O homem tem necessidade de tornar suportável a vida nesta Terra. Para adoçar suas agruras, ele tem à disposição muitos lenitivos lícitos, entre os quais, a contemplação do que há de celeste e maravilhoso na obra da Civilização Cristã.
Acontece, porém, que um dos frutos excelentes engendrados pela Cristandade é, precisamente, a atitude que o católico deve tomar em face da dor.
Certa vez, nos meus tempos de aluno dos jesuítas, um professor de Religião nos propôs um problema muito interessante, abstraindo-se do aspecto prosaico que o envolve.
— Imaginem — dizia ele — que uma galinha fosse capaz de pensar, e que alguém se aproximasse dela e lhe dissesse: “Tu foste criada para servir de alimento ao homem. Daqui a pouco, seu dono vai te matar e te almoçar”. Pergunta-se, então, que sentimento deveria ter a galinha: de horror, porque vai morrer? Ou de entusiasmo, porque o fim para o qual ela existe — alimentar o homem — vai se realizar?
O problema estava bem apresentado, e me impressionou de modo profundo.
Anos depois, procurando resolvê-lo à luz da doutrina católica, a solução me pareceu clara. Não se trata, é evidente, da galinha, mas do estado de espírito delineado pela figura metafórica que o professor nos pintou. A resposta que encontrei foi esta: a galinha sentiria necessariamente a dor horrorosa de sua própria imolação; porém, mais do que a dor, ela não poderia deixar de sentir a felicidade inerente ao fato de ter alcançado o seu fim último, a sua completa realização. E isto traz uma alegria muito superior à infelicidade do holocausto. Portanto, os dois sentimentos deveriam se juntar, de tal maneira que a galinha amasse o fato de chegar a seu fim, embora o fizesse com dor.
O mesmo se pode aplicar à vida humana. Neste mundo, a pessoa feliz não é a que vive muito, nem a que vive prazerosamente. É, na verdade, aquela que conduz a sua existência segundo o objetivo para o qual foi criada: amar, servir e glorificar a Deus no cumprimento dos desígnios que Ele tem sobre ela. Nosso ânimo deve decorrer desse senso de que a alegria elevada e serena da finalidade alcançada é a autêntica alegria da vida. Nela encontramos as forças para suportar os sofrimentos que a Providência permite em nosso caminho, e os recursos para compreender tudo quanto eles significam na consecução de nossa realização suprema.
Por isso mesmo, na época da Europa maravilhosa, nos áureos tempos da Civilização Cristã, encontramos a dor instalada no meio dos esplendores da vida, com toda a amplitude possível. Assim, a morte transformava-se numa grande solenidade, a respeito da qual a etiqueta tinha disposto todas as suas exigências.
Por exemplo, quando um arquiduque d’Áustria agonizava, no momento em que lhe seria ministrado o Santo Viático, todos os príncipes da Casa Imperial ali presentes entravam em procissão no quarto, e formavam uma corola de velas acesas em torno do Senhor Eucarístico e daquele que em breve partiria para a eternidade. No meio de toda essa magnificência, o moribundo recebia o Santíssimo Sacramento, era ungido com os santos óleos. Seu falecimento se dava em meio a esse aparato da morte realizado com as pompas da vida. Como suprema despedida, seu funeral era um requinte de gala.
Magnífica expressão desse enobrecimento da dor, dessa superior beleza de que se revestia o sofrimento, temos os garbosos e hieráticos gizantes medievais, os grandiosos monumentos fúnebres, as estátuas representando homens cobertos de véu e carregando imponentes caixões. Toda uma arte imensamente desenvolvida, para revestir de pulcritude o aspecto doloroso da vida.
Mais. O entusiasmo com que se esperava e se cantava, nas vésperas das batalhas, a agonia da luta. Nasceram as canções de gesta, nas quais cada golpe, cada “ai!” recebia a glorificação de um acento épico, de uma arrebatadora melodia. Nas salas de armas dos castelos, na noite que antecedia a partida para a frente de combate, os homens conversavam e sorriam. E nos bailes das festas de primavera, enquanto dançavam pelos salões dos palácios, aqueles nobres de cabeleira empoada, de sapatos de fivelas de prata e saltos escarlates sabiam que dali a poucas semanas estariam partindo para a guerra. Sabiam que muitos não retornariam, que várias daquelas senhoras estariam na viuvez, mães ficariam sem filhos, e os filhos, sem pais. Entretanto, dançavam… Eles encaravam a dor com serenidade e grandeza de alma.
Do mesmo modo eram respeitadas e postas em foco as mais variadas formas de sofrimento — inclusive o da maternidade ou o do esforço intelectual levado a bom termo —, porque bem se compreendia a noção de que esta Terra é um vale de lágrimas, segundo a linda expressão da Salve Rainha. Sorria-se para a dor por uma superior razão: “Vou realizar meu fim, aquilo para o que existo, e, por causa disso, apesar de todo sofrimento, estou alegre”.
Daí vêm, igualmente, o júbilo e a pompa com que a Igreja celebrava — e celebra — a entrada de alguém para a vida religiosa. É o ingresso numa existência de renúncias e provações. Mas, em se tratando de uma jovem, esta se veste de noiva, orna-se a capela de flores, toca-se o órgão, o coro canta, e tudo se passa como se fosse uma esplêndida festa de casamento. A razão disso: a moça está em vias de realizar a finalidade para a qual foi criada.
Em sua vida no claustro ela encontrará a dor, sem dúvida, porém a assumirá de “grand coeur”, com abundância de alma, sondando-a até o extremo, a exemplo do Divino Mestre que, diante da Cruz, abraçou-a e chorou. Pranto de comoção no qual, avantajando-se ao oceano de amargura interior, entrava uma imensa felicidade: era seu supremo objetivo, a Cruz para a qual toda a vida d’Ele havia sido ordenada.