No homem, na História, na cultura dos povos, na arte e até mesmo nos panoramas, Dr. Plinio discernia a ação angélica, como se comprova nesta conferência. Fazendo explicitações luminosas sobre os Anjos, ele apresenta exemplos concretos que nos ajudam a compreender esse tema fundamental, bem como seu relacionamento com a Revolução e a Contra-Revolução.
Ao criar os Anjos, Deus os dotou de uma capacidade de ação própria à natureza angélica, distinta da capacidade de ação sobrenatural, correspondente aos dons sobrenaturais que Ele haveria de lhes dar, como um acréscimo que teriam futuramente, num outro plano.
Relacionamento entre seres congêneres
O homem é tocável por essa ação natural dos Anjos, portanto tem um espírito sensível para entrar em comércio com eles dessa maneira. E precisaria ter isso porque, uma vez que Deus estabeleceu o universo, todos os seres mais ou menos congêneres, por causa da perfeição do universo, têm necessidade de poderem relacionar-se uns com os outros. Então, seria preciso que, independente de qualquer plano sobrenatural, houvesse toda uma ordem de relacionamento natural possível entre Anjos e homens, muito elevada, e atendendo a certas apetências naturais do homem, que não são iguais às apetências que ele tem do sobrenatural.
Em consequência, este mundo angélico natural teria que ser sensível ao homem. E o homem, com um certo discernimento dos espíritos, poderia até perceber quando está entrando uma ação de caráter angélico natural, e uma ação de caráter angélico sobrenatural. E tornar-se-ia capaz, em tese, com certo esforço, de imaginar como seria um mundo em que houvesse homens e Anjos, e não tivesse sido criado o sobrenatural. E distinguir isso de um mundo onde haja o sobrenatural, para efeito de ele compreender melhor tudo que o sobrenatural acrescentou à ordem natural.
Por isso, todas essas distinções e o estudo dessas correlações, embora possam parecer muito árduos e quase impossíveis de se fazer em tese, são necessários.
Notas angélicas nas culturas da Alemanha e da Áustria
Em certas obras de cultura europeias, sobretudo alemãs e francesas — naturalmente de modos diferentes na Alemanha e na França —, existe uma espécie de necessidade de, às vezes, apresentar um universo com uma perfeição angélica natural, e outras vezes com uma perfeição angélica, que eles podem dizer ou não dizer, mas é sobrenatural. E negar essa possibilidade de apresentar esse aspecto natural, é tapar a alma humana numa das suas manifestações.
Por exemplo, estou lendo o livro no qual uma professora inglesa, governanta da única filha do Kaiser Guilherme II, conta suas memórias da corte da Alemanha, reconhecendo muita coisa bonita, louvável. Percebe-se que, em todo o aparato da corte alemã, havia uma tendência a apresentar o universo com uma beleza grande, verdadeira, apetecível ao homem, mas com uma nota angélica natural na ponta; enquanto que na Áustria, uma nota sobrenatural.
E embora a “res austriaca” me pareça muito superior à “res germanica”(1), esta última tem sua razão de ser, e o meu espírito se alegra em poder contemplar uma coisa distinta da outra. Porque faz parte da perfeição de Deus, enquanto Criador, ter criado as duas coisas distintas.
Acho que era desígnio da Providência que certas partes da Alemanha, na linha da graça, fizessem sentir em harmonia com o sobrenatural um certo “tonus” natural. E que, no mundo germânico, o dom de fazer sentir o “tonus” sobrenatural fosse principalmente da Áustria. Donde as minhas mil predileções enlevadas pela Áustria. Mas um muito grande gosto da “res prussiana”.
As cataratas de Foz do Iguaçu
Andando por panoramas naturais, chega-se, às vezes, a lugares onde se tem a impressão de que aquilo tem uma perfeição muito grande, na ordem própria, evocando certos padrões de sublimidade, que levam o espírito humano quase até a ponta de si mesmo. Não são coisas propriamente sobrenaturais, mas que estão em harmonia com o sobrenatural.
É preciso ver bem o que se entende por sobrenatural aqui. As cataratas de Foz do Iguaçu, por exemplo, têm uma beleza natural própria. Mas nunca vi que alguém notasse ali algo de uma beleza que levasse o homem a dizer: “A graça de Deus está aqui!” A pessoa pode afirmar: “Deus está aqui”, mas “a graça de Deus está aqui” não pode dizer.
