“Gustate et videte…”

Como a maioria dos monumentos medievais, o Mont-Saint-Michel nos arrebata para uma espécie de clave única, apanágio das maravilhas da Idade Média. E o reflexo daquela inocência católica que pervadia as almas e a sociedade dessa época dominada pela Fé.

Candura batismal, luminosa, ponto de partida para a realização de belezas que aspiravam o Céu.

Não duvido que algo de sobrenatural pode pairar sobre uma paisagem abençoada, envolver e penetrar os que nela vivem, assim como a unção de uma imagem da Santíssima Virgem pode impregnar a linda flor que depositamos aos seus pés.

Imagine-se o Mont-Saint-Michel imerso num lindo pôr-de-sol. O entardecer transforma o ar numa espécie de matéria fofa, sutil, delicada, leve, dentro da qual tudo vai se evanescendo. Um imenso repouso se estende sobre os largos horizontes, enquanto nossa mente é embalada por este pensamento: “Felizes os homens que habitam entre essas paredes e aos quais é dado admirar continuamente esse maravilhoso panorama”.

A eles de nos convidarem: “Gustate et videte quam suavis est Dominum” — vinde ver aqui quão bom é o convívio do Senhor… (Sl 33, 8-9)

Sim, uma natureza quase inteiramente absorvida pelo sobrenatural. E pairando acima de tudo, dominador, o Arcanjo — não a imagem na ponta da agulha, mas o próprio São Miguel —, que  transmite a impressão fantástica de grandeza celeste, diante da qual todo o resto nos parece pequeno. Muito pequeno.

Há nele qualquer coisa de ordenativo do espírito, sem nada de cartesiano. Sobretudo, a meu ver, no claustro interno. Poder-se-ia ponderar se este não será ainda mais medieval que a própria silhueta completa do Mont-Saint-Michel, coroada pela abadia. Pois ali, entre as ogivas e as colunatas góticas, encontra-se a manifestação em pedra da razão, da lógica, do bom senso e da sabedoria extraordinárias que reluziram no auge da Cristandade.

Ou seja, nas almas trabalhadas pela graça, as quais, por ação desta, tornaram-se capazes do equilíbrio e da logicidade total expressos na Filosofia de Santo Tomás de Aquino. Assim como capazes da atitude de espírito contemplativa, admirativa, enlevada, tranquila, pronta a rugir como o leão ou a cantar como um anjo, conforme o exijam as circunstâncias que encontre diante de si.

inda posição, meio ilha, meio terra firme. De maneira que, em certas horas, é totalmente ilha, entregue às cóleras e aos furores do mar. Noutro momento, o tempo serena, o oceano reflui, e vê-se  uma mulher com criancinhas atravessar a pé enxuto aquelas areias, galgar as pedras e as escadarias para, lá no alto, render seu preito reconhecido pela graça que o Arcanjo lhe alcançou.

Dali a pouco, quando as sombras do entardecer se projetam sobre ele, o Mont-Saint-Michel se conserva altaneiro no meio de uma paisagem onde só há crepúsculo e águas que o cercam…

 

Obediência e entusiasmo

Dr. Plinio discorre sobre a estreita relação existente entre a obediência a Deus, a seus Mandamentos e aos legítimos superiores, e o entusiasmo, sem o qual nenhum ato sobrenatural atinge sua perfeição.

 

Examinando bem a ideia que, muitas vezes, é difundida a respeito do modo de ser católico, nota-se que as pessoas não percebem que amar a Deus sobre todas as coisas significa amá-Lo com entusiasmo, pois só nos entusiasmamos com as coisas que colocamos acima de todas as outras.  E não existe modo de amar a Deus sobre todas as coisas, que não seja dar a Ele todo o entusiasmo de nossa alma.

Obediência e alegria do entusiasmo

Ora, qual é o termômetro do entusiasmo? É exatamente a obediência. Quando a pessoa está muito entusiasmada, percebe o quanto ela se une com aquilo que a entusiasma, obedecendo. E ela tem aí um calor, um timbre, um amor de obediência todo especial, que leva sua alma inteira. Tanto mais que São Tomás afirma que um mínimo resíduo de felicidade o homem precisa ter, senão ele não aguenta a vida. E, mais do que tudo, o que faz aguentar a vida e ser feliz é a alegria do entusiasmo, por amor de Deus.

É entre esses entusiasmados que se vê o frescor do espírito, o calor da alma, a ligeireza das mentalidades, o voo, a deliberação, o gesto, a força de impacto, etc. E se o homem não tem a alegria desse entusiasmo, ele começa a subestimar, a sofismar, a relaxar, decair, degradar-se, tudo passa a ficar pesado e ele não aguenta a obediência.

Contaram-me um episódio da vida de Santo Inácio, que eu já ouvira falar: um noviço estava conversando, embevecido, com Santo Inácio. Vendo o noviço encantadíssimo, o Santo Fundador lhe diz: “Vá fazer tal coisa!” O noviço não caiu logo em si, e Santo Inácio acrescenta: “Não pode o amor ser maior que a obediência. Portanto, estás errado!” E lhe deu uma penitência severíssima.

Diante dessa atitude, o entusiasmado fica encantado e pensa: “Oh, que retidão, que precisão! Que sagrada intransigência! Que maravilha!” Reação do homem sem entusiasmo: “Que ruim é Santo Inácio! Eu estava tão embevecido ouvindo-o e ele fez essa brutalidade comigo!” Quer dizer, esse homem não tem fogo e não é capaz de compreender os píncaros da perfeição e da virtude.

Como cumprir os Mandamentos

Por vezes, nas aulas de Catecismo, os Mandamentos são apresentados com o seguinte fundo de quadro: “Os Mandamentos são duros, mas é preciso aguentar, porque Deus tem o direito de mandar. Ele poderia ter sido mais misericordioso e ter feito os Mandamentos mais leves. Não os fez, e quem os cumpre, afinal de contas, vai para o Céu. Se não cumprir, vai para o Inferno; está revelado. Portanto, aguente e gema! Peça a Nossa Senhora, que de vez em quando Ela atenue um pouco. Isso é assim, então comece a praticar a Religião!”

Ora, isso não é entusiasmo. Resultado: não se praticam os Mandamentos.

Cumprem-se os Mandamentos no entusiasmo! “Não pecarás contra a castidade!” A reação da alma diante disso não pode ser a seguinte: “Ih! Mas como é duro hein?! Como aguentarei?” Perdeu a batalha. A atitude tem que ser outra: “Oh, castidade, que beleza tens! Como és magnífica! Que píncaro! Claro, não pecarei!” Assim se guarda a pureza.

“Não mentirás!” Deus tem horror à boca mentirosa, diz a Escritura. Servir-se dos lábios e da língua, dons tão preciosos de Deus; da voz, símbolo tão magnífico da alma humana, para mentir, utilizar isso para um objetivo contrário à finalidade natural querida por Deus, que infâmia! Mas a veracidade… O varão veraz, que diz as coisas como são, que magnífico! O entusiasmo leva à verdade.

Nosso Senhor no Horto das Oliveiras

O entusiasmo é algo tão magnífico que ele se parece com o Sol, até mesmo quando este entra em ocaso. Mas, uma coisa é o pôr de sol do entusiasmo, outra é a moleza do decadente. Não se confundem.

No pôr de sol do entusiasmo, a vontade de se sacrificar, o desejo de ideal continua intacto, embora o indivíduo não sinta nada. E o modelo disso é Nosso Senhor Jesus Cristo no Horto das Oliveiras. Depois que eu tenha mencionado isso, o único jeito é dobrar os joelhos, porque o Modelo é tão sagrado que não há outra coisa para dizer. Ele não estava na alegria de sua alma nessa ocasião.

São Francisco de Sales o disse bem: Jesus só tinha a alegria na fina ponta de sua alma. No resto era um mar de desolação. Mas, como Nosso Senhor aceitou o sofrimento! Bebeu o cálice, aguentou a Paixão e morreu para aquilo que Ele tinha resolvido morrer! Isso é entusiasmo!

Mas para sermos capazes desse entusiasmo na dor, precisamos ser muito capazes do outro. Quer dizer, ter na alegria e na força de nossa alma o entusiasmo no sentido corrente da palavra. Nossa Senhora saberá, quando vier o momento, como nos introduzir no entusiasmo do sofrimento. Nademos nesse entusiasmo corrente, porque essa é a hora dele.

A Igreja é a causa de nossa alegria

Como manter o entusiasmo?

O nosso entusiasmo visa como fundo de quadro, evidentemente, a Santa Igreja Católica, Apostólica, Romana. Ela é a causa de nossa alegria. Tudo quanto se diz de Nossa Senhora, “mutatis mutandis”, pode-se afirmar da Igreja. E poder-se-ia fazer uma saudação à Igreja, invocando a “Salve Rainha, Mãe de misericórdia”. Talvez com muito poucas modificações, caberia à Igreja perfeitamente a oração Salve Rainha, que é uma saudação a Nossa Senhora. Inclusive se poderia pedir, nas orações, as graças da Igreja, porque isso tudo a Esposa de Cristo possui.

Não basta conhecer a teoria

Entretanto, andam em erro aqueles que imaginam que, a partir de uma concepção doutrinária a respeito da Igreja, um homem recompõe a imagem do que deve ser o verdadeiro católico. Seria mais ou menos como uma pessoa que estudou a teoria da arte e se capacitou nela, mas nunca foi a um museu, nem viu uma obra de arte, jamais fez uma consideração artística in concreto. Aqueles meros princípios artísticos, por mais que sejam lógicos, convincentes, verdadeiros, bons, não são suficientes para a criação artística; há um passo que a mera teoria não transpõe. E é preciso ter visto a coisa concreta para que o espírito também se aplique sobre ela, e verifique a afinidade da coisa concreta com os conhecimentos doutrinários que adquiriu. E, em consequência, julgue-a boa, analise-a adequadamente e a incorpore ao seu cabedal intelectual.

As falsificações manipuladas pela Revolução

Na época atual não temos apenas uma dificuldade muito grande em ver a doutrina da Igreja viva em pessoas, mas recebemos também contrafações, falsos modelos. E a realidade de nossa situação seria como a de um homem a quem se tivesse ensinado a teoria da arte, mas meio falsificada, de maneira que ele percebesse haver muito de verdadeiro ali, mas algo lhe causasse estranheza. E isso fosse ilustrado por museus de arte moderna, com a arte falsificada. Ele, naturalmente, sairia desses museus com contraimagens, contrafiguras ajustadas a uma doutrina meio falsificada. Compreendemos assim a dificuldade desse cérebro gerar a ideia do que é uma verdadeira obra de arte.

E é isso que sucede conosco porque, devido à Revolução, temos a mente literalmente povoada, até nos últimos pormenores, de ideias, impressões e clichês falsos. E uma obra de saneamento interno, para a aquisição da plena fidelidade, supõe que a Providência mande homens que fiel e adequadamente simbolizem aquilo que ensinam. Quer dizer, eles devem ensinar o que verdadeiramente a Igreja ensina, e simbolizar aquilo que Ela ensina.

Como é que eles simbolizam?

A mentalidade de um católico

Antes de tudo pela mentalidade. Em que sentido da palavra? O mais adequado dos símbolos de Deus é o homem, evidentemente. E quando alguém se refere ao homem, fala de sua mentalidade porque é o mais nobre, o por onde ele é homem inteiramente, porque ele tem uma mente. Então esta mente, configurada como manda a Igreja, como quer Deus, é o melhor símbolo do Criador.

Assim, era preciso que a Doutrina Católica fosse ilustrada com essas mentes à maneira de Deus, quer dizer, à maneira da Igreja. Alguém poderia me dizer: “Mas, há aí um círculo vicioso, porque estar ilustrado com um exemplo concreto à maneira de Deus e da Igreja é ter a doutrina de Deus e da Igreja. De maneira que voltamos à questão, basta ter a doutrina”.

Respondo: Sem a doutrina, nada feito. Mas não se pode dizer que simplesmente com ela tudo esteja feito. Já expliquei e ilustrei, não preciso mais insistir.

Como é que conhecemos a mente de um homem?

Um homem, que é membro da Igreja, não personifica a Igreja inteira nem ele é a Igreja em abstrato. O que é um homem católico?

É aquele que inteiramente, no ponto monárquico de sua alma, disse sim à Igreja. Mas, o que quer dizer aqui “inteiramente”?

Primeiro Mandamento: amor entusiástico

A formulação existente no Antigo Testamento para o primeiro Mandamento é perfeita: “Amarás o Senhor teu Deus com todo o teu coração, com toda tua alma e com todas as tuas forças”(1), quer dizer é um amor entusiástico, que exprime o amor inteiro.

