No calendário litúrgico antigo, a festa de Santa Teresinha caía em 3 de outubro, a mesma data em que Dr. Plinio partiu desta vida para receber seu prêmio pelo bom combate. Não é este o único nem o principal vínculo entre eles. Antes de tudo, esse varão devotava grande admiração pela figura e vocação daquela carmelita, conforme manifestou em muitas ocasiões, entre as quais a conferência transcrita nestas páginas.
Diversas passagens da Escritura desenvolvem o pensamento de que o eixo da História gira em torno dos justos, e tudo quanto acontece no mundo – desde os fenômenos de ordem natural até os mais altos fenômenos de ordem cultural, espiritual, política, etc. — é ordenado pela Providência para a salvação daqueles que verdadeiramente querem se salvar. Noutros termos, é em benefício desses bons que tudo se passa. São eles os filhos bem-amados, os prediletos.
Nessas condições, não será difícil compreender como os católicos nada devem temer, se forem almas retas e íntegras como uma espada de aço, que tem ponta e gume para cortar qualquer coisa, retilínea, clara e brilhante. Nada a quebra e ela avança sobre qualquer adversário, a começar por si mesmo, porque os nossos piores inimigos estão dentro de nós.
Modelo de alma assim, justa e séria, foi Santa Teresinha do Menino Jesus, que, por essa razão, pode ser comparada a um gládio.
Desde a sua mais remota infância, a vida dela esteve voltada para as altas questões de caráter metafísico, vistas embora segundo a mente de uma menina, depois, de uma moça, e por fim, de uma religiosa carmelita. Quer dizer, não era uma especialista em metafísica, mas era um espírito repleto de elevadas considerações teológicas, sobrenaturais, etc., as quais constituíam o fogo que ardia continuamente na sua alma.
Vocação abraçada sem hesitações
Por outro lado, desde cedo ela conheceu a sua vocação, e conhecendo-a, adotou-a sem nenhuma espécie de irresolução, hesitação ou moleza. Sabe-se, por exemplo, o quanto ela amava seu pai e suas irmãs. Ora, no último jantar em família que precedia a partida dela para o convento, todos na mesa choravam, exceto a vítima que iria se imolar. Por quê? Por suma seriedade. Se resolveu, se é o caso de fazer, esteja contente, pois chegou a hora de re-alizar a vocação. Se o sacrifício tem de ser consumado, transponha de uma vez os umbrais da dor, sem delongas nem demoras que só prejudicam a decisão tomada.
Entrando na vida religiosa, ela encontrou um ambiente pouco favorável àquela seriedade que a distinguia. Fundamentalmente, encontrou um Carmelo não sério, entre outras coisas, com uma superiora que estimulava nas suas freiras um perigoso mundanismo, trazendo para dentro da comunidade as futricas e os fatos miúdos da pequena nobreza de Lisieux.
A vitória da seriedade
Nessas circunstâncias, Santa Teresinha podia ter pensado: “Este é um convento não sério e, portanto, a única atitude certa é tomá-lo como tal e imitá-lo. Serei também uma freira relaxada!”
Porém, não foi esta a postura que adotou. Pelo contrário, ela conquistou a vitória da seriedade: Neste convento com tantos defeitos, vou considerar que ele, de qualquer modo, é uma casa religiosa, e como tal é algo imensamente sério. De maneira que levarei a seriedade até as últimas consequências. Vou ser seriíssima, vou ser santa, vou oferecer a minha alma como vítima expiatória ao amor misericordioso de Nosso Senhor Jesus Cristo, aceitando tudo quanto Deus me mandar, sem pedir e sem recusar nada.
Um pequeno exemplo dessa seriedade. Certa vez, a freira que lhe ajustava aquela capa creme de carmelita errou na hora de fechar um alfinete de gancho, cravando-o na pele de Santa Teresinha. Esta, até o momento de tirar o hábito para dormir, aguentou o incômodo e a dor sem gemidos, porque tinha resolvido não recusar nenhum sacrifício que Deus lhe enviasse.
Imagine-se o que seja levar um alfinete cravado na carne o dia inteiro! Mas, é a seriedade de uma alma santa, uma alma-gládio: Eu não resolvi aceitar tudo? A palavra tudo comporta exceção? Não. Logo, isto faz parte do tudo. Logo, deixe aqui o alfinete!
