Incumbidos por Deus de uma missão especial para benefício da sociedade, os homens providenciais têm uma compreensão de sua vocação que ultrapassa as capacidades humanas.
Pediram-me que comentasse uma ficha de Léon Gautier, muito bom historiador da Idade Média, a respeito do papel dos homens providenciais na História1. Escreve ele:
Alguns espíritos apoucados de nosso tempo se comprazem em escarnecer dessas almas vastas e elevadas existentes entre nós, que ainda acreditam nos homens providenciais. Entretanto, nada é mais natural, quando se crê na ação de Deus sobre os homens e os povos, do que admitir a missão de certas pessoas na História e que, a este título, ficam consagradas.
Deus, que poderia governar o mundo diretamente sem intermediários, Se digna fazer-nos participar da administração de seu imenso império. Para conduzir homens feitos de espírito e de carne, Ele se serve de homens feitos de espírito e de carne. Ele os envia na hora devida, os modela desde toda a eternidade e, sem nada lhes tirar do seu livre arbítrio, deles Se serve utilizando suas virtudes para agir sobre toda uma nação, toda uma raça e todo o mundo.
Homens incumbidos por Deus de uma missão especial para benefício da sociedade
Acho que a ficha, embora não contenha tudo, com uma precisão acadêmica ao gosto do século XIX, diz muito do essencial a respeito dos homens providenciais.
Em sentido amplo, todos os homens são providenciais, pois foram suscitados por Deus para alguma coisa. Mas há um sentido mais especial. Existem homens que Deus não incumbe apenas de levar uma vida comum, para servirem a si próprios, mas que são marcados para realizar uma missão em benefício da sociedade, seja ela temporal ou espiritual.
A missão providencial sempre é maior do que o homem
O que caracteriza um homem providencial?
Ele deve, em primeiro lugar, desempenhar uma tarefa muito maior do que si próprio. Não há homem providencial cuja estatura esteja à altura daquilo que ele precisa realizar, pois o que Deus exige do homem providencial, em geral, é uma coisa tão grande, que não cabe em termos de capacidade humana.
Em segundo lugar, essa ação providencial tem sempre um aspecto sobrenatural, que é a operação da graça sobre as almas para a qual o homem pode ser um canal, mas não autor. E aquilo que a graça faz, nenhum homem pode realizar, de maneira tal que a ação é sempre muito maior do que o homem.
Há grandes homens providenciais. Deus toma pessoas de grandes capacidades e Se serve delas para realizar tarefas ainda maiores do que elas. Entretanto, Ele pode escolher também almas que não sejam grandes, mas até pequenas, das quais tira o fruto para algo de providencial; a escola de Santa Teresinha do Menino Jesus, da infância espiritual, tem algo neste último sentido.
Santa Teresinha não foi propriamente, no sentido humano, uma grande pessoa. Mas ela foi grande no que teve de aparentemente pequeno, e daí saiu a doutrina espiritual da pequena via, que é uma imensa realização na história da espiritualidade, e, portanto, daquilo que há de mais central na História do mundo, que é a História da Igreja.
Compreensão, apetência e sensibilidade do homem providencial para com sua missão
Outra característica do homem providencial é a seguinte: ele tem uma compreensão, uma apetência e uma sensibilidade para a sua missão que os outros não possuem. Ele tem a percepção da coisa, de seu sentido, de sua importância, de como ela deve ser, dos fins que é preciso alcançar, dos meios para coligar as pessoas para os realizarem; possui as táticas, os golpes, os jeitos para conseguir aquilo.
Na vida de Carlos Magno, por exemplo, vemos isso de um modo esplêndido. Ele era o imperador possante, o patriarca magnífico, que entusiasmava; era o guerreiro que metia medo em todos os adversários da Igreja.
Ele intervinha nos concílios, discutia com os bispos, sem ser tido por anticlerical, e muitas vezes era a opinião dele que prevalecia, embora nunca tivesse estudado Teologia. Eram concílios regionais de bispos da Gália, onde ele aparecia para exigir que a coisa andasse bem.
