A felicidade celeste – II

A Revolução odeia as desigualdades existentes na sociedade e, visando extingui-las, fomenta nos homens o vício da inveja. O contrarrevolucionário ama a hierarquia e se alegra em ver pessoas superiores a si mesmo; assim, ele se prepara para o Céu, onde os bem-aventurados estão colocados hierarquicamente, constituindo uma magnífica unidade em que todos se estimam por amor a Deus, e não há lugar para a inveja.

 

Cornélio a Lápide cita uma carta de São Jerônimo a uma santa do tempo da decadência do Império Romano do Ocidente: Santa Eustáquia, que pertencia à nobreza romana, era muito rica e distribuiu sua fortuna aos pobres. Ela abandonou tudo e abraçou a pobreza por amor a Nosso Senhor Jesus Cristo.

São Jerônimo escreve a esta santa descrevendo-lhe como seria a entrada dela no Céu, quando ela morresse.

A inveja provoca devastações nas almas

Para explicar a alegria da entrada e da permanência no Céu, Cornélio desenvolve muito um ponto que supõe uma explicação.

Há muitos anos, conversando com um bispo, falávamos de vários assuntos e, a certa altura, tratei da questão da inveja. Ele, então, me disse: “Se você fosse confessor, saberia o que é a inveja e a devastação que ela faz nas almas. Pelo que você está dizendo, calculo que não tenha ideia disso”.

Naquele momento, isso me chamou um pouco a atenção e pensei: “Vou refletir depois”. Posteriormente comecei a pensar… Na obra Revolução e Contra-Revolução faço referência à inveja quando falo da desigualdade. O homem inferior, que não tolera a desigualdade do superior, é um invejoso; fica com tristeza pelo fato do outro ter uma coisa que ele não possui.

E no Céu, se inveja coubesse, haveria um título especial para ela se exercer. E é desse ponto que eu queria tratar para entendermos o mal da inveja, a tristeza e a acidez com que ela enche a vida do homem, e compreendermos a alegria do Céu.

Por isso vou fazer apenas um pequeno parêntesis para chegarmos depois até lá.

Uma hipotética ocasião de inveja no Céu

Não é possível a inveja no Céu. Mas, numa hipótese imaginária, irreal, o que poderia dar ocasião à inveja no Céu? As pessoas, no Paraíso, estão com seu futuro marcado para todo o sempre, e nunca mais mudará. Ora, alguns veem Deus mais excelentemente do que outros, e os que veem menos sabem que outros veem mais.

Os que veem Deus menos excelentemente poderiam fazer o seguinte raciocínio:

Como seria mais deleitável eu ver ainda mais do que estou contemplando! Porque se o que estou vendo, que é menos, já é tão deleitável que eu quase racho — racharia se Deus não me sustentasse — como seria desejável eu arqui-rachar!

Ora, eu que vivi, pelo menos até agora, 72 anos neste exílio, entrando no Paraíso posso notar a alma de um menino que, logo após ser batizado, morreu e foi chamado ao Céu. E Deus, porque quis, deu a ele mais do que a mim. Como é isso?

Então temos que entender o razoável disso, para compreendermos como no Céu não existe a inveja. E, a partir disso, fazer uma aplicação sobre as relações nesta Terra. Esse seria o curso desta exposição.

Diversos modos de ver a Catedral de Orvieto

Tomem pessoas de sensos artísticos de vários graus que, todas juntas, vão olhar a fachada da Catedral de Orvieto, gótica e dourada, adornada por vitrais e mosaicos. Digamos uma família, ou um grupo de amigos, que vá à Itália.

Em certo momento, o veículo que os conduz entra na praça de Orvieto. Maravilhamento! Todos veem a catedral no seu conjunto. Mas, se prestarmos atenção, nem todos a veem do mesmo jeito. Porque, em primeiro lugar, o grau de agudeza de vista pode ser maior em um e menor em outro, de maneira que a imagem que, pelos olhos, chega até a retina seja melhor num e pior no outro.

