Harmonioso cântico de matizes

A Sainte Chapelle (Santa Capela), mandada construir pelo rei São Luís de França, é um desses tesouros da arte católica, inspirado por uma Fé tão rica e tão florescente, que sempre encontramos  algo de novo a se dizer e se comentar a respeito dela.

Por exemplo, acerca de seus magníficos vitrais.  Quando os conheci, tive a impressão de estar ouvindo um fabuloso coro cantando, no qual cada vitral era uma voz, e que entoava uma melodia  entendida de maneira peculiar por mim, assim como era compreendido de modo diverso pelas diferentes almas que o “escutavam”. E como é o próprio da interlocução, deram-me oportunidade de  discernir, no meu interior, mil virtualidades, anseios, sedes que eu tinha e que só percebi no momento de “beber a água”, ou seja, “ao ouvir” aquele cântico feérico dos vitrais da Sainte Chapelle.

Supérfluo dizer que me encantaram ao ponto do indizível. A partir desse momento, ao pé da letra, vários espaços de minha alma começaram a viver. Que lembranças guardo do que eles me diziam  com suas “vozes” que não emitiam sons, mas fabulosos coloridos? Eu não imaginava que daquelas cores — digamos, de um azul, de um vermelho, de um verde, etc. — fosse possível obter tantos matizes, finos, suaves, fazendo aparecer o que essas cores têm de mais delicado, sem se transformarem em cor-de-rosa, azul claro ou verde-água triviais que por aí existem.

Por outro lado, desmentiam para mim uma ideia primitiva, segundo a qual essas cores muito delicadas só eram obteníveis com matérias-primas raras e com elas apenas se podiam pintar  superfícies pequenas, deteriorando-se logo. E que, portanto, havia um irremediável divórcio entre a grandeza e aquela forma de delicadeza matizada que estava lá.

Ora, diante de mim reluziam vitrais enormes, apresentando matizes de extrema suavidade, sem serem homogêneos, com uma agradável variedade de tons dentro de cada painel. E então este  instantâneo da delicadeza fixada, tornada grandeza, e o débil que se apresenta rei, deu-me a impressão de uma vitória da alma justa, de uma vitória de tudo quanto é frágil, reto, inocente, sobre o  que é ruim, uma impressão de fato extraordinária, que produziu no meu espírito um “tressaillement” de contentamento.

Agora, num misto de análise artística e psicológica, notei também que esses matizes que assim se ostentavam não venciam com a arrogância de um “boxeur” que derruba o adversário, põe o pé em cima dele e depois acena para a platéia.

Nada disso. Essa delicadeza de matizes vencia com uma espécie de dignidade, com folga tal que ela não sentia sequer a necessidade de esmagar o adversário. Este não se encontrava estirado ao  solo: estava eliminado do panorama. Assim, criava-se a ideia de um mundo onde, desde o começo, só ele, vitral, existira. Algo parecido com aquela Sabedoria que, no princípio dos séculos,  brincava com todas as coisas…

Percebi que na delicadeza de cores daqueles vitrais havia a candura e a como que inexperiência do virginal, aliada à estabilidade e à dignidade da experiência de uma matriarca no auge mais dourado de sua vida, na plena lucidez e no pleno conhecimento das realidades da nossa existência terrena.

Ainda nessa linha de impressões, imaginando que cada vitral era como que alguém que tivesse a alma construída daquele jeito, imaginando que esses “alguéns” do mundo dos possíveis foram  sonhados pela Idade Média e tiveram começos de realização em milhares de almas, então eu pensava em São Luís, nos artistas dele que edificaram essa maravilha da arte católica, na multidão de súditos que amavam seu monarca santo e admiravam nele as suas semelhanças com o Rei dos Reis, Nosso Senhor Jesus Cristo. Eu pensava nisso e entendia ainda melhor o que foi a época áurea da Cristandade.

Essa é a análise dos matizes. Agora, a impressão que tive do conjunto de todos os vitrais foi a de uma harmonia constituindo uma espécie de figura não-expressa, ideal, de um vitral arqui-delicado,  de um vitral perfeito contendo em si todas as cores arqui-suaves naquele estado que acabei de descrever. Trazendo consigo a noção de que essa delicadeza assim apresentada — longe de ser inimiga dos tons mais fortes, na linha dos estados de alma como na linha das cores e na dos sons — fazia pensar no desfile sem fim de todos os coloridos possíveis, mesmo os mais antitéticos, em todos os estados de espírito possíveis, mesmo os mais diversos, dentro daquela harmonia. E dessas impressões se desprende, afinal, uma ideia de perfeição enquanto perfeição, de harmonia enquanto  harmonia, de santidade enquanto santidade — portanto, de verdade enquanto verdade, e de beleza enquanto beleza — reluzindo neste píncaro da montanha da delicadeza, a partir do qual se percebe  toda a cordilheira dos sentimentos opostos e afins que constituem o espírito indizivelmente rico da Igreja Católica.

Plinio Corrêa de Oliveira – Revista Dr Plinio 44 (Novembro de 2001)

São Martinho de Tours, incansável apóstolo e taumaturgo

Nesse mês de novembro Dr. Plinio nos dá a conhecer alguns belos e tocantes aspectos da vida de São Martinho de Tours, um dos mais célebres heróis da Fé naqueles albores da Cristandade  medieval, venerado por suas grandes virtudes e denodado zelo pela salvação das almas.

Para se compreender bem o elemento de unidade da vida de São Martinho de Tours — cuja festa é celebrada em 11 de novembro — devemos considerar o que temos dito a respeito dos santos suscitados  pela Providência para serem missionários, evangelizadores, reis, príncipes, e daqueles de cujo apostolado decorreu o nascimento de nações inteiras para a Cristandade.

Factótuns de Deus

Há santos chamados a passar sua existência nos primórdios da vida religiosa de um povo, e quando essa trajetória espiritual começa a se consolidar, surgem outros apóstolos com vocação definida para continuar o trabalho daqueles. Fundam ordens religiosas, universidades, são grandes pregadores que incentivam as almas, etc.

Outros têm a curiosa tarefa de “fazer um pouco de tudo”. Sem pressa, sem dispersão, com perfeito domínio de si, enfronham-se em toda espécie de acontecimentos. Eles sustentam a boa causa em toda parte onde ela precise de um auxílio e nas mais diversas condições em que essa ajuda lhes é requerida. São, por assim dizer, os factótuns de Deus, aqueles que realizam tudo quanto desejam Nosso Senhor e sua Mãe Santíssima.

Se analisarmos sob esse prisma a vida de São Martinho, a compreenderemos. Do contrário, ficaremos apenas com um conjunto de informações biográficas, sem maior sentido unitário.

Exemplo de caridade cristã

Vejamos então alguns dados sobre ele, apresentados por Dom Guéranger:
Martinho nasceu na Panônia, Hungria, no ano 316. Portanto, viveu numa época remota e em terras que, naquele tempo, eram semibárbaras. Algo semelhante à selva Amazônica, senão pior. Engajado muito cedo nos exércitos romanos, ele se torna conhecido somente quando partilha seu manto com um pobre nas portas de Amiens.

O império romano possuía alguns destacamentos militares em Amiens, situada na Gália, atual França. Devido a transferências internas, ele foi enviado da Panônia para aquela cidade gaulesa.

Não se sabe ao certo quando São Martinho se converteu, mas em determinado momento tornou-se catecúmeno, isto é, preparou-se para receber o Batismo. Nessa ocasião deu-se o famoso episódio: estando ele montado a cavalo, num período muito frio, encontrou-se com um mendigo que vagava pelas portas de Amiens, desamparado e sem agasalho. Tocado pela miséria do próximo, com extrema bondade o Santo dividiu seu próprio manto em duas partes, entregando a metade ao indigente.

Esse fato adquire maior significado na Europa, onde o inverno é bem mais rigoroso e agressivo ao corpo humano, do que em nossas regiões tropicais. Um brasileiro pode não ter manto, mas possui pulôveres. Quando esfria, ele permanece acalentado dentro de casa, ou, se precisar sair, usa uma condução qualquer que o permite manter-se protegido da baixa temperatura. O frio incomoda um pouco, e depois não se pensa mais nele.

No continente europeu, porém, o inverno é bastante sério. Nessas condições, andar léguas a cavalo sem manto, ou com metade dele, redunda em grande sacrifício. Por isso, o gesto de São Martinho comoveu toda a Idade Média como sendo uma expressão própria da caridade cristã, oposta à dureza do paganismo romano.

De maneira que esse episódio pode ser considerado o primeiro feito simbólico da vida dele, recordado na era medieval através de vitrais, medalhas, iluminuras, quadros, etc., enquanto crescia a devoção a São Martinho de Tours.

Apostolado e milagres

Uma vez batizado, deixa o exército e vai estudar com o grande doutor das Gálias, Hilário de Poitiers. O desejo de converter seus parentes, que eram pagãos, conduziu-o à Panônia.

