Quem vive no pantanal da incompreensão, deve saber voar

Ao analisar as impressões causadas pela observação de uma bela ave, Dr. Plinio as correlaciona com a vida de quem faz apostolado.

 

Há uma ave que sempre me encantou e, ao mesmo tempo, me deixou um tanto desconcertado: a garça.

Em primeiro lugar, por causa da cor branca nívea, que me agradava muito. Depois, devido à sua — se assim se pode dizer — construção, pela qual ela tem o corpo todo branco, de onde sai um pescoço delicado e elegantemente torneado, com uma cabecinha para conter olhos, narinas e um bico muito grande, causando a impressão de um símbolo da capacidade de captar, prever e agir à distância.

E tudo sobre duas pernas fininhas, que parecem ser de ar. À primeira vista têm-se a sensação de que a garça não está pisando em nada, mas flutua no ar. Só se percebe que ela se move quando, com suas pernas compridas, abre a pata de palmípede e marcha num passo elegante. Ela avança com elegância, distinção e império; “manda” com tanta finura e autoridade no minúsculo território onde é rainha que dá gosto, a quem aprecia o princípio da autoridade, ver a garça mover-se.

Se fosse capaz de pensar, ela faria um raciocínio assim:

“Que vida eu levo! Tenho pernas tão frágeis que preciso andar com muito cuidado, pois qualquer coisa pode quebrá-las. Sou feita para caminhar no meio dos pântanos a fim de encontrar minha comida nos vermes, que todo mundo reputa sujeira. Na minha brancura nívea, sou uma coletora de insetos repugnantes dos quais tenho que fazer a minha delícia. Meu bico tão comprido, seletivo, exigente, é um captador de coisinhas que todo mundo rejeita… Que vida eu levo!”

A garça poderia julgar que está condenada ao império dos pantanais e aos banquetes repugnantes. Como ela deveria achar triste a sua existência! Em determinado momento, movida por algum instinto, abre as asas e voa! Adeus, pântanos! Adeus insetos, ela também possui o ar, as vastidões, o sol que bate em suas asas e a torna rutilante como se ela fosse feita de neve; suas pernas parecem filamentos que prolongam garbosamente sua estatura. Ela corta o ar com um voo muito mais elegante do que elegantes são seus passos.

Assim são também certos movimentos de idéias, obrigados a fazer na vida de todos os dias apostolado nos pantanais das indecisões e incompreensões. Assim como a garça voa, a Providência propicia favores para que o homem de ideal voe também. São as consolações celestes, as recompensas e as horas em que nosso movimento, por exemplo, pode abrir largamente as suas asas, diante de todo o mundo e brilhar… refletindo — na alvura e pureza de seus ideais, no rigor de sua ortodoxia, no entusiasmo de sua dedicação, sem intuito de remuneração ou recompensa terrena — a santidade do próprio Deus, como a garça reflete o brilho do próprio sol. É a luz que voa e se espalha, longamente, parecida com a trajetória gloriosa da garça.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 3/8/1990)

Corrigi-me em minha oração

Minha Mãe, Vós sabeis o que me convém, entretanto eu nem sempre o sei. Às vezes eu não peço o que me convém, porque não sei. Outras vezes eu peço o que não me convém, porque imagino que é bom.

Senhora, eu Vos peço, ponde um seletivo em minha oração. De forma que Vós, que bem sabeis o que me é conveniente, me obtenhais, ainda que eu não peça, porque eu não sei o que de fato me convém. Corrigi-me em minha oração, caso peça algo que me pareça muito razoável, porém por razões que ignoro e Vós sabeis, não seja conveniente.

Fazei o que me convenha!

“Oportet semper orare et non deficere!” É preciso rezar sempre e não desanimar nunca!

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 5/12/1987)

Admirável, austera e silenciosa Trapa

O verdadeiro apostolado não é feito em meio à aparente prosperidade de uma vida sem cruzes; pelo contrário, o sofrimento bem aceito promove o crescimento das obras de Deus. Estas são as considerações feitas por Dr. Plinio ao narrar um maravilhoso fato da Ordem Trapista.

