Conversa e amor ao próximo

Tema inesgotável nas exposições de Dr. Plinio, a arte da conversa, a “causerie” informal, era para ele importante forma de transmissão de conhecimentos, baseado num intercâmbio rico e espiritualizado no qual se procura antes fazer bem ao próximo do que transmitir-lhe ensinamentos “livrescos” e cartesianos. Vejamos como ele desenvolve essa matéria que lhe era tão cara.

 

A  respeito do tema “conversa”, como de tantos outros, fui favorecido pela influência de mamãe, pois ela era, fundamentalmente, uma “causeuse”(1).

Mais que palavras, a conversa por olhares e gestos

Um de seus maiores prazeres na vida era conversar. Fazia-o bem, longamente, sem pressa, com um charme envolvente, o qual não é fácil definir, pois tinha mais relação com seus pensamentos do que com seus ditos. Tratava-se do “arrière fond”(2) implícito de sua conversação. Ela não tinha o hábito — aliás, inexistente em sua época — de espremer seu raciocínio até sair o último suco por meio da explicitação. O espremer não fica bem a uma dona de casa: refeições, horários, tudo contado e corrido aguça nos convidados dela a vontade de se retirarem. Creio ser mais interessante o calmo estilo antigo.

E na alma de mamãe havia inúmeros aspectos pelos quais ela conversava muito mais pelo olhar, timbre de voz, gestos das mãos, do que propriamente pelo sentido das palavras.

Um paralelo com o contemplar as estrelas

A esse propósito, tomo a liberdade de fazer uma comparação que, nos lábios de um filho, pode parecer excessiva, entretanto é a única que encontro para exprimir minha ideia.

Quando criança, às vezes eu ficava sozinho, à noite, contemplando o céu estrelado. Como muitos, tinha a sensação de que a abóbada celeste não era inteiramente fixa, mas sim como um grande toldo circular, dilatando-se ou se encolhendo de modo suave. E que esse movimento comunicava um certo impulso de fole àqueles astros, os quais por isso cintilavam. Tomava-me a impressão de que as estrelas de certo modo dialogavam comigo, e, quando mudavam de posição, olhavam-me em silêncio.

Eu sabia que isso não tinha fundamento, e dizia a mim mesmo: “É verdade, mas não pode ser mera ilusão, deve haver algo de real nisso”. Somente depois de homem feito consegui explicitar o que eu sentia. Deus criou o firmamento de maneira a causar essa impressão nas pessoas. E embora não seja a autora desse movimento, a abóbada celeste o é dessa sensação. Esta tem como origem remota e suprema a Deus Nosso Senhor, Criador do céu.

Esse pensamento me parece elevado e belo, porque exprime o valor metafísico dessa sensação que nos colhe ao contemplarmos uma noite estrelada.

Ora, de modo análogo ao que ocorria comigo ao considerar o firmamento, quando conversava com mamãe, muitas vezes tinha a impressão de estar dialogando com duas estrelas (os seus olhos), as quais pulsavam e fitavam-me, dizendo coisas sem relação imediata com os assuntos por nós tratados. E eu sentia que lhe respondia também dessa forma, e assim conversamos durante quase 60 anos, até a morte dela. Esse foi o contributo que ela me proporcionou para compreender a riqueza da conversa.

“Não há arte de viver sem a arte de conversar”

E ainda menino, através das revistas da “Université des Annales”, bem como de livros de história franceses, etc., não custei a perceber essa realidade: as pessoas que sabiam conversar possuíam uma imensa vantagem na vida. Não há arte de viver sem a arte de conversar. Pois normalmente os homens não vivem sozinhos, mas em sociedade, devendo, portanto, trocar idéias e comentários. E o efeito que se produz nos outros depende em grande parte do que se diz.

