estrada, apoiado num bordão. Enquanto a porta se bate à sua saída e um monge revoltado grita: “Afinal, estamos sós e independentes desse homem demasiado severo!” São Guilherme, tranquilo e rezando, vai descendo por caminhos desconhecidos, até chegar a uma estrada que o conduziria a Nápoles.

Mas, quem pode expulsar um santo quando este quer ficar? Qual a força que nessa vida é comparável à de um santo?

São Guilherme não quer a perdição daqueles monges; por isso, ao andar pelas estradas, ele vai rezando por eles. Ele pede a Nossa Senhora, sob cuja égide o mosteiro estava construído, a expulsão dos demônios que ali entraram, promovendo assim a volta de seus discípulos ao bom caminho.

Rejeitado pelos discípulos e acolhido pelo Rei

Tranquila e serenamente, por alguma razão ignota, o santo vai a Nápoles. Lá ele encontra um cenário muito diverso. Antes de tudo pela vista da célebre baía de Nápoles, tendo ao fundo o Vesúvio fumegando; depois, por ser uma cidade populosa, com um porto movimentado, donde se vislumbra o palácio do Rei de Nápoles, um dos potentados da Península Itálica, essa cidade era um centro de cultura e de civilização, certamente uma corte em franco progresso e expansão da arte e do bom gosto.

Não tardou para o Rei ser informado da presença deste santo. Mais uma vez sua vida passaria por uma transformação: de abade tornou-se peregrino, agora passaria a ser conselheiro do Rei.

Porém, com a mesma serenidade, tranquilidade e sabedoria, ele continua rezando, mas também aconselhando o Rei, o qual nutria grande apreço por aquele que a loucura de uns monges desvairados tinha sido a causa de sua presença junto a ele. Muitos tiveram que galgar uma alta montanha para encontrar Guilherme, enquanto o Rei o encontrou ao lado de seu trono.

Em meio ao esplendor do cenário da corte de Nápoles, com suas belas tapeçarias, feéricos vitrais e magníficas construções em granito, pode-se imaginar o Rei despachando, com os olhos postos em Guilherme, atento a seus conselhos. Quando, em certo momento, surge-lhe uma dúvida, apressa-se em perguntar a opinião de Guilherme. Assim, aquele santo humilde, apagado e posto de lado, reina por sua influência sobre o soberano.

Contudo, as saudades vibram no coração de Guilherme e o fazem tomar a resolução de ir visitar seus monges. Perdoando-os como o Bom Pastor que ama suas ovelhas, a ponto de ir à procura das que se desviaram, e mais ainda se revoltaram contra ele, expulsando-o do meio delas, ele, como uma espécie de anjo da guarda, paira sobre o convento, para que ele não desapareça.

Alegria do superior pelo progresso dos subalternos

Assim, após algum tempo, ele volta para visitar os monges ingratos. Suas preces venceram a dureza daqueles corações, encontrando-os, cheios de fervor. O contentamento que Santa Mônica terá sentido ao ver seu filho convertido deve ter sido muito menor do que a deste abade e fundador ao ver convertida toda a sua Ordem Religiosa. Algum tempo depois, ele morreu naquele monte onde tinha constituído seu convento.

Dir-se-ia estar terminada a história. No entanto ela continua, pois a Ordem fundada por São Guilherme, por diversas razões, não consegue manter-se sozinha, acabando por extinguir-se, enquanto o convento foi dado aos beneditinos, cuja sede principal, o Monte Cassino, ficava a pouca distância de lá.

O suave perfume de uma flor conservada pela Tradição

Os padres beneditinos deram uma prova da boa recordação que conservaram de São Guilherme. Pois os beneditinos que foram morar no monte onde este santo fundou seu mosteiro, continuaram usando o hábito da Ordem Religiosa fundada por São Guilherme, manifestando assim um lindo espírito de tradição. Deviam ter a ideia de que lá não se podia usar outro hábito a não ser o de São Guilherme, para dar a entender que os que lá vivem estão como hospedes, pois o dono da casa é São Guilherme; por isso, eles só residem lá para manter a ordem do local, à espera do dia em que filhos do dono, suscitados pela graça, venham para restaurar a Ordem e reocupar a casa paterna.

