Regalos da vida burguesa

Creio que em poucos países do mundo a vida burguesa, no que esta possui de legítimo e digno, atingiu graus de desenvolvimento tão expressivos como sucedeu na Alemanha, com o igual florescimento de valores próprios a ela: bom senso, pudor, recato, estabilidade, continuidade, o equilíbrio das coisas bem ordenadas desta Terra.

Tomemos, por exemplo, as construções nas pequenas cidades burguesas esparsas pela Alemanha, datadas da Idade Média, muitas conservando ainda hoje seus pitorescos aspectos de outrora.

Em geral, o andar térreo formava uma espécie de hall aberto, solidamente sustentado por um madeirame trabalhado de modo discreto, porém com uma certa distinção de linha. O corpo do edifício se erguia em duas saliências que se projetavam sobre a rua. No último andar se guardavam as relíquias da família, as velhas cadeiras de balanço da bisavó, arcas e baús de diferentes tamanhos contendo antigos enxovais, objetos deste ou daquele parente, etc.

Se procurássemos penetrar naquele interior, digamos estendendo nossa vista pelas janelas adentro, teríamos uma sensação que condiz à vida burguesa, isto é, a de intimidade. Encontraríamos a mãe, robusta e saudável como boa alemã, vestida de seu avental colorido, com seu chapéu ingênuo e a travessa de salsichas na mão; os filhos também corados e alegres, à espera do almoço nutrido, enquanto o pai prolonga o cochilo na sua poltrona confortável.

É o prazer da intimidade, do móvel cômodo, do ar tépido, da luz tamisada que deixa entrar a realidade externa, do “cortinadozinho”, dos objetos próximos uns dos outros, todo um ambiente que favorece ao homem seu descanso do trabalho manual. Quando chega o verão, abrem-se todas as janelas, depositam migalhas nos parapeitos para atrair os passarinhos: estes vêm, comem, e o alemão se encanta e se alegra com a fartura das aves. Preparam-se vasos de gerânios — os célebres gerânios da Alemanha! — e é todo um colorido que passa a enfeitar as fachadas das casas, as extensões das ruas.

Tudo isso é uma construção do mundo burguês germânico, que me apraz comentar, pois se reveste de qualidades e belezas intensas. Sem dúvida, devemos censurar o abuso do que o francês pitorescamente chama de “chacunnière”: o “lugarzinho” de cada um explorado ao extremo do apego. Porém, que se tenha um recanto preferido, arranjado de acordo com nosso gosto peculiar, para o qual sempre nos voltamos quando é questão de um verdadeiro repouso, quem o pode condenar? Quem nunca ansiou por um “recantozinho” desses? E quem, habitando numa daquelas casas da Alemanha medieval, não gostaria de ter uma boa poltrona para descansar?

Afinal, é a existência lícita, honesta, sem pretensões, da família legítima, constituída segundo o sacramento. É a casa onde o esplendor da vida familiar se manifesta na sua trivialidade. É a dignidade do comum, onde a pessoa pode recolher-se, isolar-se e, proporcionando silêncio ao corpo, permitir ao espírito começar a meditar. Não é o conforto do preguiçoso, afundando-se na almofada e ele todo se amolecendo. Pelo contrário, todo esse ambiente burguês alemão recende algo de varonil, e por isso mesmo, dessas casas, em épocas de guerra, saíram os melhores combatentes do mundo. Em tempo de paz, comedores de pão, tocadores de flauta e violino…

Eis a maravilhosa harmonia dessa situação. Eis os regalos da intimidade da vida burguesa, autenticamente vivida. Ela atrai ao recolhimento, ao repouso, mas prepara o homem para o trabalho e para a luta. Ele pode estar comodamente sentado em sua poltrona ou ajoelhado num oratório ao lado dela. O interior da casa, sem conduzir diretamente à oração, cria agradáveis condições para que o espírito se sinta convidado à reflexão e à prece. E ele se alegra.

Plinio Corrêa de Oliveira

São José – Modelo de castidade e de força

Para se formar uma ligeira ideia de quem foi São José, dever-se-ia tomar a Divina Face do Santo Sudário de Turim e deduzir, à maneira de suposição, a fisionomia moral do homem escolhido para ser o pai adotivo de Quem tem aquele rosto sagrado, do homem que foi o esposo da Mãe d’Ele, Aquela que era a sede da Sabedoria e o espelho da  Justiça.

Pai do Leão de Judá e consorte de Nossa Senhora, São José teria de ser um modelo de fisionomia sapiencial, modelo de castidade e de força. Um varão de santidade  inimaginável, a quem coube a sublime missão de governar o Filho de Deus e a Santíssima Virgem.

Plinio Corrêa de Oliveira

São José

Depois de Maria Santíssima, São José foi o mais elevado expoente de virtudes da humanidade. Brilha nele a chama da caridade. Um intenso amor de Deus, uma  espiritualidade e uma vida interior admiráveis fazem de sua alma objeto da complacência da Santíssima Trindade.

Este homem humilde foi chamado a participar de acontecimentos dos quais decorreram os mais notáveis fatos da história do mundo. Pela sua admirável correspondência à graça, São José colaborou de modo eminente no plano divino da Redenção e, desse modo, é merecedor de grande parcela da glória que, legitimamente, cabe ao Divino  Salvador, pela imensidade de benefícios com que nos cumulou.

Plinio Corrêa de Oliveira

Feérico supérfluo

Ao se discorrer sobre a ordem de coisas ideal para a existência de um povo e de uma civilização, acredito dever-se-ia fazer uma distinção entre duas espécies de benemerência dos que contribuem para essa boa ordenação: a dos que asseguram e tornam abundante o indispensável, e a dos que asseguram e requintam o supérfluo.

– Sts Peter and Paul Fortress – st petersburg – Russia

Serão, talvez, duas formas de dar glória a Deus, cada qual no seu âmbito — o “necessarista” e o “superfluista” ou “requintista”.

Para se calçar esse pensamento é preciso tomar como base a tese de que o supérfluo na verdade é indispensável, ou seja, tem de se fazer presente no quotidiano do homem, e este deve notá-lo pelo menos nos seus semelhantes, pois do contrário a vida terrena lhe parecerá por demais estreita, asfixiante.

Como, porém, via de regra o supérfluo é preterido em favor do necessário, procura se tornar exímio em qualidade, a fim de se valorizar e, vez ou outra, levar a palma. Ele se requinta, torna-se mais enfeitado, mais ornado, ou se reveste de simplicidade mais impressionante, enfim, engendra mil maneiras de o requinte se mostrar tal.

– Sts Peter and Paul Fortress – st petersburg – Russia

Esse conceito me parece superiormente ilustrado pelo exemplo do “Fabergé”, célebre joalheiro da corte imperial russa no final do século XIX e início do XX. Era o ourives do supérfluo, e o encanto deslumbrante de suas peças consistia no esmero da superfluidade.

De sangue francês, levou consigo para o mundo russo o charme característico de suas origens e com ele fecundou seu talento de gênio para confeccionar jóias que são verdadeiros bibelôs de sonhos. Os mais conhecidos são os famosos Ovos de Páscoa que o Czar encomendava para presentear a Czarina e outros familiares. Com a repetição do gesto em anos sucessivos, a “moda” de oferecer os ovos “Fabergé” se espalhou pela Europa da “Belle Époque” (portanto, até 1914, quando eclodiu a Primeira Grande Guerra), constituindo um requinte da civilização daquele tempo.

– Sts Peter and Paul Fortress – st petersburg – Russia

A capacidade inventiva do artífice era inesgotável, e a cada elaboração surgia uma nova maravilha, uma joia mais aprimorada, algumas feéricas, reluzindo nas suas cores sedutoras, nos seus materiais preciosos, diferentes, lavorados com extrema categoria. Ovos que se abrem e deixam ver no seu interior outro bibelô ainda mais rico e belo; ovos que são relógios, este com um pequeno galo que assinala as horas, aquele com um único ponteiro em forma de esguia serpente; outros esmaltados, com pinturas que retratam paisagens da Rússia imperial; e ainda os que trazem fotografias dos membros da família do Czar, e os que simplesmente se revestem de ouro.

Todos de pequenas proporções, como devem ser para comportar a dose de “raffiné” e de rico que possuem. Maiores, perderiam em beleza e distinção.

E todos procuram e logram despertar o maravilhamento. O maravilhamento do supérfluo.

 

 

 

Plinio Corrêa de Oliveira

(Extraído de conferência em 23/3/1990)

A civilização da admiração

A tendência para a elevação e o sobrenatural dava ao homem medieval especial facilidade para admirar e venerar a Deus Nosso Senhor. Tal estado de alma não pode ter sido privilégio de outrora; ao contrário, Deus o quer e exige de todos os fiéis, ao longo de toda a História.