 

Os trapistas constituem um ramo da ordem de Cister, que segue a regra de São Bento, o qual se dedica inteiramente à vida de recolhimento. Eles vivem enclausurados em mosteiros sem nem sequer receber visitas. Alternam a oração litúrgica — na qual aplicam a maior parte do seu tempo, sete horas por dia — com trabalhos manuais e estudos de caráter ascético e místico.

Os monges da Trapa têm por objetivo levar uma vida de muita penitência: jamais falam — a não ser em ocasiões da mais estrita e imperiosa necessidade —; praticam estritamente o jejum, jamais comendo carne, peixe ou ovos, a não ser por recomendação médica. Com um detalhe: nesses casos, os ovos podem ser comidos no refeitório, porém, a carne e o peixe só na enfermaria.

Essa Ordem admirável passou — como todas as coisas admiráveis passam — por muitas peripécias.

O verdadeiro conceito de admirável

O conceito que, hoje em dia, as pessoas têm de admirável é um tanto diferente daquele que se tinha antigamente.

Para os homens de hoje, alguém é admirável quando triunfa com facilidade sem jamais passar por provações sérias e duras. Quando, na realidade, é verdadeiramente admirável — no sentido cristão da palavra — quem passa por reveses e derrotas, por perigos e angústias, mas, com a graça de Deus, as acaba vencendo.

Percebe-se isto na vida de Nosso Senhor Jesus Cristo. Ele operou inúmeros milagres, foi aclamado Rei em Jerusalém no Domingo de Ramos, e passou por aquilo que, para os espíritos superficiais da época, pareceu súbita e inesperada derrocada: sua Paixão e Crucifixão.

Uma obra de apostolado só é autêntica quando as pessoas que nela trabalham compreendem o valor das cruzes. As luzes são fáceis de compreender. Todo labor apostólico passa, necessariamente, por altos e baixos, por luzes e por cruzes.

Narro-lhes um fato curioso que se deu numa Trapa durante a Revolução Francesa.

O exílio da Trapa

Com a Revolução Francesa foram extintas todas as Ordens Religiosas que havia na França.

Houve, entretanto, um Abade da Trapa, que, no dia 26 de abril de 1791, resolveu não permitir que sua Ordem se extinguisse e deliberou então sair da França: era Dom Augustin de Lestrange (1754-1827), homem muito empreendedor e corajoso. Com outros vinte e quatro monges empreendeu uma viagem em direção à Suíça, pois este era o ponto mais adequando para obter o êxito da iniciativa.

Num dos cantões suíços — espécie de província —, o cantão de Friburgo, havia um convento abandonado, antes propriedade dos Cartuxos, e, por uma graça da Providência, as autoridades locais o puseram à disposição de Dom Augustin e de seus monges.

Como fizeram eles tal viagem?

Empreenderam todo o percurso, da França até a Suíça, num grande carro fechado onde cabiam os vinte e cinco religiosos. O veículo era todo cercado por uma tela, a fim de que não rompessem o recolhimento religioso olhando para o exterior. Iam, durante todo o dia, cantando o Ofício e cumprindo o programa regular do mosteiro, dentro da carruagem.

À noite, dormiam ao relento — sobre um monte de feno ou sobre o chão diretamente — e nunca em hospedarias. Antes de dormir, se reuniam para cantar a Salve Regina, como faziam no Mosteiro da Trapa.

Depois de chegarem à Suíça e se instalarem, quando ainda agradeciam a Deus, que de um modo tão maravilhoso os tinha levado a esse remanso de paz onde podiam continuar sua vida religiosa, outro tufão: as tropas revolucionárias francesas invadiram a Suíça, e eles foram obrigados a fugir novamente, passando para a Rússia. Tudo isto com o mesmo estilo de vida, dentro do famoso carro. Resolveram, depois dirigir-se para a Inglaterra, e como lá não puderam ficar, viajaram para os Estados Unidos!

Fixaram-se nos Estados Unidos, lá permanecendo por algum tempo, até que a notícia da queda de Napoleão e da ascensão de Luís XVIII ao trono os fez voltar para a França e instalarem-se na mesma Trapa que tinham abandonado anos antes.

