Como devemos considerar as pessoas superiores a nós? Admirando-as por suas qualidades, ou invejando-as por não sermos iguais a elas? Igualdade e desigualdade, até que ponto constituem um bem para o homem?
É notória a complexidade do universo. Nele há seres inteligentes como o homem; seres dotados de vida, mas sem inteligência, como os animais e as plantas; seres sem vida nem inteligência, como os minerais.
De fato, à medida que a Ciência progride e verifica quão numerosos são os seres que compõe o universo, constatamos as inter-relações e as desigualdades postas na criação.
Os anjos são mais numerosos que os homens
Ora, as ciências naturais nos apresentam algo muito inferior ao que alcançamos pela Fé. Sabemos existirem os anjos, puros espíritos que não podemos ver. E a Teologia nos ensina serem os anjos incomparavelmente mais numerosos do que os homens.
São Tomás dá para isso uma bonita explicação, apresentando uma razão metafísica que toca no estético: a Criação é excelente; o melhor deve ser mais numeroso1. Ora, como puros espíritos, os anjos são superiores a quem não é puro espírito.
Suponhamos um tapete. O que ocupa mais espaço, a franja ou propriamente o tapete? É o tapete. Pois uma franja enorme e um tapete pequenino é uma coisa caricata. Ora, o tapete da Criação são os anjos, puros espíritos. E à medida que vai se aproximando da matéria vem a franja. Então, os anjos são mais numerosos do que os homens.
Compreende-se que haja uma escala, e no alto, como qualidade e quantidade superiores, estão os anjos.
A desigualdade entre os anjos é maior do que a existente entre os homens
Não devemos imaginar que um anjo está para outro anjo como um homem para outro homem. Nós, homens, por mais diferentes que sejamos uns dos outros, somos da mesma espécie. Os anjos, não. Cada anjo é de uma espécie diferente da do outro2.
E o anjo inferior foi feito para servir o superior; aquele é menos inteligente e tem uma capacidade menor de amar do que este. Por causa disso, recebe de Deus uma glória e uma graça menor do que aquele que está acima.
Assim, se fôssemos fazer um gráfico do mundo angélico, traçaríamos uma espécie de fio de linha enorme, em que cada anjo seria um ponto; cada um deles está a serviço do anjo superior, e através deste conhece a Deus, mas ele mesmo também vê diretamente o Criador. Todos os anjos O veem diretamente, mas não contemplam tudo; e pelos anjos superiores cada anjo inferior conhece alguma coisa mais a respeito de Deus.
Dessa forma, a desigualdade entre os anjos é enormemente maior do que a existente entre os homens. Ora, os anjos são uma porção da Criação muito mais preciosa do que os homens.
Devemos agradecer a Deus por ter criado pessoas superiores a nós
Vemos assim que a desigualdade é algo existente no universo, de tal maneira que em sua parte mais excelente ela ainda é maior. Podemos então fazer as seguintes perguntas: Foi bom que Deus fizesse assim? Não teria sido melhor que Ele criasse todos os anjos iguais? E que desse a nós homens a natureza dos anjos? E concedido aos animais, às plantas, aos seres inanimados, inteligência e vontade como os maiores dos anjos? Ou, então, que Deus não fizesse anjos, mas só nós, homens, e todos iguais uns aos outros? Não seria mais justo? O Criador não teria desse modo revelado mais bondade?
Alguém diria: Pareceria que sim, pois sempre que um homem vê um superior ele se entristece, por desejar ser igual ao outro. Sendo assim, Deus, criando a desigualdade, fez uma fonte de tristeza. Ora, não é próprio à bondade criar a tristeza. Logo, Ele não deveria ter feito a desigualdade.
Primeiramente, não é verdade que cada homem, quando vê no outro um superior, fica triste. A tristeza pelo fato de ver que outro tem mais é própria do invejoso.
De acordo com a Doutrina Católica, quando vemos alguém que tem mais do que nós, possui uma perfeição por onde se parece mais com Deus, devemos nos alegrar.
Qual deveria ser a reação de quem tivesse a honra de conhecer São Tomás de Aquino?
Dou uma comparação. Eu creio não ofender a ninguém dizendo que São Tomás de Aquino era incomparavelmente mais inteligente do que qualquer um de nós. A prova disso são algumas confidências que ele fez a Frei Reginaldo, irmão leigo, uma espécie de secretário dele. São Tomás disse-lhe nunca ter feito uma leitura sem que se lembrasse com toda a facilidade, para a vida inteira, de tudo quanto tinha lido. De outro lado, ele nunca precisara reler nada, porque tinha entendido até o fundo tudo quanto lera.