Como seria bonito que, em meio aos desvarios do mundo moderno, um europeu suscitado por Nossa Senhora, tomasse a resolução de restaurar a Ordem Religiosa de São Guilherme, fazendo reviver dentro da Igreja essa flor conservada pela piedade beneditina dos grandes tempos.

Morrer sob o amparo de Maria

Os dados biográficos não narram a morte de São Guilherme. Alguns poderão imaginá-la como tendo sido repentina, a qual para um santo tem sua beleza, pois ele de repente passa das agruras desta Terra para a visão direta de Deus.

Porém, outros podem figurar uma morte lenta e longa, na qual o santo passa para o Céu, mais ou menos como um grande rio entra no oceano, vagarosamente, até exalar o último suspiro.

Pode-se também conceber um tipo de morte, o qual sempre me impressionou, e que vi representada num vitral do Mosteiro de São Bento, em São Paulo. Nele estava São Bento, em pé, acabando de dar a seus discípulos uma última lição, a qual alguns ouviam entusiasmados, outros recolhidos. Na legenda embaixo, lia-se: “Eflavit spiritum — Ele rendeu seu espírito”. Após as últimas palavras de edificação ele foi para Deus!

Enfim, a morte de São Guilherme pode ser imaginada de múltiplas formas, porém, certo é que, tendo ele fundado um convento dedicado a Nossa Senhora, Ela o protegeu especialmente na hora de sua morte.

Por isso, nós não devemos nos importar como morreremos, mas somente devemos desejar neste momento estarmos postos nas mãos de Maria Santíssima.  v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 25/6/1976)

 

“Que as vossas cogitações sejam as minhas”

Ó Mãe indizivelmente grande, ó Rainha inexprimivelmente doce e acessível, ó arco-íris que reúne numa síntese incomparável os dois aspectos da grandeza, isto é, a superioridade e a dadivosidade: suplico-Vos me ajudeis a observar, a analisar, a compreender e a enlevar-me com vossa grandeza. Concedei-me que, pela meditação da vossa grandeza, as vossas cogitações e vias sejam as vias e as cogitações [deste filho]. Atendei a essa súplica, ó Coração Régio, Sapiencial e Imaculado de Maria. Amém.

(Oração composta por Dr. Plinio, na década de 60)

O centro da nossa existencia

A ossatura e a certeza de minha alma são o amor e a obediência à Santa Sé. A tal ponto que posso me definir espiritualmente como sendo escravo de Maria, e intelectualmente, como escravo da Santa Sé, aderindo a ela em tudo, por tudo, em todas as circunstâncias. A segurança de meus raciocínios se baseia no fato de serem desdobramentos da doutrina da Igreja, pois se algo há de que estou seguro, é da vinculação efetiva, indestrutível, entre Nosso Senhor, Nossa Senhora e a Santa Sé Católica, Apostólica, Romana. E quem diz Santa Sé, diz, sobretudo, o Papa.

O Papado é o centro da Igreja. A Igreja é o centro de nossa vida. Logo, o Papado é o centro de nossa existência.

Plinio Corrêa de Oliveira.

O socorro maternal que por nós intercede

O simbolismo mais tocante da imagem de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro está contido no gesto com que o Menino Jesus se apóia em Nossa Senhora, a qual segura as mãos d’Ele, significando que Ela governa os movimentos de Seu Divino Filho. Este era um antigo símbolo de homenagem e de obediência, o qual consistia em que o inferior colocasse suas mãos entre as do superior. Isto significava o domínio, o poder, deste sobre aquele, porque um homem que segura as mãos de outro evidentemente segura-o por inteiro.

Representando o Divino Infante desse modo o artista foi muito feliz e conseguiu indicar o que de fato acontece: a Santíssima Virgem pode tudo sobre o Menino Jesus e, nesse sentido, sua oração O “governa”!

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 18 de novembro de 1968)

Nossa Senhora do Perpétuo Socorro

Tendo diante de si um quadro de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, invocação mariana que lhe tocava o mais fundo da alma, Dr. Plinio ressalta a importância de se recorrer a Maria Santíssima sob este título tão consolador: o socorro que nos vem sempre, a todo momento, maternal e infatigável.