Derrocada ou triunfo?

Qual o resultado de tantas viagens? Durante o tempo das fugas, em todos os lugares por onde passavam, formavam novas Trapas, de maneira a constituir um número considerável de mosteiros fora da França, com um total de seiscentos religiosos. Quando eles partiram da França eram apenas vinte e cinco!

Admiremos os desígnios de Deus: a Providência quis espalhar essa Ordem, voltada ao sofrimento, pelo mundo inteiro.

Construíram, congregaram e venceram

Tarefa dificílima foi, sem dúvida, a de obter que tantas pessoas amassem a dura vida de contemplação e isolamento de um trapista. Para tal, era preciso possuir um senso apostólico extraordinário.

Esses homens, no auge da destruição, construíram; no auge da dispersão, congregaram; no auge da derrocada, venceram, transformando a derrota numa verdadeira apoteose. Vê-se com isto do que é capaz a Fé e o devotamento sem limite a um ideal.

Para humilhar os revolucionários, a Providência fez que tal perseguição fosse a ocasião da disseminação da Trapa. Sem essa perseguição, a Trapa jamais teria se expandido tanto.

Isto é uma verdadeira maravilha! Vinte e cinco homens que possuíam um ideal e, apesar de todos os reveses, dele não desistiram: não há mais convento, porém vive-se o cerimonial dentro de um carro; não há cama, dorme-se no chão; é-se expulso para um lugar, aproveita-se para lá fazer apostolado; e de lá enxotado, deixa-se uma semente plantada. Apesar de tudo pelo que passaram, o ideal trapista se manteve e, em vinte e cinco anos, sua Ordem atingira um assombroso desenvolvimento.

A árdua vida de um trapista

A vida de um trapista é, sem dúvida, árdua. Em certos dias, eles acordam à 1:00 hora da manhã, em outros à 1:30 ou 2:00. Quando no silêncio da noite toca o sino, todos se levantam.

O monge trapista dorme vestido com o hábito religioso e, ao levantar-se, vai com rapidez para a igreja — segundo a recomendação de São Bernardo — a fim de cantar as Matinas.

Alguém poderia objetar: “Apesar de tudo isto, a vida de um trapista não é tão difícil, pois ele não tem mais o choque que o comum dos homens tem com o mundo. O monge da Trapa rompeu com o mundo, de modo que as atrações deste já não o atraem mais”.

É verdade que o trapista cortou com o mundo, e o mundo não existe mais para ele. Entretanto, dou um exemplo que é o seguinte: quando, estando fora de um trem, alguém o vê passar, com aquelas cortininhas nas janelas dos vagões e a chaminé da locomotiva — no tempo que se usavam locomotivas com chaminé — deitando uma fumaça poética, e as pessoas que estão dentro serem levadas vertiginosamente para destinos complicados e épicos, tem a impressão de que o trem é uma coisa sedutora! É preciso entrar nele para se compreender que tal viagem é um verdadeiro horror, e que basta ele parar nas estações para todos saírem a fim de passear, porque não se aguenta estar ali dentro por muito tempo.

Pois bem, “tranca-se” o monge no convento e o que acontece? Ele perde a noção do que era o mundo e começa a ver o trem do lado de fora. É fatal! Começam então as ilusões, as tentações.

Poderia então alguém perguntar: “Ora, o que é mais fácil: viver no mosteiro ou fora dele?”

Quem não tem uma graça especial para a vida de clausura, não a aguenta; quem a tem, trate de não imaginar que o outro estado de vida é muito mais leve e compreenda que Deus põe a cruz no caminho de todos aqueles a quem Ele ama.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 27/6/1970)

 

São Gregório Magno

São Gregório Magno foi um dos fundadores da gloriosíssima Idade Média. Pois, de fato, pode-se dizer que todos os problemas daquele tempo passaram pela mente desse grande homem. Ele os analisou e os enfrentou, deixando escritos que são verdadeiros pilares do pensamento medieval.

Quer enquanto simples diácono ou sacerdote, quer depois de ser elevado ao Pontificado, em todos os traços sua vida foi admirável, voltada inteiramente para o sentir da Igreja Católica e da Civilização Cristã.