Deus está ali enquanto Criador, e um Anjo d’Ele pode estar presidindo aquilo, para manter a coisa em ordem, e deixar sentida a sua presença. Inclusive tenho impressão de que deve existir um Anjo que, por sua natureza espiritual, seja semelhante ao que as cataratas de Foz do Iguaçu são na ordem natural. De onde existe uma ação de presença dele particularmente intensa ali, por causa dessa semelhança. Chega-se lá, sente-se qualquer coisa assim de uma presença angélica, mas que ainda não é uma presença sobrenatural.
Esta eu a sinto muito mais nas coisas da arte do que nas da natureza. Então, por exemplo, na Sainte-Chapelle, Notre-Dame, ou, de um modo bem diverso, Genazzano; é uma presença diferente. Sente-se que alguma coisa, não na última linha do que podemos ver, mas superior a nós, rompe uma distância intransponível e se comunica conosco, elevando-nos ao que nunca poderíamos imaginar. Ali está o sobrenatural.
Muita gente confunde as coisas, e não seria capaz de estar em Foz do Iguaçu olhando o que a Providência quis que se visse, e adorando a Deus nessa perspectiva. Mas pensaria logo: “Renuncie às coisas desta Terra, feche os olhos para essa maravilha de Deus, porque o Céu é muito maior…” O Céu é muito maior, e fechar os olhos para as cataratas do Iguaçu pode ser a via espiritual para alguém. Mas a realidade é esta: um Anjo invisível está ali, e nos fala por sua natureza, não pelo sobrenatural que habita nele.
O Pampa e o panorama do Rio de Janeiro
Eu já notei, da parte de alguns argentinos, uma tentação de menosprezar o Pampa como meio monótono, raso, insípido, porque não acaba mais. Mas não é verdade. Isso significa não ter apanhado aquilo no ponto de vista em que deve ser considerado.
Certa vez, descendo de um avião num aeroportinho feito de terra, de repente encontrei o Pampa, e tive uma impressão de respeito religioso. Aquilo estava plantado, não de trigo, mas de vegetais altos, não sei o que eram, e em quantidade! Planície, planície, planície… com toda aquela vegetação da mesma altura, tudo igual, uma paz, uma tranquilidade! Não tem nenhuma montanha, tudo normal, direito.
Tive vontade de dizer, como São Pedro: “Façamos três tendas, uma para Ti, outra para Moisés e outra para Elias…”(2). Desejei ficar sozinho olhando aquilo.
O panorama do Rio tem muito disso. Mas são desígnios da Providência: no meu modo de sentir, há uns reluzimentos sobrenaturais no píncaro do bonito, do natural. É um natural tão, tão bonito, que extravasa da linha do natural. Percebe-se, de vez em quando, uns reluzimentos divinos.
Meta a ser atingida pela arte
Uma meta a ser atingida pela arte seria de fazer com que, na coisa natural, aparecesse tanto quanto possível a presença do espírito humano. Depois, num segundo grau, surgisse, tanto quanto possível o que há de angélico natural naquilo, e posteriormente o sobrenatural angélico. Esses vários graus de intensidade da natureza, do universo que Deus criou, seriam sucessivos degraus que a arte deveria saber apresentar.
Creio mesmo que na Idade Média quase todas as instituições eram dotadas de uma certa presença angélica, ora natural, ora sobrenatural, que foi se deteriorando no decurso dos tempos modernos. E que a Revolução Francesa quis expulsar completamente, e em parte conseguiu; foi a revolta contra um ambiente todo ele carregado de conotações místicas, ora naturais, ora sobrenaturais, que ajudavam muito a ver a realidade natural e a compreender seu último sentido.
Quando eu vejo uma flor, e sou levado a imaginar o arquétipo dela, não é propriamente um desejo que tenho de conhecê-la melhor, mas sim conhecer, na ordem do possível, uma coisa que seja essa flor na sua perfeição. Ou seja, algo que é meio parecido com a ordem paradisíaca que o homem perdeu, e que, entretanto, o seu senso do ser pede e ele procura quando olha as coisas desta Terra. Esse é, a meu ver, o elemento motor primeiro da arte.
A procura de arquétipos
A procura dessa perfeição leva também o homem a querer conhecer o santo. Porque este é na ordem moral — a que mais importa — o arquétipo do homem. Mas leva a desejar conhecer também um grande homem.