Algo desconcertante em sua obra é que, para resolver os problemas, ele cita de um modo triunfal trechos da Bíblia, os quais passariam despercebidos para outros. Vê-se que ele conhecia a Bíblia perfeitamente. Pode-se dizer que possuía uma inteligência incomparável, fabulosa.
Sabendo que São Tomás foi tão mais inteligente do que eu, se tivesse a honra imerecida de conhecê-lo, qual deveria ser a minha reação?
Imaginemos que ele estivesse aqui ao meu lado, e eu ousando fazer esta conferência em sua presença. São Tomás era um homem alto, corpulento, com pescoço muito grosso — os colegas o chamavam de boi, porque ele tinha olhos grandes, era calmo, constantemente pensando. Eu me perguntaria: “Que coisas sublimíssimas ele está cogitando a respeito do que estou dizendo?”
Creio que, na hora de ele falar, os presentes neste auditório ficariam em suspense: “O que ele vai dizer eu anoto, gravo, fico ajoelhado, rezo, já que tal homem vai falar na minha presença!”
O invejoso, espiritualmente descendente de Caim, diria: “Por que Deus não me fez igual a São Tomás?”
E o homem reto, espiritualmente descendente de Abel, exclamaria: “Que maravilha é essa obra-prima do Criador, São Tomás de Aquino! Considerando sua grande inteligência, compreendo melhor como Deus é inteligente. Portanto, através do seu conhecimento, conheço melhor a Deus. Como agradeço ao Criador o ter-me dado São Tomás, imagem viva, criada, da infinita e incriada inteligência d’Ele! Meu Deus, eu Vos agradeço do fundo da alma; vi um pouco de Vós em São Tomás de Aquino.” Esse é um homem segundo Deus.
O superior deve ser uma imagem de Deus para o inferior
Conforme a Doutrina Católica, a desigualdade existe para que os seres superiores imitem melhor o Criador e O tornem mais conhecido pelos que são menos. Por causa disso, todo maior, se corresponder à sua vocação, deve ser para o menor como uma imagem de Deus.
São Tomás de Aquino exemplifica com a riqueza. Ele pergunta se é bom que haja pessoas mais ricas do que outras.
E responde que é bom porque os mais ricos, dando aos mais pobres, fazem que estes compreendam o que é a generosidade e, desse modo, entendam e amem a generosidade de Deus. A generosidade do rico para com o pobre é uma imagem criada da generosidade do Criador para com o homem. A desigualdade de fortuna, portanto, é um bem.
Alguns seres devem velar por outros
Há dois princípios que regem o problema da desigualdade: o maior é uma imagem de Deus para o menor; em todo o universo, uns seres devem velar pelos outros.
Embora Deus cuide diretamente das criaturas, Ele concebeu a Criação de modo que uns seres velam por outros. Assim, os anjos maiores governam os menores; os homens superiores dirigem os inferiores.
Quer dizer, há uma colaboração: os maiores orientam e elevam os inferiores até Deus; estes os servem. Nesta colaboração, que não poderia existir se os seres fossem todos iguais, se afirma o plano do Criador. Por esta forma, na desigualdade, vemos realizar-se a Providência de Deus.
A desigualdade é um meio para amarmos a Deus
Que atitude devemos tomar diante daqueles que são mais do que nós? De respeito, reverência e de agradecimento a Deus pelos dons que lhes deu. Devemos nos alegrar pelos dons que lhes foram concedidos pelo Criador, e também porque esses dons são benéficos para nós.
Por exemplo, falando sobre a inteligência de São Tomás de Aquino, estou certo de que abri os horizontes de alguns dos presentes, pois não imaginavam que houvesse homens tão inteligentes. Ao imaginá-los, em algo esclarecemos a nossa própria inteligência.
São Tomás morreu, sua alma está no Céu e seu corpo se desfez em pó. Num continente que ele não sabia existir, a América; num país que não imaginava que existiria, o Brasil; numa cidade a qual não pensava que um dia haveria, São Paulo; no local onde no tempo dele talvez houvesse uma taba de índio, entretanto, no ano de 1975, a recordação de São Tomás de Aquino abre horizontes.
É um bem para nós que ele tenha existido. Trata-se de uma desigualdade benfazeja. Assim devemos olhar aqueles que são mais do que nós.