Então, o católico está constituído segundo a “arquitetura” harmônica que Deus lhe concedeu e sobre a qual incide clara, luminosa, a luz de Cristo, a luz da Igreja. E, incidindo aí, propaga-se por toda a mentalidade da pessoa, à maneira de algo que vivifica e amolda todo o seu ser. E não é só isso, porque a graça envolve, circunda a alma em mil aspectos, mil circunstâncias da vida, mil ocasiões.

Os santos e o Purgatório

Essa transparência da graça num homem pode ser maior ou menor. Há pessoas que são retas, amadas por Deus, vão para o Céu, mas antes devem passar pelo Purgatório. Tais pessoas têm uma transparência maior ou menor para essa ação da graça.

Segundo foi revelado a uma mística, Santa Teresa de Ávila, antes de subir ao Céu, teve que passar rapidamente pelo Purgatório. E ela havia sofrido na Terra tudo quanto sabemos!

Os teólogos afirmam que os mártires vão para o Céu diretamente, não passam pelo Purgatório. Um São Lourenço, por exemplo, cujo martírio foi horripilante. Ele mesmo vendo as gotas da gordura de sua própria carne caírem dos seus membros sobre o corpo, porque ele estava sendo assado! Após suas costas ficarem completamente assadas, ele disse: “Nas costas tudo acabou, virem-me do outro lado!” Viraram-no de bruços, foi assado e morreu.

Encontro de São Domingos, São Francisco e Santo Ângelo

Essa transparência pode ter, portanto, graus diferentes, segundo as várias almas.

Alguém perguntaria: “Mas, se eu conheço uma pessoa assim e depois posso vir a conhecer várias outras semelhantes, por que hei de optar por uma e não por outras na linha da obediência? Só porque eu fiz um voto? Qual a razão dessa obediência, dessa opção que eu terei feito antes de ter conhecido outros?”

A pergunta está mal feita, porque, quando se trata de almas inteiramente transparentes a essa graça, nunca fazem diferença entre si. E cada uma atrai quem deve atrair, e encaminha quem deve encaminhar àquele ao qual deve ser encaminhado.

Todos conhecem, por exemplo, o famoso encontro de São Domingos, São Francisco e o carmelita Santo Ângelo, numa sacristia, creio que de Roma. Imaginemos que um passante por ali diga perplexo: “Para mim, isso deu esquizofrenia, porque são três tão grandes santos que não sei a qual deles devo seguir.”

Eu lhe diria: “Trate indiferentemente com qualquer um dos três que você verá qual tem que seguir. E se você não vir, ele mesmo indicará: ‘Meu filho, você foi feliz; não é comigo, é com outro que você vai ficar.’”

Há uma linha mestra, uma avenida de clareza onde todas as almas assim se encontram, sem nunca provocarem trombada.

Entretanto, existe um outro dado a tomar em consideração, porque esse é o lado da graça. Há o aspecto demônio, o qual não faz a obra da graça, mas sim da Providência. Por incrível que pareça, isso é assim. E ele, ouvindo-nos falar isso, fica furiosíssimo, porque bem sabe que a obra dele executa os desígnios de Deus.

A tentação coletiva, o demônio social

Foi por desígnio de Deus que satanás tentou Adão e Eva. Não era desígnio de Deus que eles pecassem, mas que fossem provados e, se fossem ruins, merecessem o castigo.

Fala-se muito, em aulas de Religião, da tentação individual, da ação do demônio sobre um homem para induzi-lo ao pecado. Está muito bem lembrado, mas me espanta e lamento que não se diga nada da tentação coletiva; desses demônios que agem simultaneamente sobre os indivíduos de todo um grupo ou setor social, de toda uma sociedade, e levam as pessoas para o Inferno por esse modo.

Nesta época em que se fala tanto do socialismo, da função social da propriedade, do demônio social não se fala. Um modo de completar a virtude para a qual a graça nos convida é a luta contra o demônio, por onde ficamos o contrário daquilo a que ele também nos convida.

Portanto, a graça leva para um lado, e a luta contra a tentação conduz para o lado da graça. E esse é o furor do demônio quando recebe um “pontapé”, porque ele percebe que a alma não se incomodou com a tentação dele, porque fez o contrário do que ele queria.

Estamos numa época onde a tentação social é tão fabulosa, que ela é propriamente o fundo de todas as tentações individuais. Não há uma tentação individual que não esteja maculada, sobre a qual não pese a tentação social, que não seja condicionada por esta; atualmente a tentação social — num certo sentido da palavra — é mais forte que a tentação individual.

O fato de conhecermos pessoas completamente voltadas contra a tentação social, é uma outra graça que nos leva a praticar a obediência em relação a essas pessoas.

Então, retomando o exemplo do artista que conhece a teoria da arte e não a arte concreta, podemos afirmar que um combatente que conheça a teoria da guerra, mas nunca tenha feito guerra não dá nada.

Pelo contrário, se tomarmos um combatente que fez a guerra contra o mal e que se modelou segundo tal guerra, esse merece a nossa confiança.

Esses fatores se somam para que nossa obediência seja entusiasmada. E entusiasmada não só nas boas horas, mas nas horas más, porque essas são razões razoáveis por onde, nos momentos onde decai o entusiasmo sensível, elas estaqueiam. E a pessoa bem estaqueada, na hora do entusiasmo sensível, vai até onde pode e recolhe como fruto que, na hora do entusiasmo não sensível, faz tudo quanto deve.

Espero que o comentário que fiz até agora tenha sido entusiasmado. Mais ainda, espero que tenha sido entusiasmante, porque eu quisera realmente acender o entusiasmo na alma dos que aqui se encontram.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências de 22 e 23/6/1982)

Revista Dr Plinio 191 (Fevereiro de 2014)

 

1) Dt 6, 5.

 

O segredo da calma

Pelo dom de profecia, Maria Santíssima conheceu individualmente todos os homens que existiriam até o fim do mundo, com suas qualidades e defeitos, e tem para com cada um a misericórdia incalculável da melhor das mães.

Devemos, pois, ter a certeza de que pedindo-Lhe qualquer coisa, obteremos. Pode ser que alguém peça algo que não seja para o seu próprio bem. Neste caso, Nossa Senhora não dará. Porém, até nisso entra a misericórdia d’Ela porque, conhecendo melhor do que nós o que nos convém, a Mãe de Deus nos concede outra graça mais valiosa do que aquela pedida por nós.

Mesmo que estejamos em estado de pecado, a Santíssima Virgem tem pena de nós e nos obtém graças preciosas para nos emendarmos e brilharmos diante d’Ela por toda a eternidade.

Sendo assim, não há razão para ficarmos nervosos e agitados, pois ainda que não compreendamos por que está acontecendo algo de muito triste conosco, devemos estar tranquilos, pois a nossa Mãe vela por nós.

A perfeição consiste, portanto, em manter-se sereno e tranquilo, compreendendo que tudo se faz pela vontade de Nossa Senhora. Aí está o segredo da calma.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 12/10/1990)

Revista Dr Plinio 239 (Fevereiro de 2018)

Ponto culminante na luta entre o bem e o mal

Depois da morte de Nosso Senhor Jesus Cristo, o mal nunca teve tanta audácia em se mostrar como na Revolução Francesa. Na luta entre o bem e o mal, a verdade e o erro, o belo e o feio, essa Revolução é uma espécie de ponto culminante. Ela pode ser considerada, sob esse aspecto, como um grande e horrível livro no qual se aprendem verdades terríveis e admiráveis.

 

Suponhamos a existência de um palácio tão admirável que, se não tivéssemos conhecido pelo menos em fotografia, nossa mente não seria capaz de imaginá-lo.

Encanto por um belo palácio

Entretanto, obtida uma boa fotografia, a mostrássemos a um colega que nos dissesse:

– Mas que palácio lindo, que fotografia maravilhosa! Você não poderia me emprestar isto durante alguns dias para eu levar para casa?

– Por que olhar isto, qual é a vantagem? – perguntaríamos para experimentá-lo.

– Não sei, isso eleva a minha alma. Vendo esse palácio, esses mármores, essas tapeçarias, esses móveis, o prédio na sua beleza, na sua distinção, em sua imponência, a minha alma como que sobe. E sinto necessidade disto, porque tudo no mundo contemporâneo abaixa, deprime, avilta, corrói, destrói, decepciona. Encontrei algo que produz o efeito contrário na minha alma; isto é o remédio. Se você pudesse me dar uma cópia dessa fotografia, seria a maior obra de caridade que me faria, porque fico encantado com esse palácio.

Notaríamos imediatamente a nobreza de alma de nosso interlocutor e pensaríamos em nosso íntimo: “Certamente vou fazer o sacrifício de dar-lhe essa fotografia, porque ela realiza o papel de um par de asas para a alma dele subir mais alto, até Nossa Senhora, a fim de aumentar os horizontes intelectuais dele e, com isso, seus horizontes religiosos, espirituais. Se esse palácio é uma imagem do Céu na Terra, este pobre coitado, que não tem ideia alguma do Paraíso, ao contemplar esse palácio poderá sentir-se mais elevado rumo ao Céu, para onde eu quero tanto que ele vá.”

Ódio a tudo que é distinto, nobre, elevado

Imaginemos agora o contrário:

Um de nós está folheando um álbum com fotografias do Palácio de Versailles. Alguém se aproxima e pergunta:

– O que tem Versailles de extraordinário?

– Ora, Versailles é uma obra de Deus.

– De Deus não, foi o Rei Luís XIV que mandou o arquiteto Mansart fazer os planos e construir o palácio. Deus não entrou em nada nisso.

– Versailles é filho dos homens, é verdade, mas os homens são filhos de Deus; logo, Versailles é um neto de Deus, como diz Dante Alighieri. Tudo o que existe, direta ou indiretamente, foi feito por Deus. Portanto, admire esse palácio porque é um meio de chegar até o Criador. Pois para amar a Deus que não vemos é preciso amarmos as criaturas terrenas que vemos. Versailles é uma criatura de Deus; amemo-la para amarmos inteiramente a Deus. Você não o acha bonito?

– Sim, e precisamente por isso eu o odeio, porque detesto tudo quanto é nobre, distinto e eleva o espírito.

Aqui estariam delineadas duas visões opostas da vida: uma é a dos filhos da luz, de Nossa Senhora, Ela mesma de uma perfeição, beleza e santidade maiores do que tudo quanto possamos imaginar. A outra é a dos filhos das trevas.

Santa Bernadette era de educação muito primitiva…

No século XIX, na gruta de Massabielle, na cidadezinha de Lourdes, Nossa Senhora apareceu a uma camponesa chamada Bernadette Soubirous, filha de um casal extremamente pobre. Era gente do povo, reta, de costumes muito bons, mas de educação bastante primitiva, porque eram trabalhadores manuais da terra e não tinham contato com nada de superior, de mais elevado.

Um dia em que estava perto dessa gruta, Bernadette escutou uma voz e, olhando para o seu interior, viu uma Senhora de uma beleza admirável. Era Maria Santíssima em pessoa que começou a dirigir-lhe a palavra. A jovem camponesa, com toda a simplicidade, principiou a falar com Nossa Senhora, mantendo as mãos postas na atitude de quem reza.

A Santíssima Virgem deu-lhe uma série de explicações e depois acabou recomendando-lhe que arranhasse a terra ali onde ela estava, pois começaria a aparecer água. A água se tornaria mais abundante e, de um simples filão, passaria a ser uma corrente de água forte, grande; usando essa água muitas pessoas se curariam e ali se tornaria um lugar onde Nossa Senhora seria muito glorificada.

Bernadette imediatamente começou a arranhar o chão, que era uma terra comum. E, para seu espanto, ela viu que de repente começou a minar água, apareceu um regato e formou-se o tal curso de água.

Houve várias visões e Santa Bernadette, em sua ingenuidade, contava para o povo. Então, cada vez que estava marcada uma aparição de Nossa Senhora, um número crescente de pessoas vinha para presenciar o fato.

A Santíssima Virgem só aparecia para Santa Bernadette, a qual falava de tal maneira que se percebia estar vendo alguém, embora os circunstantes não ouvissem as respostas de Maria Santíssima.

…mas se nobilitava quando conversava com Nossa Senhora

Certa ocasião li este bonito depoimento de um padre que presenciou as aparições: ele, que frequentara ambientes da alta sociedade, tratara com gente de muita categoria e vira, portanto, senhoras de muita distinção, declarava nunca ter notado um sorriso tão bondoso, uma atitude tão fina, distinta e amável num rosto feminino, do que em Santa Bernadette quando conversava com a Santíssima Virgem. Portanto, segundo ele, não havia marquesa nem duquesa francesa que se comparasse com a elevação de Santa Bernadette que, nesses momentos, se nobilitava inteira e ficava com uma distinção extraordinária. Terminada a conversa, ela voltava imediatamente a apresentar a fisionomia tosca de uma simples camponesa.