Ele, de algum modo, acabou de fechar a última réstia da porta que nos separava da Antiguidade pagã; e, por outro lado, abriu a porta para a idade nova que ia nascer.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 11/3/1967)

Balduíno IV, o protótipo do católico – I

Nada foi tão belo quanto o começo das Cruzadas. E nada mais triste do que o ocaso plúmbeo, pardacento, feio no qual elas se afundaram. Mas Deus suscitou no Oriente uma das mais altas figuras  do mundo do tempo das Cruzadas decadentes: um rei leproso. Seu heroísmo e dedicação à Causa Católica fazem dele o protótipo do cavaleiro, do guerreiro, do rei e do leproso; em suma, o  protótipo do católico.

 

Os comentários que farei a seguir só podem ser sentidos em toda a sua importância e expressão se tomarmos em consideração os tempos nos quais os fatos que serão narrados se desenrolaram, ou seja, a Idade Média, no ocaso das Cruzadas.

O brilho da graça das Cruzadas refulge até hoje

As Cruzadas representaram um dos mais belos movimentos de alma que a Igreja teve, ao longo de todos os séculos de sua existência. Como tudo quanto de belo que se passa na Igreja, a esse  movimento de alma correspondia uma grande graça.

Era a graça das Cruzadas, da qual um resto de brilho ainda refulge no olhar poluído e cansado do homem contemporâneo, porque quando se fala das Cruzadas, todo mundo compreende.

Ao ser dito: “Fulano tem o espírito de um Cruzado”, entende-se que comum, mas iluminado de Religião, de Fé, de certezas de toda ordem, com uma disposição e um ânimo extraordinários para  suportar qualquer forma de dor, de sofrimento, de risco.

Um ímpeto de guerra, uma capacidade de impacto sem precedentes, e provavelmente sem consequentes na História. Todos esses conceitos se reúnem e brilham aos olhos com uma luz de Fé,  quando se fala a respeito das Cruzadas.

Nada foi tão belo quanto o começo das Cruzadas. Por causa disso, nada foi mais triste do que o ocaso plúmbeo, pardacento, feio no qual elas se afundaram. A razão desse afundamento nós conhecemos. Os primeiros Cruzados eram varões inspirados por uma grande Fé. Mas começaram a se misturar com eles homens que faziam a guerra santa preocupados em obter o brilho, que na  opinião pública do Ocidente lhes alcançaria uma participação heroica nas Cruzadas. Quer dizer, ter refulgido de heroísmo nas Cruzadas dava, no Ocidente, o que hoje chamariam “um grande  cartaz”. E facilmente  até promovia o indivíduo na escala nobiliárquica, que era a escala de ascensão política, social e econômica naquele tempo. De maneira que havia um interesse humano,  conjugado com o interesse sobrenatural em ser Cruzado.

Com o declínio da influência da Religião, os Cruzados interesseiros foram se tornando mais numerosos do que os autênticos, legítimos, que o eram por verdadeiro espírito de Fé. Com isso, as  Cruzadas foram se tornando guerras de conquista, para que os combatentes obtivessem reinos e feudos cômodos na península balcânica e, sobretudo, na Terra Santa e na África do Norte,  fundando ali um Reino de Chipre, por exemplo, ilustre naquele tempo.

O rei era a síntese e a personificação do país…

Entretanto, os guerreiros indo às Cruzadas por essas razões, as ocasiões de pecado que a guerra traz consigo os solicitavam muito: as rivalidades, as rixas, as injustiças da partilha das vantagens  obtidas e, naturalmente, também o pecado da carne, porque nos saques daquelas cidades conquistadas apresentavam-se mil ocasiões de tentações.

Assim, o ideal da Cruzada foi se rebaixando e poluindo cada vez mais. Nesse ocaso triste das Cruzadas, em que as próprias Ordens de Cavalaria estavam afetadas na sua integridade, na sua   fidelidade ao primitivo espírito, a Providência quis que elas brilhassem enviando-lhes um rei, que não me espantaria nem um pouco se, pelo menos no Reino de Maria, fosse canonizado.

