Ao iniciar uma das concorridas conferências de Dr. Plinio, jovens membros de seu Movimento pedem-lhe que comente a flagelação de Nosso Senhor Jesus Cristo. E proclamam os seguintes trechos de um artigo por ele escrito(1):
Por que foi o Bom Jesus manietado por seus algozes? Por que impediram eles o movimento de suas mãos, prendendo-as com duras cordas? Só o ódio ou o temor poderiam explicar que assim se reduza alguém à imobilidade ou à impotência. Por que odiar assim estas mãos? Por que temê-las?
A mão é uma das partes mais expressivas e mais nobres do corpo humano. Quando os pontífices e os pais abençoam, fazem-no com um gesto de mão. Quando o homem inocente perseguido se vê saturado de dores e apela para a justiça divina, é ainda com as mãos que ele amaldiçoa. E por isto, os homens osculam as mãos que fazem o bem e algemam as mãos que praticam o mal.
Vossas mãos, Senhor Jesus — agora sangrentas e desfiguradas, entretanto tão belas e tão dignas —, desde os primeiros dias de vossa infância, quem pode dizer, Senhor, a glória que estas mãos deram a Deus, quando sobre elas pousaram os primeiros ósculos de Nossa Senhora e de São José?
Quem poderia dizer com quanta meiguice e com quanto carinho fizeram a Maria Santíssima o primeiro carinho? Com quanta piedade se uniram pela primeira vez em atitude de prece? E com quanta força, quanta nobreza, quanta humildade, trabalharam na oficina de São José? Mãos de Filho perfeito, que outra coisa fizeram no lar, senão o bem?
Por que, Senhor, tanto ódio? Por que tanto medo, que pareceu necessário atar vossas mãos, reduzir ao silêncio vossa voz, extinguir vossa vida? É porque alguém receasse ser curado ou afagado? Quem, porventura, teme a saúde, ou quem odeia o carinho?
Senhor Deus, para compreender esta monstruosidade, é preciso crer no mal, é preciso reconhecer que tais são os homens, que sua natureza facilmente se revolta contra o sacrifício. E que, quando entra no caminho da revolta, não há infâmia, nem desordem de que não seja capaz. E quando alguém diz “não”, começa a Vos odiar, odiando todo o bem, toda a verdade, toda a perfeição de que sois a própria personificação.
E se não Vos tem à mão sob forma visível, para descarregar seu ódio satânico, golpeia a Igreja, profana a Eucaristia, blasfema, propaga a imoralidade, prega a Revolução! Vossos inimigos amam tanto o mal, que percebem ainda sob as humilhações das cordas que vos prendem, toda a força de vosso poder, e tremem!
Ó Bom Jesus, vossos adversários tremem diante da Igreja, enquanto eu, miserável, vendo-a manietada, reputo tudo perdido…
Vossa Igreja, entretanto, participa de vossa força interior e pode, a qualquer momento, destruir todos os obstáculos com que a cercam!
Nossa esperança não está nas concessões, nem na adaptação aos erros do século. Nossa esperança está em Vós, Senhor!
Atendei às súplicas dos justos, que vos imploram por meio de Maria Santíssima:
Enviai, ó Jesus, o vosso Espírito, e renovareis a face da Terra!
O que, fundamentalmente, fazia sofrer a Nosso Senhor Jesus Cristo?
Na agonia — contemplada no primeiro mistério doloroso — a Alma santíssima de Nosso Senhor sofreu de modo inenarrável. A repercussão desse sofrimento da Alma sobre o Corpo ocasionou o suor de sangue. O Corpo sagrado de Nosso Senhor ainda não fora atingido de modo direto, mas somente à maneira de reflexo, de corolário.
O primeiro mistério em que contemplamos o Corpo d’Ele ferido diretamente é a flagelação. Seguem depois a coroação de espinhos, Nosso Senhor com a Cruz às costas e a Crucifixão. Assim, nos cinco pontos sucessivos dos mistérios dolorosos, a Paixão inteira de Nosso Senhor, de Alma e de Corpo, está expressa.
