Dotado de especial senso histórico, Dr. Plinio conhecia, entre outras coisas, as características mais profundas das civilizações, dos povos e dos estilos de arte. Nessa exposição ele explica como decaiu o gótico, e nos adverte a respeito da necessidade da graça do arrependimento e da penitência, para que surja o estilo artístico do Reino de Maria.
Consideremos o estilo clássico e o românico: não há dúvida de que o estilo românico, de algum modo, inspirou-se no estilo clássico. Por exemplo, aquelas arcadas e colunas do estilo românico são do estilo romano, é evidente. Mas entrou um elemento artístico e arquitetônico novo, que corresponde ao elemento psicológico novo também, o qual em alguns dos seus aspectos se percebe.
Arte clássica e o ideal do homem olímpico
Por diversas razões, a fortaleza não foi um ideal arquitetônico nem dos gregos nem dos romanos. Isso se deve talvez aos conceitos deles de arte militar, com exércitos muito móveis, e depois a noção de falanges e de legião, que era uma espécie de fortaleza viva a qual de algum modo dispensava a muralha.
Mas o fato concreto é que a fortaleza não esteve presente, a não ser muito esporadicamente, nas suas cogitações e não marcou a fundo a sua arquitetura. E por causa disso nenhum prédio deles visa ser forte. Por exemplo, a mais típica das construções dos gregos, o Parthenon. Também a tribuna das Cariátides, que eu acho tão bonita, não visa de nenhum modo proteger o orador contra uma agressão; é uma tribuna no sentido mais próprio da palavra, em que o orador faz-se ver e tem facilidade de dar alcance à sua voz.
Uma coisa curiosa que está em toda a psicologia clássica: fica insinuado, sem dizer, que a produção intelectual e a artística se fazem de modo indolor. De maneira que na arte não está de nenhum modo representado o esforço da elucubração; esta é olímpica, se desenvolve com a facilidade de um cortejo de bailarinos que vão saindo de um templo para executar um ato religioso qualquer. Assim também os raciocínios vão se desenvolvendo uns depois dos outros.
Ora, é impossível que a elucubração deles não fosse penosa. Isso que eles procuravam ocultar dava o ar olímpico às suas construções, as quais não visavam de nenhum modo ser fortes.
O estilo românico e a noção do homem real
Na concepção medieval, não. Entre os bárbaros há qualquer ideia de ocultar o pecado original, ideia essa que entre eles era co-idêntica com a civilização. Aliás, os bárbaros nem tinham ideia clara do pecado original, mas sim dos efeitos desse pecado, que eles procuravam esconder.
E a arte, simplesmente, começa a conviver abraçada nos efeitos do pecado original, mais ou menos como o homem que precisa andar apoiado numa bengala e se apresenta naturalmente com ela. E tira até uma fotografia solene com a bengala na mão; ele e a sua bengala formam um todo.
E entre os bárbaros o belo surge como uma trepadeira que se enrosca numa árvore dura, rugosa, num sulco dos mais rebarbativos que se possa imaginar, fica cheia dessas contingências, florescem umas rosinhas cor de coral e se forma uma coluna toda rósea.
Assim a arte, com essas contingências, produz uma coisa nova que a meu ver é o românico. Vê-se que o traçado de muitas igrejas românicas era para ser um, mas foi outro porque de repente o terreno começou a ceder e tiveram medo; então, puseram uma estaca, quer dizer, não levaram o prédio até onde pretendiam. E a igreja se apresenta como se tivesse levado um murro de um lado, mas de outro lado apareceu a necessidade de prestar culto à santa tal, que protege contra as intempéries; então acrescentam uma capelinha, que perturba o plano da igreja. Tudo somando, ficou um encanto, muito mais bonito do que estava no original. Mas que é o fruto da aceitação da contingência pelo homem, e a sua modelagem de acordo com a contingência, não para ser o homem olímpico, mas o homem real, descendente de Adão e Eva, remido por Nosso Senhor Jesus Cristo e entrando na vida desta Terra.
Acho que até Saumur tem algo disso, com aqueles campanários em cima, meio inesperados, mas sua planta geral é um quadrilátero compacto, maciço. Mas Saumur já é gótico, e estou falando do românico.
Não vou dizer que uma reflexão soberba de Aristóteles não seja séria, mas não tem a seriedade total. Na medida em que procura ocultar sua elaboração mental e sua dor, a pessoa não é séria, escamoteia uma parte da realidade.