 

Quando estudamos a História da Idade Média, analisamos sobretudo os personagens mais característicos daquela época: Carlos Magno, São Luís, São Fernando, São Tomás de Aquino e, de modo eminente, São Gregório VII. Entretanto, também no geral da população daquele período havia um espírito de fé eminente.

No auge da era medieval, a Cristandade era compacta e homogênea e encontrava-se em sua época mais feliz. Havia, como em todos os tempos, pecadores esparsos, interessados em fruir o seu próprio pecado, porém não obstinados em derrubar o edifício espiritual da Civilização Cristã.

Naquela era histórica, o espírito de Fé moldava a maneira de pensar e de viver do homem, tornando sua mentalidade fundamentalmente diversa do homem contemporâneo. Como se exprimia a mentalidade medieval?

Dois movimentos ascensionais

Suponhamos um copista que possuísse uma sineta para chamar o empregado, e um canivete para cortar o pergaminho e outros materiais.

Se o cabo da sineta fosse feio, ele, quando desse acordo de si, estaria com o canivete esculpindo-o de maneira a torná-lo belo.

Quanto ao canivete, ele se comprazia em fazer com que a lâmina fosse afiada, de modo a aparecer inteiramente a beleza do metal, e o cabo não fosse apenas prático, mas também bonito. Assim, no cabo do canivete ele esculpia um santo; e no alto da sineta uma cruz.

Quando ia escrever algo, ele não se limitava a fazer letras legíveis, mas pensava em compor uma iluminura desenhando, dentro da primeira letra, um pássaro voando, ou um santo rezando com halo de santidade, ou um Rosário entrelaçado nas letras.

Ou seja, os mais humildes homens do povo manifestavam, continuamente, uma tendência para o mais perfeito, mais santo e mais belo. Uma espécie de insaciabilidade temperante, uma pressão saudável e contínua da alma para o melhor, debaixo de todos os pontos de vista, nunca se contentando com aquilo que tem, mas procurando algo superior; era, portanto, uma tendência para a elevação.

Devido a esta contínua procura do mais belo, existia a ideia de que, acima dos seres visíveis, havia seres invisíveis, mais nobres e mais belos do que os visíveis. E, no alto da pirâmide destes seres espirituais estava Deus, a suma Perfeição. Então, dois movimentos ascensionais: um para melhorar as coisas terrenas, na procura da perfeição delas, e outro para, através das coisas terrenas, caminhar até Deus.

O maravilhamento é a postura de alma necessária a todo homem

Isso significava, na alma do homem medieval, uma tendência fundamental para o elevado, e uma necessidade profunda de conhecer continuamente coisas que lhe provocassem admiração.

Daí as canções de gesta, que eram a glorificação dos grandes heróis da Cristandade. E também as lendas a respeito da vida de santos, que constituíam a glorificação deles. A “Légende Dorée”, de Jacques de Voragine, por exemplo, tem magnificência nesse sentido.

Essa tendência corresponde ao contínuo estímulo comunicado por Deus à Criação. Não julguemos ser esse estado de alma necessário apenas aos medievais. Esta é a orientação de alma que, em virtude do primeiro Mandamento, Deus quer e exige de todos os fiéis.

Podemos ver isso em dois campos: a ordem natural e a ordem sobrenatural. Na ordem natural, temos o universo. Por mais que o examinemos, não encontramos um ponto que não seja suscetível de aprofundamento. E no extremo desse aprofundamento, não achamos nada que não nos cause uma espécie de maravilhamento. O universo foi construído por Deus para que o conhecimento dele conduza a atos de admiração.

Consideremos, por exemplo, a coisa mais terra a terra: a pata de uma rã. A rã é um bicho prosaico e sua pata é feia. Mas se um cientista vai estudá-la, ele encontra ali dentro uma ordenação em razão da qual acaba concluindo o que o artista nunca concluiria: é admirável a pata de uma rã. O artista dirá que é hedionda a pata de uma rã, mas o cientista afirmará: “Neste hediondo há uma maravilha!”

Na pata de uma rã, na ponta de uma grama, na estrutura de uma formiga, no céu material, nos astros, por toda parte encontramos algo admirável. Quer dizer, o universo incita o homem a prestar atenção em seu Criador fazendo atos de maravilhamento.

O “émerveillement”, o maravilhar-se, o admirar é a postura de alma necessária a todo homem; é o ponto terminal da peregrinação em toda espécie de seus estudos ou elucubrações, seja no campo artístico, científico ou cultural.

Maravilhas da Igreja Católica, Apostólica, Romana

E, bem no centro desse universo, que é um convite contínuo à admiração, há a ordem sobrenatural, a Igreja Católica, Apostólica, Romana, na qual isso também se verifica. Nas menores coisas da Igreja Católica, se as analisarmos bem, encontraremos verdadeiras maravilhas.

Tomo o mais corrente dos exemplos: o meio inventado pela Igreja para chamar os fiéis à oração, o sino colocado no alto de uma torre. Tão prático, mas quanta maravilha! A Ave-Maria que é tocada na aurora ou na hora do pôr do Sol, que maravilha! Os sinos que repicam alegremente para anunciar a Missa, que maravilha! Os sinos que dobram finados, quando o cadáver entra no templo para receber a bênção, que maravilha!

Há certas coisas feitas pela Igreja com tanta naturalidade, que ninguém se lembra de as achar bonitas; é preciso prestar atenção. Por exemplo, o modo pelo qual a Igreja trata o pecado e o pecador. Entra numa igreja um caixão, com um cadáver, carregado pela família do morto. Todo mundo, com respeito, comenta: “Coitado, era tão bom, antes de morrer abençoou os filhos, recebeu os Sacramentos, despediu-se da esposa.” De repente o coro canta: “Requiem aeternam dona ei, Domine, et lux perpetua luceat ei”. É a dúvida da Igreja: ele deve ter, pelo menos, pecados veniais para pagar, e o normal é que passe por um Purgatório bem ardente. “Meu Deus, dai-lhe o descanso eterno, e que a luz perpétua brilhe para ele”. E depois o coro entoa: “Requiescat in pace”, e embaixo todos respondem: “Amen”. É o modo pelo qual a Igreja convida à humildade e ao reconhecimento da realidade do pecado no homem, que ela está honrando dessa forma. Nota-se aí um equilíbrio fantástico.

Na Idade Média, a moda consistia em imitar os mais perfeitos

Dir-se-ia serem coisinhas dentro da vida da Igreja; mas essas “coisinhas” são sóis, e indicam que a Esposa de Cristo nos convida continuamente a uma impostação de alma ávida de admirar tudo, quer na ordem natural, quer na ordem sobrenatural.

Qualquer indivíduo que passa pela rua e possui a glória de ser batizado deve ser ávido de admiração. O homem de espírito católico tem esta tendência a procurar em tudo coisas admiráveis e não é invejoso. Encontrando alguém admirável, ele se alegra e dá graças a Deus; elogia, aplaude aquele alguém e procura torná-lo conhecido. Ele não é igualitário, não procura colocar-se no nível dos outros, mas deseja que quem é superior a ele receba mais, e seja mais glorificado.

Essa era a tendência de espírito existente durante a Idade Média.  v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 8/2/1977)

Revista Dr Plinio 168 (Março de 2012)

Delicadeza e severidade

Creio que uma das características fundamentais do homem da Idade Média era possuir um estado de espírito afeito aos longos e serenos recolhimentos, durante os quais sua alma deambulava, com todas as suas possibilidades e faculdades, por todas as espécies de realidades. E sem nunca manifestar a menor complacência para com o mal, observava as várias formas de bem, na sua imensa diversidade, amando-as todas, nas suas diferenças, flexibilidades, elasticidades e contradições aparentes. A partir dessa contemplação, ele era capaz de todas as formas de ternura, paciência, delicadeza, suavidade, como operação prévia, entre outras, para ser capaz também de todas as formas de santa e necessária austeridade.

O medieval podia, portanto, com essa serenidade e esse equilíbrio, com posição imensamente compreensiva diante das diferentes formas de bem, tirar uma conclusão: “Essas variedades me conduzem à certeza plena de que existe, para além delas, o absoluto, Deus Nosso Senhor, Criador de todas as coisas”.

Expressões de um espírito assim reluzem nas obras da Idade Média, nas iluminuras e esculturas que nos apresentam tantas figuras e personagens daquela época, imbuídas de uma profunda tranquilidade: o carpinteiro serrando uma madeira, uma borboleta esvoaçando em torno de uma flor, um raio de sol que incide sobre  um cordeirinho a pastar no prado maravilhoso.

Noutras imagens, tem-se o riacho correndo sob uma pontezinha, um cisne que passa, a trepadeira que cai junto à janela de uma casinhola que parece feita de pão de mel, e em cujas flores brincam as abelhas. Tratam-se de símbolos de formas de bem que devem nos deliciar, e que se harmonizavam e constituíam um conjunto equilibrado com virtudes aparentemente opostas, como a fortaleza e a severidade.