Esse pormenor das aparições de Lourdes mostra bem o quanto Deus ama tudo aquilo que é distinto, nobre, que se parece com a Mãe Santíssima d’Ele, a mais perfeita das criaturas.

Há uma canção na qual Nossa Senhora é invocada como “summi Regis palatium” – palácio onde habita o sumo Rei. Ela é comparada a um palácio porque o Verbo de Deus, ao encarnar-Se, habitou dentro d’Ela. Durante todo o tempo em que o Corpo sagrado de Nosso Senhor esteve sendo gerado e desenvolvido pela Santíssima Virgem, até o momento do nascimento, Ela foi o palácio de Cristo na Terra, mais excelente e magnífico do que todos os palácios reais e de tudo quanto se possa imaginar, porque feito para abrigar Aquele que é o próprio Deus feito Homem.

Explosão de ódio contra tudo quanto é grandioso, nobre, legítimo, bom

Isso posto, compreende-se que se daquelas duas mentalidades opostas acima descritas – uma favorável e outra contrária à existência de palácios – se constituíssem dois grupos de homens, eles entrariam em luta um contra o outro, porque um amaria e outro odiaria tudo quanto é verdadeiro, bom e belo. Teríamos uma luta tremenda parecida com a batalha entre São Miguel Arcanjo e os Anjos bons, de um lado, e os demônios capitaneados por Lúcifer, de outro lado.

Ao se revoltar contra Deus, Lúcifer, até então o anjo que conduzia a luz, tornou-se trevas e a mais hedionda das criaturas, pois odiou Aquele que é a Verdade, o Bem e a Beleza.

Essas considerações resumem o sentido da Revolução Francesa. Todos os elementos de verdade, bondade e beleza existentes na Terra antes dessa Revolução foram construídos, organizados por pessoas dotadas de um espírito voltado para Deus, que eram segundo o Criador e amavam o verdadeiro, o bem e o belo.

Em sentido oposto, a Revolução Francesa foi a explosão do ódio daqueles que detestavam tudo quanto é grandioso, nobre, legítimo, bom, e queriam estabelecer um mundo chulo, desordenado, imoral, sem fé.

Tal Revolução foi uma revolta dos homens que se deixaram dominar pelo Inferno, para acabar com tudo quanto era elevado, belo e bom na Terra.

Por essa razão, como não queriam que houvesse reis, rainhas, nobres, palácios, grandeza nem beleza, estragaram aqueles parques, quebraram ou roubaram os objetos do palácio, espandongaram os lustres, despedaçaram os espelhos. Aprisionaram a família real, culminando, após meses de tormento e de abominação, na condenação à morte do Rei Luís XVI, da Rainha Maria Antonieta e de uma irmã do Rei, Madame Elizabeth, dando início ao período histórico chamado do Terror, em que bastava alguém ser nobre para estar condenado à morte.

A mais distinta, elevada e sofredora de todas as damas do século XVIII

Para encerrar, conto um fato que ilustra bem o espírito que animava a Revolução Francesa.

Morto o Rei Luís XVI, a Rainha ficou viúva. Chegou o dia de ser apresentada ao tribunal para ser julgada, e ela queria muito salvar a própria vida para defender seus filhos, ainda crianças, pois não queria que estas fossem educadas pelos revolucionários.

Então Maria Antonieta preparou um discurso no qual ela mesma realizava a sua defesa, enquanto os revolucionários iriam apresentar testemunhas que fariam acusações falsas contra ela.

Certa noite, os revolucionários invadiram o recinto onde seu filho dormia. A mãe, embora fosse uma dama frágil, lutou contra eles fisicamente para defender o menino, mas afinal não pôde resistir, e os revolucionários o raptaram, tendo ele passado meses sem ver a mãe.

Estabelecido o tribunal revolucionário, o menino entra como testemunha para depor contra a própria mãe. Ele calçava tamancos ordinários muito grandes, dentro dos quais puseram palha para não caírem dos pés; estava bêbado e ao ver a mãe não teve o menor sentimento de afeto, permanecendo parado com uma cara abestalhada.

O presidente do tribunal disse a ele:

– Menino, conta aqui a todas as pessoas presentes os crimes que a tua mãe cometeu contigo.

Haviam ensinado para ele, como a um autômato, a mais infame das coisas. O menino disse que sua mãe o tinha iniciado na imoralidade.

Maria Antonieta ouviu aquilo e, diante dessa acusação torpe que todo mundo via ser uma calúnia, notando que a galeria estava cheia de mulheres do povo, disse: “Eu apelo a todas as mães da França para que digam se acreditam nessa acusação”.

As mulheres bateram palmas à Rainha a mais não poder.

Contudo, era o período da Revolução Francesa em que se dizia ser a época da liberdade, mas na realidade imperava a tirania. O presidente do tribunal, que deveria declarar inválido o testemunho de uma criança bêbada, sobretudo quando ela diz algo que ninguém podia acreditar e apenas provava a infâmia dos acusadores, entretanto deu ordem para retirarem da sala todas as mulheres, a fim de evitar que aplaudissem novamente Maria Antonieta. E, por fim, condenou-a à morte. Assim morreu a mais distinta, elevada e sofredora de todas as damas daquele século.

Podemos afirmar que o mal nunca teve, depois da morte de Nosso Senhor Jesus Cristo, tanta desfaçatez, tanta audácia em se mostrar, como na Revolução Francesa. De maneira que na luta entre o bem e o mal, a verdade e o erro, o belo e o feio, essa Revolução é um episódio central e uma espécie de ponto culminante. Não compreende os fatos que vieram antes nem depois quem não analisa a Revolução Francesa assim. Ela pode ser considerada, sob esse ponto de vista, como um grande e horrível livro no qual, entretanto, se aprendem verdades terríveis e admiráveis.            v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 3/4/1993)

Revista Dr Plinio 239 (Fevereiro de 2018)

 

Adoração da Pessoa de Nosso Senhor

Nosso Senhor Jesus Cristo sempre foi o padrão supremo em função do qual Dr. Plinio concebia a verdade, o bem e a beleza de todas as coisas, como também o relacionamento humano.

A escola filosófica pela qual o conhecer a biografia do filósofo não interessa em nada, limitando-se em considerar as ideias dele, priva-se de alguma coisa que a Providência dá ao homem no conhecimento da verdade, da beleza e do bem.

Pedra angular

O indivíduo que trata de um assunto põe ali, ainda que não queira, notas da sua luz primordial(1) e do atraente que para ele esta possui, por onde o lado bom dele é conhecido no que tem de mais profundo.

Aristóteles, por exemplo, poderia pensar em Deus como “Causa Primeira” e, se ele fosse fiel, fazer disso o que se poderia chamar a sua luz primordial.

Já São Paulo dizia que não pregava a não ser Jesus, e Jesus crucificado(2). Por quê? Porque no Apóstolo todas as considerações de Aristóteles sobre Deus chegavam até Alguém que existiu, e que é Nosso Senhor Jesus Cristo na unidade de sua Pessoa e na dualidade de suas naturezas, em Quem São Paulo via, mais completamente do que Aristóteles, aquilo que o próprio Aristóteles dissera. E o Apóstolo pôde afirmar: “Vivo, mas não eu; é Cristo que vive em mim”(3), em vez de dizer: “É Deus que vive em mim”.

No meu espírito, o caminho pelo qual a contemplação da Pessoa de Nosso Senhor Jesus Cristo me levou à consideração da sociedade temporal, foi um modo especial de analisar o “bonum, o verum, o pulchrum”. Mas o elemento fundamental é a contemplação da Pessoa de Nosso Senhor Jesus Cristo na dualidade das naturezas humana e divina.

O que há de mais profundo na minha alma é essa visão religiosa da Pessoa de Nosso Senhor. Essa é a pedra de ângulo a partir da qual todo o “verum, bonum, pulchrum” se deslinda.

Em menino, fazendo a análise psicológica de Nosso Senhor

Em presença de Nosso Senhor Jesus Cristo, o que minha alma sentia, tendo a notícia d’Ele que pode ter uma criança com três, quatro anos? Qual era essa primeira cognição, e como era esse primeiro ato de adoração?

Eu O considerava através das imagens que via em mais de um quarto de minha casa, de um livrinho de Religião para criança, do que mamãe contava d’Ele, da História Sagrada, etc.

Dona Lucilia não falava do Credo diretamente, mas o que ela dizia pressupunha o Credo e o ato de Fé, que era o ponto de partida. Mas ela não criava, nem de longe, o problema: “Eu vou provar que a Igreja Católica é verdadeira…” Porque ela considerava que, ao contar a história, já estava provando ser verdadeira. E para a criança é realmente assim.

Eu tinha a sensação evidente de que Ele era o Homem-Deus — porque mamãe, ao tratar disso, deixava claríssimo —, e procurava fazer uma análise psicológica de Nosso Senhor.

Ele era de uma elevação de cogitações e de vias absolutamente excelsa! Os critérios segundo os quais Nosso Senhor considerava todas as coisas eram de uma superioridade que deixava qualquer outra pessoa sem nenhum paralelo possível. Ele ficava desde logo numa altura inacessível ao homem.

Olhando para Ele, eu compreendia o que, no Homem, resplandecia de divino. Mas, de fato, eu entendia que era uma elevação própria a Deus e que a humanidade d’Ele estava numa atitude permanente de contemplação e adoração da divindade das três Pessoas da Santíssima Trindade.

A partir disso, Nosso Senhor tinha um contato com todas as almas, porque, estando naquela altura e sem as limitações de um simples ser humano, Ele conhecia todas as outras almas, sabia o que acontecia com cada uma delas e intervinha dentro de todas. Sua superioridade Lhe dava o direito ex natura rerum(4) a esse contato.

Naturalmente, tudo isso em mim era muito implícito. Não imaginem um menininho de quatro anos fazendo pedantemente essas digressões. Mas, explicitando agora, noto que era isso.

Fuga do bom para o ótimo

O próximo ponto da minha meditação é: de que natureza era essa ação de Nosso Senhor? Como Ele toma contato com essas almas?

Não posso saber como é nos outros, mas posso perceber como é esse contato de almas estudando-o em mim. Eu me sinto, antes de tudo, elevado algum tanto acima de mim mesmo, por ver essa grandeza do ser e do cogitar d’Ele.

De onde se abre em mim uma luz no cogitar e no ver, que me extasia, porque algo em mim é feito para olhar mais do que eu. E quando saio da minha vida de menininho e percebo algo em mim que vê mais do que eu, que é mais do que eu, tenho a impressão de que eu escapo, fujo do bom para o ótimo, ponho-me ali na ponta dos pés e me alegro.

Outro ponto: eu noto que, ao mesmo tempo em que contemplo assim essa vida existente em Nosso Senhor — que é um pensar, um querer, um sentir —, Ele me faz como que tocar com as mãos no pensar, no querer e no sentir d’Ele. E isso me comunica, com a elevação própria a isso, uma retidão e uma santidade do pensar, do querer e do sentir, as quais são como um remédio que eu bebesse, e na hora de sorver essa bebida deliciosa ela me agradasse sobremaneira, mas ao mesmo tempo me corrigisse.

Fico compreendendo que devo ser assim, por uma dupla ação: primeiro porque, vendo como Ele é, eu O adoro. E, em segundo lugar, porque, adorando-O, noto que coisas tortas em mim, que eu nem percebia serem tortas, se endireitam, e com isso Nosso Senhor me cura de coisas que me tornavam doente sem eu saber.

Entrevendo a luta que aparece no horizonte

Daí me vinha uma ideia da qual eu propriamente não fugia, mas não fixava muito a atenção nela. Não quero me acusar de uma imperfeição que não estava em mim, mas desejo mostrar que ali havia uma raiz de imperfeições proveniente do pecado original.

Então eu percebia que naquela hora aquilo era delicioso, mas quando passasse o mais intenso disso, essa ação corretiva ser-me-ia duro manter. E, portanto, em certo momento eu teria que sofrer e lutar muito.

Eu tomava conhecimento dessa realidade, mas, à maneira de uma criança, pensava: “Bem, ainda não chegou a hora, e aqui está tão bom, que deixo isso para depois”. Tinha mais curiosidade de fixar a minha atenção no que Deus estava me mostrando — sem saber ser Ele Quem mostrava — do que naquilo que eu poderia deduzir por mim mesmo, e que era o combate. Por isso, eu apenas entrevia e deixava meio de lado.

E, olhando para os meninos com quem eu vivia, notava que alguma coisa dessas Jesus fazia em suas almas também, mas eles davam muito menos atenção. E eu tinha certa ideia de que era culpa dos outros, uma indecência.