Mortificando o anseio do sacrifício
Outra impressionante prova de seriedade, ela deu a propósito de seu oferecimento como vítima expiatória. Entregou a vida nas mãos da Providência e passou a desejar que fosse levada o mais rápido possível. Quantos fazem um oferecimento de vítima expiatória pelas nuvens, e se lhes sobrevém depois um resfriado ficam apavorados de morrer! Santa Teresinha, ao contrário, imolou-se por inteiro, a ponto de mortificar o próprio anseio com que esperava consumar seu sacrifício.
Com efeito, na noite em que teve a primeira hemoptise, ela sentiu que estava expelindo qualquer coisa que talvez fosse sangue. Resolveu não verificar na hora, mas deixar para o dia seguinte, refreando assim a vontade imensa de ver aceita sua imolação. Se fosse sangue, significaria morte próxima. Então, como um pequeno sacrifício a mais, decidiu não olhar naquele instante. Dormiu, e só foi se certificar na manhã seguinte.
Considero essa atitude como a última palavra da seriedade: Eu resolvi entregar minha vida, e chegou a hora. Desejo tanto fazer o que decidi, que a mortificação consiste em não tirar a limpo, e dormir em paz até raiarem as primeiras claridades da aurora, o sino da obediência me despertar, eu abrir os olhos e ver que o pano está vermelho. É o Esposo de minha alma que vem. Levantar-me-ei alegre, porque a morte bateu à minha porta!
De fato o Esposo vinha, a vítima estava próxima do altar, perto de sofrer as piores dores, e de caminhar para elas como Santa Teresinha caminhou até o fim.
Determinada e heroica, de encontro à morte
Estou seguro de não ter havido na História guerreiro que enfrentasse a morte de modo mais determinado e heroico do que Santa Teresinha do Menino Jesus. Na serenidade maravilhosa do olhar dela, existe a limpidez e a firmeza de todas as resoluções. É o calvário e a cruz: Eu planejei, eu resolvi, eu estou decidida. Nada abala essa determinação.
Como é belo, por exemplo, alguém fazer o papel de Santo Inácio de Antioquia, cujo martírio é uma das páginas inesquecíveis da hagiografia católica. Um ancião que se apresenta no meio do Coliseu romano, sob os apupos de uma multidão ululante, e vai de encontro aos leões com os braços abertos: Meu Deus, fazei com que as garras e os dentes destas feras me triturem como é triturado o trigo para formar uma hóstia, de maneira que eu possa ser para Vós, Senhor, uma hóstia, havia dito. E talvez tenha pensado: uma hóstia pura, santa, imaculada. Os leões vieram, ele não recuou, sentiu a dilaceração de todo o ser dele, dores incríveis, mas estava se “hostificando”, transformando-se numa hóstia, e ali morreu.
Mas, que quadro maravilhoso: o circo romano, possivelmente o imperador, os patrícios, a ordem dos cavaleiros, as vestais, é o maior público da maior cidade do mundo de então. É a maior infâmia e a maior glória morrer naquele lugar. Ele, o mártir, pensava em Nosso Senhor Jesus Cristo no alto Calvário, e se sentia como um herói, abrindo os braços para os leões e morrer a se me fosse lícito empregar a palavra é numa espécie de apoteose de si mesmo. Que magnífico!
Como magnífica haveria de ser a morte de um cruzado: a cavalo, revestido de couraça e elmos reluzentes, armado de escudo e espada, combatendo os inimigos da fé católica, até que em certo momento ele sente um ferro que lhe entra pela garganta, uma golfada de sangue, e ainda vá, nos últimos estertores da morte, um Arcanjo de cristal que desce do Céu para pegá-lo e levá-lo. Que maravilha!
Bem diferente a morte de Santa Teresinha. Nunca me esqueço do arrepio que tive quando vi fotografias dela em seus últimos dias de vida: um claustro pacífico, tranquilo, uma espécie de cama-de-vento, preparada de um modo muito confortável, colchões, travesseiros, e ela posta ali, bonita e risonha como uma boneca.
