A súplica humilde e sempre confiante na infinita bondade divina era um dos aspectos da piedade de Dr. Plinio. Por essa razão, agradava-lhe de modo particular a recitação dos Salmos Penitenciais, repassados de filial apelo à clemência do Criador. Acompanhemos, agora, os comentários que Dr. Plinio nos faz ao Salmo 101.
Como já fiz questão de salientar antes — e por cautela explicável o reitero —, até hoje não tive oportunidade de ler comentários aos Salmos Penitenciais. Recitei-os em várias épocas de minha existência, como quando menino recebi uma tocante graça diante da imagem de Nossa Senhora Auxiliadora, na Igreja do Coração de Jesus, a qual me levou a dar os primeiros passos na vida espiritual. Depois, ao longo dos anos, adquiri o costume de rezá-los durante certos períodos, mas nunca tomei conhecimento de textos explicativos a respeito deles.
Assim sendo, longe de mim pretender não haja equívoco em alguma interpretação que eu faça. Desde já, e de bom grado, estendo a mão à palmatória, se me demonstrarem que determinada afirmação não confere com os comentários oficiais da Santa Igreja Católica Apostólica Romana, constantes não apenas nos documentos de seu Magistério, mas naquilo que se pode chamar o consenso dos autênticos teólogos.
Posta essa ressalva, passo a lhes transmitir os sentimentos que despertam em mim a leitura dos Salmos, ou seja, minha impressão pessoal, a ser partilhada por todos nós. Tenho a esperança de que tal leitura, realizada em comum, produza no conjunto o bem espiritual que recebo quando releio os Salmos e os comento para mim mesmo, no íntimo de minha alma.
Caráter profético do Salmo 101
Isso assente, devo dizer que este Salmo me parece profético em certos sentidos da palavra.
De um lado, é a história individual de um pecador que, como os referidos em Salmos anteriores, foi uma boa pessoa, que amava a Deus e por Ele era amada. Em dado momento, esse amigo do Senhor foi ingrato, revoltou-se contra o Altíssimo e pecou. O Criador não contemporizou e o puniu com sua cólera.
O homem, então, sendo flagelado pela ira divina, geme, chora e sente com amargura o mal cometido. Ajoelha-se, implora perdão. Nessa súplica ele registra que Deus o absolveu, e agradece do fundo da alma tal clemência. Não só externa sua gratidão, mas glorifica a Deus, com expressões de particular beleza e, sobretudo, verdadeiras.
Há, também, trechos referentes a Israel, ao fim do mundo e da História. Alguns versículos poderiam ser aplicados à existência do povo judaico, especialmente amado por Deus, que prometera a Abraão uma descendência mais numerosa que as estrelas do céu e as areias da praia. Entretanto, os filhos de Abraão pecaram e Deus se ergueu contra eles, castigando-os. Em vários episódios de sua história, nota-se o castigo divino se abatendo sobre o povo que andou mal, como se deu no cativeiro de Babilônia, durante o qual os judeus ficaram reduzidos à escravidão. Em seguida vem o arrependimento, e Deus os ajuda a se libertarem e voltar para Israel.
Quanto ao futuro, entende-se pelas passagens da Escritura que o povo judaico pedirá perdão e este ser-lhe-á concedido de modo tão imenso e profundo que ele se converterá. Quando isso acontecer, será de novo o Povo Eleito, o mais católico e virtuoso da Terra, tornando-se exemplo e motivo de alegria para o mundo inteiro. Até que sobrevenha a grande decadência final e, numa atmosfera de maldade generalizada, surja o Anticristo.
Os homens da fidelidade extrema
Quando isso suceder, as duas testemunhas que terão aparecido na Terra para profetizarem em nome do Senhor, serão mortas, presumivelmente pelo próprio Anticristo, e seus corpos expostos durante três dias e meio em praça pública, causando regozijo em todos os ímpios. E narra o texto sagrado que os iníquos festejarão esse crime, trocando presentes para celebrar a morte desses dois homens de Deus.
