Em sua obra magistral dedicada ao estudo das alocuções de Pio XII à Nobreza e ao Patriciado Romano, Dr. Plinio salienta o importante papel da família na estrutura harmônica de uma civilização hierárquica e cristã.
Dado ser o estado matrimonial a condição comum do homem, é fazendo parte da respectiva família, como chefe ou membro, que ele se insere no imenso tecido de famílias que integra o corpo social de um País.
A par da família, o corpo social é constituído também por outros grupos intermediários. E a inserção de um indivíduo num desses grupos constitui também um modo de integração dele nesse corpo. Tal é verdadeiro, por exemplo, no que diz respeito à corporação de artífices ou à de mercadores, bem como às universidades, ou ainda aos órgãos diretivos que constituem o poder municipal urbano ou rural.
Se se atender à gênese do Estado, ver-se-á que, de um modo ou de outro, ele se originou de entidades pré-existentes, cuja “matéria-prima” era a família. Pois esta dera origem a grandes blocos familiares que os gregos designavam como “génos” e os romanos como “gens”. Estes últimos, por sua vez, formaram grandes blocos de “tonus” também ainda familiar, mas cujas correlações genealógicas se perdiam na noite dos tempos, e tendiam a diluir-se na confusão: eram as fratrias entre os gregos e as cúrias entre os romanos. “A associação” diz Fustel de Coulanges(1) “continuou naturalmente a crescer, e segundo o mesmo sistema. Muitas cúrias ou fratrias, agruparam- se e formaram uma tribo”.
Por sua vez, a conjunção das tribos formou a cidade, ou melhor, a civitas. E com isto o Estado. A família fecunda, um pequeno mundo A experiência demonstra que habitualmente a vitalidade e a unidade de uma família estão em relação natural com a sua fecundidade. Quando a prole é numerosa, ela vê o pai e a mãe como dirigentes de uma coletividade humana ponderável pelo número dos que a compõem como — normalmente — pelos apreciáveis valores religiosos, morais, culturais e materiais inerentes à célula familiar. O que nimba de prestígio a autoridade paterna e materna. E, sendo os pais de algum modo um bem comum de todos os filhos, é normal que nenhum destes pretenda absorver todas as atenções e todo o afeto dos pais, instrumentalizando-os para o seu mero bem individual. O ciúme entre irmãos encontra terreno pouco propício nas famílias numerosas. O que, pelo contrário, facilmente pode surgir nas famílias com poucos filhos.
Também nestas últimas se estabelece não raras vezes uma tensão pais-filhos, em resultado da qual um dos dois lados tende a vencer o outro e a tiranizá-lo.
Os pais, por exemplo, podem abusar da autoridade, subtraindo-se ao convívio do lar para utilizar todo o tempo disponível nas distrações da vida mundana, deixando os filhos relegados aos cuidados mercenários de “baby-sitters” ou dispersos no caos de tantos internatos turbulentos e vazios de legítima sensibilidade afetiva. E podem tiranizá-los também — é impossível não mencionar — por meio das diversas formas de violência familiar, tão cruéis e tão freqüentes na nossa sociedade descristianizada.
Na medida em que a família é mais numerosa, vai-se tornando mais difícil o estabelecimento de qualquer dessas tiranias domésticas. Os filhos percebem melhor quanto pesam aos pais, tendem a ser-lhes por isso gratos, e a ajudá-los com reverência — quando chegado o momento — na condução dos assuntos familiares.
Por sua vez, o número considerável de filhos dá ao ambiente doméstico uma animação, uma jovialidade efervescente, uma originalidade incessantemente criativa no tocante aos modos de ser, de agir, de sentir e de analisar a realidade quotidiana de dentro e de fora de casa, que tornam o convívio familiar uma escola de sabedoria e de experiência, toda feita da tradição comunicada solicitamente pelos pais, e da prudente e gradual renovação acrescentada respeitosa e cautamente a esta tradição pelos filhos.
A família constitui-se assim num pequeno mundo, ao mesmo tempo aberto e fechado à influência do mundo externo.
A coesão desse pequeno mundo resulta de todos os fatores acima mencionados, e esteia-se principalmente na formação religiosa e moral dada pelos pais em consonância com o pároco, como também na convergência harmônica das várias hereditariedades físicas e morais que, através dos pais, tenham concorrido para modelar as personalidades dos filhos. Esse pequeno mundo diferencia-se de outros pequenos mundos congêneres, isto é, das outras famílias, por notas características que lembram em modelo pequeno as diferenciações entre as regiões de um mesmo País, ou os diversos países de uma mesma área de civilização.