A alma medieval, contemplando o fato miúdo da vida cotidiana, detinha-se, encantava-se, deleitava-se com tudo e fazia inteiramente suas todas as formas de bem. Ao mesmo tempo, excluía com vigor o que era mal e contrário àquilo que admirara.

Por essa atitude, chegava a outra conclusão: “Estou aberto, enlevado e propenso à admiração diante de qualquer forma de bem. Ficaria inconsolável se a menor dessas manifestações de beleza conforme à Beleza absoluta desaparecesse da face da Terra. E repudio, com inteira firmeza, o que lhes seja contrário e intente eliminá-las do mundo”.

A meu ver, soube o homem da Idade Média, no auge de seu florescimento espiritual, praticar de modo exemplar essa espécie de admiração e amor omnímodos para com todas as formas de bem, e deduzir dessa atitude uma extrema recusa ao mal que procurava acabar com aquelas maravilhas.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 23/9/1974)

Revista Dr Plinio 132 (Março de 2009)

Santo Eulógio – Lutou como um leão

Em todas as perseguições sofridas pela Igreja, existiram duas correntes entre os católicos: a do heroísmo e da acomodação. Santo Eulógio, mártir, lutou valentemente contra os acomodatícios, tendo uma forma de coragem mais meritória do que a própria coragem do martírio.

 

A respeito de Santo Eulógio, diz o Martirológio Romano:
Santo Eulógio foi presbítero e mártir, e na perseguição dos sarracenos foi açoitado, esbofeteado e degolado à espada, em consequência de sua intrépida e gloriosa confissão de Cristo. Foi quem descreveu o martírio de vários santos de Córdoba, durante esta cruel perseguição. Século IX.

Perseguido pelos muçulmanos e pelos cristãos acomodados

Em Rohrbacher(1) encontram-se os seguintes dados biográficos sobre este Santo:
No ano de 850, desencadeou-se em Córdoba violenta perseguição muçulmana contra os cristãos. Dentre as várias vítimas destaca-se o sacerdote Eulógio, pertencente a uma das famílias mais consideradas da cidade, e que escreveu os combates gloriosos daqueles que morreram pela fé. Será o defensor de vários cristãos que se apresentaram voluntariamente ao martírio, e por isto foram criticados como temerários.

Os muçulmanos, espantados de ver tantos cristãos correr ao martírio, temeram uma revolta e o fim de seu domínio. O califa Abdéramo reuniu os conselheiros e ficou resolvido que prenderiam ou matariam quem quer que falasse contra o profeta.

Os cristãos então se esconderam e vários fugiram, durante a noite, disfarçados e mudando, muitas vezes, de esconderijo. Outros, não querendo fugir nem esconder-se, renunciaram a Jesus Cristo e perverteram os outros.

Vários, tanto sacerdotes como leigos, que antes louvavam a constância dos mártires, mudaram de opinião e passaram a tratá-los de indiscretos, alegando mesmo a autoridade da Escritura para sustentar suas opiniões.

Estes, que desde o começo desaprovaram o comportamento dos mártires, queixavam-se amargamente de Santo Eulógio e de outros sacerdotes, os quais, encorajando-os, haviam atraído a perseguição.

O califa fez reunir em Córdoba os metropolitanos de diversas províncias e estabeleceu-se um concílio para acharem um meio de apaziguarem os infiéis. Na presença dos bispos, um escrivão riquíssimo, cristão, mas que tinha medo de perder o que possuía, atacou rijamente o sacerdote Eulógio. Ele havia sempre censurado tais mártires e pressionava os bispos a pronunciarem um anátema contra os que quisessem imitá-los.

Por fim, o concílio publicou um decreto que proibia dali em diante que alguém se oferecesse ao martírio. Mas em termos alegóricos e ambíguos, segundo o estilo da época, de sorte que servia para contentar o califa e o povo muçulmano, sem todavia censurar os mártires, quando se penetrava o sentido das palavras do decreto.

Santo Eulógio não aprovava tal dissimulação. Lutou contra ela durante muito tempo, duramente perseguido pelos muçulmanos, mas também pelos cristãos acomodados.

Finalmente, firme na defesa dos mártires voluntários — no que teria um fiel aliado, séculos mais tarde, na figura de São Francisco de Sales —, foi decapitado no ano de 859.

Um problema moral

Havia aí dois problemas: o moral e o político.

Antes de considerar o problema moral, analisemos uma situação psicológica.

Para muitas pessoas é um tormento insuportável passar uma vida de corre-corre e de foge-foge. É-lhes muito duro estar de um lado para outro, fugindo da morte que os espreita. É-lhes mais suave — nas horas de maior dificuldade e quando têm coragem — se apresentarem às autoridades e dizerem que são mesmo cristãos, e assim resolver o caso.

Essa situação psicológica, que em última análise é compreensível, traz consigo um problema moral: ou a pessoa não se defende com todas as possibilidades que tem, ou até se apresenta à autoridade que vai matá-la. Isso não constitui um suicídio?

É uma questão moral que se compreende.

Santo Eulógio era de opinião — assim como depois São Francisco de Sales — que isto não constitui suicídio, e que o modo de proceder dos católicos que estavam neste caso era correto. Por causa disso, vários católicos se apresentaram ao martírio e foram mortos. E isto induziu o sultão de Córdoba a perceber que o número de católicos residentes nessa cidade ainda era muito grande, e a desejar, portanto, exterminá-los.

Essa atitude feroz do sultão teria sido então, em parte, desencadeada por causa do procedimento de Santo Eulógio e dos católicos radicais.

E um problema político

Aparece, então, o problema político. A Espanha fora, no tempo dos visigodos, uma nação católica, e a massa da população espanhola continuava católica. Havia uma grande quantidade de mouros ali residentes, mas também um número enorme de católicos, e era até tolerada a Religião católica. Tolerada, naturalmente, com a condição tácita que todas as tolerâncias impõem, e que é a seguinte: a não permissão de que os católicos empreendessem uma ação muito vivaz. E como consequência, os bispos seriam acomodados, tolerantes e dispostos a aceitar tudo, de maneira tal que guiassem os católicos numa política de submissão e de capitulação, a qual ao longo dos decênios haveria de produzir uma debilitação, e quem sabe até um eventual desaparecimento da Fé em terras de Córdoba.

À vista da multiplicação dos católicos que se apresentavam para o martírio, as autoridades maometanas resolveram convocar um concílio, para que este concílio de bispos acomodados condenasse os católicos vigorosos e, pela voz dos bispos, os bons ficassem desmoralizados.

Santo Eulógio certamente tinha muito maior facilidade em pregar contra Maomé do que contra os bispos acomodados, que o desmoralizariam. Realizou-se o concílio, e um escrivão, que era muito rico — em geral os homens muito ricos não querem ouvir falar em morrer e nem em martírio —, fez um discurso em que acusava Santo Eulógio e seus companheiros. Terminado o discurso, o concílio condenou os acusados. Mas esta condenação evidentemente era falsa, não tinha fundamento, e Santo Eulógio continuou valentemente a sustentar seu ponto de vista. Tal foi sua intrepidez, que acabou ele sendo decapitado, morrendo mártir.

Duas correntes: a do heroísmo e a da acomodação

Qual a lição que devemos tirar daí? Que em todas as épocas da Igreja, e em todas as perseguições que ela sofreu, existem duas correntes: a que quer ser fiel, e a corrente acomodatícia, daqueles que preferem um negócio qualquer com o qual a Fé sofra prejuízos, mas que eles possam morrer tranquilamente nas suas camas, levando uma vida tanto quanto possível agradável.

Existem, portanto, a corrente do heroísmo e a corrente da acomodação, do pacto, da traição.

Há católicos, por exemplo, que dentro do mundo revolucionário de hoje querem precisamente uma acomodação, em vez da luta contra o espírito do mundo.

Santo Eulógio lutou como um leão e passou pela dura provação de ser condenado pelo episcopado. Pode-se imaginar quanto isto deve doer na alma de um Santo! Entretanto, ele soube resistir também a isto, e nos deu um exemplo de que devemos amar tanto a Igreja e as instituições eclesiásticas, que estejamos dispostos a sofrer, por amor e fidelidade a elas, a pior das coisas, que é a oposição, e eventualmente até a condenação de autoridades eclesiásticas acomodadas as quais combatem, dentro da Igreja, o filão áureo do heroísmo e da dedicação total.

Devemos pedir a Santo Eulógio esta forma especial de coragem, muito mais meritória do que a própria coragem do martírio.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 10/3/1967)

 

1) Cf. ROHRBACHER, René François. Histoire Universelle de l’Église Catholique. 3ª ed. Vol. 12. Paris: Gaume Fréres, Libraires-éditeurs, 1857. p. 40, 52, 53, 233 e 242.