No auge de seu poder, o Anticristo talvez queira se proclamar Deus ele próprio e se fazer adorar. Em todo o caso, dirá que é Cristo, mas será uma caricatura do Redentor. O verdadeiro Filho do Altíssimo estará, na aparência, derrotado, contando apenas com um punhado de fiéis… Mas, que fiéis!
Como eu os invejo! Quando o demônio se achar triunfante no píncaro de sua glória, eles permanecerão íntegros, de uma fidelidade extrema, última, absoluta. Serão os homens incontestáveis, incontestados, que tiveram a coragem de contestar e afrontar de peito erguido tudo quanto é mau. E como me compraz a hipótese de que esses derradeiros fiéis sejam, entre outros, membros da obra por nós constituída, sobrevivendo a tudo, até os instantes finais da humanidade!
Ficarão esses autênticos católicos encerrados numa catacumba, conhecendo apenas por reflexos subterrâneos o que se passa na superfície da Terra, ou estarão presentes nos acontecimentos, em meio a mil perigos, vexações, tribulações, formando a coorte que se apresenta ao lado de Nosso Senhor, vaiado, contestado, objeto de toda a espécie de hostilidades?
O certo é que Ele — com um “E” maiúsculo tão imenso que se estende de ponta a outra do universo — não se rebaixará a combater a lesma imunda chamada Anticristo, mas o destruirá com um simples sopro de sua boca.
Com a morte do ímpio, Deus encerrará a História. Os dias da Terra se completaram, deu-se o grandioso Juízo Final, e o tempo cede lugar à eternidade.
O penitente posto à prova por Deus
Tendo em vista essas considerações, passemos a comentar os versículos do Salmo 101, levando em conta que também nós podemos nos comparar a este homem anônimo e misterioso do qual falam os textos sagrados, ditados pelo Divino Espírito Santo a um profeta. Tal pessoa havia sido boa, amiga do Criador, mas em determinado momento — oh! lástima, da parte de quantos de nós isto é verdade! — prevaricou e ofendeu a Deus. Compreendendo a situação em que se pôs, arrepende-se e dirige aos Céus a sua súplica.
Senhor, ouve a minha oração e chegue a Ti o meu clamor.
Esse pedido com o qual se inicia o Salmo sugere a idéia de alguém que reza, porém percebendo uma aparente indiferença de Deus em relação à sua prece. Ele fala com o Senhor e não recebe nenhuma resposta. Julgando-se não atendido, insiste com “clamor”. Clamar é falar em alta voz, bradar. Na medida e no sentido que esse último verbo comporte um sentimento de respeito, é do brado que se trata. “O meu clamor chegue a Ti”: clama-se para quem está longe, do qual nos separa uma grande distância. Então, as palavras do Salmista equivalem a estas: “Chegue a Ti minha voz longínqua, Tu que te puseste tão afastado de mim, ou me colocaste tão distante, ouve-me, por favor!”
Isso supõe a idéia de um pecador profundamente convicto do mal cometido por ele, e a quem Deus, entretanto, quer provar. Não cedendo desde logo ao primeiro sinal de sua penitência, Deus concede-lhe a graça para que se arrependa ainda mais. Compreende-se. Pois Ele não quer se contentar, em contrapartida de um grande pecado, com um qualquer pequeno pedido de perdão. Deus escava nessa alma os sulcos da dor, para que deles nasçam as flores da contrição.
Quantas e quantas vezes o mesmo acontece conosco! Pedimos algo a Deus e — ainda que o façamos pela gloriosa intercessão de Maria Santíssima, cuja mediação é infalível e sempre vitoriosa — nos parece não haver reação da parte d’Ele. Nosso Senhor assim age, para que clamemos mais alto e o nosso gemido, expressão de nossa dor e humilhação, faça sair das entranhas de nossas almas os brados absolutamente lancinantes, diante dos quais Deus se inclina e, afinal, perdoa.