Em segundo lugar — e isso importa incomparavelmente mais —, um tem o senso dos conjuntos, pega e sente aquela quintessência de sabor própria a quem compreende a fundo a catedral. Enquanto outro, ao ver o conjunto, apenas balbucia: “Quanto dourado, quanta escultura, hein!”

Depois, passada essa primeira impressão, todos se aquietam, um diz: “Olha que bonita aquela imagem, e aquela outra!” De repente, um outro se entusiasma com uma escultura ou com um mosaico e, dentro deste, com uma figura e fica olhando-a.

Isso é legítimo? Está bem?

Pormenores que merecem toda a admiração

Sim! Porque a catedral é uma tal obra-prima que, na ordem das coisas, é proporcionado haver algumas inteligências privilegiadas que vejam ali tudo. Mas é proporcionado também que cada um daqueles pormenores extasie tanto algum homem, que ele teria ido a Orvieto só para ver um detalhe. O pormenor merece isso! É um direito, por assim dizer, do pormenor que haja alguém que vá à Itália só para vê-lo.

Por exemplo, uma cena a qual não lembro que esteja em Orvieto, mas provavelmente está: as mãos de Nossa Senhora, num mosaico, quando Ela recebe a saudação do Anjo. Só por aquilo um homem atravessaria o oceano, para ver as nervuras, os dedos, a piedade. Dir-se-ia: aquelas mãos liriais merecem isto!

E está de acordo com a ordem das coisas que haja uma família de almas feita para apreciar aquilo. O gênio do artista, o valor da obra que ele deixou realizada merecem admiração, isso está na ordem querida por Deus. E o homem que admira só as mãos de Maria Santíssima ou, por exemplo, está encantado com as asas multicolores de um Anjo, diz o seguinte: “Eu não tenho talento para ver tão bem quanto um outro a catedral toda, mas possuo uma alegria: presto justiça a essas asas! E, para admirá-las, poderia dedicar minha vida inteira!”

Dou muita importância a isto para se ter paz de alma. Mas também para ser contrarrevolucionário e poder afirmar: “Eu, enquanto homem, sou proporcionado a isto; esse detalhe artístico merece que um homem consagre sua vida para admirá-lo, e este homem particularmente sensível a isso sou eu”.

Enquanto um homem não concordar que sua vida está bem empregada assim, nele há um fermento ativo de Revolução.

A “fortiori” é com Deus Nosso Senhor, que possui todas as perfeições em todos os graus possíveis. E, quem vir a Ele num todo — isso todos veem — e depois ficar eternamente para contemplar apenas um grau desta perfeição, este será bem-aventurado por toda a eternidade, e perfeitamente aquinhoado porque Deus merece. Aquele grau da perfeição do Criador merece isso e muito mais. Nossa Senhora se daria por feliz de passar a eternidade contemplando o que se poderia dizer o grau mais acessível de uma das perfeições de Deus.

Como não poderíamos nos dar por felizes? Seria, no fundo, negar a perfeição do próprio Deus! Quer dizer, passando do exemplo de Orvieto para o que se dá com Deus Nosso Senhor, compreende-se, então, como no Céu não há inveja.

Devemos nos alegrar ao vermos a superioridade de outros

Assim, entendemos o quanto a inveja é irracional, estúpida.  Alguém dirá:

— Mas Doutor Plinio, eu tenho pesar de ser burro.

Eu lhe respondo:

— Meu filho, você devia ter pesar de ser bobo!

No Colégio São Luís de meu tempo de menino — não sei como fazem nos colégios hoje — havia nota de comportamento e aproveitamento no ensino. Mamãe me dizia: “Desejo que você tire boas notas em aproveitamento, mas não faço tanta questão, porque pode ser que meu filho seja burro, e nesse caso eu também o estimo muito. Mas, em comportamento, não! Nota de comportamento tem que ser dez e raramente nove. E quando não for dez, você precisa explicar a sua mãe o que ocorreu. Porque nesse caso entra a culpa. E neste ponto não transijo”. E eu achava que ela tinha razão.