O Palácio dos Doges

Por serem almas com altos ideais culturais e religiosos, os venezianos conseguiram transmitir em suas construções o princípio governativo que leva à unidade as coisas sobre as quais exerce seu império.

 

O Palácio Ducal era a sede do Governo de Veneza. Com a vida civil tão menos desenvolvida do que hoje, não havia os escritórios de advocacia necessários para fazer os requerimentos. Assim, nesse lugar, chamado por isso mesmo de “Porta da Carta”, eram colocadas mesinhas onde escrivães redigiam os documentos e petições a serem apresentados aos magistrados.

Almas com altos ideais culturais e religiosos

Eu chamo a atenção para a beleza dessa porta. Notam-se embaixo os batentes grandes, divididos em quadrados esculpidos. Encimando a porta, vemos o leão alado acima do qual se abre uma larga ogiva com vitrais. Tudo enquadrado por duas agulhas de mármore branco que, por assim dizer, “apresentam armas” ao lado do pináculo gótico da janela que termina num ornato no alto.

Diante do leão, símbolo de Veneza, está ajoelhado o Doge Francesco Foscari. Vejam como a janela é bonita, com os vitrais e todo o rendilhado maravilhoso que está acima, formando círculos nos quais se encaixam os vitrais. Tudo isso dentro de uma ogiva sobre a qual estão dois Anjos carregando a figura do Evangelista São Marcos. Por fim, uma sequência de esculturas sobre pedra que culminam numa figura terminal.

É interessante notar essa tendência do gótico, inclusive em Veneza, em terminar os monumentos em altas pontas. Excetua-se o Palácio dos Doges, que se encontra fora dessa regra porque a inverte de um modo muito bonito. Mas vemos essa tendência nas duas agulhas, na ogiva como também no topo de toda essa peça escultural.

A que corresponde essa tendência? Por que aquelas almas se compraziam tanto nisso? Por serem almas com altos ideais culturais e religiosos, nos quais agrada muito ver algo que domina todo um conjunto harmônico de seres. É propriamente o princípio governativo que leva à unidade as coisas sobre as quais exerce seu império.

Essa é uma porta tão bonita que valeria a pena fazer um esforço grande para viajar só para conhecê-la. Entretanto, ela é apenas um pormenor de um palácio que contém incontáveis outras maravilhas.

Preocupação de pôr beleza em tudo

O Palácio dos Doges compõe-se de dois andares sobre uma espécie de galeria coberta que dá para a Praça de São Marcos. Entre o corpo principal do edifício e essa galeria térrea encontra-se um terraço todo ornado por colunas encimadas por rosáceas.

No pátio interno do palácio encontramos mais uma vez uma galeria inferior, não mais com os arcos góticos ogivais, mas com arcos semicirculares, e no andar superior novamente as ogivas. Por fim, o famoso “caixotão” – mas que caixotão! – vazado por janelas grandes e pequenas que completam belamente o conjunto do quadro. No topo, um rendilhado de pedras brancas indicando novamente o amor às pontas. Imaginem o edifício sem esse detalhe; não ficaria meio sombrio? Mas com essa renda de pedras brancas é uma verdadeira maravilha. A pessoa se deleita ao ver isso precisamente porque culmina numa ponta. Tudo o que termina em ponta é belo porque representa o governo perfeito.

Vale a pena prestar atenção no chão do pátio, onde se encontram dois poços, de água doce naturalmente, para as pessoas beberem, lavarem-se, etc. Mas para o chão não ficar muito monótono, fizeram em pedra mesmo esses desenhos, porque para plantar aí provavelmente não daria. Então encheram o espaço dessa maneira agradável. Vemos assim como há a preocupação de pôr beleza em tudo.

A sala do Grande Conselho, no interior do palácio, era o local onde os magistrados de Veneza se reuniam para deliberar. Considerem o contraste entre a extrema ornamentação, de um lado, e a extrema simplicidade, de outro. O teto é todo carregado de ouro, com quadros magníficos encaixados. Ao fundo, vemos um quadro representando o Paraíso, e que toma a parede toda. Uma obra maravilhosa, tendo no alto Nosso Senhor Jesus Cristo, Nossa Senhora e a Santíssima Trindade.

Portanto, uma sala do Governo dominada por uma cena fundamentalmente religiosa, de tal maneira Governo e Igreja viviam em colaboração nesses felizes tempos. Embaixo, diante dessa obra de arte, encontra-se uma tribuna ladeada por duas portas que contrastam com o conjunto, por causa da cor clara dos batentes, a tal pedra branca veneziana, dando uma nota de alegria a uma sala que estaria exposta a ficar muito soturna se não tivesse algo de branco para contrastar com o carregado das cores.

Solenidade dos atos realizados pelo Conselho

A grande tribuna conta com uma presidência e três lugares de cada lado; um Conselho de sete pessoas, portanto. Ali se decidiam questões que interessavam aos particulares. Então, era livre o acesso à sala aos que tinham assuntos a serem julgados. Não tenho certeza, mas creio que, como nos tribunais, também ali podiam falar as pessoas delegadas pelos interessados para resolverem suas questões junto ao Conselho.

Os membros do Conselho, sobretudo o presidente, participavam da sessão com roupas riquíssimas, em geral com tecidos de valor inestimável, conferindo assim grande realce à solenidade do ato. Era para fazer respeitar o poder público que, segundo nos ensina a Doutrina Católica, provém de Deus. Não que Ele escolha a forma de governo, nem indique quem vai governar. Isso Deus deixa aos homens. Mas toda sociedade humana deve ter um governo. Portanto, é da vontade divina que haja governos, e quando os homens obedecem ao governo, cumprem o desígnio de Deus. Naturalmente eles só devem cumprir a vontade dos governos quando não são contrários à Lei de Deus, porque esta fica acima de toda lei humana.

Nota-se, assim, o desejo de inculcar naqueles que assistem ao julgamento a ideia do valor religioso da decisão a qual será tomada por autoridade de Deus. Pode acontecer que o homem tome uma decisão errada, com ou sem culpa. Com efeito, em consequência do pecado original, Deus quis permitir que houvesse pessoas com pouca inteligência ou mal intencionadas. Entretanto, apesar do risco de “burros” e canalhas governarem os homens, a Providência quis que houvesse governo. Este é o princípio magnificamente expresso aí.

Os doges: homens inteligentes, espertos, meio misteriosos

“Doge” é uma palavra italiana derivada do vocábulo latino “dux”, que deu origem também à palavra “duque”, título nobiliárquico. O Doge de Veneza tinha as honras e as prerrogativas de duque.

Ao analisar os bustos de alguns deles, que se encontram nesse palácio, nota-se que, apesar da natural diferença dos traços fisionômicos, há qualquer coisa de comum entre eles, e que corresponde a um elogio que nem sempre se pode fazer aos chefes de Estado contemporâneos: são homens inteligentes, sabem o que querem e querem o que sabem, voluntariosos e, cada um a seu modo, espertos; meio misteriosos, com a fisionomia enigmática, não dizem o que pensam, mas governam mesmo a República Sereníssima de Veneza. Aliás, como uma pequena cidade como Veneza poderia ser a Rainha do Adriático e, ao cabo de algum tempo, também do Mediterrâneo, se não fosse dirigida por homens capazes disso?

Eles usavam um chapéu denominado “barrete frígio”. A Frígia era uma região da Ásia antiga onde os homens usavam esses chapéus com essa espécie de pontinha atrás. Tornou-se o símbolo dos Estados nos quais o regime de governo não era a monarquia e sim a república. Porém, não eram necessariamente repúblicas democráticas. Veneza era uma república aristocrática, e os doges pertenciam ao Conselho, tendo seus nomes inscritos no Livro de Ouro, que era o registro das famílias nobres, e todos tinham uma grande autoridade sobre Veneza.

A lindíssima Ponte dos Suspiros

A famosa Ponte dos Suspiros comunica o Palácio Ducal às prisões, e consta fundamentalmente de duas janelas. Dificilmente se pode imaginar uma ponte mais bonita do que essa. É lindíssima! É um corredor coberto pelo qual os prisioneiros eram conduzidos para ser julgados pelas autoridades competentes. Como se vê, não há possibilidade de escapar, é uma condução que não oferece perigo de evasão.

A denominação “Ponte dos Suspiros” é muito bonita. Mas exagerou-se, na literatura revolucionária, o alcance disso. Começou-se a dizer que por aí eram levados os prisioneiros destinados a serem executados. Depois, provou-se que não era verdade. Eram conduzidos para comparecer ante as autoridades judiciais, de onde, quiçá, poderiam sair absolvidos. Portanto, era um suspiro de tristeza, mas também de esperança: “Afinal, vou ser julgado. Talvez saio dessa história…”  v

 

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 7/12/1988)

Revista Dr Plinio 264 (Março de 2020)

 

Modos de ser dos brasileiros

Com verve e profundidade, Dr. Plinio descreve os modos de ser dos diversos tipos de brasileiros. Ao analisar o pernambucano, transmite as impressões que teve ao visitar um antigo engenho de sua família paterna.