Pulcritude da hierarquia existente na Igreja
Esta impostação de alma explica, em boa parte, a diferença entre os católicos e os protestantes. No ápice da Igreja existe a figura do Papa, monarca da Igreja universal, Vigário de Cristo, a quem foi dito: “Tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja; as portas do inferno não prevalecerão contra ela.” (Mt 16,18). Mais do que um Papa não se pode ser.
Lendo a história dos grandes imperadores romanos, tem-se a impressão de que foram homens como depois não houve mais na Terra. Ora, qualquer Papa tem muito mais poder do que Júlio César. Um Pontífice, hoje em dia, governa seiscentos milhões de católicos3, mais ou menos, e não é um poder como o de César, na ponta da lança, mas espiritual, que obriga em consciência. Ele fala e os outros devem crer.
Houve alguma vez na História um poder igual a este? “Tudo o que ligares na terra será ligado nos céus, e tudo o que desligares na terra será desligado nos céus” (Mt 16,19). O católico se rejubila com isso. Quão belo é haver na Igreja um chefe, um rei, uma cabeça tão alta e adornada com poderes tão esplêndidos! E, logo abaixo do Soberano Pontífice, os príncipes da Igreja, os Arcebispos, os Bispos, colocados cada qual para governar uma parcela da Igreja universal, sob a autoridade do Papa! Como é pulcro ver um Bispo que entra numa igreja, de mitra, com báculo, e o coro cantando a plenos pulmões: “Tu és sacerdote eternamente, segundo a ordem de Melquisedech”; ele avança, o povo se ajoelha e o Bispo distribui as bênçãos de um lado e de outro, usando luvas bordadas a ouro e um anel de ametista. Que beleza!
Alguns dizem o contrário: “Por que não eu? Seria bom aplicar o livre exame… nada de infalibilidade! Sou tão infalível quanto o Papa. Na minha cabeça sou eu que mando. Nada de Papa!” Outros afirmam: “Nada de Bispos!” E outros declaram: “Nada de padres!” Tais indivíduos são movidos pelo orgulho, portanto pela inveja. Nós somos movidos pelo Espírito Santo e, portanto, pelo espírito de abnegação, de respeito, de amor. A pessoa que compreende quem é um Papa entende muito melhor quem é Deus Nosso Senhor. O Papa e Bispos são imagens vivas de Deus.
Cosmos: um conjunto de coisas ordenadas
Passemos agora ao ponto terminal da conferência.
A desigualdade é um bem, mas não é o único bem que existe no universo. Todos conhecem a diferença que há entre caos e cosmos.
Na linguagem comum, corrente, caos é uma desordem, um amontoado de coisas que não têm relação entre si. Por exemplo, se chegássemos aqui nesta sala e encontrássemos as cadeiras em desordem, algumas delas dependuradas no teto com cordéis, os lustres no chão, perguntaríamos: “Quem fez esse caos?” Todo mundo acharia a palavra “caos” bem aplicada, pois ela se refere ao conjunto de coisas que não estão colocadas em ordem, umas em relação às outras.
Cosmos é, pelo contrário, um conjunto de coisas postas em ordem entre si. Por isso dizemos que Deus criou um cosmos ou um universo. As palavras “cosmos” e “universo” querem dizer a mesma coisa, ou seja, tudo ordenado.
Para que as coisas estejam ordenadas, é preciso que elas sejam, de algum modo, iguais e também desiguais. Porque se forem totalmente desiguais, não há ordem possível entre elas.
Imaginemos que alguém veja um sapato, um canário, uma fotografia de Churchill e diz para um subalterno: “Ponha esses objetos em ordem nesta mesa.” Não há ordem possível, porque são coisas totalmente heterogêneas. A ordem supõe certa relação.
Se fossem três fotografias de Churchill, poder-se-ia colocá-las em ordem, considerando o tamanho da foto, a idade dele etc. Ou, então, três canários ou três sapatos poderiam ser postos em ordem.
A igualdade e a desigualdade devem compor-se para formar uma ordem
Quer dizer, para se pôr em ordem as coisas é preciso que elas tenham algo de comum e também desigualdades fáceis de se perceber. Se uma pessoa faz três cópias de uma fotografia de Churchill e me pede para pô-las em ordem, eu respondo: “Meu caro, a olho nu, não! Se você me der uma superluneta, vou verificar que há entre as cópias alguma diferença de tamanho; mas a olho nu, sem eu perceber as desigualdades existentes entre elas, não é possível colocá-las em ordem.”