Também aí nota-se o começo da luta que ia aparecendo no horizonte, mas isso não me empolgava como empolgou mais tarde.

Como ainda não via neles o mal, mas apenas um bem menor, eu não pensava no futuro disso. Sentia um vácuo que eu gostaria que fosse muito diferente, mas não um choque que me levasse diretamente para a luta.

Ação direta e ação supletiva

Vinha-me outra ideia que em termos atuais eu exporia assim: “Ecce quam bonum et quam iucundum habitare fratres in unum — Eis como é bom e alegre que os irmãos morem juntos.”(5) Eu formava com aqueles meninos um todo tão alegre e agradável que me levava a concluir: “Como isso é bom! Mas o é, sobretudo, porque há neles um efeito da ação de Nosso Senhor Jesus Cristo!” Eles não eram inimigos de Nosso Senhor, não tinham estabelecido um corte de relações com Ele. Assim, eu me sentia posto na minha situação própria e natural: contemplando Nosso Senhor Jesus Cristo na Igreja Católica — cuja noção começava a aparecer no meu espírito —, em mim, em mamãe — muitíssimo, mas muitíssimo! — e nos que me circundavam também.

De maneira que era um mundo todo católico dentro do qual eu sentia a complementação normal da felicidade, que me dava a contemplação de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Detendo-me por um instante nesse ponto, pode-se ver a noção que nascia aqui implícita: a condição normal do homem para adorar a Nosso Senhor Jesus Cristo, receber sua influência, ser como Ele, enfim, viver, é contar com a harmonia e a ação supletiva dos outros. Tomando em consideração que a parte do bem que Nosso Senhor Jesus Cristo não me fazia diretamente, Ele a exercia por meio dos outros.

Então, Ele com cada um tinha uma ação direta, e depois uma ação supletiva, por meio dos outros. Aqui entrava o pressuposto da sociedade temporal cristã: a Cristandade.

O meu lar, os meus parentes, todas aquelas famílias que moravam no bairro dos Campos Elíseos, aquilo tudo eu considerava como sendo igualmente bom.

Era o mito de uma Cristandade sustentado por uma série de aparências boas que o mundo ainda tinha naquele tempo, e que eu supunha habitadas pela influência de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Um sol que não cessava de brilhar

Eu via, por exemplo, uma dona de casa sair da igreja com quatro, cinco filhinhos que se seguravam pelas mãos; ela tomava as mais criancinhas, na ponta estavam os mais velhinhos, e ia conversando e vigiando. Atrás, com uma bengala debaixo do braço, segurada pelo castão, vinha o pai, com ar grave de quem os defende contra qualquer ataque que pudesse ocorrer. Era um defensor que pairava acima de todos.

Tudo tão direito, tão normal, Jesus Cristo tão presente em tudo isso, que me dava a ideia de que, para ser inteiramente “cristiforme”, o conveniente era que tudo em torno de mim fosse “cristiforme” também.

Depois veio a Primeira Comunhão, com suas graças características, o conhecimento mais exato da Doutrina Católica recebida em cursos regulares de Catecismo, da História Sagrada.

Comecei a observar a Igreja e ver que nela, e em tudo quanto eu conhecia do passado, do presente e do que estava profetizado para o futuro, Nosso Senhor Jesus Cristo habitava e Se fazia sentir de um modo especial por uma ação que eu ainda não sabia chamar-se graça e que era como um sol que não parava de brilhar.

Daí a ideia — complementar do convívio com meus próximos — de uma grande instituição que era a fonte dessa ação de Cristo sobre os homens. E meu ambiente tinha aquelas características devido ao fato de ter aderido a essa fonte, pois era um ambiente católico.

Em última análise, até minha ligação com Nosso Senhor Jesus Cristo se devia a isso: Ele tinha esse nexo com a minha alma porque eu era católico. Enfim, eu possuía a noção clara de encontrar Nosso Senhor Jesus Cristo dentro da concha sagrada da Igreja. Mas não apenas como se alguém dissesse, por exemplo: “Jesus está na casa do centurião Cornélio.” Ali está Ele, mas os arredores da casa não têm nada a ver com sua presença. Não era isso. Eu notava que, na Igreja, a presença de Nosso Senhor ilumina tudo e transfigura as coisas por dentro. Por isso, na Igreja Católica até a soleira da porta era uma coisa santa, pois algo da ação d’Ele estava presente ali. Quantas e quantas vezes eu tive vontade, antes de entrar numa igreja, de me ajoelhar e oscular a soleira da porta, pensando: “A partir daqui começa a casa d’Ele!”

Ato de humildade

Certa vez vi uma pinturazinha com a inscrição “Hæc est porta cœli”, e pensei: “Mas é claro, a porta do Céu é essa. E Plinio, preste atenção! Você é objeto da ação dessa graça, é trabalhado por ela e a ama tanto; está perfeitamente bem. Mas você tem seus doze anos e já sente as garras dos seus defeitos. E deve sentir também que as suas resistências resultam de alguma coisa que existe de fundamentalmente mau em você, e que procura separá-lo disso. E que, portanto, você é ruim. Essa graça o torna bom, mas lhe vem de fora para dentro. E, propriamente, você não é digno de nada disso. Agradeça o fato de, apesar de ser ruim, Nosso Senhor Jesus Cristo ter permitido tudo isso para você. Compete-lhe, pois, um sentimento profundo de sua maldade e de sua indignidade, e querer oscular a soleira da porta compreendendo que você se honra com esse gesto, pois não seria digno nem sequer disso.”

Ao fazer essas considerações, eu sentia sobre mim um efeito curioso: percebia Nosso Senhor mais distante, mas atuando muito mais profundamente em mim. Depois vim a saber tratar-se de um ato de humildade. Eu carregava meu ato de humildade com todas as minhas forças, por me sentir, por causa disso, mais perto d’Ele. O objetivo era sentir essa proximidade.

Eu entendia de um modo confuso que se bocejasse em cima dessa indignidade e pensasse: “É verdade, mas Nosso Senhor me admite. Portanto, vamos passar por cima de tudo isso porque, de repente, Ele se dá conta de que isso é mesmo assim, e me expulsa!” Seria como querer fraudá-Lo. E se eu fizesse isso, começaria a apagar-se a Fé Católica na minha alma.

Então, tomei como princípio o seguinte: Quanto mais eu martelar nessa indignidade e a tiver em vista, mais estarei próximo d’Ele. Então martelo até me arrebentar para me unir tanto quanto eu quisera! Eu quisera unir-me mais! Mas, tanto quanto posso, martelo mesmo!

À vista disso, eu tanto martelei que, possuído a fundo dessa ideia, tomei o hábito, por exemplo, de oscular as imagens apenas nos pés, porque não era digno nem disso; a imagem era benta e os meus lábios não eram dignos disso, por causa dessa radical maldade existente em mim, que me tornava objeto explicável da repulsa divina.

Provações contra a pureza e o choque com a Revolução

Com isso ia me sentindo mais unido a Ele. Nunca com vontade de fugir! O que estava na minha mente é que só Nosso Senhor tinha palavras de vida eterna, e que, portanto, era preciso estar com Ele. Depois, eu não saberia viver a não ser assim.

Começa a época das provações contra a pureza, do choque com a Revolução. Portanto, o medo, a tentação da fuga, os instantes, eu não diria de desânimo, mas como que o momento da falta de energias e de mobilização própria para entrar na luta.

De outro lado, na linha da luta contra os revolucionários, o esforço é tão enorme! E ver-me de repente, não naquela espécie de paraíso de Cristo vivendo em todos, mas, pelo contrário, uma realidade que é como se o demônio vivesse em todos, com exceção de poucas pessoas. Então, a necessidade de lutar. Mas, a preguiça de lutar!

Como eu me privava do agrado, do deleitável, do contato amistoso, jovial e engraçado com os outros, das alegrias despreocupadas da minha infância, sentindo-me quase um moço velho e fanado pelas provações, pelos problemas, pelas reflexões! Entretanto, eu tinha dez, onze anos! Era a minha posição diferente do mundo inteiro! Eu me resolvo a arcar com essa luta?

O lado da consciência do mal, que no fundo era a voz da humildade, me dizia: “Veja, hein, quando você de tal maneira se descarregava sobre si próprio, que razão você tinha… Veja bem quem é você!”

Mas se sou assim — pensava eu — não sou sequer digno de rezar a Nosso Senhor, de levantar meus olhos a Ele, nem de me aproximar d’Ele. E Ele me rejeita com um desprezo tanto mais magnífico quanto mais magnífico é Ele! Isso tanto é assim, que se Ele não me rejeitasse eu não O adoraria! Eu O adoro na rejeição que Ele faz de mim e na punição que Ele me dê, porque aí vejo que Ele era Quem eu pensava. Mas, de outro lado, como arranjo esse caso?

Aparece o ”arco-íris”

Aí apareceu o “arco-íris”: Nossa Senhora! Na Igreja do Coração de Jesus, o “sorriso” da imagem de Nossa Senhora Auxiliadora e a compreensão: Tudo isso daria, aparentemente num caos. Mas não é um caos, porque Ele mesmo, superior a tudo quanto eu podia pensar d’Ele, excogitou esse meio, deu-me a Mãe d’Ele para minha Mãe!

Ali está a solução! Sendo eu ordinário como sou, é a solução para sempre. Porque se eu não me apegar a Ela, tudo está perdido! Mas pelo trato, pelo jeito, pela bondade d’Ela, sinto que, por eu ser tão ordinário, tão fraco, tão ruim, ter essa semente de mal em mim tão marcada como eu vejo, Ela tem uma pena especial. E enquanto meço a profundeza das minhas chagas, Ela sorri para mim e como que me diz: “Meu filho, é verdade, você tem razão. Mas muito mais Eu sou boa do que você é ruim! E passo por cima disso, o afago, lhe quero bem, trago-o para junto de Mim.”

Daí brotar de meus lábios: Salve Regina, Salve Regina, Salve Regina! E daí também o sentido da palavra “salve”: o de me salvar! Eu não a considerava como uma saudação; não estava pensando em protocolos na hora em que eu naufragava. Era S.O.S.! “Salve Regina…”

Esse era o aspecto “vida interior” de algo que transbordaria, no contato com a vida, numa noção da Cristandade, num conceito completo de Revolução e Contra-Revolução.

Qual é o papel do “verum, bonum e pulchrum” — de que eu falava há pouco — nessa visão das coisas, da sociedade temporal e da luta entre a Revolução e a Contra-Revolução, cuja noção foi-se desenvolvendo paralelamente com isso?

Ardor no conhecimento do verum

Há nisso tudo um enlevo constante em relação a Nosso Senhor Jesus Cristo. Não sei se é correta a palavra “enlevo”. Tenho certeza de que a palavra “adoração” é inteiramente suficiente — e talvez só ela seja suficiente — para indicar a disposição de nossa alma em relação a Ele.

Mas, na própria adoração, o que prepondera? A consideração do “verum, do bonum ou do pulchrum”?

É uma coisa evidente que no ato de adoração existe simultaneamente um abrasamento no conhecimento do verum, um amor entusiasmado e comovido ao bonum, e um deslumbramento pelo pulchrum.

Nosso Senhor mesmo, como Ele é veraz! Como é verdadeiramente o Homem-Deus! Como na unidade da Pessoa d’Ele habitam duas naturezas, e como isso é reversível, ordenado, perfeito! E, sobretudo, o que é Deus ali dentro, que coisa fantástica!

De outro lado, que natureza humana perfeitíssima! E como o encontro da natureza humana com a divina é admirável!

O verum aqui está não só em que isso é assim, mas numa outra coisa: como tudo é coerente dentro disso! É lógico, deve ser assim! E, portanto, um entusiasmo da verdade possuída.

Como é esse entusiasmo? Não é um entusiasmo exclusivamente silogístico: “Eu raciocinei e cheguei à conclusão”, porque o ato de Fé em mim precedeu de muito esse raciocínio; mas é uma espécie de evidência meio mística dada pela Fé, que o raciocínio apologético vem calçar depois, mas não vem suprimir; vem servir a essa ação meio mística dada pela Fé.

De tal maneira que eu ouço pessoas falarem na firmeza das minhas convicções. Tenho vontade de sorrir, e dizer: “Você não entende nada. Fale da firmeza de minha Fé!” Porque a partir da firmeza da minha Fé, no que eu dela deduzo, tenho muita certeza; ali eu piso com sapato de ferro, porque não tenho medo de peso nenhum! No que eu não deduzo, não tenho essa certeza.