 

Os modos de ser pessoais mudam de acordo com os Estados. Por exemplo, uma coisa é o modo de ser do Rio, outra coisa o de São Paulo. Mas nenhum desses dois é o mesmo da Bahia, mais florida, mais poética, mais retórica. Pernambuco ainda traz um pouco da marca da guerra dos holandeses. E vai daí para a frente…

O militarismo gaúcho tem algo de feudal

O Brasil tem dois Estados militares muito distantes entre si. O temperamento mesmo dos que pertencem a um Estado e outro são diferentes. Um deles, o Rio Grande do Sul, é militar por estar em fronteira.

Quem vive em São Paulo, por exemplo, se encontra a uma distância astronômica da parte da fronteira onde se guerreou. Portanto, a guerra para os paulistas é uma coisa remota, mas para os gaúchos, algo muito mais recente. Por isso estes são muito militares. Grande parte do contingente do Exército brasileiro é constituído por gaúchos.

Há um modo peculiar do gaúcho ser militar. O militarismo gaúcho tem qualquer coisa de feudal. Sua raiz era ainda aquela do velho coronelismo agrícola do Brasil: fazendeiros com propriedades enormes, plantações de mate, criações de gado em quantidade, extensões colossais dominadas por senhores dessas terras, com populações grandes morando ali e que dependiam deles.

Isso fazia com que em cada guerra de fronteira – contra os argentinos, raramente contra os uruguaios – os fazendeiros e a capangada saíam como uma unidade. E viviam à la militar. Não é o militar francês ou austríaco, nem um pouco. Mas o militar caboclo com aquele chapelão, um pouco far West, laço vermelho no pescoço, poncho, chimarrão, com aquela bomba de chupar feita de prata, botas altas e correrias a cavalo pelas vastidões das criações. Eram homens fortes, sólidos e dominadores.

Os cearenses são muito inteligentes…

Outro Estado militar do Brasil inteiramente diferente é o Ceará. A configuração desse Estado terá uma certa influência no militarismo do cearense, que naquela terra seca vagueia nômade em meio aos cactos e à pobreza.

O espírito de aventura não é o mesmo do senhor com uma base na terra e mandando em gente que faz parte da raiz dele. Mas é gente de correria e tropelia por aqueles sertões desérticos, com “mata-mata”, capangada, um far West norte-americano do tempo clássico, mas acomodado às condições e ao temperamento regionais. Portanto, sem aquele ar estável e firme do gaúcho, mas com outro jeito que eu acho simpático também, e que é o espírito de aventura, uma espécie de D’Artagnan(1) da poeira, dando origem a tipos como o Padre Cícero, o Lampião e outras figuras assim, legendárias.

De todos os lugares pelos quais viajei, o Ceará foi o único em que, olhando de cá, de lá e de acolá, falando com este, com aquele, não encontrei ninguém que não fosse muito inteligente. Cheguei a andar sozinho pelas ruas de Fortaleza à procura de alguém pouco dotado de inteligência, mas não encontrei.

…mas muito brincalhões

Entretanto, eles brincam demais…  Em certa ocasião, fui a uma igreja e pedi para comungar. Na sacristia, estava um padre lendo junto a uma escrivaninha. Entrei, cumprimentei-o com meu modo cerimonioso, caracteristicamente paulista.

— Padre, bom dia!

— Bom dia – respondeu-me ele com uma voz cantante e olhar inteligente. Senti que ele estava me olhando para me pregar alguma…

Eu disse:

— Padre, eu queria comungar. O senhor me desculpe, está um pouco tarde, mas o senhor poderia me dar a Comunhão?

— Posso. Mas acontece que sou aleijado e só conseguirei ir até o altar se o senhor me carregar até lá. O senhor está disposto a que eu me pendure no seu pescoço e me leve até o altar?

Enfim, para comungar eu faria qualquer outra coisa. Respondi:

— Padre, o senhor me diga como eu devo fazer que levo o senhor até o altar e lhe fico muito agradecido.

— Não precisa, não.

— Mas, como não precisa? O senhor não quer ir?

— Não. Sente aqui, Doutor Plinio, o senhor pensa que eu não o conheço? Eu o conheço muito.

Puxou uma cadeira e continuou:

— Eu sou o Monsenhor Nini.

Eu nunca tinha ouvido falar de Monsenhor Nini na minha vida… Era tudo brincadeira. O padre queria uma prosa com uma pessoa de fora. Conversamos um tanto, ele perguntou notícias de São Paulo, etc. A certa altura, viu que eu estava com pressa e disse:

— Bem, então vamos para a Comunhão. Levantou-se e foi lépido para o altar e me deu a Sagrada Eucaristia.

O charme, a principal arma de luta do carioca

Passando para o Rio de Janeiro, veremos que o carioca é inteiramente diferente. Em primeiro lugar, não é belicoso, guerreiro, mas coloca sua confiança no charme, que é a sua principal arma de luta. Talvez seja inspirado por alguma circunstância. O Rio foi, durante muito tempo, a capital do País. Deixou de ser no tempo do Juscelino, que mandou construir Brasília.

O mundo diplomático brilhava no Rio de Janeiro, que sediava as embaixadas do exterior ainda num período brilhante em que a vida diplomática era representativa, nobre, com o aroma das velhas cortes europeias. Naturalmente, esse ambiente tinha comunicação com a alta sociedade do Rio, a qual ficava muito impregnada de todos os ventos vindos da Europa.

De outro lado, sendo a capital do Império e, mais tarde, da República, o Rio atraía as elites de quase todos os Estados do Brasil para residirem lá. Havia, portanto, elementos exponenciais do que há de melhor dos vários Estados brasileiros morando junto à doçura e à beleza majestosa, suave, descansada da natureza do Rio, muito mais bonita outrora, com aquelas curvas do mar que tinham sido desenhadas por um francês e, por isso, dotadas da graça francesa. O mar chegava bem mais próximo das casas. No Hotel Glória, por exemplo, que era naquele tempo um grande hotel, sentia-se quase as ondas baterem nos paredões do edifício.

Essa doçura do ambiente carioca, com as palmeiras imperiais, o Jardim Botânico, aquelas montanhas que parecem irmãs molemente encostadas umas nas outras, aquela brisa constante, em geral morna, que sopra no Rio, o Outeiro da Glória, lindamente colocado no Morro da Glória, que é uma verdadeira joia, ao mesmo tempo uma igreja e um brinquedo, de tal maneira é bonito; tudo isso fez com que os cariocas colocassem o seu principal meio de ação no charme. Sempre muito amáveis, brincalhões, mas gentis, sem nada de agressivo, e fazendo disso o meio pelo qual atraíam, de maneira a convergir tudo para o Rio onde reinava uma atmosfera de bonomia elegante.

Paulistas antigos e mineiros

Um tipo humano bem diferente desse era o paulista antigo: fazendeiro, sem guerras, mas senhor a conta inteira, sério, amável, com um fundo de desconfiança, mas não muito carregada, de poucas palavras. Enquanto no Rio uns vão muito nas casas dos outros, entrar na casa de um paulista era uma dificuldade. Porque eles recebiam pouca gente. Eram residências bonitas, muito bem arranjadas, para acolher os parentes e os íntimos, ou as visitas de cerimônia, recebidas numa sala especial chamada sala de visitas. O resto da casa é para a intimidade.

Podemos encontrar uma típica mansão paulista antiga na esquina da Rua Dona Veridiana com a Avenida Higienópolis, onde hoje há um clube social. Outra é o Palacete dos Campos Elíseos, que é uma casa paulista ainda mais característica do que a mencionada anteriormente.

Ao considerarmos o Estado de Minas Gerais, podemos diferenciar duas Minas. Uma é a de Ouro Preto, dos profetas do Aleijadinho, do tempo colonial: recolhida, meditativa, inteligente, calma, desconfiada, rica e econômica.

Ao longo do tempo do Império, certas qualidades foram desaparecendo. O aspecto artístico caiu bastante. Isso foi substituído pela Minas política, bancária, comercial e agrícola, que vai começando a ser também industrial. Os melhores políticos rivalizam com os gaúchos. O mineiro é rei da política na arte de sussurrar, falar baixinho, dizer a metade e dar a entender o resto. A política do gaúcho é declamatória. Eles têm esperteza, verve, agradam as pessoas, mas falando muito, aos borbotões.

Baianos cantantes e pernambucanos mandões

Já a Bahia é histórica, tradicional, cantante, poética, oratória, gastronômica, pitoresca. Basta lembrar esses predicados que todo mundo sabe o que é um baiano. Não é preciso descrever.