Então, eu digo àquele que se afirma burro: “Tenho pena de você porque tem nota cinco de comportamento e fica triste por causa do aproveitamento. Com sua pouca inteligência, quando você morrer dará para ver em Deus uma perfeição tão admirável, que justificaria a vida de um coro de Anjos! Isso você vai ver, e está choramingando?”

Para não falar de outras coisas mais ordinárias… “Fulano é tão engraçado, e eu não sei contar nada de jocoso! Fico com inveja de Fulano”.

Dá vontade de dizer: “O palhaço do circo é mais engraçado do que Fulano. Vá lá para admirar o palhaço! Na realidade, você não acha graça no outro, mas tem inveja das palmas que ele obtém, da popularidade que ele forma em torno de si.”

Então deveríamos ter um cuidado muito grande em ficarmos com alegria, notando a superioridade de outros. Precisamos ser almas famintas de admirar essa superioridade. Vendo que uma pessoa tem mais do que eu, digo: “Mas que bom!” E se possui uma coisa que não tenho: “Mas que ótimo! Que satisfação!” E se é mais virtuosa: “Lamento não ser tão virtuoso quanto deva, mas me alegro que tal pessoa seja mais virtuosa do que eu!”

A alma faminta de ver outros superiores é contrarrevolucionária. Se ela não é assim, não minta para si nem para Deus, e reconheça humildemente que tem um grave fermento revolucionário. Bata no peito e peça emenda. Não minta para si, porque a Deus não se mente. Ela carrega duas mentiras: uma para os homens e outra para si mesma. Deus vê! De maneira que isso deve ser analisado bem de frente.

Recepção de uma virgem no Céu

Vejamos agora como São Jerônimo cuida da questão. Na carta a Santa Eustáquia, diz ele:

Qual será o dia em que Maria, Mãe do Senhor, virá a teu encontro, acompanhada pelos coros das virgens?

Ela era uma virgem que entrava no Céu, e o coro das virgens viria recebê-la. Pensemos um pouquinho que coro nos receberá no Paraíso… Será uma pessoa de quem tínhamos saudades e que virá nos abraçar? Nós, mais velhos, morreremos antes dos mais moços. Já temos membros de nosso Movimento que morreram e estão no Céu. Nós podemos esperar que eles nos recebam na orla do Paraíso, como São Domingos Sávio, com certeza, acolheu São João Bosco. E serão os primeiros amplexos, o primeiro entusiasmo, a primeira alegria… Que gáudio para nós ver os que estão na glória dos Céus, e há muito tempo rezando por nós! Que coisa magnífica!

Então vêm Nossa Senhora, o coro das virgens, e também o coro dos guerreiros para receber essa virgem de alma varonil.

São Jerônimo continua:

Virá o próprio Esposo…

Num perfeito cortejo, o rei vem no fim.

…da alma dela e dirá: “Levanta-te, vem, minha irmã…”

Ele imagina Nosso Senhor Jesus Cristo dizendo a Santa Eustáquia:

“…vem minha bela, minha pomba; porque passou o inverno e a chuva.”

São palavras tiradas do Cântico dos Cânticos(1).

 Imaginem que Nosso Senhor diga a um de nós: “Venha, meu filho, venha meu guerreiro! Passou a luta. E agora, por toda a eternidade, triunfarás”.

Vendo a alma que entra, os bem-aventurados se admirarão e dirão: “Quem é esta que se ergue como uma aurora, bela como a Lua, eleita como o Sol?”

Esta última frase é da Escritura(2) e costuma ser aplicada a Nossa Senhora. São Jerônimo a aplica a Santa Eustáquia, e nós poderemos empregá-la aos contrarrevolucionários que entram no Céu. “Quem são estes que se erguem como a aurora, pulcros como a Lua, luzidios e escolhidos como sóis?”

E São Jerônimo acrescenta:

As donzelas te verão e te louvarão.

As graças rejeitadas pelos réprobos serão concedidas aos bem-aventurados

Então, terminada a recepção, da qual estou encurtando partes, afirma São Jerônimo:

Os 144 mil que estão diante do trono e os anciãos tomarão cítaras e cantarão o “canticum novum”, em louvor da nova bem-aventurada que entrou!