Por outro lado, Carlos Magno era ao mesmo tempo um guerreiro formidável; não apenas um guerreiro individual, um general, mas chefe de uma família de almas dentro de seu exército. Ele coligou em torno de si os seus famosos pares, que eram outras tantas reproduções dele; e esses pares, por sua vez, coligavam em torno deles todo o exército. E seu exército era para ele quase como uma Ordem religiosa para o seu superior, que caminhava rezando e cantando de encontro ao inimigo, com Carlos Magno à frente brandindo a espada, expondo-se a todos os riscos, e sempre pela Igreja Católica e pela Civilização Cristã.
Ao contrário do que pensa a mentalidade moderna, o homem providencial sempre passa por reveses
Há outra caraterística do homem providencial, que é muito diferente da mentalidade moderna. Muitos têm ideia de que o homem providencial é um herói de histórias em quadrinhos; tudo o que ele faz dá certo, tem um olho mágico, e é semelhante a um drácula que, não tendo por onde escapar, fica em apuro, mas com um dedo sobe num teto e resolve o problema de cima. E, no fim, tudo dá certo, ele nunca tem revés.
Ora, o homem providencial é o contrário disso. Ele passa sempre por apuros horrorosos, onde, de fato, muitas coisas correm o risco de não darem certo, se não se esforçar e, sobretudo, se não rezar muito, e se não depuser em Nossa Senhora toda a sua confiança. E esses apuros, em que as coisas quase arrebentam, fazem dele muitas vezes um homem humilhado, perseguido, desprezado e até com todas as aparências de um derrotado. Ele não é sempre um homem vitorioso, que transformou a cabeça dos outros no solo sobre o qual ele anda, mas muitas vezes sua cabeça é o solo para os outros andarem.
Mas ele confia na Providência e Esta o assiste, o ampara, o reergue, o anima e acaba fazendo com que a obra dele dê certo. Uma exigência, à qual o homem providencial está absolutamente sujeito, é que a desproporção entre a sua tarefa e ele aparece claramente aos olhos dos outros, e ele se encontra muitas vezes em tais situações nas quais se torna inteiramente claro que, se não fosse a graça, ele não conseguiria nada. E que se não fosse sua fidelidade, ele estava arrasado.
As margens da História estão cheias de homens providenciais que não cumpriram sua missão
Alguém dirá: “Mas, Dr. Plinio, não sei se isso é bem verdade, porque vejo todos os homens providenciais na História darem sempre certo.”
Isto porque a História só apresenta os homens providenciais que deram certo. De quantos homens providenciais as margens da História estão cheias! Homens que fraquejaram, se venderam, amoleceram, se deterioraram de qualquer maneira e por isso se arrebentaram.
A pessoa poderá acrescentar: “Entretanto, há alguns tão favorecidos pela Providência que eles não podiam dar errado.”
É verdade! Os Apóstolos, por exemplo. Mas, como isto é raro! E de quantos homens providenciais, volto a dizer, estão cheias as estradas!… Numa dessas estradas há uma figueira, na qual está um enforcado. E esse enforcado era um homem providencial, que se chamava Judas Iscariotes…
A missão do homem providencial aparece aos olhos de todos, às vezes desde o berço
Poder-se-ia dizer que há uma característica imponderável no homem providencial. Em geral, ele tem uma certa aura, e as pessoas que tratam com ele, desde os seus primórdios, percebem nele uma espécie de predestinação, um fator invulgar, que o coloca meio separado e diferente dos outros.
Assim, aparece algo de imponderável no homem providencial, fazendo com que a sua missão se mostre aos olhos de todos, tocada pela Providência às vezes desde o berço.
Entretanto, devemos tomar cuidado com o orgulho, porque o orgulhoso pensa que desde o berço foi preparado para qualquer coisa, e tem a tendência de bancar para si mesmo o homem providencial, e de fabricar as características da aura.
O que diferencia o orgulhoso do homem providencial? É algo que poucos veem, mas é uma coisa segura. O orgulhoso é todo feito de vontade de aparecer, e a causa para ele é uma bandeirola que ele agita diante dos outros para impressionar bem. O homem providencial, por mais fraco que seja, às vezes até por mais miserável que seja, vê e entende que tem alguma missão da Providência, a qual ele ama de fato; são o entender e o ver do amor.
Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 30/12/1965)
Revista Dr Plinio 172 (Julho de 2012)
1) Não possuímos referência a respeito da ficha utilizada por Dr. Plinio nesta ocasião.