A família assim constituída tem habitualmente como que um temperamento comum, apetências, tendências e aversões comuns, modos comuns de conviver, de repousar, de trabalhar, de resolver problemas, de enfrentar adversidades e de tirar proveito de circunstâncias favoráveis. Em todos estes campos, as famílias numerosas possuem máximas de pensamento e de procedimento corroboradas pelo exemplo do que fizeram os seus antepassados, não raras vezes mitificados pelas saudades e pelo recuo do tempo.
Linhagens e profissões
Ora, sucede que esta grande e incomparável escola de continuidade — incessantemente enriquecida pela elaboração de aspectos novos modelados segundo uma tradição admirada, respeitada e querida por todos os membros da família — influencia muito os indivíduos na escolha das suas atividades profissionais, ou das responsabilidades que queiram exercer em favor do bem comum.
Daí decorre que, com freqüência, haja linhagens de profissionais provenientes do mesmo tronco familiar, por onde a influência da família penetra no âmbito profissional. É verdade que, no consórcio assim formado entre atividade profissional ou pública, de um lado, e família de outro, também estes vários tipos de atividades exercem a sua influência sobre a família. Estabelece-se assim uma simbiose natural e altamente desejável. Mas importa sobretudo notar que, o mais das vezes, o próprio curso natural das coisas conduz a que a influência da família sobre as atividades extrínsecas a ela seja maior do que a de tais atividades sobre a família.
Noutros termos, quando a família é autenticamente católica, e conta não só com a sua natural e espontânea força de coesão, mas também com a sobrenatural influência da mútua caridade que lhe provém da graça, a organização familiar atinge as condições ótimas para marcar com a sua presença todos ou quase todos os corpos intermediários entre o indivíduo e o Estado, e por fim também o próprio Estado.
A partir destas considerações, é fácil compreender que a influência benfazeja de linhagens cheias de tradição e de força criativa, em todos os graus da hierarquia social, desde os mais modestos aos mais elevados, constitui um precioso e insubstituível fator de ordenação, quer da vida individual, quer do setor social privado, quer da vida pública. E que, pela própria força dos costumes, a direção efetiva de vários corpos privados acabe por ir ter às mãos de linhagens que se destacam como mais dotadas para conhecer o grupo social, coordená-lo, dar-lhe o lastro de uma robusta tradição e o impulso vigoroso de uma contínua melhoria no modo de ser e de agir.
Nesta perspectiva, é legítimo que, no âmbito de alguns desses grupos, se forme uma elite para-nobiliárquica, uma linhagem preponderante para-dinástica, etc. Fato que contribui também para dar origem, nas sub-regiões e regiões rurais, à formação de “dinastias” locais, de algum modo análogas à família dotada de majestade régia.
Pais régios e reis paternos
Todo este quadro faz ver uma nação como um conjunto de corpos os quais se constituem, por vezes, de corpos menores; e assim, gradualmente, em linha descendente, até chegar ao simples indivíduo. Seguindo em linha inversa o mesmo percurso, percebe-se claramente o caráter gradativo e, enquanto tal, também hierárquico, dos vários corpos que intermedeiam entre o simples indivíduo e o mais alto governo do Estado.
Tendo em vista ser o tecido social constituído por toda uma abundante contextura de indivíduos, de famílias e de sociedades intermediárias, conclui-se que, sob certo prisma, a mesma sociedade é um conjunto de hierarquias de diversas índoles e naturezas que coexistem, se entreajudam e se entrelaçam acima das quais paira apenas, na esfera temporal, a majestade da sociedade perfeita, que é a do Estado; e, na esfera espiritual — a mais elevada — a majestade da outra sociedade perfeita que é a da Santa Igreja de Deus.
Assim vista, tal sociedade de elites é altamente participativa. Ou seja, nela, categoria, influência, prestígio, riqueza e poder são participados de alto a baixo, de maneiras diversas segundo cada degrau, por corpos com peculiaridades próprias. De tal maneira que outrora se pôde dizer que no lar, mesmo o mais modesto, o pai era rei dos filhos; e no ápice, o rei era o pai dos pais.
Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de “Nobreza e elites tradicionais análogas, nas alocuções de Pio XII ao Praticiado e à Nobreza Romana”, Livraria Editora Civilização, pp. 108-111. Título nosso.)
Revista Dr Plinio 68 (Novembro de 2002)
1) La Cité Antique, Librairie Hachette, Paris, Livro III, p. 135.