Cento e quarenta e quatro mil é um número simbólico. Quer dizer, feita toda a recepção, os bem-aventurados cantam em louvor daquela que chegou! Lá não cabe a inveja, ela não existe!

São Jerônimo continua:

Deus, no Céu, entregará aos bem-aventurados todos os dons, todos os dotes e todas as graças.

E Cornélio a Lápide comenta:

Todas as graças, também aquelas que os réprobos tiveram nesta vida.

Quer dizer, as graças que os réprobos tiveram e rejeitaram são entregues aos que forem, pelas orações de Nossa Senhora, levados ao Céu. Essas graças recusadas esperam aos justos. Tudo isso não se perderá.

Porque a beatitude é o estado perfeito, pela agregação de todos os bens, como diz Boécio.

Vem citado, depois, um dito de Santo Ambrósio:

Cada um dos bem aventurados goza de tal maneira com a glória de cada um dos outros…

Ainda que seja uma glória maior. É o contrário da inveja!

…como se esta glória dos outros fosse a sua própria glória!

Assim devemos ser na Terra com relação aos outros. Quando eles se realçam, precisamos ficar alegres como se fosse um dom para nós; dessa forma nos preparamos para o Céu. Não se pode ser de outra maneira! Eu sei que a Revolução ensina o contrário! Pior do que isso, vicia com o contrário! Porque é um vício o que ela estimula.

Maravilhosa união entre os bem-aventurados

Pelo que é bem-aventurado, não uma vez, mas milhares e milhares de vezes.

Quer dizer, o indivíduo tem a bem-aventurança de milhares e milhares, porque ele frui a glória do outro como se fosse dele. Então, o menorzinho no Céu desfruta a glória de São Miguel Arcanjo, no píncaro dos píncaros, como se fosse a dele. E literalmente ele “racha” de contemplar São Miguel Arcanjo!

E agora vem a metáfora apresentada por São Jerônimo:

Na recompensa há uma torrente de gozo e o ímpeto de um rio que não corre e nem se retira.

É chamado de rio não porque passa, mas porque abunda.

É uma beleza de metáfora! Quer dizer, os bem-aventurados vão chegando ao Céu como um rio; um rio que não escorre, mas deságua numa eternidade para a qual não há mais movimento nem inércia. Está tudo na perfeição. E cada vez mais, cada vez mais, cada vez mais! Um invejoso que estivesse lá veria um concorrente no novo que chega. Não sendo invejoso, ele tem alegria e exclama: “Mais gente! Que maravilha! Para Deus, eu nunca serei anônimo. Todos que estão aqui me conhecem pelo nome. E me querem até na minha pequenez”.

E os maiores que passam perto dele, vendo-o na sua pequenez dizem: “Como esta perfeição de Deus merece que fosse criado este, e O adorasse especialmente neste grau!  Meu caro, como estou alegre que tu existas!”

Os menores serão o gáudio dos maiores e os maiores serão a alegria dos menores. Tudo numa união maravilhosa, sem igualitarismo. O maior gosta do menor porque é menor. E o menor gosta do maior, porque é maior.

Feito este périplo por tão belos textos, deixo-os aos pés da Catedral de Orvieto.

Imaginem um homem que melhor entendeu Orvieto, o qual passa e vê de repente um que está olhando fixo para uma asa de um Anjo, um arco-íris, ou qualquer outra coisa da Catedral de Orvieto. Ele olha e diz o seguinte: “Sou feito para ver o todo, mas se eu contemplasse só o que ele está vendo, daria minha vida por justificada, porque aquilo merece”.

Passa perto dele e diz: “Meu caro, como você está bem aquinhoado em admirar esse detalhe! Somos irmãos!”

Terminou, meus caros, a nossa visita à Catedral de Orvieto, e nós nos dirigiremos, com a bênção de Nossa Senhora, para outros e novos rumos. Estes não são nem novos nem antigos; são eternos! v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 18/2/1981)

Revista Dr Plinio 195 (Junho de 2014)

 

 

1) Ct 2, 10-11.

2) Ct 6, 10.

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