Hífen gaudioso

Sempre se concebeu a ponte como algo de nobre e belo, digno de possuir fisionomia e características próprias. Ela é uma obra da inteligência e da habilidade humanas, construída para vencer as  dificuldades e os entraves da natureza, impondo assim a vitória do rei da criação sobre aquilo que o desafia.

A ponte é um hífen entre as duas partes de um caminho interrompido pelo precipício, pelo vale, por um rio… Traço de união, ufana-se de não pertencer a nenhum dos lados que ela aproxima, ciosa de sua individualidade e de sua nobreza. Seja a mais elementar, estendida numa trilha de roça, seja a mais monumental, projetando-se acima de águas famosas, ela possui peculiaridades que a diferenciam do restante do percurso.

Pensemos na célebre ponte da Torre de Londres, sobre o Tamisa. Em determinados momentos, seu leito se divide e se ergue para dar passagem aos navios que, numerosos, sulcam o rio a serviço  de um intenso comércio. Em seguida, ela se fecha, permitindo a fluência do trânsito da grande capital inglesa. Quer na sua posição horizontal, que nos transmite a ideia de firmeza, de solidez e  força; quer quando suas partes se levantam lenta e solenemente, como se ignorassem a vida ao seu redor, e o rio começa a ser navegado diante da majestosa indiferença (ligeiramente indignada e  sentida) dos batentes que se abrem — a ponte mantém aquele semblante próprio, fotografado e filmado de todos os modos possíveis por turistas do mundo inteiro.

Há pontes lindas em outro gênero. Uma delas, a que transpõe o Rio Tibre, em Roma, e conduz ao Castelo de Sant’Ângelo. Esta antiga construção abrigava outrora os restos mortais do Imperador Adriano. Os despojos do  César se desfizeram, e no período medieval essa mole se transformou no castelo fortificado onde as tropas dos Pontífices se acantonavam para a defesa da Cidade  Eterna.

A ponte, monumental, muito à maneira italiana é adornada com imagens de Santos e de Anjos, e no passado era favorecida por indulgências: o fiel que a atravessasse  recitando determinadas orações junto a cada imagem, beneficiava-se de tais e tais privilégios concedidos pelos Papas. Assim, sobre as águas do velho Tibre romano que os imperadores contemplaram, os Anjos lançam  uma fabulosa ponte espiritual, significando que a intercessão deles ajuda nossas almas a vencerem as distâncias entre a Terra e o Céu…

Há, também, pontes de uma simplicidade maravilhosa. Não a singeleza fria, mal-humorada e tola, mas aquela feita de equilíbrio, distinção, e de beleza presentes apenas na forma dos seus arcos. Entretanto, parecem nos dizer coisas inenarráveis. Exemplo frisante, o Pont-Neuf, sobre o Rio Sena, em Paris. Construído por Henrique IV, não é mais que um conjunto de arcos lembrando um pouco ogivas, mas tão calculados, tão medidos na sua simplicidade que, tempo eu tivesse, passaria uma tarde inteira contemplando a sua beleza se refletindo nas prestigiosas águas do Sena.

Lembra-me, ainda, a Ponte dos Suspiros, em Veneza. Não reúne dois pedaços de estrada, mas dois corredores de palácios. Tão simples! Tão pequena! Quase irrisória em comparação com os gigantescos viadutos modernos. Porém, ao contrário destes, ela é um capítulo da história da alma humana. Nem precisaria ser autêntico o fato de que passavam por ela os condenados à morte na Sereníssima República. Pois só a ideia de se chamar Ponte dos Suspiros a reveste de uma beleza ímpar. Como é nobre suspirar numa ponte, olhando para a água! Como é lindo! Que melhor lugar para um derradeiro gemido, um último murmúrio ouvido pelas águas que pranteiam a desdita de quem caminha para o suplício?

A relação ponte-água nos faz pensar… A ponte se espelha no rio que passa sob ela. Pode-se dizer que a alegria deste é fluir por debaixo da ponte, recolher a imagem dela e levá-la muito além. É a realização dele: passou pela ponte tal.

Mas, como é verdade o contrário! Imagine-se uma ponte a cujos pés as águas tenham deixado de correr, desviadas que foram para alguma represa. Desolada, envolta por uma triste solidão, a ponte vê seus fundamentos secos, percebe o vazio junto a ela: sua imagem já não se reflete em nada, não tem mais brilho, ela está seca, esturricada no ar. De súbito, abrem-se as comportas, a água  começa a circular novamente… E da ponte, revigorada, rejuvenescida, parte uma exclamação de gáudio!

 

Plinio Corrêa de Oliveira

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *