Conforme o ensinamento de Dr. Plinio, o valioso discernimento
do homem que conserva ou recobra a inocência batismal, permite-lhe selecionar de modo judicioso a realidade ao seu redor — preterindo
as coisas secundárias em favor das essenciais — e o leva a modelar, assim, uma personalidade rica e universal.
Quando alguém conserva a inocência batismal, o seletivo de que falamos em ocasiões anteriores1 funciona com acerto e lhe proporciona grande argúcia, discernimento, a fim de construir um mundo retamente selecionado para si mesmo.
Uma constante seleção das coisas
Continuamente, as pessoas escolhem o que lhes passa pelos sentidos, embora muitas vezes sem perceber. Por exemplo, assistindo a essa exposição, alguns ouvintes apreciam ou se sentem concernidos mais com certos trechos do que com outros. E a alternância de doutrinas e fatos concretos faz com que todos descansem um pouco, porque tais episódios falaram a uma parte mais externa e inferior da alma, entediada de não poder se movimentar. Então prestaram atenção nos acontecimentos, e essa zona do espírito emergiu, fazendo com que o meu público “soltasse as rédeas”. Não fosse eu retomá-las afetuosamente, era de se duvidar que voltassem ao tema…
Em última análise, ouvindo as várias partes da conferência estão fazendo seleções. Por causa disso, alguns trechos lhes ficarão mais na memória do que outros, pois aquele não pode conter uma exposição doutrinária inteira.
Imagine-se uma pessoa viajando de automóvel, porém não o dirige. O veículo passa junto a casas, anúncios luminosos, árvores, etc. Terminado o percurso, um companheiro lhe pergunta:
— Você observou alguma coisa no trajeto?
— Não!
Na realidade, a questão é muito mais sutil do que parece à primeira vista. A pessoa aceitou algumas coisas e rejeitou outras. E isso poderia ser atestado por alguém sentado atrás dela no carro. Este notou, por exemplo, que a primeira acompanhou com o olhar certas residências bonitas, e virou o rosto quando se deparou com um prédio notável por sua feiúra. Quer dizer, ela selecionou algo que lhe causou impressão e, de certo modo, permanece em sua memória, embora às vezes de forma muito tênue.
Aquilo que selecionamos nos marca, e continuamente vai nos formando ou deformando. Tudo o que passa por nossos sentidos — digamos, os gestos e expressões fisionômicas de um interlocutor nosso — influencia-nos de uma maneira ou de outra. Portanto, se não nos defendermos contra o que possa haver de mal, em vez de nos aperfeiçoarmos, ficaremos como cachorros sem dono andando pelas ruas.
Sem seletivo, sofremos as más influências
Tomemos um cãozinho pequinês que perambula pelos lugares públicos. Passa o caminhão de lixo e o animal se assusta, adquire um tique nervoso que pode durar até o fim da vida dele. Mais adiante há um lago para o qual ele olha, se lambe, não pensa, só o conhece fisicamente e torna-se um tanto calmo. Mas as coisas cacofônicas predominaram sobre as harmoniosas. Quando volta para a casa da dona, ele ronrona mais agitado porque foi passear na rua, recebeu muitas impressões maléficas e não apenas as do sedoso da almofada e do macio do tapete. Seu sono será conturbado. Por analogia diremos que ele não controlou seu seletivo, e por isso foi prejudicado.
Se isso acontece com um pequinês, quanto mais com um homem, dotado de inteligência! Se não formos capazes de selecionar, mesmo instintivamente, empurrando de lado as coisas contrárias aos restos de nossa inocência e assimilando as favoráveis, seremos como uma peteca nas mãos dos homens que conhecem e exploram os movimentos desordenados das almas que se abriram para a contradição.
Poder-se-ia conceber a idéia de alguém planejando influenciar maldosamente o hipotético Abel inocente no Paraíso?
Na primeira contradição, este reagiria: “O que é isso?!”. E diante do sussurro mais velado e disfarçado do mal, ele o perceberia: “O que se esconde nessa coisa estranha?”. E, de imediato, uma categórica rejeição. Abel seria o santo vigilante, discernindo entre a verdade e o erro, o bem e o mal, o pulcro e o feio que se manifestassem ao seu redor.