O Parthenon é seríssimo por alguns lados; por outros lados falta-lhe seriedade.
O sério irrompe na arte e por detrás dele uma luz que vale infinitamente mais do que ele: o sobrenatural, o sacral.
O gótico causa a impressão de algo fechado
Dada esta teoria, poderíamos nos perguntar: Com o que nos é dado entrever sobre a Idade Média, o que podemos prever do Reino de Maria?
Ao examinar as coisas da Idade Média, creio haver um problema que perturba, o qual só se deve analisar bem quando se tiver o aparato da cultura e erudição necessária; nós não temos esse aparelhamento. Mas que é preciso considerar que havia algo que tornava um tanto pesadas as asas do voo medieval: frequentemente se apresentam manifestações diabólicas ou gnósticas dentro da arte medieval. E um trato sério da questão não pode deixar de levar isso em consideração.
Por exemplo, há algum tempo atrás eu estava vendo um monumento funerário gótico, mas daquele gótico moribundo já no século XV, em que a arte funerária começou a se desdobrar um pouco exageradamente; depois atingiu no século XVI exageros únicos. Nesse monumento, seis anjos carregavam o esquife de um senhor feudal, mas um desses anjos era um demônio com a cara voltada para trás, dando risada. Como é que isso foi feito, estava à vista de todo mundo, ninguém destruiu, ninguém sabe da explicação disso, a família aceitou, entrou na igreja, o padre celebrou Missa? Mais ainda, nós olhamos o monumento e, se não nos advertissem para aquele anjo de cara virada, o acharíamos sublimíssimo; entretanto a nota gnóstica está ali presente. E isso aflui em várias coisas.
Não estou falando dos demônios nas gárgulas, postos pelos anti-gnósticos que queriam representar o demônio como horroroso e, portanto, no papel que lhe é próprio.
Além disso, há o seguinte: o gótico dá impressão de algo fechado, do qual não irá sair a inspiração nova. Ficou tão bonito, tão admirável, tão perfeito que já chegou ao termo de si mesmo, não vai elaborar nada mais de novo. E, portanto, a imobilidade pela ausência de originalidade marcará para todo o sempre aquele estilo, que será uma infidelidade abandonar, e será uma outra infidelidade ficar dentro dele.
O “flamboyant” já tem infidelidade.
O espírito comercial e a saciedade do sobrenatural
A resposta, a meu ver, é a seguinte: também a vida de sociedade naquele tempo estava admitindo uma porção de atividades novas, que já eram vistas num prisma novo do qual as pessoas não se davam conta. Vou dar o exemplo característico. Na “aldeia de marzipã” haveria pequenos comerciantes, mas estes não a deteriorariam. Porque as proporções do comércio eram, por assim dizer, domésticas e humanas, e tudo quanto se passasse ali tinha, portanto, uma certa relação com o homem.
Quando começam a se desenvolver as estradas e se faz a famosa economia aberta, nasce um espírito comercial que não é mais ligado a nenhuma aldeia, a nenhum lugar, bem ou imóvel, mas que quer apenas ter um dinheiro volátil através de todas as estradas da Europa. E que se exprime melhor pela deusa fortuna do que por qualquer outro símbolo. A sede de aventura do militar passa para a sede de aventura do mercador, que transporta as suas riquezas e procura com isso aumentá-las fabulosamente. E o ricaço no fim da vida é o aventureiro bem sucedido como o marinheiro ladrão, pirata. Ou o guerreiro que se uniu ao deus malfazejo e durante a vida foi um bandido, como aqueles tipos de senhores feudais que tinham castelos à beira das estradas para irem roubar as pessoas que passavam, etc. Há uma coisa qualquer que vai mudando.
Essa posição mostra como a sensação de ciclo terminado existia por causa de uma saciedade do sobrenatural, do sacral, do sofrimento enquanto redentor, enquanto ligado à virtude, à Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo. Entre os homens bons crescem cada vez mais aqueles que são numerários. A dedicação e a renúncia a si mesmo passam a ser, não mais da sociedade, mas de um filão de gente que vive na sociedade; o resto é pessoal que entra na patuscada. Compreende-se, assim, como o fruto social da Idade Média tivesse que caminhar para aquela extinção.