Percebe-se como a existência de São Martinho é fecunda, semeada de viagens, de encargos, de missões evangelizadoras, etc. Ele havia sido um legionário romano na sua Panônia natal, de onde passou para a Gália. Em determinado momento, converteu-se, abandonou as fileiras militares e foi — ele, um “botocudo” da Hungria — estudar teologia e filosofia com Santo Hilário de Poitiers.

Em seguida o vemos retornar à Hungria, a fim de converter seus pais. Após esse tempo junto à família, regressou à Gália, onde fundou o mosteiro de Ligugé, o primeiro da França. Passou a levar uma vida contemplativa, praticando muitos milagres que o tornaram célebre, e logo afluíram discípulos a povoarem sua solidão. Assim, depois de ser um santo que procurou as pessoas, dirigiu-se a um exílio no qual foi procurado por elas…

Bispo da diocese de Tours

Continua a biografia:
Por ocasião da morte de Santo Hilário, ele foge dos habitantes de Poitiers que queriam tê-lo como bispo. A população de Tours será mais hábil. Em 371, confiscam-no por uma espécie de armadilha e o convencem a se ordenar sacerdote para ser elevado ao episcopado.

Esse esquivar-se das honras não é fenômeno muito comum em nossa época, como também não o é a corrida de povos atrás de um santo para que este se torne bispo.

Ora, no século IV, período histórico chamado de decadência e miséria, os santos pululam e os homens se apressam ao encalço deles. Como isso é diferente do pseudo-progresso, do pseudo-esplendor da era contemporânea!

São Martinho, então, deixa-se sagrar Bispo, mas sabe que a vocação contemplativa persiste nele. Fundou Marmoutier, um convento a três quilômetros de Tours, sua diocese. Essa casa religiosa floresceu, tornou-se seminário, centro de estudos e escola onde diversos futuros bispos se formaram. Trabalho assaz importante, pois de um bom seminário surgem bons sacerdotes e um bom episcopado.

E de novo constatamos como a vida de São Martinho foi extremamente fértil e rica em realizações pe-la causa da Igreja.

Operando milagres, o “selvagem” da Hungria, o ex-legionário romano, posto à frente da formação das almas, preparou uma geração de sacerdotes e de futuros sucessores dos Apóstolos.

Até o fim, um grande batalhador

Muitas vezes se dirigia à solidão de Marmoutier, onde era favorecido por visões de Nossa Senhora, mas também aguilhoado pelas perseguições do demônio. É a condição própria àqueles que se isolam: por um lado, visitados pelas consolações do Céu; por outro, importunados amiúde pelo inimigo de nossa salvação.

Para Santo Inácio de Loyola, a melhor prova do êxito de um retiro espiritual é o fato de a alma ser objeto, ao mesmo tempo, de graças extraordinárias e de investidas do demônio.

Assim sendo, compreende-se que, no seu isolamento, São Martinho estivesse sujeito a essas vicissitudes. De qualquer forma, ali se acrisolava no amor a Deus e ao próximo, traduzidos num incansável esforço de evangelização:

Seu zelo pelos povos transborda os limites de sua diocese. Ele é visto nas dioceses vizinhas e até em Artois, na Picardia; em Trèves na Bélgica, e mesmo na Espanha. Por toda a parte sua palavra, sustentada por seus milagres e caridade, opera maravilhas.

Sem abandonar suas prerrogativas episcopais, este homem se transforma num infatigável missionário, percorre as mais distantes regiões numa época em que tais deslocamentos não se faziam sem grandes incômodos, e realiza verdadeiras maravilhas com seus sermões e milagres.

Esse amor de Deus o leva a Flandres em novembro de 397, para ali estabelecer uma concórdia entre os monges, problema sempre difícil. E foi ali que ele, ancião de mais de 80 anos, faleceu na paz do Senhor.

Eis o fim sereno, em meio à luta, de um grande apóstolo e taumaturgo. Exemplo eloquente destes homens de Deus que cultivam e colhem os frutos das sementes que outros santos plantaram.

Plinio Corrêa de Oliveira

 

Nossa Senhora, Mãe da Divina Providência

O amor de Nossa Senhora pelas almas faz com que a Divina Providência lhes outorgue, através das mãos d’Ela, abundantes graças nas mais difíceis situações. Maria é Mãe de Deus e usa dessa condição para favorecer a cada um de nós. Dr. Plinio muito prezava essa antiga invocação mariana, sob o patrocínio da qual colocou um importante segmento de sua obra.

No mês de novembro(1) celebra-se a festa de Nossa Senhora Mãe da Divina Providência, uma das belas invocações com que imploramos a infatigável assistência de Maria Santíssima.

Razão de nossa confiança

Na verdade, em meio ao nosso peregrinar por esta terra de exílio, a razão de nossa confiança é a tutela da Providência Divina, exercida por meio de Nossa Senhora. Deus provê a cada um de nós em nossas necessidades espirituais e temporais, a fim de realizarmos aquilo para o que fomos criados, ou seja, cumprirmos nossa vocação.

Podemos nos perguntar por que Nossa Senhora é chamada a Mãe da Divina Providência. Ela o é, não por ter gerado a Providência Divina, e sim porque, segundo os desígnios do Altíssimo, está destinada a aplicar maternalmente os decretos d’Ele. Donde o governo de Deus sobre nós se fazer com uma plenitude de carinho, de comiseração, de afeto, que esgota de modo completo tudo quanto o homem possa imaginar.

O fato de termos uma Mãe que dirige nossa vida espiritual, nosso apostolado, nossas ações diárias é, pois, o motivo superior pelo qual confiamos.

Lembro-me de uma bela e expressiva imagem de Nossa Senhora Mãe da Divina Providência, que foi objeto de minha veneração na igreja dos barnabitas, na Rua do Catete, na cidade do Rio de Janeiro. Esses religiosos — oficialmente conhecidos como Clérigos Regulares de São Paulo — difundiram essa devoção, incentivados por seu fundador, Santo Antônio Maria Zaccaria.

Aliás, outro santo, São Caetano de Tienne, contemporâneo de Santo Antônio Maria Zaccaria, terá sido de certo modo quem levou mais longe a confiança na Providência Divina. Com efeito, proibiu aos religiosos da ordem fundada por ele, que pedissem esmola: quando os teatinos precisavam de alguma coisa, deveriam ficar na rua, em atitude de oração a Nossa Senhora, certos de que Ela os atenderia. Quer dizer, colocavam-se inteiramente nas mãos da Divina Providência.

Sublime misericórdia do amor materno

Gostaria de chamar a atenção para o significado da palavra “mãe” e o alcance concreto que ela possui na questão da confiança.

Aquilo que sempre tornou sublime os laços entre a mãe autêntica e seu filho reside no fato de que ela, por sua natureza retamente desenvolvida, é levada a ter uma forma de dedicação à sua prole que nem o pai possui. Este, mesmo que seja ótimo, conserva em relação ao filho uma espécie de austeridade, pois representa de modo mais vigoroso certos princípios como a justiça, a ordem, a força, etc., mais próprio do elemento punitivo do casal.

Já o característico da mãe é demonstrar uma forma de carinho tal pelo filho que, mesmo nas ocasiões em que se impõe a ela admoestar o seu rebento, ela o faz mais suave e lentamente. Pelo contrário, é mais rápida em perdoar, em condescender, em esquecer, porque representa quase que só a misericórdia.

Na mãe, o traço de justiça se acha um tanto diluído, segundo a ordem natural das coisas, enquanto que o da indulgência é levado o mais longe possível. Daí haver, aliás, o perigo de o amor materno ocasionar alguma moleza, frouxidão, de tal maneira que, se não existisse o contraponto da figura paterna, a educação dada pela mãe, em numerosos casos, seria insuficiente.

O genuíno amor materno ama o filho porque é filho, ainda que este seja ruim; sobrepuja tudo e se vincula por misericórdia ao fruto de suas entranhas. Razão pela qual, todos têm em relação ao amor materno certas condescendências excepcionais, sabendo que ele pode atingir o mais alto grau de sublimidade.

Inimaginável ternura que regenera e santifica

Isto que diz respeito às mães terrenas, com maior propriedade se aplica a Nossa Senhora, exceto o perigo de demonstrar fraqueza e debilidade, que n’Ela não existem. Sua ternura para conosco é levada ao inimaginável, sem nenhuma cumplicidade com nossos defeitos. Compaixão, sim; complacência, não. Sem embargo do quê, segundo São Luís Grignion de Montfort, Maria Santíssima ama a cada um de nós mais do que todas as mães existentes no mundo amariam, juntas, um filho único. Isso diz respeito tanto a nós quanto a qualquer ímpio.

Nossa Senhora é Mãe da graça, e o amor d’Ela a um indivíduo ruim não consiste em fechar os olhos para sua maldade, mas em obter-lhe de Deus favores seletíssimos para que ele possa se arrepender e se emendar. Quer dizer, o amor materno de Maria tem força regeneradora para elevar e santificar uma alma; Ela é a Medianeira das graças necessárias para a justificação daquele a quem Ela ama. Por causa disso, sua misericórdia nunca é susceptível de uma condescendência errada, embora sua contemporização vá mais longe do que a de qualquer mãe terrena.