Para compreendermos bem quem era esse rei, suscitado como uma espécie de réplica de Deus à ambição vulgar e ao espírito egoístico da maior parte dos Cruzados da decadência, precisamos  tomar em consideração o que era naquele tempo um rei e depois, no extremo oposto, o que era um leproso.

O rei não era uma figura meramente decorativa, mas sim um ungido de Deus, pois recebia uma investidura por meio de uma cerimônia religiosa: uma coroação ou uma unção – ou ambas as coisas juntas – feita por mãos de eclesiástico, em geral um bispo. Isso fazia do monarca um representante de Deus na Terra, encarregado de fazer prosperar a causa de Deus na ordem civil, como um bispo ou um papa tem a missão de incrementá-la na ordem espiritual.

Ademais, homem dotado de um grande poder e, por isso, ultra reverenciado, cortejado por todo mundo. Ele estava no ápice de toda espécie de hierarquia temporal, era a síntese e a personificação do país. Não se podia ser mais do que o rei.

…e o leproso, a abominação dos homens

No extremo oposto nós temos o leproso, considerado a abominação dos homens. Porque naquele tempo não se tinha o processo de cura ou de detenção da infecção leprosa, que hoje se conhece; e  quando um indivíduo era atingido por essa doença, consideravam- no irremissivelmente perdido.

No entanto, a lepra – ao menos em muitas de suas manifestações, frequentes naquele tempo – é uma doença lenta, que vai matando o indivíduo aos poucos e de um modo horroroso, porque ele  vai apodrecendo paulatinamente. As extremidades incham, entumecem e depois vão caindo de podres. Então, começam a cair os dedos, os artelhos, o nariz; as orelhas incham desmedidamente e  caem também… A pessoa torna-se uma espécie de chaga viva: o rosto todo, uma chaga; os olhos vermelhos, incandescentes, porque a lepra ataca o globo ocular. O leproso fica todo ele devorado  por essa putrefação que, naturalmente, acaba levando-o deste mundo.

Os antigos tinham horror à lepra, evidentemente. Por causa disso, afastavam o leproso do convívio humano. Estava, portanto, no extremo oposto de um rei procurado e admirado por todos. O leproso causava terror, fugia-se dele. Havia até a obrigação de ser internado num leprosário, e passar ali a vida inteira.

O processo de internamento de alguém em um leprosário era muitas vezes o seguinte: uma vez declarada leprosa pela autoridade competente, a pessoa era levada pela família à igreja, ficava  deitada num caixão de defunto e o padre recitava sobre ela orações especiais, declarando-a afastada do convívio social. Era conduzida, então, dentro do caixão aberto, em cortejo da aldeia até o  leprosário próximo. Depunham o caixão às portas do leprosário, e todos iam embora. Ali moravam apenas leprosos e um ou outro padre, freira, ou leigo de alma heroica, que lá viviam para ajudar  aqueles desventurados.

Assim, o leproso imergia naquele inferno vivo pelo medo que a sociedade tinha de que ele se tornasse um foco de contágio.

Vemos, assim, como o leproso e o rei estão em extremos opostos. Ora, aprouve à Providência Divina suscitar no Oriente, como uma das mais altas figuras do mundo das Cruzadas decadentes, um rei leproso.

Um rei leproso, protótipo do guerreiro

A figura de um rei leproso é dramática. Um homem que carrega consigo uma doença da qual todo mundo tem medo, mas que, pelo jogo das circunstâncias, deve ficar no seu cargo, pois ele sabe que assim fará à Igreja um bem que em meio àquela decadência nenhum outro realizaria.

Então ele é, ao mesmo tempo, procurado e tido com horror por todas as pessoas.

Vivendo no esplendor de um palácio, cercado de todo aquele luxo, ele é o podre, o horripilante, o verme posto no meio da flor. É a contradição entre o fausto que o rodeia e a hediondez da  decrepitude física de um homem que vai apodrecendo em vida.