Por outro lado, também o modo categórico com que distingo uma coisa má de outra boa. A boa deve ser praticada, favorecida, estimulada, louvada. A má deve ser execrada, detestada; deve-se viver no reconhecimento e na desconfiança constante do mal que aquilo representa, numa atitude a mais policialesca que se possa imaginar contra esse mal, pegando-o e triturando-o implacavelmente.

Pulchrum e simbolismo

Sobre o pulchrum, o que dizer?
Como o pulchrum é o término do trajeto, nele se vê o verum e o bonum, e se acaba proferindo a palavra: pulchrum. Mas essa palavra não exclui o verum e o bonum, ela os contém com a luz própria a cada coisa.

Então, o pulchrum é o esplendor da verdade e do bem, com mais algo; não significa que ele não existe. Ele é ele; mas me levava a dizer, numa espécie de ousadia de pensamento, que talvez houvesse entre o verum, o bonum e o pulchrum uma relação análoga — à maneira de um reflexo — à existente entre o Pai, o Filho e o Espírito Santo.

O pulchrum tem no meu pensamento grande papel. Inclusive porque ele tem qualquer coisa de sensível, mas este próprio sensível precisa ser entendido.

São Tomás define o pulchrum como: “aquilo que, visto, agrada”. Houve a aplicação de um sentido. Por exemplo, olhei e aquilo me agradou aos olhos. Isso é o pulchrum.

Na palavra “agrada” entra algo que funcionou assim em mim a vida inteira. Depois cheguei a perceber o lado de Doutrina Católica que há nisso, e que ocupa o meu pensamento.

O sensível tem esse papel — ao qual eu sou muitíssimo aberto e tenho até uma necessidade enfática de alma — de discernir nas coisas o por onde elas simbolizam a Deus e a Nosso Senhor Jesus Cristo. De maneira tal que, não tendo esse simbolismo, elas não me interessam.

Um palácio, mesmo uma igreja que não tenha esse simbolismo, para mim diz muito menos do que poderia dizer uma cabana com uma expressão simbólica muito grande.

O simbolismo é uma analogia entre uma coisa e determinada perfeição de Deus, por onde eu, pelos sentidos, como que vejo essa perfeição de Deus. E minha alma é sedentíssima disso.

Algo me agrada, sobretudo, enquanto caminho para perceber naquilo um símbolo de Deus, ou seja, um reflexo criado de Deus que completa o que as graças de ordem mística fazem perceber.

Então, o que as pessoas alcançam pela graça o símbolo faz de algum modo perceber também pelos sentidos, iluminados pela graça. O pulchrum é o delectabile(6) espiritual, simbólico e digno de ser tocado pela graça.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 12/4/1989)

 

1) Aspiração para contemplar as verdades, virtudes e perfeições divinas de um modo próprio e único, pelo qual uma alma ou um povo dará sua glória particular a Deus. Sobre este assunto, ver Revista Dr. Plinio, n. 54, p. 4.
2) Cf. 1Cor 1, 23; 2, 2.
3) Gl 2, 20.
4) Do latim: pela própria natureza das coisas.
5) Sl 133, 1.
6) Do latim: deleitável.

Oração para pedir a troca de vontades

Coração Sapiencial e Imaculado de Maria, que simbolizais a mentalidade sagrada, a vontade santíssima, a perfeitíssima disciplina da Mãe de Deus, nós Vos pedimos: abri-Vos para nós.

Considerai nossas mentes infiltradas de máximas revolucionárias! Tende em vista as nossas vontades debilitadas por toda espécie de maus hábitos e pressões decorrentes do ímpeto da Revolução!

Olhai para a nossa sensibilidade trabalhada pelos mais nocivos fermentos do mundo satânico que a Revolução vem desenvolvendo, e tende pena de nós! Nós Vos pedimos que substituais nossas mentalidades revolucionárias, de maneira que nossos princípios reflitam, com a fidelidade perfeita, a doutrina e o espírito da Santa Igreja Católica Apostólica Romana. Trocai a nossa vontade  corrompida, substituindo-a pela vossa sem mancha, sem hesitação, sem concessões! Substituí nossa sensibilidade pela vossa, ordenada, equilibrada, puríssima, em tudo obediente à vossa vontade e inteligência!

Vós sois, Coração Imaculado, o Sacrário do Espírito Santo. Habitai no meu coração para que o vosso Divino Esposo habite em mim e eu seja um templo d’Ele! Dai-me, assim, ó Coração Sapiencial e Imaculado de Maria, o “Grand Retour” tão desejado e fazei-me um discípulo perfeito vosso! Amém.

Sacralidade e beleza em duas pontes europeias

Em sua contínua busca da sacralidade e beleza nas coisas, Dr. Plinio era levado a analisar tudo sob este ponto de vista. Tecendo considerações a respeito de duas pontes — uma veneziana e outra francesa —, descreve o que elas têm de sacral e dessacralizante.

A ponte do Rialto tem como característica marcante a extrema delicadeza da estrutura do arco. Nota-se que houve a intenção de fazer a ponte coberta, de maneira a garantir os transeuntes contra a chuva. Mas essa ideia funcional foi superada de tal maneira, que nem se é levado a pensar nela diante da delicadeza das arcadas sucessivas e do movimento de ascensão de uma parte e de outra, terminando num elemento monárquico e central que dá vagamente a impressão de um nicho de imagem num arco de triunfo.

Delicadeza e seriedade

De tal modo a parte funcional foi englobada pela parte arquitetônica, artística, que uma pessoa que olhasse para a ponte do Rialto não pensaria em chuva, nem em galeria, nem em nada disso. Teria a impressão de que isso foi colocado ali em cima como mero enfeite, o qual se destaca por um misto de delicadeza e de seriedade. Há seriedade aí porque há pensamento em tudo, há um desejo verdadeiro de fazer as coisas muito bem feitas, com uma grande aplicação de espírito.

Essa aplicação de espírito, entretanto, se disfarça a si própria de maneira a se ter a impressão de que o artista que concebeu isso desenhou em poucos minutos e mandou colocar ali em cima essa estrutura. Chamo a atenção para os menores acabamentos. Notem a balaustrada como é bonita. Depois, o próprio arco da ponte, como é de um movimento delicado.

Passando por debaixo, as águas prestigiosíssimas de Veneza, que parecem carregar consigo a beleza de todos os palácios por onde elas se movimentam.

Vê-se aqui a proa de uma gôndola e outras embarcações. Na gôndola temos algo de muito delicado e que afirma vigorosamente a superioridade do espírito sobre a matéria, da arte sobre o funcional, do nobre sobre aquilo que é vulgar. O gondoleiro é um homem do povo; contudo, notem a elegância, a beleza do movimento e da posição dele; a nobreza com que ele desloca esse imenso remo. Ele está fazendo força, mas não nos dá ideia, nem um pouco, de uma força vulgar. Dir-se-ia quase que ele está executando uma figura especialmente para ficar elegante nessa fotografia.

Hierarquia de valores e predomínio do estético sobre o útil

Isso é sacral. Em que sentido é sacral? No sentido de que apresenta uma hierarquia de valores que conduz para o sacral, prepara para o sacral, sem que se possa afirmar diretamente que tenha uma nota intensamente sacral. O aristocrático, de si, tem uma parcela de sacral. Essa ponte, evidentemente, é aristocrática. O predomínio do estético sobre o útil tem qualquer coisa de sacral também, porque é uma forma de predomínio do espírito sobre a matéria.

Há qualquer coisa de sacral nesse elemento monárquico central da ponte. Poder-se-ia imaginar uma imagem colocada em cada um desses arcos, de tal maneira que não se diria que o sacral se sentiria isolado, expulso, maltratado dentro desse ambiente.

Eu deixo de me referir a esse pano, porque é uma propaganda comercial, e lamenta-se que aí esteja.

O que existe aqui de não sacral? Não há nenhum emblema, nenhum sinal religioso. A influência da Renascença quase não deixou reminiscência alguma da Idade Média dentro disso. E se é verdade que nesses arcos caberiam bustos de imagens, caberiam também bustos de grandes homens de Florença ou da Antiguidade. Num desses arcos se poderia pôr, tanto São João Evangelista, São João Batista, como Pitágoras ou deuses profanos. Quer dizer, a atmosfera da Renascença já entrou aqui. Entrou no quê? Tudo isso é muito bonito, muito nobre, mas tem qualquer coisa de fruitivo, que não foi feito para a contemplação, mas para o gozo da vida, para o prazer. E com isso vai abrindo as portas para coisas piores. Esse seria o comentário sobre a ponte do Rialto.

[Dr. Plinio comenta em seguida uma fotografia da ponte Alexandre III, situada sobre o rio Sena, em Paris.]

Doçura do gênio francês

Faz parte da doçura do gênio francês afirmar-se nas circunstâncias mais inesperadas. Esses bonitos lampadários são feitos de tal maneira que, ao menos a mim, causam a impressão de que são vidros de perfume. A forma, o colorido é tal que, se soubéssemos que se guarda perfume dentro deles, acharíamos natural. Quer dizer, há qualquer coisa de mesa de toilette nessas luminárias. Elas são tão bem trabalhadas, tão doces, tão delicadas que não parecem ter sido feitas para estar expostas à intempérie: neve, todos os ventos soprando; entretanto, no meio de tudo isso a nota francesa põe essa doçura, essa suavidade que é própria do espírito francês.

Essa doçura, entretanto, se afirma também em uma coisa que Deus pôs na França — não foram os franceses que fizeram; eles se inspiraram na doçura da natureza da França. Vejam essa árvore reduzida apenas a um esquema, porque toda a folhagem desapareceu. Ficou só a galharia. Considerem a beleza da cor. Ela é de um marrom lindo! Percebem a delicadeza com que essa árvore deixa transparecer uma impressão de tristeza? A árvore é incapaz de tristeza, mas dir-se-ia que ela está triste, desolada. Essa galharia dá a impressão de penachos caindo; são penachos isolados que se estendem pelo céu, levados ao vento. Mas tudo tão esguio! Cada um desses galhozinhos se entronca no outro com tanta elegância e cai de um modo tão langoroso, que se diria que essa árvore é quase romântica. Não é romântica porque ela é feita pela natureza, não foi modelada por nenhum escultor.

A entrada da ponte é monumental. Uma coluna no alto da qual se encontram figuras finas, segurando espadas, e cujos braços efetuam gestos elegantes, delicados. Tudo isso dá a impressão de algo de etéreo, e também de muito nobre. A nota aristocrática está visivelmente presente na construção dessa ponte. A nota espiritual, no sentido de predomínio do espírito sobre a matéria, que a modela de maneira a se pensar numa porção de coisas espirituais, de estados de espírito do homem, também está presente.

Obra da ”Belle Époque” com eflúvios do ”Ancien Régime”

Também nessa ponte vemos o predomínio do artístico sobre o funcional. Essas são afirmações de sacralidade. Quando contemplamos essas lâmpadas, achamo-las tão bonitas que temos a impressão de serem enfeites desenhados para esse lugar, e nem pensamos em sua utilidade.

Entretanto, podemos dizer que a nota fruitiva está mais presente do que na ponte do Rialto. Essa ponte francesa é obra da “Belle Époque”, uma época histórica que se desenvolvia na França sob o regime republicano, mas dentro do quadro de uma Europa inteiramente monarquista e de uma sociedade francesa ainda profundamente aristocrática. Há eflúvios de “Ancien Régime”(1) que estão presentes nisso. Mas a sensação de gozo da vida é intensa. A ideia da capital de todos os prazeres do mundo, de uma ponte construída para causar sensações agradáveis aos olhos, para divertir o homem, para dar-lhe vontade de viver nesta Terra, também parece muito presente aqui.

De maneira que esse seria o lado, a meu ver, dessacralizante da ponte Alexandre III.

Quanto à Idade Média, nem se põe sequer uma consideração a respeito. Se o Rialto tem ainda um vago perfume de Idade Média, aqui há um perfume de “Ancien Régime”. Portanto, um perfume muito menos denso de Contra-Revolução do que o da Idade Média.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 22/2/1971)

1) Sistema social e político aristocrático em vigor na França entre os séculos XVI e XVIII.

A necessária virtude da previdência

Dentre os valiosos conselhos legados por Dr. Plinio aos seus seguidores destaca-se, com a ênfase que nos tem sido dado conhecer ao longo destas páginas, o constante apelo à confiança na maternal e infalível misericórdia de Maria Santíssima. Disposição de alma essa que ele recomendava, sobretudo, para as encruzilhadas da vida espiritual e os momentos cruciantes do quotidiano terreno.

Porém, ao lado da confiança, empenhava-se Dr. Plinio em incentivar a prática de outra virtude, não menos importante e necessária que aquela — a da previdência. Assim, ensinava ele: “O homem previdente procura perceber o perigo quando este é ainda pequeno e remoto, pois melhor se prepara o confronto contra algo distante, e mais facilmente se vence o que tem menores proporções.