 

Ao contrário de nossos costumeiros comentários sobre o Santo do mês, desta feita não os basearemos em biografia, mas numa gravura que retrata a imagem de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, cuja festa se celebra no dia 27 de junho.

Linda invocação de uma imagem bizantina

Preliminarmente, convém esclarecer um ponto que poderia ser levantado pela minha caríssima geração nova.

Este quadro é de inspiração bizantina, e não se deve ver nele o gênero de beleza que apresentam as imagens ocidentais, como, por exemplo, Nossa Senhora Auxiliadora, Nossa Senhora do Carmo, Nossa Senhora de Fátima, etc. Analisando-as, percebe-se que seus rostos são entalhados com requinte e esmero, como a face de uma boneca. Embora não seja esse o tipo de graciosidade refletida na fisionomia de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, pintada há vários séculos, entretanto ela nos revela uma intensa expressão.

Difundida na Igreja pelos padres redentoristas, trata-se de uma linda invocação, pois indica a misericórdia invariável de Maria Santíssima. O perpétuo socorro é um auxílio, um ato de clemência, de piedade, ininterrupto, que nunca se detém nem se suspende. “Nunca” significa em nenhum minuto, em nenhum lugar, em nenhum caso. Por pior que seja a situação de quem recorra a Nossa Senhora, sendo a Mãe de misericórdia, Ela sempre o atende.

Sobre o fundo áureo da glória

Esse quadro possui um fundo dourado, bastante usado durante o antigo império romano do Ocidente e do Oriente, e parte da Idade Média, nas pinturas de personagens eminentes, os quais não eram representados pelos artistas em salas, quartos ou paisagens, mas sobre o ouro, a fim de exprimir a ideia de que estavam desligados de qualquer outra coisa que não fosse a glória. Assim, essa imagem representaria o esplendor da Rainha do Céu, com sua fronte circundada por uma auréola ricamente lavorada, como o é também a que emoldura a face do Divino Filho ao braço da Mãe.

 Nossa Senhora está revestida de um manto azul que Lhe envolve igualmente a cabeça. Constitui uma espécie de xale, no qual refulge um adorno semelhante a uma estrela. Sob esse manto, a Santíssima Virgem traja uma túnica vermelha frisada com galões de ouro e enfeixada, à altura do pescoço, por uma pedra preciosa.

Todos esses aspectos têm seu simbolismo, por isso devemos notá-los antes de apontar o valor e o alcance de cada um deles.

O Menino Jesus se acha sentado sobre a mão esquerda de Nossa Senhora, inteiramente encostado n’Ela, como uma criança muito familiarizada com sua mãe e tendo prazer de estar junto a seu regaço. Entretanto, se distrai com alguma coisa para a qual está olhando. Dir-se-ia haver, da parte do artista, uma certa imperícia, pois o Divino Infante é um tanto grande para ser carregado dessa forma por Maria Santíssima, dando a impressão de desequilíbrio nas proporções dos personagens. O próprio tipo do corpo d’Ele, sem falar do tamanho, transmite mais a ideia de um adolescente do que um menino. Seja como for — e apesar de algum crítico por demais exigente apontar outros aparentes defeitos, que não são senão expressões do estilo próprio da época e dessa cultura — tal imagem é considerada uma grande e interessante obra de arte.

Vestindo uma túnica verde, o Menino-Deus traz na cintura um tecido róseo e, sobre o ombro direito, uma capa dourada que lhe envolve o resto do corpo. Sendo esta muito ampla, forma numerosas pregas, as quais me parecem bem estudadas, dando a impressão, juntamente com a túnica e a faixa, de naturalidade.

Em cada lado da imagem há um anjo ostentando instrumentos da Paixão. Ambos aparecem de asas e auréola. O da direita, com vestes vermelhas, porta a Cruz que, curiosamente, possui três braços de tamanhos distintos. O da esquerda, de túnica verde, segura uma lança e a esponja na qual foi embebido o fel oferecido a Nosso Senhor no alto do Calvário.