Mas, de fato, a dor da Alma não cessou de nenhum modo quando começaram os sofrimentos do Corpo. Pelo contrário, foi num crescendo; a Paixão de sua Alma foi se desenvolvendo à medida que a Paixão do Corpo aumentava. E chegou ao ápice no momento do “Consummatum est” — Tudo está consumado, e Jesus expirou.
Na Paixão, Ele padeceu no Corpo, mas, sobretudo na Alma. O que, fundamentalmente, fazia sofrer a Nosso Senhor Jesus Cristo?
Seria preciso um oceano de tempo para fazer uma meditação completa sobre este tema. Mas alguns pontos podem ser dados, sumariamente. Assim, entro diretamente no assunto.
Verdadeiramente homem, verdadeiramente Deus!
Em Nosso Senhor Jesus Cristo há uma só Pessoa com duas naturezas, a divina e a humana. A Igreja definiu esta verdade nos primeiros séculos, depois de ter saído das catacumbas, contra muitas heresias que pretendiam desfigurar essa realidade, ora afirmando que Cristo era exclusivamente um homem, ao qual Deus tinha, por assim dizer, extrinsecamente tocado um pouco; ora dizendo, pelo contrário, que Ele era um fantasma, uma figura que Deus suscitara para dar a impressão de que tinha havido a Encarnação. Porque eles não queriam se consolar com a ideia desse arco voltaico sublime, feito entre Deus Onipotente e Criador e o homem tão miserável.
Conforme o ensinamento da Igreja, Nosso Senhor Jesus Cristo é uma só Pessoa, com duas naturezas. Para dar alguma comparação, consideremos o homem que tem uma parte animal e outra espiritual, as quais formam uma só pessoa. Essas duas naturezas, o aspecto animal e o aspecto espiritual — o aspecto anjo, digamos —, convivem perfeitamente, de tal maneira que a muitos de nós nunca passaria pela mente perguntar como somos constituídos.
Em Nosso Senhor Jesus Cristo, a natureza divina e a natureza humana coexistem perfeitamente e estão hipostaticamente unidas, de modo a constituírem uma só Pessoa, a segunda Pessoa da Santíssima Trindade, o Verbo de Deus que se fez carne, quer dizer, formou-se nas entranhas puríssimas de Nossa Senhora, resultante do esponsório da Santíssima Virgem com o Espírito Santo.
Segundo inúmeros teólogos, ainda que não houvesse o pecado original e, portanto, não fosse necessário Nosso Senhor vir à Terra para resgatar os homens, teria havido a Encarnação do Verbo.
Embora representasse perfeitamente o gênero humano, Adão não possuía o mais alto grau que a natureza humana pode atingir.
Deus dispôs toda a Criação admiravelmente: os anjos com suas três hierarquias, e em cada uma delas três categorias, formando nove coros, que cantam perpetuamente a glória divina; abaixo dos anjos — em certo sentido, pouco abaixo; em outro sentido, enormemente abaixo dos anjos —, vêm os homens.
Adão, o primogênito do gênero humano, Deus o criou com grandeza de inteligência, bondade de vontade e riqueza de personalidade. E com uma força, bem como um aspecto perfeito da face e do corpo, que o faziam digno de ser o primeiro dos homens, o primeiro jorro desta torrente, que deveria ser a Humanidade.
Ele era belo e grande em todos os sentidos da palavra. O Criador o fizera esplendidamente dotado de alma, o elevou à ordem sobrenatural, vivia na graça de Deus. Havendo nele a ordem perfeita, seu corpo e notadamente sua face eram o símbolo perfeito de sua alma.
Tinha, portanto, a beleza física, que era o aspecto material de sua beleza moral, e que se completavam harmonicamente. De maneira que, quem olhasse para Adão, veria a perfeição do gênero humano manifestada de modo adequado e esplêndido.
Tudo isso entrou em decadência, em degradação, com o pecado original. E os homens nascidos de Adão e Eva tiveram a marca do pecado original e, depois, a dos pecados que foram cometendo, causando os resultados por nós conhecidos.