Confiar em Maria, sem desanimar jamais

A consideração dessas verdades me leva a insistir num ponto que nunca me canso de salientar: confiemos, confiemos e confiemos a todo instante em Nossa Senhora, lembrando-nos sempre de sua extrema meiguice para conosco, de sua compaixão para com as misérias de cada um de nós. Tenhamos presente que, na Salve Rainha, Nossa Senhora é chamada “Mãe de misericórdia”, e que o Lembrai-vos acentua a bondade d’Ela para com o pecador arrependido.

Não receio parecer repetitivo ao renovar essas recomendações, pois uma vida espiritual que não as contemple acaba se extraviando. Sem nos compenetrarmos da misericórdia de Maria Santíssima, nada de bom faremos. Cultivando-a, nossa alma se cumula de confiança, de alegria e de ânimo. Tendo a Mãe da Divina Providência como nossa própria Mãe, nada nos deve abater. Ela tudo resolverá se, confiantes, implorarmos seu maternal socorro.

1) Em muitas paróquias do Brasil essa festa é celebrada no dia 11 de novembro; em outros países, no dia 19 do mesmo mês.

Plinio Corrêa de Oliveira

O inimaginável e o sonhado se encontram

A prática da Religião assídua, séria, reta, durante séculos, levou as almas a desejarem o estilo gótico. Em certo momento, quando surgiram seus primeiros esboços, todos disseram: “É isso mesmo que almejamos!” E o gótico se espalhou pelo mundo inteiro.

 

Quando há uma sociedade — ou seja, o corpo social inteiro — que vive em uníssono, deseja muito uma mesma coisa, aparecem os artistas que, imbuídos do mesmo desejo, fazem o que a sociedade quer. E a obra de arte é uma consonância de um ou de alguns homens, dotados de talentos especiais para isso, com o que a sociedade deseja.

O encontro entre o inimaginável e o sonhado

Sempre que vejo esses monumentos góticos, e Colônia de um modo especial, fico tomado pelo encontro, no mais fundo de minha alma, de duas impressões contraditórias.

De um lado, trata-se de uma coisa tão bela que, se eu não conhecesse, não seria capaz de sonhá-la. Ela, portanto, supera qualquer sonho que eu pudesse ter. Mas de outro lado, olhando para aquilo, algo diz no fundo de mim: “Isso deveria existir! E essa fachada inimaginável me é, ao mesmo tempo e paradoxalmente, uma velha conhecida, como se eu toda a vida tivesse sonhado com ela!”

O inimaginável e o sonhado se encontram numa aparente contradição, e há qualquer coisa nesse encontro que satisfaz a minha alma profundamente. Tenho uma impressão interna de ordenação, elevação, apaziguamento e força, um convite — acabo de falar em apaziguamento — à combatividade, que me faz bem, até mesmo na idade em que estou(1).

Quer dizer, em última análise, há qualquer coisa em nós que deseja algo, que não somos capazes de imaginar. Mas, este fundo, que é feito para certas coisas, deseja-as e conhece-as tão bem que, quando as vê, tem a impressão de encontrar um velho conhecido. E, de outro lado, tem uma surpresa porque encontra o inimaginável. Então, há no mais profundo de nós mesmos algo que, sem percebermos, delineia uma figura de maravilhas, a qual eu não diria sonhada, mas é anelada, esboçada, que nasce das necessidades da nossa alma.

Quando encontramos essa maravilha, dizemos para nós mesmos:

“Ah! Aqui está a fachada esperada! Eu não podia morrer sem tê-la visto. A minha vida não seria completa; não seria inteiramente eu mesmo se não a tivesse contemplado. Ó fachada bendita, ó estilo bendito, que faz vir à tona algo de profundo de minha alma e, de certo modo, faz com que me conheça a mim mesmo, compreendendo aquilo para o qual fui criado.

“É algo de misterioso que pede toda a minha dedicação, todo o meu entusiasmo, e que minha alma seja inteiramente assim. Uma escola de pensamento, de sensibilidade, um estilo de vontade, um modo de ser dali se eleva e para o qual sinto que nasci. Algo muito maior do que eu. Esses homens que me antecederam tinham também no fundo de suas almas este desejo. E até conceberam o que não concebi e fizeram o que não fiz. Tinham eles um desejo tão alto, tão universal, correspondendo aos anelos profundos de tantos homens, que o monumento ficou para todo o sempre: a Catedral de Colônia!”

 O “lumen” de nossas almas: mais belo que os vitrais

Há um conceito de luz que nasce em meu espírito, a qual não é, bem entendido, a luz elétrica, nem sequer uma linda luz passando pelos vitrais. Mas é muito mais do que isso: uma luz que está dentro da alma humana, à procura do que é luminoso fora, para a festa do encontro e da participação. A luz de dentro encontra a luz de fora. Mais belo do que todos os vitrais da Catedral de Colônia é o “lumen” que há no fundo de nossas almas, por onde nos extasiamos quando vemos essa Catedral. É uma claridade existente em nós, um movimento de alma, um desejo, o qual é mais pulcro do que aquilo que desejamos.

Imaginemos que alguém fosse oferecer a Nossa Senhora uma flor. Ela olharia a rosa e daria um sorriso encantador. O que havia no fundo d’Ela, encontrando a rosa, brilhou. Mas… quanto o sorriso de Nossa Senhora é mais belo do que a rosa! Portanto, aquilo que há no fundo da alma d’Ela vale mais do que algo que A fez sorrir!

Podemos dizer algo semelhante das almas que amam a Catedral de Colônia. Cada vez que uma pessoa passa por lá, e em espírito de Fé olha aquilo e se entusiasma — admira um vitral, uma ogiva, uma escultura, as torres, aquela pequena agulha existente entre as duas torres —, a catedral que ela tem no fundo da alma, as maravilhas que possui em germe sorriem. E isto agrada mais a Nosso Senhor no sacrário e a Nossa Senhora no Céu do que a própria Catedral.

E quando vemos os esplendores da Catedral de pedra, o povo que entra e sai, dizemos: “Como os homens gostam disso!” Podemos afirmar também: “Deus, no mais alto do Céu, como gosta disso!”

Mais do que isso, Deus no mais alto do Céu e Nossa Senhora gostaram do nosso encanto por aquela Catedral. Mais belo do que a Catedral é o amor que o homem tem por ela. Porque o homem é a obra-prima de Deus nesse universo visível. E todos os movimentos de alma existentes em nós, que nos levam a amar aquilo que Deus fez, ou que o Espírito Santo sugeriu para a glória de Deus, são mais belos do que as coisas materiais realizadas pelo homem.

Nós sorrimos para a Catedral; o Criador e Maria Santíssima sorriem para nós. Exatamente como no caso da rosa. O ofertante dessa flor sorriria, vendo Nossa Senhora sorrir para a rosa. E diria: “Esse sorriso é mais belo do que a rosa. A alma que viu a rosa é mais pulcra do que a rosa vista por ela.”

Assim é o “pulchrum” que há no fundo da alma do inocente. Trata-se de uma forma de luz, que consiste no anseio, no desejo, na vontade de encontrarmos uma coisa que não sabemos o que é, mas quando a encontramos percebemos que a procurávamos. E isso é o enigmático.

Às vezes encontramos coisas inesperadas

Há um dito francês muito verdadeiro, que vez por outra repito nestas exposições: “Quem não sabe o que procura, não sabe o que encontra”. Porém, tem ele a sua limitação. Às vezes os grandes encontros de nossa vida são das coisas que procurávamos sem saber, porque são inefáveis. Quer dizer, não há palavras capazes de exprimi-las adequadamente. O melhor de nossa alma está no que procuramos, mas não temos palavras para exprimir. E quando encontramos, não temos palavras para suficientemente louvar.

E nesse encontro do inexprimível com o que está acima de qualquer louvor se forma um arco, que dá alegria para nossa alma. Aí está o sentido de nossa vida. Um homem que ao longo de sua vida encontrou o que deveria procurar pode dizer: “Eu vivi!” Se não encontrou, na hora de sua morte ele pode afirmar: “Eu andei pela vida como um cão sem dono. Comi nas latas de lixo, bebi nas sarjetas, descansei na garoa, na lama, na chuva ou no sol, mas não vivi. Porque não encontrei a mão amiga que me agradasse, o dono bom que me afagasse. Fui feito para a fidelidade, para servir, mas não encontrei a quem servir. Passei uma vida vazia e morro de qualquer jeito”.

Assim poderia dizer um de nós que não encontrasse aquilo que deveria procurar.

Quando o menino vai se fazendo moço, depois varão, e daí para a frente, essa procura vai sendo satisfeita pelas circunstâncias da vida, porque ele encontra, logo nos primeiros vislumbres — se de fato procura —, a sabedoria.