Entretanto, pelos escritos que nos deixou, sabemos o horror que ela estava sofrendo. Ser vítima no meio do acolchoado, do conforto, e morrer, não por um inimigo que se combate, mas de uma doença que a vai consumindo, sem permitir o heroísmo e o esplendor do contra-ataque; era ser devorada sem devorar, ser comida por uns bichinhos que não têm consciência de si mesmos e que vão roendo os seus pulmões… Que terrível!
Pior. Não bastassem as dores físicas, tinha ainda a provação moral. Chumbo dentro da alma, trevas, nenhuma consolação. A única voz que se fazia ouvir sensivelmente era a do demônio: Será que há Deus? Será que há outra vida? Tu estás te extinguindo de um modo tão horroroso e tão inglório… Renunciaste a tantas diversões e prazeres, e agora morres pelos micróbios da tuberculose. Depois virão os vermes, e tu não serás mais nada, irás para a sepultura, quando toda a natureza em torno de ti estará em flor… Ah, ah, ah! Uma gargalhada com todos os ecos do inferno.
Tudo isso Santa Teresinha enfrentava nos acolchoados, nos pequenos agrados, na aparência de compota, e ouvindo uma irmã dizendo para a outra, no quarto ao lado: Quando essa irmã Teresinha do Menino Jesus morrer, eu não sei o que nossa madre vai escrever nos anais do Convento, porque ela não fez nada. E assim ela ia se extinguindo, num fim que é pelo pelo menos tão heroico quanto o de Santo Inácio de Antioquia. A resolução estava tomada, com fé e seriedade inquebrantáveis, sem nenhuma concessão ao demônio.
Ela cantava em vida sua própria santidade
De maneira que ela sorveu o cálice até a penúltima gota. A última lhe foi poupada, pois no derradeiro instante, que devia ser o mais cruel, ela teve um êxtase, a tal ponto que se levantou no leito e parecia inundada de luz celeste: sua alma já contemplava a Deus, ela tinha morrido.
Santa Teresinha partiu, e, como ela havia prometido, começou a cair sobre a terra uma chuva de rosas (ou seja, de graças especiais) comprada por um dilúvio de sangue interior. Os mil sorrisos que a devoção dela abriu na terra foram fruto dos mil gemidos de alma e de corpo que ela soltou, porque quis e porque foi séria até o fim.
Tão séria que ela compreendeu não carecer do aparato bélico de um cruzado, nem de quaisquer outras exterioridades do heroísmo, para ser uma heroína. E morreu cônscia de seu heroísmo, de sua santidade. Ela percebia que era como uma árvore de resina preciosa, da qual toda gota que caía tinha um valor extraordinário aos olhos de Deus e dos homens, sendo portadora de insignes graças.
Não entrava nisso nenhum laivo de orgulho nem de vaidade. O fato é que se tratava de uma pessoa tão séria, e seu exame de consciência era tão retilíneo e profundo, que ela tinha confiança na limpidez de sua própria alma, e por isso cantava em vida sua própria santidade.
Para todo homem chega a hora do “consummatum est”
Essa é a seriedade levada até as últimas consequências. Ora, o exemplo de Santa Teresinha é de extrema importância para todos nós. A vida de todo homem na terra é destinada a ser uma grande batalha: ou será a batalha da fidelidade e, portanto, a batalha da cruz; ou será uma grande batalha torta, errada, inglória. Mas, da luta o homem não escapa. Ou se tem os mil tormentos para subir a montanha da santidade e do Céu, ou se tem o tormento da vergonha, da inutilidade, da podridão, quando se rola montanha abaixo.
Todos temos de passar pelos sofrimentos. E em determinado momento chega o sacrifício supremo, aquele em que damos a alma inteira, em que temos de repetir as palavras de Nosso Senhor no alto da Cruz: “Consumma-tum est” tudo está consumado! Tudo que na vida eu poderia dar, eu dei.
Pode parecer trágico, mas a questão é saber o que se entende por tragédia. Se é todo grande sofrimento que resulta em glória, então o Calvário é a tragédia da Cruz padecida com seriedade, que culmina na Ressurreição. Se for apenas a tragédia do sofrimento que deu errado e de nada adiantou, do caminho que não teve fim nem termo, então não é a tragédia da Cruz, mas a de árvores tortas.
Se, seguindo o modelo de Santa Teresinha, somos sérios no abraçar o sacrifício e a santidade, então nossa vida não será trágica, mas heroica e gloriosa, como a dela.