Quando uma alma é reta e inocente, ela deixa falar em seu interior a apetência que tem de uma ordem de coisas inteiramente conforme com os planos de Deus para a Criação, de algo que havia no Paraíso em que todos viveríamos, não fosse a queda de nossos primeiros pais. Se tomássemos uma pessoa nesse estado de espírito, e a ela disséssemos: “Olhe, o Céu é assim, como o que você deseja no mais íntimo de seu ser”, não estranharia que tal pessoa sentisse intensa vontade de partir logo para o Éden celeste, ao encontro das maravilhas que tanto procura.
Tenho razões para afirmar que esse estado de espírito foi o ponto de partida da Idade Média. Que esta, na medida em que rezou, lutou, ou construiu, o fez orientada para aquele fim mais alto, movida por aquilo que vem expresso na Ladainha de Todos os Santos: ut mentes nostras ad caelestia desideria erigas para que Vos digneis elevar as nossas almas a desejar as coisas do Céu.
Assim, poder-se-ia comparar a alma medieval a uma ogiva, séria, sólida, pensativa, levando tudo para cima. Ao mesmo tempo calma e reflexiva, pesando e analisando tudo, disposta tanto a se recolher, dizendo: “Quanta coisa existe de bom neste mundo”, e a subir para maiores considerações; ou então, inflexível na sua retidão, disposta a combater o que não seja conforme à verdade, ao bem e ao belo. Porém, com serenidade e isenção de ânimo, sem agitações nem trepidações.
Almas assim engendraram as grandes maravilhas da Idade Média.
Por exemplo, Notre-Dame de Paris. Uma catedral toda feita de seriedade, gravidade, estabilidade, pensamento, grandes considerações das linhas gerais, mil pormenores e detalhes harmônicos, panorama… e as torres que se lançam para o céu!
Tão magnificamente para o céu, que nenhum artista se atreveu a completá-las. Porque só quem as planejou tem alma para lhes conferir o arremate final. E as torres estão ali, ao mesmo tempo tragicamente incompletas, mas fazendo cada observador imaginar no subconsciente uma torre ideal, segundo o seu próprio feitio. Dir-se-ia que elas terminam num pontilhado, de acordo com o espírito de quem as contempla. De maneira que se nos dissessem: “Olhe, sabe de uma novidade!? Completaram as torres de Notre-Dame!”, tomaríamos um susto: “Será que fizeram errado!?”
Ou seja, de modo diverso desse pontilhado que, subconscientemente, cada um constrói no seu interior, olhando aqueles dois magníficos fragmentos de torre que nos convidam para o sonho. Porque, a partir daquele ponto, se sonha…
*
O mesmo sonho para o qual nos atrai a Sainte-Chapelle, do rei São Luís. Uma bonbonniere feita para ter almas dentro e não bombons. É o que pode haver de magnífico e encantador.
O espírito que a concebeu, se pudesse construir um edifício todo de cristal, sentir-se-ia realizado. Construiu um feito de vitrais!
Agrada-me imaginar a ação da graça sobre a alma desse artífice. Até então, ele apenas manuseava vidros comuns, de cores também comuns. Em determinado momento, ele sente no seu íntimo a inspiração vinda do alto de procurar uma cor ideal, mais bela do que todas as outras. Então compõe uma cor de sonho, ou toda uma policromia de sonho, para colorir, não só um vitral, mas um mundo, porque nos vitrais e rosáceas se representam batalhas, trabalhos, cenas do Antigo Testamento, episódios do Novo Testamento, enfim, a vida dos homens enquanto relacionada com a Igreja e a religião.
À medida que ele vai colorindo, em seu espírito vão brotando novas idéias. O vitral seguinte que ele fará, será precedido por uma crítica ao vitral anterior: “Atingiu inteiramente esse desejo de perfeição que você tem, ou alguma coisa está faltando?”
E a história dos seus vitrais passa a ser a dos vôos cada vez mais altos, até chegar a um ponto em que o homem diga: “Aqui não é possível ir mais longe”. Ele instala o vitral na parede. De repente lhe vem ao espírito a idéia de uma parede feita toda de vitral. Nasceu a Sainte-Chapelle!
*
Agora, para termos um pouco a idéia do que foi a civilização cristã medieval, precisamos imaginar uma noite na Paris do século XIII. A cidade dorme. Na Sainte-Chapelle, em Notre-Dame, o Santíssimo Sacramento aguarda no interior do sacrário a adoração dos homens. No Louvre de São Luís, repousa um rei que é santo, e que ordena com santidade todas as coisas do seu reino.
E assim, a história da França flui gloriosa e tranqüilamente, como flui o rio Sena aos pés do palácio do piedoso monarca.