Diz a Escritura que a sabedoria é como uma mendiga, à porta de nossas almas desde a madrugada, à espera que abramos para a recebermos. Na realidade, ela tem o esplendor de rainha, que com as suas carícias de mãe, suas iluminações incomparáveis, vai convidando a inocência para segui-la. E a inocência que trilha o caminho da sabedoria é o pedúnculo, a raiz da santidade.

Então, esta inocência, que se deixa guiar pela sabedoria, faz com que o homem encontre bem cedo a Santa Igreja Católica, Apostólica, Romana e diga: “Aqui há mistério. Esta é a maravilha das maravilhas! A ela eu me dou e já de uma vez! E, através da Igreja, quantas outras maravilhas para ver! Na Civilização Cristã, quanta coisa no passado, isto, aquilo, aquilo outro!”

De todo verdadeiro contrarrevolucionário católico se pode dizer: ele é luz

E cada um de nós vai fazendo uma espécie de museu interior mais belo do que qualquer sala adornada, onde tenhamos recolhido os objetos que possuímos. São as lembranças das coisas que nos tocaram a alma, desses momentos nos quais tivemos tal entusiasmo, satisfação e equilíbrio, que ficamos de certo modo sem respiração e sem saber o que dizer.

Ao longo dos tempos colecionamos coisas que vimos, impressões que tivemos, raciocínios que fizemos, deliberações que tomamos, gestos que presenciamos, em relação ao verdadeiro, ao bom e ao belo; mas também ao mentiroso, ao ruim e ao feio, que constitui o horror simétrico com o belo e o realça.

E vamos ordenando tudo isso, explicitando nossa própria alma com essas coisas que selecionamos; ao explicitar, progredimos no conhecimento de nós mesmos. E a bem dizer, esta luz existente em nosso interior vai se definindo. Vamos nos tornando ela, e ela vai se tornando nós. Olhando-a, ficamos cada vez mais ela. Por outro lado, olhando-nos, ela fica cada vez mais nós.

Há uma reversibilidade. A luz entra em nós, e parece ser criada só para ser nós. Exatamente como num belo vitral onde incide um raio de sol: atravessa-o tão bem e transmite uma luz tão bonita, que se diria que o Sol existe para incidir aquele raio naquele vitral. Durante todo o dia, ele torrou o vitral, espelhando-se e colocando no chão rubis, esmeraldas, safiras ou topázios, e depois vai se deitar porque cumpriu sua tarefa. Começa a anoitecer.

Tem-se a impressão de que o Sol vive para aquela joia projetada no chão, a qual anda enquanto ele se move; o astro rei vai transformando cada centímetro do granito, sucessivamente, em joia. Até que, cumprida a tarefa, a joia vai desbotando e o Sol se escondendo. Já não se vê seu reflexo no chão, mas apenas no vitral. E até os últimos lampejos do dia, olha-se aquele pedaço de vitral que nos encantou: verde, vermelho, azul, amarelo. Quando o Sol se põe completamente, tem-se vontade de dizer: “Eu também vou dormir, porque tive o meu dia cheio. Vi a joia passar pelo granito da Catedral!”

Esses encontros de alma, que definem a vida do inocente, exprimem algo que nos diria mais ou menos o seguinte: “Você foi feito para aquilo; aquilo foi feito para você. E de tal maneira você o ama, que se diria que aquilo existe para você, que isto é você, ou você é aquilo. E quando você fala daquilo, mesmo que aquilo não esteja presente, tem-se a impressão de vê-lo, pois está na sua alma. E, presente na sua alma, talvez seja visto de modo mais belo do que em sua realidade policromada e material”.

Admirando as maravilhas da Criação, pratica-se o amor a Deus

Todos percebem que tudo isto é um modo de afirmar: “Credo in unum Deum, Patrem omnipotentem, Creatorem caeli et terrae, visibilium omnium et invisibilium” — Eu creio em um só Deus, Pai onipotente, Criador do céu e da terra, e de todas as coisas visíveis e invisíveis.

Por que Deus?

Porque o homem sabe, perfeitamente, que um caco de vidro é um caco de vidro, e o Sol não é senão o Sol. E que tudo aquilo seria uma ilusão se não fosse a expressão de um Ser infinitamente maior, que se oculta aos nossos sentidos, mas se mostra através desses símbolos. Que toda essa feeria seria absurda se esse Ser não existisse.

Ora, como não é possível que tanta ordem e tanta beleza sejam absurdas, a conclusão é que aquilo é! E no fundo, sem percebermos, amando aquele rubi, aquele jogo de luz, aquele vitral, amando a alma que ama aquele vitral, nós amamos ainda mais o puríssimo Espírito, eterno e invisível, que criou tudo aquilo, para nos dizer:

“Meu filho, Eu existo. Ama-Me e compreende: isto é semelhante a Mim. Mas, sobretudo, por mais belo que isto seja, Eu sou infinitamente dessemelhante disto, por uma forma de beleza tão quintessenciada e superior, que só quando Me vires verdadeiramente te darás conta do que Eu sou. Vem, meu filho, que Eu te espero! Luta por mais algum tempo, que Eu te mostrarei no Céu belezas ainda maiores, na proporção em que for grande e dura a tua luta. Quando estiveres pronto para veres aquilo que Eu tinha intenção de que visses quando te criei, Eu te chamarei.

“Meu filho, sou Eu a tua Catedral! A Catedral demasiadamente grande! A Catedral demasiadamente bela! A Catedral que fez florescer nos lábios da Virgem um sorriso como nenhuma joia, nenhuma rosa, nenhuma das meras criaturas que Ela conheceu, fez florescer.”

Esta Catedral é Nosso Senhor Jesus Cristo. É o Coração de Jesus, que colocou no Coração de Maria harmonias inefáveis. Ali nós O conheceremos.

Quando vemos monumentos como esse, temos certa sensação do demasiadamente grande, de um demasiado delicioso, que não tem proporção conosco, mas para o qual voamos; é a esperança do Céu.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 13/10/1979)

 

1) Quando proferiu esta conferência, Dr. Plinio tinha 70 anos de idade.

 

Incansável e maternal proteção

Nossa Senhora está presente na ininterrupta luta que cada homem trava contra seus defeitos, para adquirir maiores virtudes. E ainda que não nos lembremos d’Ela, Maria intercede por nós no alto do Céu, com uma misericórdia que nenhuma forma de pecado pode esgotar.

Nossa Senhora não é um refúgio apenas para os que tenham cometido faltas leves, mas também para os autores de pecados de gravidade inimaginável e para os culpados das ingratidões inconcebíveis. Pois é próprio da grandeza da Mãe de Deus, na qual tudo é admirável e extraordinário, ser um imenso e perfeito refúgio.

Desde que o pecador se volte para Ela, a Virgem Santíssima cheia de bondade o protege, concede-lhe toda espécie de perdão, limpa-lhe a alma, dá-lhe forças para praticar a virtude e o transforma de filho pródigo em homem bom e fiel.

Plinio Corrêa de Oliveira – (Revista Dr Plinio 32 -Novembro de 2000)

Moldura para a figura de São Willehade

Os saxões eram pagãos muito agressivos e frequentemente invadiam as terras dos francos, cometendo crimes e pilhagens. Carlos Magno, numa cruzada em defesa da Religião Católica, atacou-os e derrotou-os. Eles se revoltaram, mas novamente o Imperador venceu-os e lhes impôs um tributo em benefício da Santa Igreja.

 

São Willehade, bispo e confessor. Foi o primeiro Bispo de Bremen, diocese criada pelo Imperador Carlos Magno, após suas conquistas. No ano de 788, 21º do seu reinado, Carlos Magno deu àquela igreja um diploma lavrado nos seguintes termos:

“Em nome de Nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo, Carlos, por vontade da Providência Divina, Rei. Sob o auxílio do Deus dos exércitos, conseguimos uma vitória nas guerras. É só n’Ele que nos gloriamos. E é d’Ele que nós esperamos neste mundo a paz e a prosperidade, e no outro a recompensa eterna.

Salvem-se, pois, todos os fiéis de Cristo, e os saxões rebeldes aos nossos ancestrais, pela obstinação da perfídia e por um tão longo tempo rebeldes a Deus e a nós, até que os tivéssemos vencido pela Cruz do Senhor, não pela nossa. Por sua misericórdia, nós recebemos a graça do batismo, e os levamos à antiga liberdade, desobrigando-os de todos os antigos tributos que nos devem. Pelo amor d’Aquele que nos deu a vitória, de tributários os declaramos devotamente súditos.

Como se recusaram a tal presente e o jugo de nosso poder, agora que foram vencidos pelas armas e pela Fé, ficam obrigados a pagar a Nosso Senhor Jesus Cristo e seus sacerdotes o dízimo de todos os seus animais, frutos e culturas.”

