A verdadeira amizade, baseada no amor a Deus, é capaz de qualquer coisa. Porém, qual é a pessoa que, com sabedoria, sabe apreciar o companheiro quando este o admoesta justamente?
O homem, quando sentimental, admira em quem preza como amigo os aspectos nos quais se vê refletido, à semelhança de um espelho no qual se lhe torna possível observar-se. Tais indivíduos se cultuam uns nos outros, egoisticamente; esquecem-se de que onde há egoísmo certamente não haverá amizade.
A equivocada ideia de amizade caracterizava-se por uma afinidade completa de mentalidades. Duas pessoas eram amigas quando pensavam do mesmo modo e tinham uma benquerença proveniente do fato de ser uma o reflexo da outra.
No que consistia a autêntica amizade?
A amizade autêntica existe apenas quando se tem disposição interior para sacrificar-se pelo amigo. Caso contrário — quando o desejo de sofrer por outrem é nulo —, a amizade não será efetiva. Mesmo assim, o anseio de padecer por um amigo possuirá maior intensidade na medida em que seja vigoroso seu amor a Deus.
Por uma amizade fundamentada em tal amor, deve-se ser capaz de todas as formas de sacrifício, como também de perdão a qualquer ofensa ou até mesmo a quaisquer traições recebidas.
A finalidade principal da amizade não é de ser agradado ou bajulado por outrem. Considerando que o aspecto mais louvável de cada homem encontra-se no grau de união com Deus, o correto seria desejar a estima dos outros apenas quando houvéssemos trilhado as sendas do bem. Caso deixássemos de agir corretamente, não deveríamos aspirar à consideração de outrem.
O mito da “alma irmã”
Havia antigamente o mito da “alma irmã”, que consistia numa figura ideal, ou num reflexo perfeito, que as almas sentimentais faziam de si próprias em outrem a quem amavam romanticamente.
Formavam elas, a seu próprio respeito, uma figura irreal, imaginando-se como seres extraordinários, entretanto, mal compreendidos e pouco apreciados. Quando encontravam alguém que havia percebido o seu valor, ansiavam naturalmente a proximidade dessa pessoa, que supunham lhes proporcionar a verdadeira felicidade. Contudo, havia acontecido o mesmo ao outro.
Então, quando eram de sexos distintos, ficavam noivos. No primeiro período de noivado trocavam grandes confidências e incompreensões que sofreram na vida. Isso tudo culminava no casamento.
Desfazendo o mito da “alma irmã”…
Todavia, o mito da “alma irmã” despertava uma pergunta: Será realmente autêntica essa amizade? Caso seja autêntica, será então duradoura?
Pois ainda que sejam semelhantes em alguns pontos, não se diferenciarão em outros? E quando verificarem as diferenças pontiagudas, essa amizade permanecerá?
Ao prestar atenção em jovens casais de noivos, notei que nos primeiros dias de noivado tinham muito para dizer um ao outro. Porém passados os primeiros dias…
Amáveis até a completa decadência
A verdadeira seiva da amizade encontra-se no amor a Deus. Assim, a definição de amigo bem poderia ser esta: aquele a quem se considera, ama-se e estima-se por amor a Deus. O restante não é senão egoísmo. Estimar alguém pela diversão que proporciona, ou pelas vantagens que concede, não é ser amigo. Pelo contrário, é ser egoísta.
Alguém poderia objetar: “Os amigos que tenho são agradáveis, amáveis, e nunca me admoestam por nenhum defeito. Sempre se mostram com disposições de boa acolhida. Prefiro, portanto, estar com quem me seja agradável”.
Perante tal afirmação, poder-se-ia dizer: “É verdade. São estes os amigos que nunca corrigirão seus defeitos, e permitirão ademais sua completa decadência. Enfim, consentirão na sua perdição eterna. E quando não tiver utilidade alguma para eles, ainda o desprezarão. A isso você chama querer bem…?”
Infelizmente, não eram raros os que possuíam esse equivocado conceito de amizade.
“Alter Christus”
Com os autênticos católicos, passa-se algo distinto. São amigos na medida em que partilham a mesma Fé Católica, Apostólica e Romana. Daí provém uma intensa união de mentalidades.
Diferentes, mas não contrários, são os temperamentos e as psicologias dos diversos católicos: representam apenas um aspecto secundário em seu convívio. No convívio entre eles, o que há de mais importante é a Fé que possuem. Analisando-os, vê-se o varão observante dos Mandamentos e frequentador dos Sacramentos, que estima acima de tudo o caráter cristão que discerne em seus próximos.
Desponta, então, uma diferença fundamental no modo de considerar a amizade: não é na admiração de uma qualidade comum a dois amigos que ela consiste, mas, principalmente, em uma semelhança com Nosso Senhor Jesus Cristo.
“Christianus alter Christus”; se é verdade que o cristão é um outro Cristo, nada há de mais gratificante do que poder afirmar: “Ele é como outro Cristo, é meu irmão!”
Na repreensão, o verdadeiro afeto
Segundo o venerável Tomás de Kempis, a verdadeira amizade baseia-se no amor a Deus, tanto para quem estima, quanto para quem é estimado. Deste modo, quando se progride na vida espiritual, não há ninguém mais alegre do que o verdadeiro amigo. Porém, quando se verifica uma decadência, não há ninguém mais temeroso.
O verdadeiro amigo tem por obrigação recorrer aos menores indícios, examinar os mais peculiares aspectos, com o objetivo de prestar algum auxílio no momento de dificuldade. Indicando os devidos cuidados a serem tomados, como também as precauções a serem observadas, ele o repreende a fim de que seu companheiro não venha a soçobrar.
Contudo, muitas vezes tais conselhos são ouvidos com ressentimento, pois atingem diretamente o amor-próprio. Assim, por mais que a retribuição pelo auxilio prestado seja o ressentimento, a consciência permanecerá em paz, pelo bem que foi realizado.
Aquele que admoeste ao próximo, não pelo descabido desejo de corrigir continuamente — que é a mais vil das vaidades —, mas com o sincero desejo de estimular o progresso espiritual, pode-se considerar como verdadeiro amigo.
A Sagrada Escritura afirma sabiamente: “Repreende o justo e ele te amará”. Quem possui a Sabedoria, quando corretamente repreendido, torna-se agradecido sem jamais guardar qualquer ressentimento. Ao contrário, quem se lamenta por ser admoestado, não possui a Sabedoria, pois na repreensão é que se mostra o valor do homem.
Advertência, mais valiosa que a congratulação
Demonstrar afeto na repreensão é inteiramente cabível. Todavia, afirmar que é sobretudo na repreensão que se demonstra a estima, é dificultoso acreditar.
Porém, mais do que se empenhar em mostrar-se alegre ou agradável, o verdadeiro amigo deve ansiar ser útil para a salvação de seu próximo. Obviamente, alegrar-se-á com o progresso daquele a quem deseja o bem. Contudo, alguém pode progredir sem que necessariamente o elogiem; mas, se está retrocedendo, caso não lhe seja apontada sua decadência, ele não prosseguirá em seu processo?
A palavra de advertência torna-se evidentemente mais valiosa do que a de congratulação.
Por isso Nossa Senhora concedeu ao venerável Tomás de Kempis palavras cheias de unção, para admoestar seus irmãos. Também a outros Ela poderá confiar essa edificante missão.
Tanto os que corrigem, quanto os que são corrigidos, que Ela auxilie e proteja nas vias da virtude, rumo à glória no Céu. v
Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências de 30/8/1968 e 5/4/1986)
Revista Dr Plinio 149 (Agosto de 2010)