Vou dar um exemplo. Li uma descrição da viagem que o zepelim fez, conduzindo seu inventor, o velho Conde Ferdinand von Zeppelin, para se encontrar com o Kaiser. Eu tinha muita curiosidade de ver como o autor dessas memórias descrevia pormenorizadamente o encontro do Kaiser com o Zeppelin.
Não sei se percebem que se trata de um patamar de relacionamento que não existe mais hoje. É um estilo de vida, uma corte, um balão zepelim que voa, cujo inventor, um grande cientista, vai encontrar-se com o Kaiser. O zepelim pousa, de dentro desce um velhinho prussiano, todo teso, que cumprimenta o Kaiser, os dois se olham nos olhos, sorriem. Depois o Kaiser faz uma saudação militar, ambos se retiram, e o povo todo dando vivas, agitando bandeirolas, etc. Uma espécie de apoteose da Ciência, do êxito do homem que conseguiu voar. E o povo presta homenagem ao Kaiser, referendando o soberano supremo de um grande poder militar.
São valores supremos, quase arquétipos, que se encontram e como que se osculam, num ambiente quase paradisíaco para quem está habituado à vida de hoje. É uma procura de arquétipos que está atrás disso, uma coisa ligada ao senso do ser.
O homem tem saudades do Paraíso que não conheceu
Tenho a impressão de que se a sociedade fosse bem constituída, uma pessoa educada como deve ser — não digo educação no sentido de boas maneiras, mas formação total do ser — desenvolveria uma certa tendência que existe no homem para uma vida terrena de um nível muito superior ao que ele conhece, mas que não é para ele viver dentro dela por vaidade, mas pelo senso do ser que o leva a desejar conhecer até que ponto a vida humana é extensível.
Assim, sem deixar de ser o homem comum, ele tem uma certa participação nessas elevações. E o desejo contínuo de grandes elevações em toda a vida da sociedade, leva-o a querer coisas assim e a sonhar com flores, aves, céus extraordinários etc., porque ele foi criado para o Paraíso, e está exilado. E, sem saber, o homem tem saudades daquele Paraíso que ele não conheceu, mas que está proporcionado à sua natureza.
Essa sensação do exilado que tem vontade de voltar para o lugar que ele não chegou a conhecer, e, portanto, uma espécie de procura do paradisíaco a ser fabricado na Terra — para tanto quanto possível substituir o palácio de que ele foi expulso potencialmente na pessoa dos seus pais — faz dele um ente especial, cujo senso do ser não o leva a procurar apenas a perfeição no Céu e nas coisas sobrenaturais, mas uma perfeição de uma ordem natural, que não o cerca, mas da qual ele tem saudades. E que o homem procura realizar do melhor modo possível na Terra, como meio para chegar mais alto, à experiência mística e ao Céu.
Nesta época de Revolução, é absolutamente necessário para nossa formação proporcionar às pessoas cenas maravilhosas da História, apoiadas por uma ação angélica, de maneira a dar-lhes o desejo do mais alto, que as torna propriamente contrarrevolucionárias.
Porque se não há a inconformidade com a banalidade contemporânea, e o desejo de algo mais alto que o passado conheceu — e que devemos conhecer para depois engendrar um futuro a essa altura —, tenho a impressão de que a nossa própria formação fica padecendo.
Luta contra o mundanismo
Um dos defeitos contra os quais lutamos tanto — e sem o êxito desejado, por não irmos até o fundo do problema —, está exatamente nisto: mundanismo.
Nós batalhamos muito contra o mundanismo. Mas se não tivermos uma formação que nos faça querer um maravilhoso incomparavelmente diferente e maior do que esse mundanismo que está por aí — e perto do qual este último é pé-rapado, casca-grossa —, às vezes, pela própria elevação que possa haver em nossa alma, o indivíduo tem uma escapada da banalidade da vida para dentro do mundanismo, vendo neste uma realização mais alta de alguma coisa que lhe falta.
E o modo de combater esse desvio é precisamente, a meu ver, apresentar como algo foi no passado, mostrando como isto que existe no mundo de hoje é uma revolta, um álibi para não se atingir o que no passado se conseguiu. E criar a nostalgia, não de sermos personagens do passado, mas espectadores admirativos do passado, faz de nós homens capazes de lutar para que o passado seja de novo!
E seria preciso justificar isso na nossa formação, por uma ação angélica natural, e depois por toda a vida sobrenatural.