A ordem supõe um misto de igualdade e desigualdade. Assim, para que houvesse cosmos eram necessários seres por algum lado iguais e por outro lado desiguais.
A desigualdade não é um mal, é um bem. Ambas — a igualdade e a desigualdade — devem compor-se para formar uma ordem.
Esta é a tese da Doutrina Católica, mas que nosso Movimento exprime e reproduz. Deve haver entre as coisas uma hierarquia proporcionada e harmônica. Uma hierarquia desarmônica não vale nada, porque destrói essa relação.
Apresento mais um exemplo muito ao alcance dos que estão neste auditório, porque quanto mais eu der exemplos fáceis, tanto menos canso a mente dos presentes, que podem assim melhor acompanhar a doutrina.
A lei da proporção concilia a igualdade com a desigualdade
Um exército possui uma hierarquia: general, coronel, tenente-coronel, etc. Se alguém me disser: “Dr. Plinio, o exército do país X é excelente; nele há generais e tenentes-coronéis, mas não coronéis”, farei a observação: “É preciso verificar, pois, se for assim, as coisas não funcionam. Porque todo exército é uma engrenagem; em certo momento, uma ordem tem que passar pelo coronel, e, se este posto não existir, será um exército manco.”
Porque na verdadeira hierarquia, entre o mais alto grau até o ínfimo, é preciso que haja vários graus intermediários, de maneira que entre o maior e o menor exista uma proporção. Trata-se da lei da proporção, que concilia a igualdade com a desigualdade.
Imaginemos uma escada muito bonita, em que os degraus mais altos sejam menores e, à medida que se vai descendo, os degraus se tornam longos; a escada vai se abrindo. É uma obra-prima. Se nessa escada faltasse um degrau intermediário, ela se tornaria horrenda, uma caricatura, porque perdeu a proporção entre o degrau mais alto e o mais baixo.
Então a hierarquia deve ser proporcionada, de maneira que entre o maior e o menor haja sempre um contato, uma proporção.
É o que vemos na Igreja Católica. O Papa está colocado no fastígio; abaixo dele estão os Cardeais, depois os Arcebispos, os Bispos, os Monsenhores, os Cônegos e depois os simples Padres. São graus que, de alto a baixo, existem dentro da Igreja. Isso torna suave o acesso ao Papa e estabelece uma engrenagem que faz da hierarquia algo amável, afável e agradável; há um misto de igualdade e desigualdade.
Assim, fica demonstrado como devemos ter espírito hierárquico.
Deve-se desejar progredir para servir a Deus
Tratarei finalmente da seguinte questão: Se é bom que haja desigualdade, nunca se deve procurar subir?
Depende da razão pela qual a pessoa queira progredir. Se desejar subir por amor de Deus, para servi-Lo — não por orgulho —-, ela está agindo conforme a ordem do universo. A pessoa deve procurar progredir na proporção dos meios que o Criador lhe concede.
Por isso um indivíduo estuda e torna maior sua ciência, outro trabalha e aumenta seu dinheiro, um terceiro faz exercícios físicos e desenvolve sua musculatura. Deus dá a cada pessoa possibilidades para se aperfeiçoar. Na medida em que procuremos a perfeição para ficarmos mais semelhantes a Deus, é bom subir.
Se uma pessoa, por exemplo, quer cantar e diz: “Como o cântico harmonioso é uma bela criatura e a canção em si é bela, eu quero cantar para possuir essa beleza, que é um reflexo do Criador.” Isso é uma coisa justa, direita.
Entretanto, se ela pensa: “Não tolero que tal indivíduo saiba cantar e eu não. Então vou aprender a cantar apenas para ser mais que ele.” Isso é inveja, um pecado.
Também não é direito querer aprender alguma coisa, ou subir, em qualquer sentido da palavra, para ter o gosto de ver o outro em baixo. “Sou igual a meu irmão, mas vou dar uma tacada financeira e farei uma casa magnífica em frente à dele, que a transformará numa barraca.” Isso é um péssimo sentimento, vontade de oprimir os outros; não é uma coisa católica. v
Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 25/1/1975)
Revista Dr Plinio (Fevereiro de 2012)
1) Cfr. Suma Teológica I, q. 50, a. 3.
2) Cfr. Suma Teológica I, q. 50, a. 4.
3) Atualmente, o número de católicos excede a cifra de 1.250.000.000.