Apesar da lepra, esse homem, por amor à Igreja Católica, deu todas as provas de vigor físico, combatendo como qualquer guerreiro, e na vanguarda, metendo terror nos seus adversários, de tal maneira ele foi grande batalhador! Enfrentando, de outro lado, provações terríveis, porque ele carregava o peso enorme de sustentar uma avalanche que caía.

Era um mundo todo deteriorado, moralmente leproso, contra o qual ele devia reagir. Os íntimos, os próximos dele não valiam dois caracóis. Apesar de tudo, ele precisava manter em pé o  estandarte da Cruz no Oriente Próximo durante toda a vida dele.

Veremos, então, desenrolar-se a tragédia desse rei leproso – Balduíno IV, último monarca de Jerusalém, reino do qual o primeiro rei foi Godofredo de Bouillon –, com manifestações de heroísmo fantásticas e de uma dedicação à Causa Católica extraordinária, que fazem dele o protótipo do cavaleiro, do guerreiro, do rei e do leproso. Numa palavra só: o protótipo do católico, porque ele  carregou com coragem todas as crises, tudo quanto ele devia sofrer no seu pobre corpo chagado e na sua alma.

Uma forma de silêncio que só pesa sobre os esplêndidos

Comentarei algumas notas biográficas tiradas do livro Os Templários, de Georges Bordonove (1). Nada na história das Cruzadas é mais  emocionante que o reino doloroso de Balduíno IV.

A meu ver, ele poderia se chamar o “rei das dores”, porque o reino dele foi um reino doloroso, e ele teve o reinado das dores. Todas as dores confluíram nele. Nada, entre os vários exemplos  famosos, pode atestar melhor o império de um espírito de ferro sobre a carne débil. Este foi um rei sublime, de que os historiadores tratam só de passagem. O que faz perguntar por que, até aqui, nenhum escritor nele se inspirou, exceto talvez o velho poeta alemão Wolfram von Eschenbach. Nem o romance, nem o teatro o invocam e, entretanto, sua breve existência, cheia de  acontecimentos coloridos, forma uma apaixonante e dilacerante tragédia.

Isto mesmo indica ter sido um homem muito bom. Porque o quadro seria por demais tentador para uma peça de teatro, um filme, uma biografia, uma leitura espiritual. Se a memória desse  homem está de tal maneira posta à margem, quando poderia tanto dar pretexto para escritores famosos se tornarem ainda mais célebres, é evidentemente porque ele foi ótimo. Esta forma de  silêncio só pesa sobre os esplêndidos, e já equivale, por si mesma, a uma presunção de canonização.

Brincando de batalha, não sentia as machucaduras

O destino sorria à sua infância. A palavra destino é péssima. A Providência é que sorria à infância dele. Robusto e belo. Ele era dotado de inteligência aguçada, de sua raça angevina.

Quer dizer, a família dele era nobre, procedente de Anjou, na França. Tinha se dado a ele por preceptor Guilherme de Tiro, que se tomou de uma grande preocupação e dedicação, como é  conveniente a um filho de rei.

Portanto, ele foi educado esmeradamente. O pequeno Balduíno tinha muito boa memória, conhecia suficientemente as letras. O que não era tão frequente na nossa querida Idade Média. Retinha muitas histórias, e as contava com prazer.

Um dia… Aí começa a tragédia.

…em que brincava de batalha com os filhos dos barões de Jerusalém, descobriu-se que tinha os membros insensíveis. Os outros meninos gritavam quando se lhes feria. Balduíno, porém, não dizia  uma só palavra.

Esse fato se repetiu em muitas ocasiões. A tal ponto que o Arcediago Guilherme alarmou-se. Primeiro pensou que o menino fazia uma proeza, desprezando queixar-se. Então, dirigindo-lhe a palavra perguntou porque sofria aquelas machucaduras sem se queixar. O pequeno respondeu que as crianças não o feriam, ele não se ressentia em nada dos arranhões. Então o mestre examinou  seu braço e sua mão, e certificou-se que estavam adormecidos.

O primeiro sintoma da lepra é a diminuição da sensibilidade. Era o sinal evidente da lepra, doença terrível e incurável naquele tempo. Os médicos aos quais foi confiado não podiam sustar a  infecção, nem mesmo retardar a lenta decomposição que afetaria as suas carnes. Toda a sua vida não foi senão uma luta contra o mal irredutível.