“Ora, na existência de todos os dias constatamos que a maior parte das pessoas não possui o hábito dessa previdência. Na teoria, todos concordam com o acerto de tal atitude de espírito, mas, de fato, poucos a observam. Deixa-se o perigo remoto e pequeno crescer, avolumar-se, imbuídos da ideia segundo a qual, em última análise, sempre pode sobrevir um imprevisto que afaste o risco. Desse modo, não nos aflige a preocupação de estarmos atentos quanto a uma eventualidade ruim. Esta, provavelmente, se resolverá por si mesma.

“Ademais, aos imprevidentes acode amiúde a noção de que para tudo há o famoso ‘jeitinho’: caso o perigo se torne grande, ao invés de se fazer um imenso esforço e preparar uma tenaz investida contra ele, dá-se um ‘jeitinho’ e o mal se afasta…

“Devemos nos lembrar, porém, desta outra verdade: se o ‘jeitinho’ por vezes soluciona, o mínimo que se pode dizer é que por vezes não nos socorre. E se alguém não deseja ser derrotado em nenhuma circunstância, o remédio é ser continuamente previdente, pois, do contrário, num belo momento ele não prevê o perigo, este cresce de modo súbito e o estrangula. Portanto, quem possui o senso da responsabilidade e do dever, não pode pensar de outra forma.

“Essa disposição de alma, mais do que em relação às dificuldades temporais, vale para enfrentar os perigos da vida espiritual. Começa a se delinear em nós um pequeno defeito. Se o combatermos de imediato, nossa integridade espiritual estará salva. Se lhe opusermos resistência apenas quando ele avulta, já nos tornamos débeis: diante do defeito fraco, o homem é forte; diante do defeito forte, o homem é fraco.

“Cumpre, pois, termos uma vigilância continuamente voltada para nossa vida interior. Importa sermos desconfiados contra nós mesmos. De Plinio Corrêa de Oliveira quem mais deve desconfiar é Plinio Corrêa de Oliveira, pois o principal responsável por mim junto a Deus e à Santíssima Virgem sou eu próprio. E como me sei concebido no pecado original, portanto com más inclinações e defeitos, devo nutrir desconfiança contra essas imperfeições, não lhes fazendo concessão alguma, vendo todos os ardis que a fraqueza humana pode sugerir em mim para ceder a elas. Desse modo as poderei vencer. Se não combato a pequena lacuna, a armadilha quase imperceptível, dentro em pouco estarei na voragem de uma tentação sob a qual posso sucumbir.

“Vigiai e orai para não cairdes em tentação, recomendou o Divino Mestre. Quer dizer, é preciso vigiar, é necessário prever. O homem vigilante e previdente não se assusta com a proximidade do perigo, pois já se preparou para enfrentá-lo, planejou todos os lances da luta e compreende que fez o que devia ter feito. Sobretudo suplica o misericordioso auxílio de Nossa Senhora, principal fator de qualquer êxito na vida espiritual. Nosso próprio esforço será indispensável, porém secundário: o elemento primordial é a graça divina, obtida pelo Sangue de Jesus Cristo, sempre sob o poderoso amparo de Maria Santíssima.

“Pelo contrário, o homem imprevidente e sem vigilância procura não pensar no perigo e quando este se apresenta, não sabe como agir. Aturdido, não encontra os meios adequados para se defender em tal confronto. Pode ser derrotado. Já o vigilante, mesmo diante do revés, não se deixa esmorecer. Recobra forças e novo ânimo face ao infortúnio. Sua consciência está tranquila, pois ele procedeu como devia. Sabe que Nossa Senhora o protegerá ainda mais. Outras e maiores vitórias lhe estão reservadas.”

Plinio Corrêa de Oliveira

Desigualdade: um bem ou um mal?

Como devemos considerar as pessoas superiores a nós? Admirando-as por suas qualidades, ou invejando-as por não sermos iguais a elas? Igualdade e desigualdade, até que ponto constituem um bem para o homem?

 

É notória a complexidade do universo. Nele há seres inteligentes como o homem; seres dotados de vida, mas sem inteligência, como os animais e as plantas; seres sem vida nem inteligência, como os minerais.

De fato, à medida que a Ciência progride e verifica quão numerosos são os seres que compõe o universo, constatamos as inter-relações e as desigualdades postas na criação.

Os anjos são mais numerosos que os homens

Ora, as ciências naturais nos apresentam algo muito inferior ao que alcançamos pela Fé. Sabemos existirem os anjos, puros espíritos que não podemos ver. E a Teologia nos ensina serem os anjos incomparavelmente mais numerosos do que os homens.

São Tomás dá para isso uma bonita explicação, apresentando uma razão metafísica que toca no estético: a Criação é excelente; o melhor deve ser mais numeroso1. Ora, como puros espíritos, os anjos são superiores a quem não é puro espírito.

Suponhamos um tapete. O que ocupa mais espaço, a franja ou propriamente o tapete? É o tapete. Pois uma franja enorme e um tapete pequenino é uma coisa caricata. Ora, o tapete da Criação são os anjos, puros espíritos. E à medida que vai se aproximando da matéria vem a franja. Então, os anjos são mais numerosos do que os homens.

Compreende-se que haja uma escala, e no alto, como qualidade e quantidade superiores, estão os anjos.

A desigualdade entre os anjos é maior do que a existente entre os homens

Não devemos imaginar que um anjo está para outro anjo como um homem para outro homem. Nós, homens, por mais diferentes que sejamos uns dos outros, somos da mesma espécie. Os anjos, não. Cada anjo é de uma espécie diferente da do outro2.

E o anjo inferior foi feito para servir o superior; aquele é menos inteligente e tem uma capacidade menor de amar do que este. Por causa disso, recebe de Deus uma glória e uma graça menor do que aquele que está acima.

Assim, se fôssemos fazer um gráfico do mundo angélico, traçaríamos uma espécie de fio de linha enorme, em que cada anjo seria um ponto; cada um deles está a serviço do anjo superior, e através deste conhece a Deus, mas ele mesmo também vê diretamente o Criador. Todos os anjos O veem diretamente, mas não contemplam tudo; e pelos anjos superiores cada anjo inferior conhece alguma coisa mais a respeito de Deus.

Dessa forma, a desigualdade entre os anjos é enormemente maior do que a existente entre os homens. Ora, os anjos são uma porção da Criação muito mais preciosa do que os homens.

Devemos agradecer a Deus por ter criado pessoas superiores a nós

Vemos assim que a desigualdade é algo existente no universo, de tal maneira que em sua parte mais excelente ela ainda é maior. Podemos então fazer as seguintes perguntas: Foi bom que Deus fizesse assim? Não teria sido melhor que Ele criasse todos os anjos iguais? E que desse a nós homens a natureza dos anjos? E concedido aos animais, às plantas, aos seres inanimados, inteligência e vontade como os maiores dos anjos? Ou, então, que Deus não fizesse anjos, mas só nós, homens, e todos iguais uns aos outros? Não seria mais justo? O Criador não teria desse modo revelado mais bondade?

Alguém diria: Pareceria que sim, pois sempre que um homem vê um superior ele se entristece, por desejar ser igual ao outro. Sendo assim, Deus, criando a desigualdade, fez uma fonte de tristeza. Ora, não é próprio à bondade criar a tristeza. Logo, Ele não deveria ter feito a desigualdade.

Primeiramente, não é verdade que cada homem, quando vê no outro um superior, fica triste. A tristeza pelo fato de ver que outro tem mais é própria do invejoso.

De acordo com a Doutrina Católica, quando vemos alguém que tem mais do que nós, possui uma perfeição por onde se parece mais com Deus, devemos nos alegrar.

Qual deveria ser a reação de quem tivesse a honra de conhecer São Tomás de Aquino?

Dou uma comparação. Eu creio não ofender a ninguém dizendo que São Tomás de Aquino era incomparavelmente mais inteligente do que qualquer um de nós. A prova disso são algumas confidências que ele fez a Frei Reginaldo, irmão leigo, uma espécie de secretário dele. São Tomás disse-lhe nunca ter feito uma leitura sem que se lembrasse com toda a facilidade, para a vida inteira, de tudo quanto tinha lido. De outro lado, ele nunca precisara reler nada, porque tinha entendido até o fundo tudo quanto lera.

Algo desconcertante em sua obra é que, para resolver os problemas, ele cita de um modo triunfal trechos da Bíblia, os quais passariam despercebidos para outros. Vê-se que ele conhecia a Bíblia perfeitamente. Pode-se dizer que possuía uma inteligência incomparável, fabulosa.

Sabendo que São Tomás foi tão mais inteligente do que eu, se tivesse a honra imerecida de conhecê-lo, qual deveria ser a minha reação?

Imaginemos que ele estivesse aqui ao meu lado, e eu ousando fazer esta conferência em sua presença. São Tomás era um homem alto, corpulento, com pescoço muito grosso — os colegas o chamavam de boi, porque ele tinha olhos grandes, era calmo, constantemente pensando. Eu me perguntaria: “Que coisas sublimíssimas ele está cogitando a respeito do que estou dizendo?”

Creio que, na hora de ele falar, os presentes neste auditório ficariam em suspense: “O que ele vai dizer eu anoto, gravo, fico ajoelhado, rezo, já que tal homem vai falar na minha presença!”

O invejoso, espiritualmente descendente de Caim, diria: “Por que Deus não me fez igual a São Tomás?”

E o homem reto, espiritualmente descendente de Abel, exclamaria: “Que maravilha é essa obra-prima do Criador, São Tomás de Aquino! Considerando sua grande inteligência, compreendo melhor como Deus é inteligente. Portanto, através do seu conhecimento, conheço melhor a Deus. Como agradeço ao Criador o ter-me dado São Tomás, imagem viva, criada, da infinita e incriada inteligência d’Ele! Meu Deus, eu Vos agradeço do fundo da alma; vi um pouco de Vós em São Tomás de Aquino.” Esse é um homem segundo Deus.

O superior deve ser uma imagem de Deus para o inferior

Conforme a Doutrina Católica, a desigualdade existe para que os seres superiores imitem melhor o Criador e O tornem mais conhecido pelos que são menos. Por causa disso, todo maior, se corresponder à sua vocação, deve ser para o menor como uma imagem de Deus.

São Tomás de Aquino exemplifica com a riqueza. Ele pergunta se é bom que haja pessoas mais ricas do que outras.

E responde que é bom porque os mais ricos, dando aos mais pobres, fazem que estes compreendam o que é a generosidade e, desse modo, entendam e amem a generosidade de Deus. A generosidade do rico para com o pobre é uma imagem criada da generosidade do Criador para com o homem. A desigualdade de fortuna, portanto, é um bem.

Alguns seres devem velar por outros

Há dois princípios que regem o problema da desigualdade: o maior é uma imagem de Deus para o menor; em todo o universo, uns seres devem velar pelos outros.

Embora Deus cuide diretamente das criaturas, Ele concebeu a Criação de modo que uns seres velam por outros. Assim, os anjos maiores governam os menores; os homens superiores dirigem os inferiores.

Quer dizer, há uma colaboração: os maiores orientam e elevam os inferiores até Deus; estes os servem. Nesta colaboração, que não poderia existir se os seres fossem todos iguais, se afirma o plano do Criador. Por esta forma, na desigualdade, vemos realizar-se a Providência de Deus.

A desigualdade é um meio para amarmos a Deus

Que atitude devemos tomar diante daqueles que são mais do que nós? De respeito, reverência e de agradecimento a Deus pelos dons que lhes deu. Devemos nos alegrar pelos dons que lhes foram concedidos pelo Criador, e também porque esses dons são benéficos para nós.

Por exemplo, falando sobre a inteligência de São Tomás de Aquino, estou certo de que abri os horizontes de alguns dos presentes, pois não imaginavam que houvesse homens tão inteligentes. Ao imaginá-los, em algo esclarecemos a nossa própria inteligência.

São Tomás morreu, sua alma está no Céu e seu corpo se desfez em pó. Num continente que ele não sabia  existir, a América; num país que não imaginava que existiria, o Brasil; numa cidade a qual não pensava que um dia haveria, São Paulo; no local onde no tempo dele talvez houvesse uma taba de índio, entretanto, no ano de 1975, a recordação de São Tomás de Aquino abre horizontes.

É um bem para nós que ele tenha existido. Trata-se de uma desigualdade benfazeja. Assim devemos olhar aqueles que são mais do que nós.

Pulcritude da hierarquia existente na Igreja

Esta impostação de alma explica, em boa parte, a diferença entre os católicos e os protestantes. No ápice da Igreja existe a figura do Papa, monarca da Igreja universal, Vigário de Cristo, a quem foi dito: “Tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja; as portas do inferno não prevalecerão contra ela.” (Mt 16,18). Mais do que um Papa não se pode ser.