A ”cisterização”
Então, para se compreender para onde é que ela devia ter rumado, precisaríamos imaginar dois caminhos: ou o caminho de São Francisco de Assis, de São Bernardo, ou o de São Bento sublimado. Uma volta àquilo que estava sendo abandonado e uma “cisterização”(1) da Europa. Portanto, um retorno para uma ebriedade da pobreza, da simplicidade, da austeridade, que geraria padrões novos de beleza. Os vitrais das abadias cistercienses são muito bonitos, mas têm uma nota nova: são grandiosos, porém de uma certa simplicidade.
Dever-se-ia imaginar uma clara ruptura com a época anterior estagnada, e o surgimento de uma época deliciosamente penitencial sem ter nada de revolucionário. Ou uma época nova que recebesse uma graça à São Bento, e que fosse muito para cima.
Ou uma terceira hipótese: uma época que tivesse uma graça cisterciense na qual, ao cabo de uns cem anos, florescesse uma coisa beneditina, quer dizer, com o estilo, o amor muito maior às riquezas do beneditino, mas sempre com a cautela de não provocar uma nova ruptura.
Isso eu não sei verdadeiramente como imaginar, mas sei tirar da nossa vida um exemplo de algumas coisas que fazem compreender um sistema da Providência. Alguém vai andando muito bem, mas em certo momento peca, quebra. Na ruptura, reza o Miserere e faz um rebaixamento… depois surge uma flor mais alta do que a anterior.
Há um problema histórico por onde, cada vez que uma coisa vai chegando ao apogeu, os dirigentes do apogeu não se devem tomar de entusiasmo, mas precisam ter medo do demônio gnóstico, das indulgências, das tolerâncias em relação às como que gnoses. E já devem estar prontos para fazer a “cisterização”, se for necessária.
Em concreto, na História sempre houve pessoas que observaram o fenômeno, mas não tiveram coragem de falar sobre ele, produzindo baixas de que o demônio tira proveito, porque é muito desalentador.
E volto a dizer: a história de Cister mostra que também há ali, naquelas austeridades, na sensação do apogeu, a necessidade de outros apertos. Creio que se Cister não foi o que poderia ter sido é porque a marcha das “cisterizações” parou.
É lícito esperar que não seja necessário uma “cisterização”, mas, pelo contrário, progresso? É uma pergunta que se pode fazer. Eu respondo da seguinte maneira: se não houver dilúvios sucessivos de provação, não acho que seja lícito esperar. O mal está nos dirigentes da instituição, os quais esperam que, afinal, ela tenha chegado ao século de ouro, em que não terá provação nem decadência.
Pelo contrário, se não perceberem que estão vindo provações, tremam. Porque a hora da “cisterização” chegou. Ou a instituição começa a se flagelar a si própria ou, se os acontecimentos não a flagelarem, decorre a deterioração dela.
Inocência e contrição formam uma ogiva perfeita
Pode-se admitir que uma entidade, um convento, uma Ordem religiosa, uma Ordem de Cavalaria chegasse ao seu apogeu, e vá somando apogeu com apogeu para chegar até o fim do mundo, numa série inimaginável de apogeus? Essa é a pergunta que mais precisamente se poderia fazer.
Resposta: se os responsáveis por essa obra — que pode ser também uma nação ou algo semelhante — não forem capazes de compreender que, se ela não é mais provada, precisa começar a se flagelar, do contrário a obra apodrece de fato. Quer dizer, se os responsáveis de uma Ordem religiosa pensam que, por não estar mais sofrendo incursões de inimigos da Igreja, de cátaros, albigenses, ela chegou a uma espécie de era de ouro, e, portanto, eles podem praticar a virtude sem a luta, eles são os reitores do banquete da putrefação.
Acho que isso ocorre frequentemente, porque não é ensinado o que se deve fazer.
E aqui surge o inesperado mais esperado: como podemos imaginar o Reino de Maria?
É bom método tomarmos as esperanças, os anelos que Nossa Senhora nos deu, inclusive com o que havia de mais infantil, e perguntar de que forma esta luz pode acender-se na ponta do pavio da mortificação, da penitência e do arrependimento. Aí nós vemos a possibilidade do Reino de Maria.