“Um olhar teu me resgata e redime!”
Não apartes de mim o teu rosto; em qualquer dia que me achar atribulado, inclina para mim o teu ouvido.
Esse versículo é uma reiteração do primeiro. Porém, para evitar algo de monótono inerente a toda repetição e conservar o mérito da perseverança, o versículo utiliza outras palavras e metáforas, dizendo mais ou menos a mesma coisa que o primeiro. Consideremos sua beleza:
Não apartes de mim o teu rosto…
Reaparece a noção contida no versículo precedente, de quem julga suas preces desprezadas por Deus. Então persiste na súplica: “Tu não me olhas e voltaste de lado o teu rosto. Eu te chamo e não me vês, porque não queres, desvias teus olhos enojados da minha alma pecadora. A Ti eu suplico: não afastes mais de mim o teu rosto, que me é como o sol. Um olhar teu me cura, resgata e redime!
“Mas, Senhor, para que Tu me fites, deves voltar teus olhos para mim. Eu me inclino envergonhado diante da limpidez e pureza de teu olhar, o qual não ouso encarar e há de pousar sobre as feridas repelentes dos pecados que me cobrem. Mas, sei que teu olhar cura o mal que ele rejeita, e assim te peço: olhai-me, curai-me!
Esse Salmo me parece profundamente compreensível e tocante, trazendo-me à lembrança a letra da música Ojos claros, do compositor espanhol Guerrero, que muito me agrada e termina com esta súplica: “E já que morreis por mim, olhai-me pelo menos…”
Tais palavras evocam a idéia de Cristo no alto da Cruz e um pecador de joelhos junto a ela, implorando perdão, batendo no peito e dizendo: “Sei que minhas culpas me tornam uma das causas de vossa morte. E como, conforme diz o Salmista, estou metido num limo, numa substância escorregadia, quase diria pantanosa, onde não há solidez1, rogo-Vos: olhai-me ao menos. Se me concederdes um olhar, Vós me tereis dado tudo!”
Tenho a impressão de que, ao chegar a hora de minha morte, pedirei a Jesus, pelos rogos de Maria, esse olhar salvador: “olhai-me ao menos”, porque quero passar para a outra vida com Ele olhando para mim. E aproveito a ocasião para sugerir essa piedosa prática a quem se encontrar no derradeiro instante que um dia chega para todos: lembre-se de pedir a Nossa Senhora que dirija a Jesus, em seu favor, este pedido: “Olhai-o, ao menos”. Porque se a Virgem Santíssima assim interceder por nós, a porta do Céu se nos abrirá.
O desejo de ser atendido prontamente
…em qualquer dia que me achar atribulado, inclina para mim o teu ouvido.
Mais uma vez, a mesma metáfora. Como Nosso Senhor está com a face voltada para outra direção, suas vistas não olham para o pecador que reza, e seus ouvidos como que permanecem fechados à voz suplicante.
Pode acontecer ao longo dos dias de qualquer um de nós — mais extensos ou menos, conforme aprouver aos desígnios divinos — a desgraça de que, em certo momento, Deus nos olhe com olhar por assim dizer empalidecido, distante e desinteressado, a fim de arrancar de nossa alma um gemido de penitência. Se tal acontecer, não fiquemos angustiados, mas roguemos a Nossa Senhora que interceda por nós. Ela, então, dirá a Jesus: “Meu Filho, voltai vossos ouvidos para ele e ouvi suas palavras. Eu vos peço.”
Em qualquer diz que Te invocar, ouve-me prontamente.
O homem aflito espera que Deus não demore em atendê-lo, pois a aflição é uma dor da qual ele procura escapar. Então o pecador exprime essas belas palavras: “Em qualquer dia que te invocar, ouve-me prontamente”.
Ou seja: “Senhor, ouvi-me e atendei-me com rapidez!”
Plinio Correa De Oliveira (Continua em próximo número.)
1 ) Cf. Sl 68, 3.