Lendo a história dos grandes imperadores romanos, tem-se a impressão de que foram homens como depois não houve mais na Terra. Ora, qualquer Papa tem muito mais poder do que Júlio César. Um Pontífice, hoje em dia, governa seiscentos milhões de católicos3, mais ou menos, e não é um poder como o de César, na ponta da lança, mas espiritual, que obriga em consciência. Ele fala e os outros devem crer.

Houve alguma vez na História um poder igual a este? “Tudo o que ligares na terra será ligado nos céus, e tudo o que desligares na terra será desligado nos céus”  (Mt 16,19). O católico se rejubila com isso. Quão belo é haver na Igreja um chefe, um rei, uma cabeça tão alta e adornada com poderes tão esplêndidos! E, logo abaixo do Soberano Pontífice, os príncipes da Igreja, os Arcebispos, os Bispos, colocados cada qual para governar uma parcela da Igreja universal, sob a autoridade do Papa! Como é pulcro ver um Bispo que entra numa igreja, de mitra, com báculo, e o coro cantando a plenos pulmões: “Tu és sacerdote eternamente, segundo a ordem de Melquisedech”; ele avança, o povo se ajoelha e o Bispo distribui as bênçãos de um lado e de outro, usando luvas bordadas a ouro e um anel de ametista. Que beleza!

Alguns dizem o contrário: “Por que não eu? Seria bom aplicar o livre exame… nada de infalibilidade! Sou tão infalível quanto o Papa. Na minha cabeça sou eu que mando. Nada de Papa!” Outros afirmam: “Nada de Bispos!” E outros declaram: “Nada de padres!” Tais indivíduos são movidos pelo orgulho, portanto pela inveja. Nós somos movidos pelo Espírito Santo e, portanto, pelo espírito de abnegação, de respeito, de amor. A pessoa que compreende quem é um Papa entende muito melhor quem é Deus Nosso Senhor. O Papa e Bispos são imagens vivas de Deus.

Cosmos: um conjunto de coisas ordenadas

Passemos agora ao ponto terminal da conferência.

A desigualdade é um bem, mas não é o único bem que existe no universo. Todos conhecem a diferença que há entre caos e cosmos.

Na linguagem comum, corrente, caos é uma desordem, um amontoado de coisas que não têm relação entre si. Por exemplo, se chegássemos aqui nesta sala e encontrássemos as cadeiras em desordem, algumas delas dependuradas no teto com cordéis, os lustres no chão, perguntaríamos: “Quem fez esse caos?” Todo mundo acharia a palavra “caos” bem aplicada, pois ela se refere ao conjunto de coisas que não estão colocadas em ordem, umas em relação às outras.

Cosmos é, pelo contrário, um conjunto de coisas postas em ordem entre si. Por isso dizemos que Deus criou um cosmos ou um universo. As palavras “cosmos” e “universo” querem dizer a mesma coisa, ou seja, tudo ordenado.

Para que as coisas estejam ordenadas, é preciso que elas sejam, de algum modo, iguais e também desiguais. Porque se forem totalmente desiguais, não há ordem possível entre elas.

Imaginemos que alguém veja um sapato, um canário, uma fotografia de Churchill e diz para um subalterno: “Ponha esses objetos em ordem nesta mesa.” Não há ordem possível, porque são coisas totalmente heterogêneas. A ordem supõe certa relação.

Se fossem três fotografias de Churchill, poder-se-ia colocá-las em ordem, considerando o tamanho da foto, a idade dele etc. Ou, então, três canários ou três sapatos poderiam ser postos em ordem.

A igualdade e a desigualdade devem compor-se para formar uma ordem

Quer dizer, para se pôr em ordem as coisas é preciso que elas tenham algo de comum e também desigualdades fáceis de se perceber. Se uma pessoa faz três cópias de uma fotografia de Churchill e me pede para pô-las em ordem, eu respondo: “Meu caro, a olho nu, não! Se você me der uma superluneta, vou verificar que há entre as cópias alguma diferença de tamanho; mas a olho nu, sem eu perceber as desigualdades existentes entre elas, não é possível colocá-las em ordem.”

A ordem supõe um misto de igualdade e desigualdade. Assim, para que houvesse cosmos eram necessários seres por algum lado iguais e por outro lado desiguais.

A desigualdade não é um mal, é um bem. Ambas — a igualdade e a desigualdade — devem compor-se para formar uma ordem.

Esta é a tese da Doutrina Católica, mas que nosso Movimento exprime e reproduz. Deve haver entre as coisas uma hierarquia proporcionada e harmônica. Uma hierarquia desarmônica não vale nada, porque destrói essa relação.

Apresento mais um exemplo muito ao alcance dos que estão neste auditório, porque quanto mais eu der exemplos fáceis, tanto menos canso a mente dos presentes, que podem assim melhor acompanhar a doutrina.

A lei da proporção concilia a igualdade com a desigualdade

Um exército possui uma hierarquia: general, coronel, tenente-coronel, etc. Se alguém me disser: “Dr. Plinio, o exército do país X é excelente; nele há generais e tenentes-coronéis, mas não coronéis”, farei a observação: “É preciso verificar, pois, se for assim, as coisas não funcionam. Porque todo exército é uma engrenagem; em certo momento, uma ordem tem que passar pelo coronel, e, se este posto não existir, será um exército manco.”

Porque na verdadeira hierarquia, entre o mais alto grau até o ínfimo, é preciso que haja vários graus intermediários, de maneira que entre o maior e o menor exista uma proporção. Trata-se da lei da proporção, que concilia a igualdade com a desigualdade.

Imaginemos uma escada muito bonita, em que os degraus mais altos sejam menores e, à medida que se vai descendo, os degraus se tornam longos; a escada vai se abrindo. É uma obra-prima. Se nessa escada faltasse um degrau intermediário, ela se tornaria horrenda, uma caricatura, porque perdeu a proporção entre o degrau mais alto e o mais baixo.

Então a hierarquia deve ser proporcionada, de maneira que entre o maior e o menor haja sempre um contato, uma proporção.

É o que vemos na Igreja Católica. O Papa está colocado no fastígio; abaixo dele estão os Cardeais, depois os Arcebispos, os Bispos, os Monsenhores, os Cônegos e depois os simples Padres. São graus que, de alto a baixo, existem dentro da Igreja. Isso torna suave o acesso ao Papa e estabelece uma engrenagem que faz da hierarquia algo amável, afável e agradável; há um misto de igualdade e desigualdade.

Assim, fica demonstrado como devemos ter espírito hierárquico.

Deve-se desejar progredir para servir a Deus

Tratarei finalmente da seguinte questão: Se é bom que haja desigualdade, nunca se deve procurar subir?

Depende da razão pela qual a pessoa queira progredir. Se desejar subir por amor de Deus, para servi-Lo — não por orgulho —-, ela está agindo conforme a ordem do universo. A pessoa deve procurar progredir na proporção dos meios que o Criador lhe concede.

Por isso um indivíduo estuda e torna maior sua ciência, outro trabalha e aumenta seu dinheiro, um terceiro faz exercícios físicos e desenvolve sua musculatura. Deus dá a cada pessoa possibilidades para se aperfeiçoar. Na medida em que procuremos a perfeição para ficarmos mais semelhantes a Deus, é bom subir.

Se uma pessoa, por exemplo, quer cantar e diz: “Como o cântico harmonioso é uma bela criatura e a canção em si é bela, eu quero cantar para possuir essa beleza, que é um reflexo do Criador.” Isso é uma coisa justa, direita.

Entretanto, se ela pensa: “Não tolero que tal indivíduo saiba cantar e eu não. Então vou aprender a cantar apenas para ser mais que ele.” Isso é inveja, um pecado.

Também não é direito querer aprender alguma coisa, ou subir, em qualquer sentido da palavra, para ter o gosto de ver o outro em baixo. “Sou igual a meu irmão, mas vou dar uma tacada financeira e farei uma casa magnífica em frente à dele, que a transformará numa barraca.” Isso é um péssimo sentimento, vontade de oprimir os outros; não é uma coisa católica.  v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 25/1/1975)

Revista Dr Plinio (Fevereiro de 2012)

 

 

1) Cfr. Suma Teológica I, q. 50, a. 3.

2) Cfr. Suma Teológica I, q. 50, a. 4.

3) Atualmente, o número de católicos excede a cifra de 1.250.000.000.

Os suaves fulgores da penitência

Dotado de especial senso histórico, Dr. Plinio conhecia, entre outras coisas, as características mais profundas das civilizações, dos povos e dos estilos de arte. Nessa exposição ele explica como decaiu o gótico, e nos adverte a respeito da necessidade da graça do arrependimento e da penitência, para que surja o estilo artístico do Reino de Maria.

 

Consideremos o estilo clássico e o românico: não há dúvida de que o estilo românico, de algum modo, inspirou-se no estilo clássico. Por exemplo, aquelas arcadas e colunas do estilo românico são do estilo romano, é evidente. Mas entrou um elemento artístico e arquitetônico novo, que corresponde ao elemento psicológico novo também, o qual em alguns dos seus aspectos se percebe.

Arte clássica e o ideal do homem olímpico

Por diversas razões, a fortaleza não foi um ideal arquitetônico nem dos gregos nem dos romanos. Isso se deve talvez aos conceitos deles de arte militar, com exércitos muito móveis, e depois a noção de falanges e de legião, que era uma espécie de fortaleza viva a qual de algum modo dispensava a muralha.

Mas o fato concreto é que a fortaleza não esteve presente, a não ser muito esporadicamente, nas suas cogitações e não marcou a fundo a sua arquitetura. E por causa disso nenhum prédio deles visa ser forte. Por exemplo, a mais típica das construções dos gregos, o Parthenon. Também a tribuna das Cariátides, que eu acho tão bonita, não visa de nenhum modo proteger o orador contra uma agressão; é uma tribuna no sentido mais próprio da palavra, em que o orador faz-se ver e tem facilidade de dar alcance à sua voz.

Uma coisa curiosa que está em toda a psicologia clássica: fica insinuado, sem dizer, que a produção intelectual e a artística se fazem de modo indolor. De maneira que na arte não está de nenhum modo representado o esforço da elucubração; esta é olímpica, se desenvolve com a facilidade de um cortejo de bailarinos que vão saindo de um templo para executar um ato religioso qualquer. Assim também os raciocínios vão se desenvolvendo uns depois dos outros.

Ora, é impossível que a elucubração deles não fosse penosa. Isso que eles procuravam ocultar dava o ar olímpico às suas construções, as quais não visavam de nenhum modo ser fortes.

O estilo românico e a noção do homem real

Na concepção medieval, não. Entre os bárbaros há qualquer ideia de ocultar o pecado original, ideia essa que entre eles era co-idêntica com a civilização. Aliás, os bárbaros nem tinham ideia clara do pecado original, mas sim dos efeitos desse pecado, que eles procuravam esconder.

E a arte, simplesmente, começa a conviver abraçada nos efeitos do pecado original, mais ou menos como o homem que precisa andar apoiado numa bengala e se apresenta naturalmente com ela. E tira até uma fotografia solene com a bengala na mão; ele e a sua bengala formam um todo.

E entre os bárbaros o belo surge como uma trepadeira que se enrosca numa árvore dura, rugosa, num sulco dos mais rebarbativos que se possa imaginar, fica cheia dessas contingências, florescem umas rosinhas cor de coral e se forma uma coluna toda rósea.

Assim a arte, com essas contingências, produz uma coisa nova que a meu ver é o românico. Vê-se que o traçado de muitas igrejas românicas era para ser um, mas foi outro porque de repente o terreno começou a ceder e tiveram medo; então, puseram uma estaca, quer dizer, não levaram o prédio até onde pretendiam. E a igreja se apresenta como se tivesse levado um murro de um lado, mas de outro lado apareceu a necessidade de prestar culto à santa tal, que protege contra as intempéries; então acrescentam uma capelinha, que perturba o plano da igreja. Tudo somando, ficou um encanto, muito mais bonito do que estava no original. Mas que é o fruto da aceitação da contingência pelo homem, e a sua modelagem de acordo com a contingência, não para ser o homem olímpico, mas o homem real, descendente de Adão e Eva, remido por Nosso Senhor Jesus Cristo e entrando na vida desta Terra.

Acho que até Saumur tem algo disso, com aqueles campanários em cima, meio inesperados, mas sua planta geral é um quadrilátero compacto, maciço. Mas Saumur já é gótico, e estou falando do românico.

Não vou dizer que uma reflexão soberba de Aristóteles não seja séria, mas não tem a seriedade total. Na medida em que procura ocultar sua elaboração mental e sua dor, a pessoa não é séria, escamoteia uma parte da realidade.