Zelo do poder civil para com o poder eclesiástico

A ficha não se presta propriamente a um comentário a respeito de São Willehade, bispo e confessor, porque a propósito dele diz que foi Bispo de Bremen, e a respeito dessa cidade transcreve o decreto de criação da Diocese de Bremen, no ano de 788, por Carlos Magno.

De maneira que, inevitavelmente, o comentário tem que ser sobre o decreto. Parece uma coisa extravagante fazer a respeito de um documento legal uma conferência que deveria versar sobre a vida de um Santo. Quem lesse os decretos promulgados hoje não encontraria tema para tal conferência. Por exemplo, um decreto sobre o trânsito ou, como no presente caso, a respeito de questões fiscais — porque Carlos Magno está lançando um imposto —: que matérias de vida espiritual podem caber?

É interessante analisarmos este decreto para compreendermos a modificação completa do ambiente que vai da civilização cristã para a de nossos dias: o Imperador especifica o modo pelo qual esse tributo precisa ser pago, e torna obrigatório o cumprimento desse dever para com a Igreja.

Vejam que relações íntimas entre poder eclesiástico e o poder civil havia naquele tempo, o cuidado do poder civil pelo poder eclesiástico. E com que abundância estava provida a manutenção do clero e do culto na Catedral de Bremen, para a glória de Deus antes de tudo e, secundariamente, para a cristianização desses povos ainda semipagãos.

Um ato ilícito que produziu bons frutos

Observem uma outra coisa interessante: como o Imperador descreve o seu papel enquanto cobrando esse imposto. Carlos Magno mostra que se trata de um povo que era pagão, o qual ele reduziu pelas armas, quer dizer, tem sobre esse povo o direito de conquista. E um direito de conquista legítimo porque os saxões, muito agressivos, continuamente invadiam as terras dos francos, de quem Carlos Magno era o rei, fazendo provocações, crimes e pilhagens nas fronteiras, e queriam impor a religião pagã.

Então, Carlos Magno, numa cruzada em defesa da Religião Católica, invadiu as terras deles e derrotou-os. Passando um pouco dos limites, ele estabeleceu o princípio: ou crê ou morre; quem não é batizado deve ser morto. E, naturalmente, o número de batismos foi enorme.

Também a quantidade de execuções capitais foi muito grande. Correu água batismal e correu sangue às torrentes nessa ocasião. E ele até foi censurado pelo Papa, porque não se pode colocar ninguém diante da alternativa: ou crê ou morre.

Eu estou de acordo com o Papa e não com Carlos Magno. E não é numa atitude contestatária — longe de mim isto — que vou, entretanto, fazer a seguinte observação: é que muitos batizados forçados deram resultado certo; e depois eles e os seus filhos ficaram na Fé Católica e nela perseveraram até hoje, ou até pouco tempo atrás.

Quer dizer, talvez não tenha sido inteiramente lícito, ou não foi lícito e por isso não foi bom. Afirmar que não tenha sido útil já é uma outra questão.

Produziu lá seus frutos…

Da barbárie para o píncaro da cultura e da civilização

Depois o Imperador mostra como os saxões se revoltaram de novo. E Carlos Magno teve que exercer, outra vez, uma ação de conquista sobre esse povo. E, então, os saxões viviam pela misericórdia do Imperador. Conforme as leis da guerra, ele poderia ter exterminado os saxões, porque junto a eles não era possível viver, ou ter reduzido muitos ao cativeiro.

Carlos Magno não fez nada disso. Ele instituiu, fixou suas fortalezas, intensificou a cristianização, mas cobrou um imposto particularmente grande, porque os saxões eram rebeldes vencidos. E o rebelde vencido é obrigado a um imposto maior.

Vemos, assim, como ele sabia, nas suas apreciações, temperar a justiça com a misericórdia. Ele mostrou ser misericordioso com esse povo em várias circunstâncias, mas chegando a ocasião da justiça ele tinha o direito de exigir o imposto.

Eu falei em extermínio. É claro que Carlos Magno não podia exterminar o povo inteiro, mas sim ordenar a matança de um certo número deles que fossem presos com armas nas mãos, para intimidar e nunca mais haver a possibilidade de atacarem. Vê-se que ele foi benigno, não levou as coisas tão longe; pelo contrário, soube amenizá-las de maneira que, dotando a catedral e o clero tão bem, obrigava o povo a pagar um imposto, do qual a principal vantagem era para Deus.

Deus não precisa de nada, mas, enfim, era para o culto divino. E o povo tinha o maior dos benefícios, porque, bem implantada a Religião numa situação de prestígio, apoiada pelo poder temporal, pelo Imperador, dotada de meios para influenciar, podia deitar fundo as suas raízes no meio daquela gente. E isto para eles era o melhor, pois saíam do estado de barbárie e podiam chegar, como de fato chegaram, ao píncaro da cultura e da civilização. É a Alemanha.

Compreendemos, portanto, como Carlos Magno era sábio e benfazejo no que estava dispondo e estabelecendo. E isto está mais ou menos dito no decreto, embora este não desça tanto a fundo nas coisas.

Carlos Magno, servidor da Santa Igreja

É bonito notarmos como o Imperador atribui todas essas vitórias a Deus. Ele diz: nós vencemos pelo auxílio divino. Como quem afirma: Eu sei que venci essas batalhas, mas não passei de instrumento de Deus; se não fosse a interferência d’Ele eu teria perdido essa guerra.

Todas essas ideias a respeito da missão de Carlos Magno na História, do seu papel junto aos povos pagãos, como distribuidor da justiça e da misericórdia em nome de Deus, como braço direito da Igreja na ordem temporal, tudo isso cabe no título inicial, que é este: “Em nome de Nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo, Carlos, por vontade da Providência Divina, Rei.” Tem uma beleza extraordinária!

Observem a incisão das palavras. Quer dizer, aqui estou eu, mas isso desce do alto. Tem-se a impressão que a indicação desse título é acompanhada de revoadas de Anjos, de sinos de catedrais que tocam, de esplendor e de luz no céu: Carlos, por vontade do Onipotente, Rei, porque a Providência Divina queria que ele fosse rei. O representante de Deus na Terra para as coisas temporais, e o servidor da Santa Igreja Católica em tudo quanto ela possa querer dentro da ordem temporal.

Tudo quanto a palavra tem de sacral, toda a plenitude de seu poder brilha por causa do que vem antes: é a vontade de Deus, o desígnio da Providência dando o fundamento, o sentido e a tônica a esse poder. Então compreendemos a beleza desse decreto.

A verdadeira vida é a santidade

A esses comentários será inteiramente estranho São Willehade?

Eu creio que de nenhum modo. Tudo isso está para São Willehade mais ou menos como o vaso para a flor. Tomem um vaso magnífico feito para conter uma flor. Enquanto nele não entra a flor, ele está numa certa orfandade. O vaso só se explica, mostra a sua beleza inteira quando nele se põe uma flor ainda mais bela do que o vaso; a beleza da natureza, da obra direta de Deus, supera, de algum modo, a pulcritude que o homem fez para conter aquela obra-prima da natureza.

E São Willehade é a flor desse vaso. Quer dizer, do que adiantaria a grande catedral, o sólio episcopal, o grande Imperador, se para um lugar como esse nunca fosse designado um verdadeiro Santo, se perfume e a fermentação da santidade não se espalhassem por lá? Todas essas coisas são belas, são nobres, estão no desígnio da Providência na medida em que servem à influência da santidade e como instrumentos d’Ela. Mas a verdadeira vida de tudo isto é a santidade.

De tal maneira que podemos imaginar, então, Bremen com sua catedral nova, as fileiras de saxões convertidos que vão, em dias determinados, entregar os seus dízimos para que o templo e o culto divino sejam mantidos convenientemente, os cânticos, o povo. Mas nada é tão belo quanto conjecturar o sólio episcopal no qual está o Santo, representando Deus, com uma plenitude e uma densidade de representação muito maior ainda que a de Carlos Magno. O poder espiritual vale mais que o poder temporal, porque é mais densamente sacral. Willehade está representando Deus enquanto bispo e enquanto Santo.

Compreendemos, então, quem ele era na sua catedral e na Cristandade nascente; naquele ambiente todo preparado pelo zelo de Carlos Magno, ele era a flor. Dele é que vinha o perfume, o encanto da vida, da vida sobrenatural, da graça. Assim, nós temos a moldura na qual podemos imaginar a figura de São Willehade.

Imaginar como? Para nós, a figura do tipo ideal do bispo, de um Santo que é tipo ideal do católico. Nós lhe podemos atribuir um físico segundo a nossa fantasia. Mas a alma sabemos em linhas gerais como é, porque os Santos são todos tão diferentes uns dos outros, mas tão parecidos uns com os outros. Ali se encontrava um Santo, está tudo dito. De maneira que o “Santo do Dia” começa assim: Carlos, por vontade de Deus e por desígnio da Providência, Rei.

E termina: São Willehade, Bispo por vontade de Deus e desígnio da Providência, Santo. Inicia com um Rei e termina num Santo.