Em Pernambuco vejo uma peculiaridade curiosa, que não é propriamente uma mistura, mas os pernambucanos são uns baianos meio apaulistados. Os baianos têm aquele charme da primeira capital do Brasil, que foi Salvador. Como os cariocas, eles possuem a arte de agradar, são leves, engraçados, e têm uma inteligência luminosa.

Os pernambucanos são brincalhões e frequentemente bem inteligentes, mas não dão propriamente para tribunos como os baianos, que postos num púlpito, ou numa tribuna, falam e arrastam. Os pernambucanos discursam bem, escrevem livros muito bem feitos, conhecem o português primorosamente e são espíritos mais tendentes a aprofundar. Entretanto, são muito mais homens de ação, gostam de produzir, de trabalhar. Ademais, são mandões. Na terra de cada um, manda cada um; e ai de quem se meter!

Casa de engenho dos Corrêa de Oliveira, em Goiana

Transmito-lhes algumas de minhas impressões da casa de engenho da família de meu pai, em Pernambuco, quando lá estive. Era uma casa antiga, ainda do tempo colonial, localizada em Goiana. Nesse lugar nasceu um dos maiores brasileiros: Dom Vital Gonçalves de Oliveira, o bispo que lutou contra os inimigos da Igreja no tempo do Império, foi muito perseguido e morreu vítima dessa perseguição. Era um gigante!

Essa residência possuía uma capela própria do tamanho de uma pequena matriz, com imagens coloniais, tudo muito bonito, ligada à casa principal por uma ponte coberta, à maneira da Ponte dos Suspiros de Veneza.

Outrora, a família de meu pai tinha sido muito rica, como todos os donos de engenho de Pernambuco, pois exportavam açúcar para a Europa em quantidade. Contudo, como todas aquelas famílias aparentadas da redondeza, perdeu a fortuna. E a decadência foi tão grande que ruiu a ponte pitoresca, poética entre a capela e a casa, que conduzia diretamente para a parte de cima ocupada pelo órgão, de onde a família assistia à Missa, ficando duas portas abrindo para o vácuo, uma na casa da família e outra na capela.

Nessa casa havia alguns móveis bonitos, sobretudo um relógio do tempo do Império. Mas a “peça-mestra” da residência era meu tio, irmão de meu pai, apelidado de Totonho. Um homem alto, ligeiramente obeso, nariz adunco, olhos penetrantes prontos a percorrer as coisas e registrar, meio quietarrão e comilão ao máximo. Aliás, o pernambucano em geral tem muito bom apetite. Era um homem pobre, mas com uma majestade, um ar de senhorio no modo de olhar admirável. Eu tinha vontade de fotografá-lo.

A família nos ofereceu um almoço pantagruélico. A fazenda ficava perto de um braço de rio, próximo ao mar. A certa altura do dia o mar entrava trazendo mariscos, caranguejos, enfim toda espécie de guloseimas. Quando o mar entrava, os pescadores baixavam uma rede que, com o refluxo, ficava repleta dos mais variados e saborosos frutos marítimos. Tudo sem gasto nem trabalho.

Cultura do espírito

As diversões deles eram as de gente empobrecida também. A fazenda ficava a certa distância da praia. Quase todos aqueles fazendeiros tinham casa na praia, mas construções muito elementares. Chegadas as férias, iam passar uma temporada na praia. Também nessa ocasião vigorava a lei do mínimo esforço. Eles tomavam umas embarcações à noitinha, preparavam sanduíches, comedorias sem as quais o pernambucano não vive, punham dentro dos barcos e iam cantando e tocando viola até amanhecer. Sem fazer o mínimo movimento, porque o rio levava. Não tinha o mínimo risco, porque era uma espécie de canal. Era só cantar, tocar viola, contemplar o luar e comer.

Compreendo que para certos povos isso pareça sem graça, porque não está posto no meio disso o trabalho. Mas se presenciassem a cena entenderiam mais a fundo. Porque durante todo esse tempo, não pensem que se fica ocioso. É um brincar, trocar ditos de espírito, manter um tipo de relação humana que absorve a atenção; é um jogo do espírito que exige da pessoa estar atenta àquilo que faz. Portanto, esse gracejar é um jogo sério do espírito. Não é a piada vagabunda, mas uma coisa dita com inteligência. E por causa disso absorve, e a cultura se desenvolve.

Quem, encontrando uma terra boa trabalha-a e ganha dinheiro, ou enriquece por meio da indústria ou comércio, faz uma coisa louvável, desde que segundo os Mandamentos da Lei de Deus. Entretanto, quem está numa terra que só produz um tipo de fruto, o qual não dá mais dinheiro, como é o caso da cana-de-açúcar, e não tem jeito de ficar rico, o melhor partido que pode tirar da vida é ter uma existência sossegada, mas cheia de cultura. Não a cultura livresca, pela qual o meu entusiasmo é moderado, mas exatamente essa cultura do espírito, que nasce do trato de uns com os outros, da conversa séria, consistente, acompanhada de uma gastronomia esplêndida e sossego. Eu pergunto: não é um “way of life”? Não é um caminho da vida?             v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 14/3/1987)

Revista Dr Plinio 264 (Março de 2020)

 

1) Principal personagem da peça teatral de Edmond Rostand (*1868 – †1918), “Os três mosqueteiros”.

 

Fundador da Ordem de Cister

Santo Estêvão Harding, juntamente com dois outros bem-aventurados, fundou a Ordem de Cister como reação contra a decadência da Ordem dos beneditinos. Cister teve um enorme progresso com a entrada em suas fileiras de São Bernardo, o homem da mortificação e da polêmica, que esteve em luta estrênua contra todos os adversários da Igreja do seu tempo.

 

Pretendo fazer um comentário em torno de alguns dados biográficos(1) sobre Santo Estêvão Harding.

Origem da Ordem de Cister

Estêvão Harding, filho de um gentil-homem inglês, consagrou-se muito jovem à vida monástica, na Abadia de Sherborne, em Dorset. Enviado à França, na Universidade de Paris cursou brilhantemente Humanidades e Filosofia.

Terminando os estudos teológicos, foi para Roma em peregrinação. Voltando à França, decidiu conhecer Molesmes, atraído pela reputação dessa casa. Molesmes, embora dirigido por São Roberto e o Bem-aventurado Albéric, decaíra sensivelmente, talvez pelas riquezas que então possuía. Os dois santos acabaram abandonando a comunidade e, conjuntamente com Estêvão e com o apoio do Duque Eudes, de Borgonha, decidiram fundar outro mosteiro.

Essa foi a origem da célebre Ordem Beneditina de Cister, da qual Estêvão foi o prior em 1099 e o redator dos Estatutos, aprovados por Pascoal II.

Em 1109, Santo Estêvão tornou-se abade da nova casa; lutando com ingentes dificuldades para levar os religiosos à vida perfeita e recebendo pouquíssimos noviços, começou a duvidar se seu instituto era do agrado de Deus e rezou para ser esclarecido.

Recebeu então uma resposta que o encorajou e à pequena comunidade que ali vivia.

De Borgonha chegava um gentil-homem acompanhado de trinta companheiros, pedindo admissão naquela casa. Esse nobre é São Bernardo. No ano de 1115, Santo Estêvão construiu Claraval, cujo primeiro abade foi São Bernardo.

E de Claraval surgiram mais oitocentos mosteiros. Nosso Santo veio a falecer em 1134, dizendo não ir para Deus senão com o temor de servo inútil que nada tinha feito de bom. Se o Criador lhe concedera algum dom, temia não ter feito dele todo o uso para o qual o recebera.

Vicissitudes que ocorrem nas Ordens religiosas

Encontramos aqui um desses fatos frequentes na vida das Ordens religiosas, que é a fundação de novos ramos provenientes da Ordem antiga.

Com efeito, há uma dualidade de modos de proceder da graça em relação às Ordens religiosas: todas são dotadas, na sua origem, das graças necessárias para cumprirem a missão que Deus tem em relação a elas; e em geral, pelo menos na primeira fase de sua existência, elas cumprem essa missão.

Porém a partir de certo momento, como acontece em todas as coisas humanas frequentemente – eu não digo por uma fatalidade, nem por uma regra geral que não comporte exceções, mas por uma dessas regras gerais que admitem algumas brilhantes exceções –, as Ordens religiosas passam, depois da era heroica do fundador, dos grandes Santos, dos grandes feitos, por um período de arrefecimento. E esse arrefecimento ou é cortado por alguns novos Santos que aparecem e inspiram, comunicam à Ordem um impulso novo, ou então ela vai lentamente declinando para a decadência. Quando chega a determinado ponto da decadência, abre-se outra alternativa: ou a Ordem religiosa se fecha, ou floresce dando origem a um novo ramo.