Convívio entre os Anjos e os homens
A ação angélica natural tem o pressuposto de que há um contato — e um convívio, portanto — normal do Anjo com o homem, que não é o aparecer, nem o conversar com o Anjo como estamos conversando aqui, mas uma ação dele sobre nós, e de algum modo nossa reação pró ou contra, aceitando ou rejeitando, fazendo com que normalmente nós estejamos também em contato com eles. Mas a ideia errada que se nos dá a respeito disso é a seguinte: a ação do Anjo sobre o homem só e unicamente ocorre quando o Anjo aparece para o homem; ou, então, que o Anjo da Guarda pode favorecer o homem em ocasiões muito excepcionais, sem o homem perceber. De maneira que Anjo entra no excepcional, e não no normal, da vida do homem.
Ora, eu considero — salvo melhor juízo, e submetendo-me, é claro, ao ensinamento da Igreja —, que em nossas reuniões, por exemplo, pelo próprio fato da vivacidade, da vida que elas têm, pode-se e deve-se ver uma ação angélica habitual. Entretanto, ninguém a sente. Sente-se uma certa vitalidade, e se percebe que esta não tem uma razão de ser e uma origem exclusivamente natural em nós, nada mais além disso. Mas se fôssemos afirmar ser um Anjo, muita gente se assustaria, pensando haver uma espécie de alumbramento. Isso não tem nada de alumbramento. É a impostação teológica séria e normal das coisas.
Ademais, pode acontecer que uma pessoa seja veículo de graças sobrenaturais específicas, para as quais não é preciso se excogitar uma ação angélica. E pode suceder que a presença de uma pessoa seja ocasião para a presença de um Anjo, que desenvolva uma ação natural angélica. É preciso aí distinguir as várias hipóteses possíveis.
Teoricamente falando, eu penso que o ser humano é capaz de alguns movimentos de alma rumo à arquetipia, que são da natureza dele. Mas acho que esses movimentos seriam inteiramente frustros e de nenhum modo atingiriam o que o homem quer, se não fosse a ajuda dos Anjos.
Arte e arquetipia
Poder-se-ia levantar a seguinte objeção: “O senhor então acha que toda a arte só é digna desse nome quando se constituiu com a ajuda angélica?”
Eu respondo: É preciso não correr. Porque há uma diferença entre arte e arquetipia. Na arte, o homem, muitas vezes, é guiado pelo senso de um prazer hedonista, que não é propriamente o gáudio metafísico que lhe dá a procura da arquetipia. E por causa desse senso hedonista, ele é capaz de fazer alguma coisa acertada, mas que não se encontra numa linha onde entra verdadeiramente o Anjo, ou seja, o desejo de arquetipia.
Considerem, por exemplo, aquele tapete persa que temos na “Sala do Reino de Maria”(3). Eu compreendo que um artista, com a forma de talento necessária para fazer isso, tenha sabido misturar cores, e fazendo coisas que lhe deram um gosto perfeito, onde sua alma não andou à procura de algo arquetípico, mas simplesmente de um deleite excelente dos olhos, o que é diferente.
A Basílica de Santa Sofia — hoje uma mesquita com minaretes —, colocada no Bósforo, de si é um pastelão, e os minaretes têm um formato esguio, leve, distintíssimo, quase que descansa a pessoa do peso da Basílica. Por outro lado, a Basílica torna mais verossímeis os minaretes, que pareceriam quase fumaça de cigarro que se elevou num ambiente onde não há vento.
A justaposição dos minaretes com a Basílica, no quadro do Bósforo, forma uma coisa difícil de imaginar, na qual se pergunta se há uma coincidência, ou realmente um desejo de arquetipia, e se nesse desejo de arquetipia entrou uma ação angélica, quando se tratava de obra de maometanos. É uma questão delicada, e eu mesmo precisaria pensar para dar-lhe uma resposta.
Na arte japonesa, chinesa, e em geral nas artes orientais, chama a atenção que os artistas as realizam à procura do belo, mas essa procura, em certo momento, dá origem ao aparecimento de monstros. Às vezes monstros com caras horríveis, mas com uns fios de barba lindos, e uns dragões que têm umas orelhas de ouro fantásticas! Mas são monstros.
Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências de 4 e 11/2/1990)
1) Do latim: coisa austríaca e coisa germânica. Aqui Dr. Plinio se refere ao conjunto de predicados dessas nações.
2) Lc 9, 33.
3) Sala nobre da sede social do Movimento fundado por Dr. Plinio.