Aí está a Idade Média no seu esplendor.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 8/11/1971)

 

Elevação e coerência

No espírito de quem a analisa, a “Escadaria Dourada da Catedral de Burgos” produz uma primeira impressão tão intensa, e apresenta uma ideia tão diversa de como se poderia imaginá-la, que o  observador sente a necessidade de pôr um pouco em ordem as considerações que ela lhe sugere.

Uma das belas gravuras que a retratam (p. 35) me faz pensar que ela é, em seu gênero, a escada. Ao construir esses sucessivos lances de degraus, o artista empreendeu uma verdadeira epopeia,  compondo uma maravilha de ordenação arquitetônica. Essa gravura poderia ter como título: “Elevação e coerência”, pois tais são os valores que a Escadaria Dourada exprime de modo extraordinário.

A elevação se manifesta, por exemplo, na disposição das janelas cegas e das portas ao longo de um muro muito alto, formando uma linha perpendicular tão ascendente que, para a limitação do  campo visual de quem a observa, ela como que se perde numa região superior, digamos o “céu” da atenção humana.

Essa linha vertical fica assegurada por uma obra-prima de equilíbrio, composta de dois elementos. Em primeiro lugar, as janelas cegas atenuam o que a parede talvez tivesse de muito pesado, ou  de muito liso e enfadonho. E depois, a força e o vigor da porta, que parece sustentar o bem-proporcionado de todo o conjunto. A nota de coerência, por sua vez, surge no “moucharabié”, todo ele feito de harmonias correlatas, que dão ideia de lógica, estabilidade e coesão. O teto, o corpo e a base, amparados por uma maravilhosa peanha — verdadeira obra de arte, com seus lavores que  parecem rendas de pedra — formam uma linda e suave harmonia.

Como harmônicas são também as duas extremidades simétricas, confinando ambas com as rampas laterais. Esse “moucharabié” assim concebido é rico em sugestões que se desdobram, como se  fossem grandes leques de conseqüências, que acabam se fechando no mesmo ponto de onde partiram. Quer dizer, as harmonias brotam dele e para ele voltam, como de um rio sairiam dois afluentes os quais, chegados a um extremo, começam a retornar para a via essencial. E nisso temos então realçada a nota de coerência.

Depois, como ponto terminal da escada, uma magnífica manifestação de certeza. Quando se esperaria que fosse morrer de modo comum e trivial, ela como que ressurge e se estende em  movimentos diversos. O seu fecho, com os dois braços ou corrimões, é uma espécie de afirmação fundamental, é a última conseqüência, segura e proclamativa. É o ápice da harmonia: a leveza e a força, o compacto e o filigranesco extraordinários! E o hierático. As figuras dos dragões parecem pensar e dizer: “Isto é assim mesmo, e nós atacamos quem o negar!” Dir-se-ia a robustez e a  vigilância a serviço da elevação e da coerência…

Por outro lado, o mesmo “moucharabié” dá a ideia de enquadrar algo mais delicado e mais interno. Ele tem seu segredo. É como que um sacrário. Sua porta, esguia e linda como peça arquitetônica, ladeada por figuras esculpidas que lhe constituem magnífica moldura, parece abrir para um corredor profundo, que se perde além. É o senso do mistério, presente em tantas e tão esplendorosas obras de arte.

Alguém poderia me dizer: “Mas, Dr. Plinio, essa é a porta da rua!”

Pouco importa. Para o olho humano, a arquitetura comporta também essas simbologias. E, a meu ver, mais uma vez temos aqui um superior exemplo de coerência e elevação, magnificamente  expressas no conjunto desse “moucharabié”.

A gravura retrata um aspecto muito bonito, que é a pequena vida de todos os dias ao pé do monumento. Então são duas mulheres, meio latinas, meio mouras, que se dirigem para os degraus; é um homem cheio de vitalidade e decisão, subindo a escada, ou um casal que por ali passeia e conversa calmamente. São dois fidalgos, compondo a cena com a riqueza de seus trajes e o luzir de suas espadas; é um fiel que se aproxima da pia de água benta, enquanto uma mulher ao mesmo tempo reza e descansa, observando outro grupo de pessoas que trocam idéias junto à imponente  escadaria.

Esta visão nos conduz aos adornos do monumento, igualmente belos. Vale notar que toda a ornamentação visa ao gracioso, e compensa o que o grandioso teria por demais de severo. Não se vê aí  um enfeite o qual, exceção feita dos dragões, não seja tão ameno que quase convide ao sorriso. Há, por exemplo, uma espécie de concha, soberba, cuja singeleza de linhas compensa o que ela tem   de extremamente trabalhado. É a graça suavizando a severidade da grandeza…

Uma última consideração. Dir-se-ia que essa construção, na qual se misturam estilos da Renascença e aspectos mouriscos, é o contrário do gótico. Entretanto, as ogivas da parede lateral se  harmonizam de tal maneira com o conjunto da escada que são indispensáveis para compor o quadro.

De fato, embora as decorações e os desenhos sofram influências renascentistas e árabes, o espírito inspirador dessa obra de arte ainda é o gótico. A nota ogival é a que nela predomina. O “moucharabié”, por exemplo, poder-se-ia chamar “variações dentro de uma ogiva”. Além do mais, o fator coerência de que acima falávamos,  presente em todo o conjunto, é também muito próprio  da arte ogival e, portanto, gótica. Como lhe é igualmente própria, na decoração, uma certa leveza, a mesma que se acha difusa nesse monumento. Assim, encontramos o casamento do gótico com a  Escadaria Dourada. Obra que reputo uma verdadeira magnificência!

Régia amenidade

À primeira vista, no esplendor da Idade Média não havia lugar para a candura e a intimidade. Entretanto, como nos mostra Dr. Plinio a seguir, esta foi a época em que os homens mais sentiram sua intimidade com Deus.

 

Há um aspecto da Idade Média continuamente desfigurado pela detração da Revolução: quando vemos altos castelos com torres, ameias, barbacãs, fosso e ponte levadiça, temos, naturalmente, a ideia de um edifício construído para a luta. E, como os castelos são, juntamente com as igrejas, o principal tipo de edifício que restou da Idade Média, elaboramos facilmente a ideia de que essa época foi de uma gravidade extraordinária, uma seriedade admirável, uma compostura perfeita.

Uma era histórica na qual todo mundo, perpetuamente, estava numa atitude recolhida, tendente ao sublime e, por isto mesmo, tendente ao severo. E dessa concepção deduzimos que na Idade Média não cabia um sorriso, uma alegria, uma manifestação de contentamento; que aquela magnífica apresentação hierática, eu diria quase decorativa, dos personagens medievais, excluía certa intimidade, bondade, abertura de alma.

Sorriso da vida de todos os dias

Nada é mais falso do que isso. Quem conhece o bê-á-bá a respeito da Idade Média sabe dos grandes festins que a caracterizaram. Não só os festins aristocráticos nos castelos e nas residências reais, mas também as grandes festas populares, em que, por exemplo, nas praças públicas da cidade, algumas fontes jorravam vinho horas seguidas, por conta do Rei ou do senhor feudal; ou, mais modestamente, jorravam leite; em que se levavam bois inteiros para a praça pública, onde eram organizados churrascos, em torno dos quais a população dançava. E, para terminar a festa, o senhor do lugar jogava peças de ouro a mancheias para o povo, que as apanhava para fazer compras no pequeno comércio dos arredores, sobretudo de comes e bebes.

Entretanto, havia mais do que essa alegria magnífica das festas. Existia um sorriso da vida de todos os dias, uma beleza inocente e cândida do contato das almas nas ocasiões normais da vida, que podemos apreciar bem nas iluminuras medievais.

E, às vezes, também nos vitrais que, com cores estupendas, nos apresentam as cenas mais modestas. Por exemplo, um boi puxando um arado e um camponês que vai jogando as sementes. Mais adiante, um grupo de mulheres que lavam roupa e as batem sobre umas pedras colocadas junto a um rio.

Depois, um copista, homem do povo, sentado junto a uma janela com vitral colorido, e que está copiando um texto qualquer. Junto dele, um vasinho bem medieval, pequenino, do qual sai uma só flor enorme, que não se sabe como fica em pé ali; e na frente um “lirião”, colhido em não sei que jardim maravilhoso. Céus claros, azuis de anil, nos quais voam aves de cores brancas, ou variegadas, em voos também bonitos. Cercas modestas de agricultura, não apenas magníficos jardins, fileiras de legumes e de outras plantações, mas tudo apresentado com um colorido tão bonito e tão real ao mesmo tempo, que se percebe com que cores interiores a alma inocente do homem medieval via as coisas.

Pompa e amenidade

O mesmo se dava com a piedade. Naquele tempo, a Igreja Católica, como sempre fez, realizava cerimônias magníficas e com pompa extraordinária, sobretudo nas grandes catedrais, em cujos vitrais penetrava a luz do Sol enquanto a Missa se desenrolava na capela-mor da igreja, com belos paramentos, o órgão tocando, o povo ajoelhado, o incenso perfumando todo o templo.