Extraordinário afeto materno

A imagem de Maria é sobremaneira expressiva, devido à atitude profundamente materna que Ela demonstra. É a Mãe que carrega seu Filho com naturalidade e afeto extraordinários, transparecendo a intimidade magnífica da Santíssima Virgem com o Menino Jesus. A expressão de seu olhar é recolhida, de quem reza. Ela segura o Filho com desvelo e, ao mesmo tempo, com imenso respeito e veneração. Está certa de que tem nos braços o próprio Deus encarnado e a sua atitude é de adoração.

A face de Nossa Senhora talvez pudesse ser um pouco mais bem desenhada. Embora a boca seja delicada, o pescoço parece rígido demais, e o nariz se estende num comprimento excessivo. Mas esses pormenores secundários não diminuem o sopro da arte autêntica, patenteado na expressão recolhida e carinhosa da fisionomia, bem como na nobreza do porte.

Tocantes simbolismos

Analisemos agora o simbolismo. Nossa Senhora está revestida de uma túnica vermelha e um manto azul. Nos primeiros séculos do Cristianismo, a cor azul distinguia as virgens e a vermelha, as mães. De maneira que essa conjugação cromática nos apresenta Maria como a Virgem-Mãe. Trata-se de uma bela combinação, um simbolismo acertado e discreto que define Nossa Senhora.

No meu entender, o simbolismo mais tocante está contido no gesto com que a Mãe segura as mãos do Menino Jesus, envolvendo-as suavemente, indicando como Ela governa seu Divino Filho. Tal atitude representava, nos tempos antigos, a homenagem e a obediência do inferior para com seu superior, e do poder deste sobre aquele, pois uma pessoa que segura as mãos de outra evidentemente a domina por inteiro. Então, para mostrar como a virgem pode tudo junto a Deus, através da oração, com muita naturalidade o artista representou o Menino Jesus prestando este ato de submissão à sua Mãe Santíssima. A posição d’Ele é tão natural e freqüente entre as crianças que, sem conhecer esse simbolismo, não se diria que o pintor teve a intenção de exprimi-lo.

É próprio de quadros como esse que o significado dos símbolos quase não aflore, e assim, quem o contemple, pode ter o gosto de adivinhar o sentido de cada um deles. Trata-se de uma ocupação piedosa e nobre, que retém a atenção e é incomparavelmente superior às distrações do tipo palavras-cruzadas, por exemplo…

Nossa Senhora segura o Menino Jesus o qual olha para dois anjos portando instrumentos de sua Paixão. Quer dizer, ao mesmo tempo em que se lembra n’Ela a Virgem e a Mãe, recorda-se n’Ele o Redentor do gênero humano, esperado pelos Patriarcas e Profetas.

O socorro por um fio

Pormenor pitoresco, no pé esquerdo do Divino Infante vê-se a sandália bem presa, porém a do pé direito está desatada, quase caindo, como que obrigando-O a um movimento necessário para retê-la. Penso que esta última significa a situação da alma pecadora, sustentada pelo Menino-Deus para não cair no abismo da perdição. Indica, portanto, o perpétuo socorro: é Nossa Senhora que intercede pelo faltoso, junto ao Filho que Ela segura nos braços e pode salvar o homem acabrunhado de culpas.

Tenho conhecido em minha vida tantas almas suspensas, como esta sandália, e depois se erguerem e ficarem firmes como a outra, que não seria desprovida de beleza se tal fosse a explicação desse pormenor.

Aliás, no verso de um “santinho” dessa imagem que me foi presenteado certa vez, vinha esta linda interpretação: “A sandália desatada, quiçá símbolo de um pecador preso ainda a Jesus por um fio, o último — a devoção a Nossa Senhora”.

Nos ângulos superiores do quadro há algumas letras gregas que significam “Mãe de Deus”; à direita do Menino Jesus, outras que querem dizer “Jesus Cristo”. As que aparecem acima do anjo à esquerda significam “São Miguel Arcanjo”, e as que estão sobre o anjo à direita, “São Gabriel”.

Por fim, a estrela que refulge no manto de Nossa Senhora indica, uma vez mais, seu perpétuo e maternal socorro, sua misericórdia infatigável a nos guiar em meio às vagas tormentosas desta vida, rumo ao Céu.