Por duas vezes, fez com que Saladino fugisse

E mais ainda, muito mais, foi testemunha dos poderes de um homem sobre si mesmo, e a encarnação assombrosa dos seus mais altos deveres. Balduíno IV foi rei digno de São Luís, um santo, um homem, enfim, e é isto que, sobretudo, importa à nossa admiração sem reticências, a quem nenhuma desgraça chegou a destruir o vigor da alma, as convicções, a altivez, as qualidades de coração,  o senso da responsabilidade, dos quais ele hauria o revigoramento e a coragem.

Balduíno, no meio disso tudo, ainda era um homem não só corajoso, mas digno e altivo. Para se conservar digno e altivo nessas condições é preciso ter fibra de alma! No fim de 1174, Saladino,  senhor de Damasco, veio sitiar Alepo. Os descendentes de Noredim pediram socorro aos francos. Raimundo de Trípoli atacou a praça forte de Homs. Balduíno IV empreendeu uma avançada vitoriosa sobre Damasco.

Essas iniciativas fizeram com que Saladino abandonasse seu desejo inicial. Saladino era um grande guerreiro. Fugiu, por causa da pressão que Balduíno exerceu contra ele. Em 1176, o sultão  voltou à carga, e a mesma manobra sustou seus planos. Quer dizer, mais uma vez, Balduíno fez fugir Saladino.

Balduíno venceu seu exército em Damasco e Andujar, e trouxe um belo lucro da expedição. Nessa ocasião, ele tinha apenas 15 anos.

Nessa idade já era um tão famoso chefe de guerra!

Nos combates, reivindicava para si o lugar de perigo

Apesar de sua doença, cavalgava como um homem de armas. Empunhava eximiamente a lança. Sabe-se que a lepra debilita. Podemos imaginar o que é empunhar uma lança numa batalha? Toda espécie de movimentos, que força isso significa! Com o pretexto de ser leproso, ele podia ficar perfeitamente na retaguarda. Mas reivindicava para si, eximiamente, o lugar de perigo.

Nenhum dos seus predecessores teve tão cedo semelhante noção da dignidade real de que estava investido, e de sua própria finalidade. Ou seja, ele foi precocíssimo no compreender qual era a  nobreza de um rei.

Percebendo as rivalidades existentes entre os que o cercavam… Entre os católicos, portanto. Era a putrefação do espírito católico naquele tempo. …compreendeu quão necessária era sua presença  à cabeça dos exércitos católicos.

Mas que calvário deveria ser o seu! Aos sofrimentos físicos, ajuntava-se a angústia moral. Seu estado o impedia de se casar, de ter um descendente. Ele não era senão um morto vivo, um morto  coroado, cujas pústulas e purulências se disfarçavam sob o ferro e sob a seda. Mas que se mantinha de pé, que se lançava à ação, movido não se sabe por que sopro milagroso, por que alta e  devoradora chama de sacrifício!

Era, pois, inexplicável aos olhos de todo mundo como esse homem lutava.

Por sagacidade, deixa Jerusalém desguarnecida

Um novo Cruzado acabava de desembarcar. Chamava-se Filipe de  Alsácia, Conde de Flandres, e parente próximo de Balduíno. O problema de Balduíno era o seu sucessor. Se ele tivesse um filho, poderia educá-lo como quisesse. Era básico que houvesse um  sucessor da categoria dele para manter o estandarte da Cruz na Terra Santa. Mas ele não teria sucessores descendentes dele. Seriam parentes, e que parentes… Assim, ele via não só a lepra  destruir-lhe o corpo, mas sua obra meio fadada a desaparecer, como desapareceu, e ele retardando algo que não conseguiria evitar. Apesar disso, com uma coragem prodigiosa, ele resistiu.

O pequeno rei esperava muito desse apoio. Estava claro que era necessário ferir Saladino no coração de seu poder, isto é, no Egito, se se quisesse abalar a unidade muçulmana. Mas isso precisamente era o que propunha o Basileu, Imperador de Bizâncio.