Dir-se-ia que nessa pompa não caberia intimidade. Mas é o contrário. Se houve época em que os homens sentiram a sua intimidade com Deus, a misericórdia, a bondade, a afabilidade, essa época foi a Idade Média. E mil contos dessa época histórica, alguns talvez fantasiados, mas muitos deles, no total, verdadeiros, celebram, por essa forma, a extraordinária amenidade de Deus, de seus Anjos e Santos, sobretudo de Nossa Senhora, Rainha de todas as virtudes, e, portanto, Rainha também da materna e régia amenidade para com seus fiéis.  v

 

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 12/11/1976)
Revista Dr Plinio 164 (Novembro de 2011)

A primeira Comunhão

Na manhã do dia 19 de novembro de 1917, o jovem Plinio recebia por primeira vez a Sagrada Comunhão. Ao longo de sua vida, inúmeras vezes recordaria ele, com profunda devoção eucarística, aquela data que lhe era sobremaneira cara. Evoquemos uma dessas suas reminiscências:

 

A atmosfera que cercava as primeiras Comunhões no meu tempo de menino era muito especial e foi toda ela organizada segundo a doutrina e a mentalidade do grande São Pio X, o Papa das primeiras Comunhões. Antes de São Pio X, a tendência corrente era de que as pessoas só fizessem a primeira Comunhão quando estivessem inteiramente adultas, de maneira tal que era frequente o fato de que comungassem pela primeira vez ao se casar. O noivo e a noiva esperavam essa ocasião para fazer a primeira Comunhão, pela ideia de que esta é uma coisa muito sagrada; e julgava-se que as crianças não deviam se aproximar dela porque não tinham critério para comungar com o respeito e a devoção necessários.

Mais importante é a inocência do que a capacidade de pensar

Foi São Pio X que colocou a questão em termos diferentes. Segundo ele, não se trata de saber o que a criança é capaz de pensar, mas sim que grau de inocência ela tem; porque se fôssemos raciocinar em função de sua capacidade de pensar, não deveríamos batizar a criança nos primeiros dias depois de seu nascimento.

A criança não pensa, mas o Batismo é uma ocasião para a comunicação de graças extraordinárias, que vão ficar vivendo nela para que, logo no limiar de sua vida de pensamento, comece pensando bem; já seus primeiros passos são fortalecidos pela graça do Batismo. Por causa disso a Igreja batiza as crianças logo depois do nascimento.

O mesmo se pode dizer com relação à Sagrada Comunhão. Desde que a criança tenha a ideia, saiba distinguir entre hóstia e pão, compreenda que a hóstia é feita da mesma matéria que o pão; mas que, pronunciadas as palavras da Consagração, há uma transubstanciação, uma mudança de substância do pão e do vinho, e passa a estar ali presente verdadeiramente, em Corpo, Sangue, Alma e Divindade, Nosso Senhor Jesus Cristo. Então, se a criança compreende isso e cumpre as necessárias condições, pode comungar, porque ela está na sua inocência.

Trajes de primeira Comunhão

São Pio X quis, e se executou no tempo dele, que a festa da primeira Comunhão fosse muito solene. Eram ornamentadas as igrejas, os altares, as crianças iam vestidas com trajes especiais de primeira Comunhão.

Lembro-me de que as meninas iam trajadas de noivas: vestido branco até aos pés e véu, grinalda, flores, sapatos, tudo de cor branca, porque eram inteiramente inocentes e virginais e caminhavam de encontro ao seu Salvador.

E os meninos deveriam ir tão bem vestidos quanto as posses de seus pais o permitiam. Por causa disto, os pais — não necessariamente muito ricos, mas que possuíam certa largueza — mandavam fazer roupa especial para os meninos, que, no meu tempo de infância, era a cópia da roupa oficial usada em solenidades por uma das escolas mais famosas do mundo: o Colégio Eton, na Inglaterra.

E no braço esquerdo colocava-se uma fita que formava um laço em cujas pontas havia uns pingentes dourados. O branco da fita simbolizava a castidade, a virgindade daquele menino, e os pingentes dourados possivelmente representassem a Fé.

No próprio dia da primeira Comunhão, recolhimento e não festa

No dia da primeira Comunhão se fazia uma festa em casa. A recepção da Eucaristia era de manhã e a festa à tarde. A família de quem fez a primeira Comunhão convidava os parentes e amigos, mais ou menos da mesma idade. Então compareciam vinte, trinta crianças numa festa enorme onde se servia chocolate — que era tido como uma maravilha; hoje o chocolate se tornou comum — não com creme “chantilly”, mas com clara de ovo. São Paulo ainda era uma cidade tão primitiva que não conhecia creme de “chantilly”. Então vinham aquelas montanhas de clara de ovo batida em cima do chocolate e as crianças devoravam aquilo. Havia também frutas, doces, sanduíches, sorvetes, refrescos.

Terminado isto, se fazia uma correria pelo jardim da casa. À noite, ia-se dormir, depois de ter rezado.

Dona Lucilia, que organizou a primeira Comunhão dos filhos dela e de uma sobrinha que morava conosco em casa, filha de uma irmã dela, entendeu que desse modo a preparação não estaria bem feita. Se a festa fosse realizada no dia da primeira Comunhão, por causa da natureza da imaginação infantil, haveria o risco de a criança amanhecer pensando mais na festa do que no Santíssimo Sacramento.

Nós tivemos um curso de preparação com um padre que dava as aulas só para nós três — os filhos dela e uma sobrinha —, explicando a Doutrina Católica e a História Sagrada.

Depois de examinados e tendo sido verificado que sabíamos o bastante para comungar, fizemos parte de uma primeira Comunhão da Paróquia de Santa Cecília. Havia muitas crianças, vestidas de acordo com os níveis econômicos dos pais, que eram naturalmente os mais variados. Algumas estavam ricamente trajadas, portando, por exemplo, as meninas, livro de oração todo forrado, interna e externamente, com madrepérola ou até com pérolas na bordadura; e os meninos, livro impresso em várias cores e muito bonito; além disso, tinham lindos rosários.

Então, com o afeto e o cuidado que era todo dela, Dona Lucilia nos chamou alguns dias antes da primeira Comunhão e nos avisou como seria o programa. Ela disse o seguinte: “Vocês devem entender que a festa não vai ser no dia da primeira Comunhão. Nesse dia vocês não vão estudar nem trabalhar, será um feriado. Vocês devem ficar o tempo inteiro fazendo coisas tranquilas, pequenos brinquedos calmos, rezando, procurando lembrar-se do que se deu com vocês, andando dentro da casa de um local para outro — a residência era muito grande —, mas não podem ir ao jardim nem ficar olhando pelas janelas. Têm que estar olhando dentro de casa, para concentrar o pensamento no Santíssimo Sacramento”.

Papel com a relação dos pecados

A preparação feita com muito cuidado pelo padre, as explicações de Dona Lucilia que completavam as aulas do sacerdote e, depois, esse aviso nos fizeram ver bem como era sério o passo que íamos dar; e evidentemente próprio a determinar em nós todo o grau de recolhimento que uma criança possa ter.

Eu tinha nove anos de idade, tomei muitíssimo a sério o que ela disse e fiz o propósito de observar esse recolhimento.

Fiz a primeira Confissão tão seriamente que, para não me esquecer de nenhum dos meus pecados, anotei uma lista deles para confessá-los ao padre. Quais seriam os pecados de um menino de nove anos? Podemos imaginar.

Entrei no confessionário e o padre ouviu a minha confissão.

Quando cheguei em casa, pouco tempo depois, mexendo nos bolsos não encontrei o papel contendo a relação de meus pecados.

Então, eu disse a Dona Lucilia:

— Mamãe, preciso ir à igreja para pegar o meu papel, porque se alguém ficar com a lista dos meus pecados, estou perdido.

Ela percebeu logo que era coisa de criança, mas ficou até satisfeita vendo como eu tinha tomado a sério a minha primeira Confissão.

Enquanto ela falava comigo sobre isso, uma lavadeira que trabalhava em casa, pessoa muito boa, muito piedosa, chamada Madalena, estava dobrando umas roupas para colocá-las num armário. Mas naturalmente prestava atenção na conversa de Mamãe comigo e ouviu o que eu falei.

A Madalena disse então o seguinte:

— Ah! eu dava tudo para conhecer os pecados do Plinio. Dona Lucilia, a senhora me dá licença e eu vou depressa à Igreja de Santa Cecília para ver se pego a lista dos pecados do Plinio.

Fiquei ultrajadíssimo, mas notei que Mamãe não tomou isso ao trágico nem ficou com medo de revelações sensacionais. E vendo que ela não deu importância, até me esqueci do fato.