Se não tivesse sido cometido o pecado original, e os homens nascidos no Paraíso Terrestre lá continuassem — porque eles, no Éden, seriam pecáveis; muitos poderiam pecar, mas seriam expulsos —, constituiriam como que uma raça perfeita, eleita, magnífica, repetindo de algum modo as grandezas e os esplendores de Adão.
Adão, embora representasse perfeitamente o gênero humano, que haveria de nascer, não era seu ápice. A perfeição é escalonada, e ele não possuía o mais alto grau que a natureza humana pode atingir.
Nosso Senhor Jesus Cristo, considerado na sua humanidade santíssima, é a suprema perfeição do gênero humano.
Deus, na sua sabedoria infinita, não cria as coisas como quem retira de uma sacola punhados de confete e os joga na rua, sem saber sua quantidade e o local para onde os lança. Muitas pessoas têm a impressão de que a Criação foi assim: Deus tirou do nada — que seria o saco de confetes — tufos de pessoas, que começaram a viver meio espantadas de estarem juntas, não havendo uma ordenação superior que as reuniu para determinado fim.
Mas o Criador faz as coisas de um modo especial, ou seja, com uma perfeição que só Ele pode proporcionar. A partir do barro, criou Adão. E depois os outros homens, fazendo com que se reproduzam como conhecemos, e dotando cada um de uma alma espiritual. De tudo isto, no plano de Deus, forma-se uma coleção ordenada, como seria, por exemplo, uma coleção de leques, de relógios, de armas, em que cada peça tem sua individualidade, sua razão de ser, e constitui uma harmonia com as outras peças.
Para melhor exprimir essa ideia de harmonia, todos os homens — o gênero humano — constituem uma harpa colossal, com milhões de cordas que vibram sob o olhar de Deus. Se cada corda vibrar como Ele quer, executa uma harmonia digna dos anjos e do próprio Criador.
É claro que, nesta coleção, Deus haveria de fazer as coisas com graus de perfeição desiguais. Pelo princípio da unidade deve haver variedade. E em razão do princípio da unidade na variedade, ou da variedade na unidade, nessa coleção estabelecida, planejada pela Providência, teria que existir um ser supremo.
Esse supremo, que leva a perfeição do gênero humano a um grau inconcebível por nós, é Nosso Senhor Jesus Cristo, considerado na sua humanidade santíssima.
Se imaginarmos o mais perfeito dos homens, física, moral e intelectualmente falando, sem comparação com os outros, não teríamos nem de longe uma ideia completa do que era Nosso Senhor Jesus Cristo na Terra, e do que é no Céu, onde Ele está com seu Corpo glorioso, acrescido de esplendor de modo verdadeiramente maravilhoso.
Devemos considerar que este Homem não era apenas um santo, o qual levou sua santidade ao mais alto grau. Ele é o Homem-Deus! Aquele Corpo, aquela Alma humana, ligados pela união hipostática à natureza divina, formavam uma só Pessoa. Não era apenas um santo, mas a própria santidade!
Ficamos diante de uma ideia de grandeza, de perfeição, que excede a tudo quanto se possa cogitar. E devemos acrescentar outra reflexão: o Corpo de Nosso Senhor Jesus Cristo — porque é próprio do corpo refletir a alma — era a expressão perfeita de sua Alma humana; exprimia a própria Divindade.
O Homem-Deus, no que tinha de humano, amava infinitamente o que possuía de divino
Entendemos assim quem é Nosso Senhor Jesus Cristo e, portanto, qual a atitude de adoração, de veneração, de respeito, de fidelidade, etc., que Ele naturalmente devia despertar em todos.
Nosso Senhor veio à Terra para salvar as almas; portanto, esse efeito, tão salvífico para as almas, Ele queria produzi-lo. E, neste sentido, o Divino Salvador amava sua própria figura, sua própria inteligência, sua própria santidade, não só porque era Deus — e Deus não pode deixar de amar-Se a Si mesmo infinitamente —, mas pelo fato de que aquilo de humano que havia n’Ele era o melhor reflexo de tudo quanto fora criado.