O Parthenon é seríssimo por alguns lados; por outros lados falta-lhe seriedade.

O sério irrompe na arte e por detrás dele uma luz que vale infinitamente mais do que ele: o sobrenatural, o sacral.

O gótico causa a impressão de algo fechado

Dada esta teoria, poderíamos nos perguntar: Com o que nos é dado entrever sobre a Idade Média, o que podemos prever do Reino de Maria?

Ao examinar as coisas da Idade Média, creio haver um problema que perturba, o qual só se deve analisar bem quando se tiver o aparato da cultura e erudição necessária; nós não temos esse aparelhamento. Mas que é preciso considerar que havia algo que tornava um tanto pesadas as asas do voo medieval: frequentemente se apresentam manifestações diabólicas ou gnósticas dentro da arte medieval. E um trato sério da questão não pode deixar de levar isso em consideração.

Por exemplo, há algum tempo atrás eu estava vendo um monumento funerário gótico, mas daquele gótico moribundo já no século XV, em que a arte funerária começou a se desdobrar um pouco exageradamente; depois atingiu no século XVI exageros únicos. Nesse monumento, seis anjos carregavam o esquife de um senhor feudal, mas um desses anjos era um demônio com a cara voltada para trás, dando risada. Como é que isso foi feito, estava à vista de todo mundo, ninguém destruiu, ninguém sabe da explicação disso, a família aceitou, entrou na igreja, o padre celebrou Missa? Mais ainda, nós olhamos o monumento e, se não nos advertissem para aquele anjo de cara virada, o acharíamos sublimíssimo; entretanto a nota gnóstica está ali presente. E isso aflui em várias coisas.

Não estou falando dos demônios nas gárgulas, postos pelos anti-gnósticos que queriam representar o demônio como horroroso e, portanto, no papel que lhe é próprio.

Além disso, há o seguinte: o gótico dá impressão de algo fechado, do qual não irá sair a inspiração nova. Ficou tão bonito, tão admirável, tão perfeito que já chegou ao termo de si mesmo, não vai elaborar nada mais de novo. E, portanto, a imobilidade pela ausência de originalidade marcará para todo o sempre aquele estilo, que será uma infidelidade abandonar, e será uma outra infidelidade ficar dentro dele.

O “flamboyant” já tem infidelidade.

O espírito comercial e a saciedade do sobrenatural

A resposta, a meu ver, é a seguinte: também a vida de sociedade naquele tempo estava admitindo uma porção de atividades novas, que já eram vistas num prisma novo do qual as pessoas não se davam conta. Vou dar o exemplo característico. Na “aldeia de marzipã” haveria pequenos comerciantes, mas estes não a deteriorariam. Porque as proporções do comércio eram, por assim dizer, domésticas e humanas, e tudo quanto se passasse ali tinha, portanto, uma certa relação com o homem.

Quando começam a se desenvolver as estradas e se faz a famosa economia aberta, nasce um espírito comercial que não é mais ligado a nenhuma aldeia, a nenhum lugar, bem ou imóvel, mas que quer apenas ter um dinheiro volátil através de todas as estradas da Europa. E que se exprime melhor pela deusa fortuna do que por qualquer outro símbolo. A sede de aventura do militar passa para a sede de aventura do mercador, que transporta as suas riquezas e procura com isso aumentá-las fabulosamente. E o ricaço no fim da vida é o aventureiro bem sucedido como o marinheiro ladrão, pirata. Ou o guerreiro que se uniu ao deus malfazejo e durante a vida foi um bandido, como aqueles tipos de senhores feudais que tinham castelos à beira das estradas para irem roubar as pessoas que passavam, etc. Há uma coisa qualquer que vai mudando.

Essa posição mostra como a sensação de ciclo terminado existia por causa de uma saciedade do sobrenatural, do sacral, do sofrimento enquanto redentor, enquanto ligado à virtude, à Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo. Entre os homens bons crescem cada vez mais aqueles que são numerários. A dedicação e a renúncia a si mesmo passam a ser, não mais da sociedade, mas de um filão de gente que vive na sociedade; o resto é pessoal que entra na patuscada. Compreende-se, assim, como o fruto social da Idade Média tivesse que caminhar para aquela extinção.

A ”cisterização”

Então, para se compreender para onde é que ela devia ter rumado, precisaríamos imaginar dois caminhos: ou o caminho de São Francisco de Assis, de São Bernardo, ou o de São Bento sublimado. Uma volta àquilo que estava sendo abandonado e uma “cisterização”(1) da Europa. Portanto, um retorno para uma ebriedade da pobreza, da simplicidade, da austeridade, que geraria padrões novos de beleza. Os vitrais das abadias cistercienses são muito bonitos, mas têm uma nota nova: são grandiosos, porém de uma certa simplicidade.

Dever-se-ia imaginar uma clara ruptura com a época anterior estagnada, e o surgimento de uma época deliciosamente penitencial sem ter nada de revolucionário. Ou uma época nova que recebesse uma graça à São Bento, e que fosse muito para cima.

Ou uma terceira hipótese: uma época que tivesse uma graça cisterciense na qual, ao cabo de uns cem anos, florescesse uma coisa beneditina, quer dizer, com o estilo, o amor muito maior às riquezas do beneditino, mas sempre com a cautela de não provocar uma nova ruptura.

Isso eu não sei verdadeiramente como imaginar, mas sei tirar da nossa vida um exemplo de algumas coisas que fazem compreender um sistema da Providência. Alguém vai andando muito bem, mas em certo momento peca, quebra. Na ruptura, reza o Miserere e faz um rebaixamento… depois surge uma flor mais alta do que a anterior.

Há um problema histórico por onde, cada vez que uma coisa vai chegando ao apogeu, os dirigentes do apogeu não se devem tomar de entusiasmo, mas precisam ter medo do demônio gnóstico, das indulgências, das tolerâncias em relação às como que gnoses. E já devem estar prontos para fazer a “cisterização”, se for necessária.

Em concreto, na História sempre houve pessoas que observaram o fenômeno, mas não tiveram coragem de falar sobre ele, produzindo baixas de que o demônio tira proveito, porque é muito desalentador.

E volto a dizer: a história de Cister mostra que também há ali, naquelas austeridades, na sensação do apogeu, a necessidade de outros apertos. Creio que se Cister não foi o que poderia ter sido é porque a marcha das “cisterizações” parou.

É lícito esperar que não seja necessário uma “cisterização”, mas, pelo contrário, progresso? É uma pergunta que se pode fazer. Eu respondo da seguinte maneira: se não houver dilúvios sucessivos de provação, não acho que seja lícito esperar. O mal está nos dirigentes da instituição, os quais esperam que, afinal, ela tenha chegado ao século de ouro, em que não terá provação nem decadência.

Pelo contrário, se não perceberem que estão vindo provações, tremam. Porque a hora da “cisterização” chegou. Ou a instituição começa a se flagelar a si própria ou, se os acontecimentos não a flagelarem, decorre a deterioração dela.

Inocência e contrição formam uma ogiva perfeita

Pode-se admitir que uma entidade, um convento, uma Ordem religiosa, uma Ordem de Cavalaria chegasse ao seu apogeu, e vá somando apogeu com apogeu para chegar até o fim do mundo, numa série inimaginável de apogeus? Essa é a pergunta que mais precisamente se poderia fazer.

Resposta: se os responsáveis por essa obra — que pode ser também uma nação ou algo semelhante — não forem capazes de compreender que, se ela não é mais provada, precisa começar a se flagelar, do contrário a obra apodrece de fato. Quer dizer, se os responsáveis de uma Ordem religiosa pensam que, por não estar mais sofrendo incursões de inimigos da Igreja, de cátaros, albigenses, ela chegou a uma espécie de era de ouro, e, portanto, eles podem praticar a virtude sem a luta, eles são os reitores do banquete da putrefação.

Acho que isso ocorre frequentemente, porque não é ensinado o que se deve fazer.

E aqui surge o inesperado mais esperado: como podemos imaginar o Reino de Maria?

É bom método tomarmos as esperanças, os anelos que Nossa Senhora nos deu, inclusive com o que havia de mais infantil, e perguntar de que forma esta luz pode acender-se na ponta do pavio da mortificação, da penitência e do arrependimento. Aí nós vemos a possibilidade do Reino de Maria.

Mas é na feeria da graça misturada, entretanto, com os suaves fulgores da penitência, da tristeza, do “Miserere mei”, da coisa que doeu e que se pagou. É do contato de duas pedras, a graça da contrição e a da inocência as quais se juntam, que nós formamos uma ogiva perfeita. O que resta em nós de inocência, e o que devemos inovar como contrição forma uma ogiva perfeita, que nos dá o estilo do Reino de Maria.

Será uma ogiva? Não sei. Será uma coisa que, quando nós formos como devemos ser, começaremos a culturalizar nessa direção.

Uma sutil fuga da penitência

O estilo beneditino primitivo era a contrição da sociedade que tinha sido pagã, havia se putrefeito depois das catacumbas e não tinha correspondido bem à graça do eremismo.

Dessa sociedade nasceu uma outra coisa que é a graça beneditina. Em certo momento, os claustros beneditinos deixaram de ser elementos de penitência. Ficou o elemento pureza, o elemento luta, mas não basta ser mosteiro-fortaleza. É preciso a penitência: “’Peccavi’, e eu vou me flagelar a mim mesmo, com as minhas próprias mãos, porque pequei”. Desta noção, que é indispensável, eu tenho impressão de que a Ordem beneditina, em certo momento, começou a escapar.

Creio, não sei se é verdade, ter sido a Alemanha o país que mais contribuiu para desnaturar nesse sentido a Ordem beneditina. Aqueles mosteiros beneditinos na neve, lugares totalmente inóspitos, oferecendo uma proteção soberba para o corpo, para que este ali procurasse, sem preocupação, praticar a virtude e a cultura… Começam a aparecer os pães pretos magníficos, as cervejas, feitos no claustro. É mais perigoso do que a sutileza francesa, porque se tornou tão parecido com a virtude que era preciso amar muito a virtude para não se cair na contrafação.

Nesse sentido, o claustro alemão me dá um certo receio. Terá sido assim? A bela Itália como trabalhou nisso? Que lavorou nisso, lavorou…

Em que consiste a penitência

Para um inocente, todas as exigências da luta já são a taça da penitência. E para ser lutador até o fim, é uma batalha tão grande que isto já dá a penitência. Para o que não é inocente, é preciso acrescentar algo; não basta isso.

E notem que para aqueles que são amados por Nossa Senhora, mais vale a pena eles mesmos irem se adiantando. Porque, como Maria Santíssima os ama mais, provavelmente Ela lhes dará um belo naco de penitência nesta Terra. Mas o que Ela faz — porque o amor de mãe às vezes é como que sublimemente fraudulento —, para não ter que castigar os filhos, é soprar em seus ouvidos que eles precisam se castigar a si próprios.

Da reunião de hoje o que mais deveríamos reter é a penitência, porque é de extrema certeza que nós mais facilmente dela esquecemos. Quer dizer, contraímos hábitos mentais devido aos quais, dois, três minutos — ao pé da letra é isso – depois de sairmos daqui, nós teremos esquecido a penitência. E no que mais devemos pensar é na penitência. Porque esta é o antibiótico que torna possíveis as condições de saúde em nós, e sem ela a própria degustação daquilo que estou falando se torna inviável.

Sobre essa penitência se poderia falar algo.

É preciso notar o seguinte: não confundir penitência com sofrimento. Porque o indivíduo pode ter sofrimento sem penitência nenhuma.

O que vem a ser penitência?

A penitência é, antes de tudo, a convicção de que se andou mal. E essa convicção, por sua vez, resulta primordialmente de admitir como pressuposto o seguinte: eu, no fundo, não sou bom, sou mau; a todo momento a tendência para o mal está levantando a cabeça dentro de mim e, se eu não desenvolver um esforço extraordinário, pratico o mal. E depois o mal muito rapidamente se torna em mim um hábito. E o indivíduo mau é o que praticou o mal, mas sobretudo é mau aquele que transformou o mal num hábito.

Se eu não tiver essa ideia de que sou coisa podre, e de que sem a graça de Deus só farei o mal — portanto, devo ter um inimigo capital na vida chamado eu mesmo —, vou acabar formando de mim uma ideia de bonzinho, meio-termo, pessoa que no total é bem melhor do que as outras, a partir da qual a penitência é impossível. v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 17/2/1983)

Revista Dr Plinio (Fevereiro de 2014)

 

1) Neologismo com o qual Dr. Plinio caracteriza, nesta conferência, a influência do espírito cisterciense na Europa medieval.