Mas é na feeria da graça misturada, entretanto, com os suaves fulgores da penitência, da tristeza, do “Miserere mei”, da coisa que doeu e que se pagou. É do contato de duas pedras, a graça da contrição e a da inocência as quais se juntam, que nós formamos uma ogiva perfeita. O que resta em nós de inocência, e o que devemos inovar como contrição forma uma ogiva perfeita, que nos dá o estilo do Reino de Maria.
Será uma ogiva? Não sei. Será uma coisa que, quando nós formos como devemos ser, começaremos a culturalizar nessa direção.
Uma sutil fuga da penitência
O estilo beneditino primitivo era a contrição da sociedade que tinha sido pagã, havia se putrefeito depois das catacumbas e não tinha correspondido bem à graça do eremismo.
Dessa sociedade nasceu uma outra coisa que é a graça beneditina. Em certo momento, os claustros beneditinos deixaram de ser elementos de penitência. Ficou o elemento pureza, o elemento luta, mas não basta ser mosteiro-fortaleza. É preciso a penitência: “’Peccavi’, e eu vou me flagelar a mim mesmo, com as minhas próprias mãos, porque pequei”. Desta noção, que é indispensável, eu tenho impressão de que a Ordem beneditina, em certo momento, começou a escapar.
Creio, não sei se é verdade, ter sido a Alemanha o país que mais contribuiu para desnaturar nesse sentido a Ordem beneditina. Aqueles mosteiros beneditinos na neve, lugares totalmente inóspitos, oferecendo uma proteção soberba para o corpo, para que este ali procurasse, sem preocupação, praticar a virtude e a cultura… Começam a aparecer os pães pretos magníficos, as cervejas, feitos no claustro. É mais perigoso do que a sutileza francesa, porque se tornou tão parecido com a virtude que era preciso amar muito a virtude para não se cair na contrafação.
Nesse sentido, o claustro alemão me dá um certo receio. Terá sido assim? A bela Itália como trabalhou nisso? Que lavorou nisso, lavorou…
Em que consiste a penitência
Para um inocente, todas as exigências da luta já são a taça da penitência. E para ser lutador até o fim, é uma batalha tão grande que isto já dá a penitência. Para o que não é inocente, é preciso acrescentar algo; não basta isso.
E notem que para aqueles que são amados por Nossa Senhora, mais vale a pena eles mesmos irem se adiantando. Porque, como Maria Santíssima os ama mais, provavelmente Ela lhes dará um belo naco de penitência nesta Terra. Mas o que Ela faz — porque o amor de mãe às vezes é como que sublimemente fraudulento —, para não ter que castigar os filhos, é soprar em seus ouvidos que eles precisam se castigar a si próprios.
Da reunião de hoje o que mais deveríamos reter é a penitência, porque é de extrema certeza que nós mais facilmente dela esquecemos. Quer dizer, contraímos hábitos mentais devido aos quais, dois, três minutos — ao pé da letra é isso – depois de sairmos daqui, nós teremos esquecido a penitência. E no que mais devemos pensar é na penitência. Porque esta é o antibiótico que torna possíveis as condições de saúde em nós, e sem ela a própria degustação daquilo que estou falando se torna inviável.
Sobre essa penitência se poderia falar algo.
É preciso notar o seguinte: não confundir penitência com sofrimento. Porque o indivíduo pode ter sofrimento sem penitência nenhuma.
O que vem a ser penitência?
A penitência é, antes de tudo, a convicção de que se andou mal. E essa convicção, por sua vez, resulta primordialmente de admitir como pressuposto o seguinte: eu, no fundo, não sou bom, sou mau; a todo momento a tendência para o mal está levantando a cabeça dentro de mim e, se eu não desenvolver um esforço extraordinário, pratico o mal. E depois o mal muito rapidamente se torna em mim um hábito. E o indivíduo mau é o que praticou o mal, mas sobretudo é mau aquele que transformou o mal num hábito.
Se eu não tiver essa ideia de que sou coisa podre, e de que sem a graça de Deus só farei o mal — portanto, devo ter um inimigo capital na vida chamado eu mesmo —, vou acabar formando de mim uma ideia de bonzinho, meio-termo, pessoa que no total é bem melhor do que as outras, a partir da qual a penitência é impossível. v
Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 17/2/1983)
Revista Dr Plinio (Fevereiro de 2014)
1) Neologismo com o qual Dr. Plinio caracteriza, nesta conferência, a influência do espírito cisterciense na Europa medieval.