Imaginemos uma pessoa contando a um conhecido o passeio que fez. Se ela seguir as normas da conversa, conforme expusemos, será ouvida com atenção e interesse. Porém, se narrar à maneira de um professor de química, que explica a reação produzida pela mistura de H2O com outra substância, fará um relatório extenuante e não uma autêntica descrição. Por mais que tal relato seja profundo, é inaceitável como elemento de convívio humano.

Certas revistas geográficas apresentam reportagens escritas por pessoas que passeiam sozinhas na natureza e contam o que vêem, sem nenhuma pulsação ou calor de alma. Ela fala, por exemplo, das borboletas do Ceilão ou das lagostas do Recife com a mesma neutralidade de um guia.

Um intercâmbio de duas personalidades

Ora, a conversa não pode ser assim. Sendo um meio insubstituível para viver, pensar, a conversa não é uma mera crônica, um simples relatório. Sobretudo, não é uma aula.

Entretanto, a “causerie” deve ter algo de crônica, de relatório e de aula. É, aliás, o que procuro fazer nesta exposição. Ela tem um aspecto docente, pois estou continuamente ensinando coisas. Mas difere de uma aula clássica, a qual pode ser comparada a uma avenida em cujo ponto terminal há um monólito chamado ensinamento. Enquanto que minha explanação é como um passeio por caminhos não retilíneos onde, de forma inesperada, encontra-se uma lição.

Nela há também algo de relatório, quando faço um inventário dos modos de se conversar. Além disso, em minha exposição existe um pouco de conversa. Embora nesse momento esteja agindo especificamente como um professor que fez a introdução e focalizou o tema, sem perceberem, meus ouvintes estão conversando comigo e assistindo uma aula. Isso é propriamente “causerie”…

E a conversa, o que vem a ser?

A palavra “intercâmbio”, com freqüência empregada em assuntos comerciais, é inadequada para exprimir coisas do espírito. Contudo, é o vocábulo que me ocorre para explicar esse tema.

A conversa é um intercâmbio de duas personalidades que falam sobre matéria atraente e que interessa a ambas. Será ainda mais autêntica, se o meu interlocutor puser certa nota pessoal em suas palavras, fazendo com que eu goste de ouvi-lo. Isso é um elemento fundamental da conversa. Há pessoas muito inteligentes e instruídas, cuja prosa é enfadonha; e outras de pouca capacidade intelectual e instrução, que conversam bem, pois sente-se em suas palavras, não principalmente o tema, mas o indivíduo.

Depois de tê-la definido, aponto no que consiste a plenitude da conversa: não é apenas uma troca de informações nem de impressões, mas também de cognições mútuas dos interlocutores, cujas personalidades se manifestam pelo olhar, tom de voz, gestos, etc.

Na boa conversa, a prática da caridade cristã

Pode-se dizer que há na essência da arte de conversar um preceito da moral católica: o amor ao próximo. Para conversar bem, o indivíduo precisa ter uma atitude de alma — portanto, toda ela interna — pela qual se torne interessante para os outros. Do contrário, ele nunca será um bom conviva.

Qual é essa atitude de alma?

Descrevê-la-ei de modo sumário. Quando uma pessoa considera outra e sente afinidade, homogeneidade, ou heterogeneidade harmônica, ela se regozija. Notando, ao invés, dissonância, desagrada-se. Ou seja, ela vibra em contato com outra alma. Esse é o ponto de partida do verdadeiro “causeur”. Ser indiferente às almas, não senti-las, percebê-las, nem vibrar com elas, torna a conversa impossível.

Por exemplo, estou conversando com meu auditório e percebo que todos, ou a maioria, nutrem interesse em conhecer minha alma, como ela se mostra ao longo dessa exposição, etc. E notam que eu, por meu lado, cultivo também a vontade de conhecê-los, de interpretar o olhar de cada um com interesse, como algo que a todo momento tem uma novidade a me dizer…

E assim nos beneficiamos, reciprocamente, desse tesouro que é a arte da conversa.  v

 

1) Feminino de “causeur”, aquele que possui a arte da conversa.

2) Âmago.

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