Em geral, acontece que quando o ramo novo se forma, ele resplandece com um brilho igual ao da Ordem nos seus melhores dias, e o ramo velho acaba se deixando contagiar pelo ramo novo, e vai acompanhando-o um pouco de longe, como um irmão meio envelhecido acompanha, a duras penas, a marcha do irmão mais novo, mas termina se contagiando mais ou menos e se regenerando, acaba arrastando uma certa vida daí para a frente.

Por que Deus permite que algumas Ordens religiosas morram e por que Ele faz com que outras tenham a sua existência maravilhosamente prolongada, ou por uma continuidade gloriosa que, por vales e montes e sem fundação de novos ramos, marca sempre a sucessão de novas graças dentro do mesmo instituto religioso, ou, porventura, pela abertura de novos ramos? Por que então Deus a umas fecha, ou permite que se fechem, e a outras Ele guia de modo tão maravilhoso?

É que há certas Ordens religiosas, para considerar um aspecto da questão – a qual não se esgota nisso –, que têm um papel perene dentro da Igreja Católica. Elas devem irradiar um determinado perfume do qual Deus não quer que a Igreja seja privada nunca mais, para que tenha sua fisionomia, de maneira que então, de um modo ou de outro, Deus conserva aquilo.

Existem outras Ordens que Deus, na sua infinita sabedoria, julga que não são indispensáveis à economia geral da Igreja. E Ele, então, permite que elas decaiam e desapareçam.

A continuidade da Ordem do Carmo

Entre essas Ordens eu creio que nenhuma apresenta uma continuidade tão maravilhosa quanto a Ordem do Carmo.

Segundo uma tradição muito respeitável – que há todas as razões para se admitir como verdadeira –, a Ordem do Carmo, fundada por Santo Elias, passou por muitos revezes e episódios brilhantes antes da vinda de Nosso Senhor até o aparecimento de São João Batista, o qual, segundo essa tradição, foi essênio e, portanto, pertencia àquele eremitério nas encostas do Monte Carmelo, onde os sucessores de Santo Elias cultivavam a vida religiosa. São João Batista teria sido, então, o maior dos sucessores de Santo Elias.

Com o advento do Novo Testamento e a dispersão do povo hebraico, esse núcleo se transformou na Ordem do Carmo. Depois de muitas vicissitudes, ela foi transladada para o Ocidente devido às perseguições que os maometanos desferiram contra os Lugares Santos.

No Ocidente ela esteve para se fechar, quando Nossa Senhora apareceu a São Simão Stock e lhe revelou a devoção do escapulário – ele era o Geral da Ordem – e veio então uma torrente de graças. Ela decaiu de novo no período de Santa Teresa de Jesus, mas esta e São João da Cruz reformaram de novo a Ordem do Carmo que continuou a brilhar até, pelo menos, a produção de uma de suas mais altas e belas flores, que foi Santa Teresinha do Menino Jesus.

Houve depois o fenômeno da decadência que todos conhecemos. Entretanto, a Providência quis conservar essa Ordem até agora e, segundo profecias privadas dignas de crédito, ela nunca desaparecerá e continuará sempre, de glória em glória, como também de provação em provação, até que volte à Terra o seu fundador, Santo Elias, que deve estar presente nos últimos dias da História do mundo, e lutar contra o Anticristo, ser morto por ele, e ressuscitar.

Há um mistério de união, de sagrada escravidão com Nossa Senhora, e de assistência d’Ela a essa família espiritual, pelo qual ela tem uma longevidade maior do que todas as outras, não só se consideramos sua origem, mas seu futuro também.

Não obstante, foi necessária a reforma empreendida por Santa Teresa de Jesus, que não foi acompanhada por todos, dando origem a dois ramos: os Carmelitas Descalços e os Calçados, entre os quais não faltaram rivalidades ao longo da História. Entretanto, no tempo em que começamos a frequentar a Ordem Terceira do Carmo, edificava-me ver na Igreja do Carmo um altar a Santa Teresinha do Menino Jesus e outro a Santa Teresa de Jesus, que os antepassados espirituais deles de tal maneira tinham combatido.

Assim, dentro da grande paz e cordura interna da Igreja Católica, essa animadversão terminou e as duas Ordens se reconciliaram, e todo o perfume do ramo reformado passou, ao menos de algum modo, para o antigo. A Ordem do Carmo rebrilhou no todo com a glória de Santa Teresa e de São João da Cruz.

Ação que se irradiava à distância

Nós encontramos um fato semelhante na mais antiga das famílias espirituais, não do mundo, mas do Ocidente: os beneditinos.

São Bento foi o Patriarca dos monges do Ocidente, pois o monaquismo ocidental nasceu dele. Ele fundou uma Ordem religiosa gloriosa que se estendeu por toda a Europa, e produziu a conversão de bárbaros numa das situações mais duras da vida da Igreja Católica, que se encontrava internamente devorada por germes de corrupção do paganismo romano, ao qual ela mesma havia combatido. Ademais, esse próprio mundo pagão era hostilizado pelos bárbaros invasores do Império Romano do Ocidente, os quais eram arianos pervertidos por um bispo, Úlfilas, ou completamente pagãos; mas a um ou outro título ambos inimigos da Igreja.

Quando se deu o estrépito tremendo da invasão do Império do Ocidente pelas hordas bárbaras, foram os frades beneditinos que trabalharam para a conversão dos bárbaros, sobretudo na parte mais difícil, ou seja, onde não houvera Império Romano, o Cristianismo não tinha penetrado e se tratava de trabalhar em plena selva.

A conversão da Inglaterra, da Irlanda, depois da Alemanha, da Suécia, da Noruega, da Dinamarca, da Boêmia, da Áustria, em parte da Hungria também, deveu-se ao impulso dessa imensa família religiosa dos beneditinos que trabalhou de um modo altamente prestigioso.

Aliás, prestígio e beneditinismo são coisas quase que indissociáveis. Em toda a vida da Igreja, a Ordem beneditina conservou uma espécie de prestígio e de categoria que ainda tem um perfume do feudalismo medieval. Como eles trabalhavam? Um missionário ia para os povos infiéis, pregava e fundava um convento, em geral edificado em um lugar ermo, onde os monges começavam a cantar, a praticar a Liturgia, a distribuir esmolas aos pobres, a derrubar florestas, a secar pântanos e fazer plantações regulares. Por causa do prestígio que a virtude deles lhes conferia sobre as almas, as populações iam se constituindo em torno dos conventos. Mesmo quando permaneciam solitários, dos povoados iam pessoas visitá-los, e a ação deles se irradiava à distância sobre as cidades, e ajudava a ação do clero secular que nelas se fixava. Era, portanto, uma preciosidade para uma cidade estar a certa distância de um mosteiro beneditino.

Com efeito, não era próprio dos mosteiros beneditinos instalarem-se dentro das cidades. Eles estabeleciam-se sempre fora, até o momento em que as cidades se constituíram em seu entorno e eles não puderam fugir. Mas, propriamente, a ação deles era esse prestigioso apostolado à distância e de atração, que se põe longe a luzir com todo o seu brilho, atrair com todo o seu perfume, e os povos vêm, então, ao encalço do apostolado beneditino.

Enquanto os beneditinos por essa forma convertiam a Europa pagã, os monges de Cluny – que não era um ramo dos beneditinos, mas uma federação de abadias beneditinas autônomas na Europa – preparavam o florescimento espiritual, cultural, artístico, político, militar da Idade Média.

Cluny foi a alma da Idade Média. Não um ramo novo, mas como que um canteiro o qual, de repente, se pôs a deitar perfumes especiais dentro da família beneditina e se irradiou por toda a Europa.

Santo Estêvão funda Cister, Nossa Senhora lhe envia um sinal equivalente ao nascer de um sol

Mas depois de uma gloriosa dinastia de abades, de ter dado ao mundo papas como São Gregório VII, os cluniacenses começaram a decair também. Neste contexto se insere esse episódio acima narrado, de Santo Estevão Harding. Um Santo que procede da Inglaterra e entra num convento beneditino em decadência, onde encontra dois outros Santos; eles não conseguem reerguer os beneditinos decadentes.

Então saem e formam outro ramo, já com uma disciplina muito mais estrita e severa que a dos beneditinos. Começa um apostolado tão pequeno, tão incerto que até o Superior ficou na dúvida se era vontade da Providência que aquilo florescesse ou não, e pediu um sinal.