A Madalena foi à igreja e não encontrou a lista. Com certeza um sacristão ou alguém que limpava a igreja jogou fora aquele papel. Não sei que pecados estavam ali anotados; devo ter dito alguma mentirinha, faltado com o respeito a papai e mamãe, mas eram pecados que eu não deveria ter feito e precisava pedir perdão a Deus.

O traje do Colégio Eton

Tive também que experimentar o famoso Eton, para ver se caía bem. Durante toda a vida, tive um desagrado de experimentar roupa: o alfaiate punha uns alfinetes, depois marcava com giz. O homem fez aqueles ajeitamentos e chegou à conclusão que o Eton estava muito bom. Foi também a opinião de Dona Lucilia, que em tudo exigia perfeição e não se contentaria com um Eton mal cortado. O alfaiate seria muito bem tratado, receberia um bom pagamento pelo trabalho sob a condição de estar perfeito. Mamãe achou que estava perfeito.

O vestir o Eton deu-me muita alegria. Não sei se entrava alguma vaidade pelo meio, mas eu me considerava muito importante com aquele traje. Tinha a sensação de que ficara de repente mais velho e, portanto, mais capaz de me impor ao respeito dos outros.

Na noite que precedeu a primeira Comunhão eu tive um sonho. Porém um sonho muito singular, porque eu via Nosso Senhor em pé junto à porta de uma casa bem branca, iluminada por dentro com uma luz muito clara. Ele vestia uma túnica branca e uma capa vermelha, me olhava e abria os braços para mim.

Isso não tinha nada de comum com uma visão porque, no meu sonho, a casa na qual estaria Nosso Senhor era um enorme doce de coco, todo revestido de branco. Sendo preciso notar que jamais gostei de doce de coco; e que se me fizessem um doce de coco branco ou vermelho, ou de qualquer cor, eu não comeria. Portanto, vê-se que não foi uma coisa mandada pela Providência, mas um sonho natural de uma criança que está, isto sim, tomando profundamente a sério a Comunhão que vai receber.

Grande veneração para com a Igreja Católica

No dia seguinte, minha irmã, minha prima e eu fomos cedo à Igreja de Santa Cecília, cada um levando uma vela, pois em determinado momento da Missa eram acesas as velas de todas as crianças. Havia fiscalização, naturalmente, porque de repente pegava fogo no véu de uma menina… Tudo era muito organizado.

Afinal começou a Missa, cantada, um tanto longa, na qual eu me lembro de que prestei muita atenção, sem entender bem o que era a Missa. Eu sabia tratar-se de uma oração da Igreja, mas de que era a renovação incruenta do Santo Sacrifício do Calvário, na qual se dava a transubstanciação, eu tinha certa noção, mas não tão clara quanto seria desejável. Sem embargo disto, vendo que era uma cerimônia da Igreja, e pela enorme veneração que eu tinha para com a Igreja, assisti à Missa muito atento e rezando.

Na hora da Comunhão, eu entrei na fila dos meninos e, graças a Nossa Senhora, comunguei com muito recolhimento e rezei bastante. Depois, naturalmente, terminou a cerimônia e cada criança foi para casa com os seus.

Preparação para resistir à revolução “hollywoodiana”

Alguém dirá: “Mas que primeira Comunhão pobre! Nós esperávamos muito mais graças, algum milagre”.

A minha vida não tem milagres. Ela sempre se fez de piedade, atenção, vontade de cumprir perfeitamente os Mandamentos da Lei de Deus, os Mandamentos da Igreja; fazer vencer a Igreja sobre a Revolução e implantar o reino de Nossa Senhora na Terra.

Então, do que serviu a primeira Comunhão?

Ela foi a primeira de uma série de Comunhões e, sobretudo, preparou a minha alma para algo de especial: quando eu tive o meu primeiro contato com a revolução “hollywoodiana”, imperando no recreio do Colégio São Luís, ofereci resistência. Uma resistência muito dolorida, mas forte e decidida. Eu não me lembro, graças a Deus, de ter tido a menor dúvida: “É preciso ir para a frente até ao fim”. Não cedi em nada e aqui estou.  v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 19/11/1994)
Revista Dr Plinio 164 (Novembro de 2011)

 

Peregrinando dentro de um olhar

Fisionomia igual não conheço. Tenho-a bem diante de mim, e, movido pelo hábito inveterado de tudo observar e explicar para meu próprio uso, fito-a com atenção. E de repente percebo que entro dentro dela.

Que tal peregrinar dentro de um olhar…

Sim, essa fisionomia única como que deflui da face e especialmente dos olhos. Envolve-me no ambiente que ela cria. Ao mesmo tempo, convida-me a entrar fundo no seu olhar.

— Que olhar! Nenhum é tão límpido, tão franco, tão puro, tão acolhedor. Em nenhum se penetra com tal facilidade. Contudo, nenhum também apresenta profundidades que se perdem em tão longínquo horizonte. Quanto mais dentro desse olhar se caminha, tanto mais ele atrai para um indescritível ápice interior e profundo.

— Que ápice? — O estado de alma que eu seria tentado a dizer cheio de paradoxo, se a palavra “paradoxo”, da qual tanto se abusa na linguagem corrente, não me morresse nos lábios por desrespeitosa.

Faça uma peregrinação dentro de um olhar…

Toda perfeição — diz a Escola — resulta do equilíbrio de contrários harmônicos. De nenhum modo é um equilíbrio precário entre contradições flagrantes (e, dizendo-o, penso nesta pobre paz, esclerosada e vacilante, que o mundo contemporâneo procura preservar à custa de tantas concessões e tantas vergonhas), mas uma harmonia suprema entre todas as formas de bem.

É precisamente este vértice, no qual todas as perfeições se conjugam, que vejo erguer-se no fundo desse olhar. Vértice incomparavelmente mais alto do que as colunas que sustentam o firmamento. Vértice do alto do qual um imperativo cristalino, categórico, irresistível exclui toda forma de mal, por mais leve e miúdo que seja.

Pode alguém passar a vida inteira caminhando dentro desse olhar, sem jamais tocar nesse vértice. — Caminhada inútil? — Não. Dentro desse olhar não se anda; voa-se. Não se passeia; faz-se peregrinação.

Aquela montanha sagrada, súmula de todas as perfeições criadas, o peregrino, sem jamais alcançá-la, cada vez a vê mais claramente à medida que voa em direção a Ela.

Ao longo desta peregrinação da alma, o olhar no qual voa, já não o envolve, apenas. Mas penetra nele. Quando o peregrino cerra os olhos, julga vê-lo à maneira de luz no mais profundo de si mesmo. Tenho impressão de que, se durante toda a vida, ele for fiel nesse vôo, quando cerrar definitivamente os olhos, esta luz brilhará no fundo de sua alma por toda a eternidade.

O olhar é a alma da fisionomia. — Que fisionomia essa, que tenho diante de mim! A um tolo, pareceria inexpressiva. A um observador destro ela manifesta uma plenitude de alma maior do que a História, porque toca na eternidade. Maior do que o universo, porque espelha o infinito.

A fronte parece conter cogitações que, a partir de um Presepe e a terminar em uma Cruz, abarcam todo o acontecer humano.

A face toda, o nariz, cuja linha possui um “charme” “mais belo do que a beleza” segundo diz o poeta, os lábios silenciosos, mas que dizem tudo a todo momento, parecem louvar a Deus em cada criatura segundo as características de cada uma; e pedir a Deus por toda miséria como se estivesse a condoer-se das peculiaridades de cada uma delas… Estes lábios têm uma eloquência perto da qual a de Demóstenes ou a de Cícero não seriam senão barulheira. — O que dizer da cútis: nívea? — O qualificativo diz tudo e não diz nada. Pois, para descrevê-la seria preciso imaginar um níveo que deixasse reluzir em sua profundidade, com discrição infinita, todos os matizes do arco-íris, e com isso mesmo inspirasse na alma de quem a contempla todos os encantos da pureza.

Que olhar! Peregrine dentro deste olhar

Sim, peregrinei neste olhar tão cheio de surpresas. E, inesperadamente, percebo que o olhar peregrina ao mesmo tempo dentro de mim. Pobre e misericordiosa peregrinação, não de esplendor a esplendor, mas de carência a carência, de miséria a miséria. É só abrir-me a ele que, para cada defeito, ele me oferece um remédio, para cada obstáculo uma ajuda, para cada aflição uma esperança.

Mas, afinal, quem tenho diante de mim? — Uma imagem de madeira como tantas outras, sem nenhum valor artístico especial.

É só fitá-la, entretanto, que, sem mover-se, sem a mínima transformação, essa Imagem começa a fazer luzir todos esses esplendores.

— Como? — Não sei também.

Se crês na descrição que fiz, convido-te a que faças por tua vez esta magnífica peregrinação dentro do olhar da Virgem. Se não crês, vem ver; melhor convite eu não poderia te fazer.

Reza então por ti. Reza pela Santa Igreja conturbada e atormentada como nunca. E por esse enorme Brasil de Maria.

 

(Plinio Corrêa de Oliveira, Folha de São Paulo)