Com o estado de graça, a harmonia renasce em nós
Se não pecarmos, conservando-nos no estado de graça, procurando em tudo ser lógicos e coerentes, e agirmos de acordo com a Lei de Deus, essa harmonia começa a renascer em nós, e assim nosso seletivo vai aceitando as coisas boas e recusando as más.
Reporto-me ao exemplo dado por nós em outra exposição: uma criança passeia aos braços da mãe e se agrada com o carinho que lhe faz uma bondosa camponesa, mas não gosta dos afagos que lhe dirige uma moça da cidade. Se essa criança, ao completar cinco ou seis anos de idade, perdesse a inocência batismal, poderia vir a desprezar a mulher do campo e aprovar a jovem citadina, dizendo que esta é cativante, porque estava toda enfeitada e lhe sorriu. Ora, a camponesa a olhou com bondade; e isso vale mais do que um sorriso comercial ou qualquer atavio.
Contudo, a criança resolve seguir a moça da cidade para ser depois espancada por ela. Pelo contrário, se conservasse a inocência, ganharia experiência e saberia escolher a melhor dentre as duas pessoas.
Observando as fisionomias de meus ouvintes, percebo que muitos dizem de si para consigo: “Tudo isso é belo, mas também uma imensa complicação. Para se entender bem esse assunto, seria como desejar segurar um monumento de cristal cujas colunas possuem tantos ornatos, detalhes, e dá tantas voltas, que nem se compreende como constituem um só todo. Em certo momento julga-se ter entendido e que se pode pôr em prática; mas em outros, tem-se a impressão de se estar achatado! Isso é magnífico, mas como vou chegar até lá? Dr. Plinio terá visto como estou longe desse ideal? Não estará me chamando para o alto do Monte Everest, sem saber que não consigo escalá-lo?”
Minha resposta: sem a graça de Deus, a qual só obtemos pela intercessão de Nossa Senhora, não conseguimos conservar nem recuperar a inocência batismal. É doutrina da Igreja que um homem, sem o dom divino — um auxílio vindo do Céu e superior à nossa natureza — é incapaz de praticar duravelmente os Dez Mandamentos.
Inocente completo era o homem no seu estado de integridade nativa, antes do pecado original. Depois deste, nascemos apenas com uma semi-inocência. E embora nossa alma constitua um todo, teoricamente pode-se dizer que metade dela é abalada pelas paixões desordenadas, as quais precisamos regrar. A outra parte é reta, mas só domina a pior através de um verdadeiro milagre. Mesmo para controlar a metade boa, necessitamos da graça do Céu, e devemos pedi-la. Não queiramos ser auto-suficientes, mas humildes, compreendendo que por nossas próprias forças nada conseguiremos. Somos falidos, na bancarrota nascemos, como diz o Salmo: “Eis que minha mãe concebeu-me no pecado” (Sl 50, 7). Há, porém, o reverso da medalha: pela oração alcançaremos as forças necessárias para atingirmos nosso objetivo.
Queiramos ser como o verdadeiro Abel
Peçamos, então, a Nossa Senhora que nos conceda intenso desejo dessa inocência, e uma santa inconformidade com o vaivém, o caos, tumulto e desordem existentes em nós. Não desejemos ter (como dizia o Chanceler alemão Bismarck) duzentas almas, mas apenas uma.
Sejamos como o verdadeiro Abel que, embora concebido no pecado original, continuamente lutava contra seus defeitos, comparáveis a uma cobra. Ele a estrangulava dia a dia, com severidade inflexível e inclemente, impedindo-a de lhe fazer qualquer mal, apesar de não conseguir extingui-la. Mas, agindo dessa forma, no momento de exalar seu último suspiro, Abel desferiu na serpente o mais violento dos seus golpes.
Assim é a vida do homem nessa luta interna contra suas próprias desordens. Se nos conduzirmos dessa maneira, teremos realizado inteiramente o programa de nossa existência, e estaremos preparados para comparecer diante de Maria Santíssima. Ela sorrirá para nós e nos dirá: “Meu filho, és como te desejei, te pedi e te ajudei a ser”.
Essa será para nós a glória das glórias. Caminhemos com passo resoluto nessa direção.
1 ) Cf. “Dr. Plinio” números 86, 87 e 88.
Plinio Corrêa de Oliveira
Revista Dr Plinio 88 (Julho de 2019)