Nossa Senhora, Mãe de todas as boas iniciativas da Igreja, deu, risonha, o mais belo dos sinais. Chega um cavaleiro, São Bernardo, acompanhado de trinta outros, para enriquecer essa abadia. Mas acontece que chegar São Bernardo não é uma coisa qualquer, é como nascer um sol. Ele é um dos sóis da Igreja Católica, de toda a devoção mariana. O “Doctor mellifluus”(2) que como ninguém elogiou a bondade e a misericórdia da Santíssima Virgem. Por excelência o homem da penitência, da mortificação e da polêmica, que esteve em luta estrênua com todos os adversários da Igreja do seu tempo, principalmente com o homem que pode ser considerado, a meu ver, o vanguardeiro do progressismo; uma figura imunda, heterodoxa, asquerosamente sentimental: Pedro Abelardo.

São Bernardo, com os trinta cavaleiros, deu tal estímulo a esse ramo beneditino novo, que o antigo ficou mais ou menos para trás, e começou o florescimento da Ordem beneditina sob um novo aspecto.

Esse ramo o que fazia? O que realizam ainda hoje os cistercienses: silêncio completo, trabalho manual, estudo, clausura total, apenas saindo de vez em quando para missões, perfumadas com toda a beleza e unção da vida de clausura e que trazem uma densidade de riqueza espiritual especial por causa do caráter contemplativo daqueles missionários. Eles fazem uma missão e voltam de novo para o mosteiro.

Imaginem a sensação de um povo vendo entrar na igreja, subir à tribuna um frade o qual, conforme explicou o vigário que o antecedeu, é um homem que não fala nunca, mantendo um silêncio perpétuo, um prisioneiro voluntário e nunca sai das paredes de seu próprio mosteiro. Um homem, portanto, que ao falar incute susto a milhares de pessoas, uma vez que o silêncio perpétuo é uma coisa que assusta muito, e a reclusão voluntária é uma espécie de imagem da reclusão involuntária e traz consigo as mortificações desse estado.

O homem sobe ao púlpito trazendo uma túnica branca – o contrário dos beneditinos que estão sempre vestidos de preto –, e um escapulário negro, com a tonsura característica, trazendo na face aqueles traços típicos do contemplativo verdadeiro, e que se põe a falar coisas extraordinárias, verdades elevadas, a dizer ao povo, de frente, quais são os seus vícios, a invectivá-los, a estimular à virtude, a polemizar com os adversários. Terminado o sermão, o povo vê com assombro esse homem montar num cavalo ou num burrico e partir sozinho para seu convento, deixando atrás de si as multidões atônitas. Compreende-se qual é o valor e o prestígio desse apostolado.

O reerguimento das várias congregações beneditinas

A Ordem beneditina recebeu de Cluny a sua fisionomia verdadeira. É uma ordem muito pomposa. O Abade de Cluny é um verdadeiro príncipe, usando mitra e báculo como os bispos. Dentro do seu convento, não estava sujeito às ordens do bispo diocesano, mas diretamente ao papa, e ele gozava ali de honras parecidas com a do bispo: usava cruz peitoral, anel, tinha o direito do tratamento de excelência, as pessoas se ajoelhavam para beijar sua mão; era uma miniatura de bispo.

Abadias magníficas com um cerimonial faustoso, a liturgia beneditina é riquíssima, com os objetos mais preciosos, nas igrejas os vitrais mais magníficos. Para a vida privada dos seus monges, as abadias beneditinas eram muito austeras: longos corredores com bancos de pedra, celas pobres. Mas no que diz respeito ao culto divino e à pompa com que se cercava o abade havia o maior esplendor.

Entretanto isso degenerou em abusos. E sempre que um abuso se acentua num sentido, a graça realça a nota no sentido oposto. Então apareceu a Ordem de Cister praticando a pobreza muito mais carregadamente noutro sentido. O abade cisterciense gozando de honras análogas ao abade beneditino, mas cercado de muito menos pompa. Toda a vida cisterciense era muito mais pobre. A reação contra a riqueza tomou tal porte que os cistercienses não usaram mais os vitrais coloridos que os beneditinos utilizavam, achando que aqueles vitrais eram um fator de riqueza contra o qual era preciso reagir.

Então, passaram a usar apenas uns vitrais de tons esbranquiçados para proteger contra a luz. Mas a Igreja Católica, ainda involuntariamente, sempre produz a beleza. Usando esse tipo de vitrais, os monges cistercienses arranjaram jeito de fazer vitrais com cores opalinas lindíssimas. É uma forma de beleza discreta tal que esses vitrais brancos, com tons opalinos, disputam em formosura, junto aos colecionadores e especialistas, com os vitrais policrômicos dos beneditinos da antiga observância.

O que resultou daí? Aos poucos, um reerguimento das várias congregações beneditinas. Quase todas elas receberam uma respiração nova. Apenas não recebeu, é duro dizer, a congregação de Cluny. Ela foi decaindo continuamente até a Revolução Francesa, durante a qual do grande mosteiro de Cluny não restou pedra sobre pedra(3). A cólera de Deus caiu sobre aquilo e ficou completamente arrasado. Existem apenas as relíquias dos Santos fundadores dessa Ordem religiosa e, na cidade de Cluny, alguns edifícios auxiliares – parece-me que restos de estrebaria, outras coisas assim do antigo convento beneditino; o resto desapareceu completamente.

Mas a Ordem Beneditina permaneceu, e os beneditinos da antiga observância ficaram também. Cluny, que era uma federação de conventos, desapareceu. Mas uma porção de conventos continuaram e a Ordem Beneditina começou a apresentar essa diversificação magnífica que faz dela como que um leque com várias cores: os beneditinos antigos, com toda a sua pompa, sua dignidade, com todo o seu esplendor; os cistercienses que eu acabo de descrever; os trapistas, aos quais pertencia Dom Chautard(4), que não são missionários, nem saem jamais do convento, e mantêm um silêncio que nunca interrompem. São as várias modalidades da aplicação da Regra de São Bento.

Uma das glórias da Ordem de Cister

Uma palavra sobre São Bernardo e Pedro Abelardo. São Bernardo era, ao mesmo tempo, um homem dulcíssimo e uma tocha ardente. Ninguém sabia falar de Nossa Senhora com tanta unção quanto ele. São Luís Grignion de Montfort o cita várias vezes e com os maiores elogios.

De outro lado, ele era um polemista tremendo. E como viveu numa época em que a Idade Média já decaía e as heresias se multiplicavam, ele travou tantas polêmicas com pessoas daquele tempo, que um dos papas sob cujo pontificado ele reinou – não me lembro qual – deu a ele uma ordem de voltar a seu convento e não se meter em mais nada, porque estava ateando fogo na Cristandade inteira. Ao que São Bernardo respondeu de modo muito pitoresco que não havia coisa melhor para ele do que isso, porque havia se metido nessas polêmicas apenas para servir a Igreja, mas que não queria outra coisa senão a cela dele, agradecia ao papa a reclusão que lhe impunha, e tinha a consciência tranquila porque estava obedecendo.

Era dele, se não me engano, aquela máxima: “o beata solitudo, o sola beatitudo” – ó bem-aventurada solidão, ó única bem-aventurança. Ele queria realmente apenas a solidão. Como polemista tremendo, alcançou sucessos extraordinários.

Uma vez ele esteve na Alemanha, numa cidade onde se encontrava também o Imperador do Sacro Império Romano Alemão, o mais alto dignatário temporal da Cristandade. São Bernardo entrou na cidade e a fama de santidade e das virtudes dele era tal que o povo foi todo correndo ao seu encontro. E ele teria sido esmagado pela multidão se o próprio Imperador não o tivesse tomado pelos braços e feito montar nele. De maneira que foi um Santo que se apresentou à veneração do universo, montado num imperador. Glória extraordinária para uma época que possuía, muito mais do que outras, o sentido do valor simbólico dessas coisas.

Esse Pedro Abelardo, que foi o maior inimigo de São Bernardo, era um tipo asqueroso. Tornara-se frade e ficara apaixonado por uma freira, uma tal Heloísa. E tinha por ela uns desses amores sentimentais, românticos, que já prenunciam toda a choradeira do século XIX.

Era um homem que queria encontrar o meio-termo entre o bem e o mal, entre a verdade e o erro. Por ser um antecessor da Revolução, os escritores revolucionários o admiram muito. E não ousando atacar São Bernardo de frente, fazem insinuações usando fórmulas como, por exemplo: “Pedro Abelardo teve de sofrer a oposição fogosa e implacável de São Bernardo; precisou aguentar os raios que São Bernardo deitava contra ele”. Mas ele apanhou de fato e foi derrotado pelo santo Abade de Claraval. Por causa disso a luta contra ele representa uma das glórias da Ordem de Cister.            v

 

Plinio COrrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 17/4/1971)

Revista Dr Plinio 264 (Março de 2020)

 

1) Não dispomos dos dados bibliográficos da obra citada.

2) Do latim: Doutor melífluo.

3) Posteriormente reconstruída.

4) Jean-Baptiste Chautard (*1858 – †1935). Abade de Sept-Fons, França, autor da obra A alma de todo apostolado.