Lemos no Gênesis que Deus, depois de ter criado o universo, descansou, contente, vendo a harmonia que Ele havia feito. Porque cada coisa era boa e o conjunto ainda melhor.
Ora, tudo quanto há no universo valia menos do que Nosso Senhor Jesus Cristo. Podemos imaginar o seu comprazimento — santíssimo, sem nem de longe se assemelhar àquilo que chamamos egoísmo, paixão tão vil —, conhecendo-Se como era, e a natureza humana dizendo dentro d’Ele às três Pessoas da Santíssima Trindade: “Eu sou o vosso espelho mais exato em toda a Criação, glória a Vós!”
O Homem-Deus, no que Ele tinha de humano, amava infinitamente o que possuía de divino; por causa disso, Nosso Senhor tinha gosto em que, por amor a Deus — evidentemente não por uma vaidade; isto está inteiramente afastado — os homens contemplassem esse reflexo do Criador e O adorassem. E para Ele era uma razão de alegria, quando as multidões iam ao seu encalço, sendo preciso que os Apóstolos O protegessem, para não chegarem perto demais.
Ensinava fazendo o bem
O Evangelho narra a cena de Nosso Senhor pregando para o povo de dentro de uma barca, para que pudesse ser ouvido por todos. Ele tinha a voz perfeita — com que suavidade, força, grandeza, riqueza de inflexões! — e dali podia falar admiravelmente as coisas mais fulgurantes, ou mais doces, ouvidas a qualquer distância.
O Redentor passava por algum lugar e via uma pessoa que estava sofrendo, sozinha, numa estrada ou num caminho. Ele via as almas que se abriam para Ele, e tinha com isso a felicidade que Deus tem na sua própria glória, observando que a criatura, que Ele criou e chamou para amá-Lo, é tocada pela graça e exclama: “Meu Senhor e meu Deus!”
Para provar aos homens ser Ele o Homem-Deus — sua missão consistia em ensinar quem era Ele —, Nosso Senhor tinha como instrumentos, primeiro — e que instrumento incomparável! — a Si próprio. Depois o que Ele dizia: sua doutrina maravilhosa, simplicíssima, delicadíssima, fortíssima, de lógica inquebrantável, verdade intocável, irrepreensível, perfeita. Até o fim do mundo, os homens estudarão os sermões do Divino Mestre que estão no Evangelho, e não chegarão até o fundo.
Além disso, Ele aconselhava, ajudava, praticava milagres para curar. Tais benefícios mereceram que São Pedro fizesse de Nosso Senhor este elogio tão simples e tão grandioso: “pertransivit benefaciendo” — passou pelo mundo fazendo o bem(2). Em todos os lados, de todos os jeitos, Ele praticou o bem, até mesmo quando punia.
E quando Jesus tomou um látego na mão e expulsou os vendilhões do Templo, teve bondade para com eles. Aterrorizou-os, mas deve ter-lhes dado a graça do temor, para que se convertessem. O seu braço fortíssimo, divino, atingia e metia em fuga, mas, ao mesmo tempo, a sua graça procurava levantar as almas, para se unirem a Ele através do temor de Deus.
Milagres, que quantidade! Milagres físicos: curas que Nosso Senhor realizou; milagres morais: pessoas péssimas, perdidas, completamente desviadas pelos recantos da vida, e que, entretanto, conhecendo-O, se voltavam para Ele e ficavam limpas.
Mais ainda: pessoas tão embotadas no mal, que O conheciam, convertiam-se por pouco tempo e caíam novamente no pecado. O Redentor as procurava, reconduzindo-as para o bem. Ricos como Lázaro, pobres como as multidões que O acompanhavam, poderosos como Nicodemos, José de Arimateia, todos O seguiam, encantados.
Continua no próximo número…
Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 7/4/1984)
1) Artigo publicado na revista “Catolicismo”, de abril de 1952.
2) At 10,38