O Egito, uma vez conquistado em parte, Damasco não poderia deixar de subtrair-se ao poder cambaleante de Saladino. Mas Filipe de Alsácia opinava de outra forma.

Ninguém lhe poderia impedir de guerrear na Síria do Norte. E, o que era mais grave, de levar consigo parte do exército franco. Saladino respondeu invadindo a Síria do Sul. Balduíno reuniu o que lhe restava de tropas, desguarneceu audaciosamente Jerusalém, e partiu para Ascalon, onde Saladino investia. Este, logo que foi informado, subestimou seu adversário. Ele acreditava que a queda  de Ascalon era uma questão de dias, e marchou sobre Jerusalém, com o grosso de seu exército.

Prosterna-se com o rosto na areia diante do Santo Lenho

Balduíno compreendeu suas intenções e  saiu de Ascalon. Fez um longo périplo e caiu, repentinamente, sobre as colunas de Saladino em Montgisard.

O efeito da surpresa não compensou a desproporção dos efetivos em luta. Balduíno sentiu a hesitação dos seus. Desceu então do cavalo, prosternou-se com o rosto na areia diante do madeiro da verdadeira Cruz, que era levado pelo Bispo de Belém. Orou com a voz cheia de lágrimas. E, com o coração convertido, seus soldados juraram então não recuar, e considerar traidor aquele que  voltasse atrás.

Rodeando o Santo Lenho, o esquadrão de trezentos cavaleiros se lançou impetuosamente. O vale entulhava-se com a bagagem do exército de Saladino, diz o “Livro dos Dois Jardins”. Os cavaleiros  francos surgiram ágeis como lobos, latindo como cães. Atacavam em massa, ardentes como chamas. E puseram em fuga o invencível Saladino que, se salvou a própria pele, foi graças à rapidez de  seu cavalo e ao devotamento de sua guarda. Retornou ao Egito, abandonando milhares de prisioneiros. Balduíno logrou, enfim, uma vitória sem precedentes.

Com apenas 300 homens, obtém vitória contra Saladino

Essa vitória merece uma pequena análise. Para isso, relembremos rapidamente os acontecimentos narrados: Saladino foi sitiar a cidade de Ascalon, e Balduíno IV julgou que podia pegá-lo lá.

Então, para salvar Ascalon, desguarneceu Jerusalém. Saladino, percebendo que a capital do reino e a Cidade Santa dos católicos estava desguarnecida, saiu às pressas de Ascalon e foi atacar  Jerusalém, certo de que tinha levado vantagem sobre Balduíno. Este contava apenas com trezentos homens. Ao ver que Jerusalém seria cercada, resolveu interceptar o exército de Saladino no  caminho entre Ascalon e Jerusalém. Quando os guerreiros católicos viram aquela multidão de maometanos, não tiveram coragem. Temos, então, a cena épica: o rei leproso que desce de seu  cavalo, prosterna-se com o rosto na areia, diante do Santo Lenho, e pede a Nosso Senhor Jesus Cristo, por meio de Maria, enquanto Rei de Jerusalém, que não permita que a Cidade Santa pereça.

Vem uma dessas graças sobrenaturais que não se podem explicar senão por um verdadeiro sopro do Espírito Santo, uma verdadeira Pentecostes pequena, por onde todos mudam completamente.

Ele se levanta, e trezentos soldados apenas, chefiados pelo rei leproso – com que dores, com que sacrifícios, mas com que vigor de alma, com que zelo! –, investem sobre os maometanos. A  investida é tremenda. Inclusive usaram o recurso de guerra psicológica: ladravam para meter medo. Saladino não pôde resistir, teve que fugir a galope para o Egito. E uma das mais famosas  batalhas da Terra Santa foi assim ganha pelo rei leproso.

O Varão de todas as dores teve uma consolação pensando no “rei das dores”

Vejam como nós devemos meditar a respeito dos mistérios de Nosso Senhor Jesus Cristo. O Divino Redentor, pregado na Cruz, conhecia todo o futuro; e no meio das tristezas sem conta que Ele  tinha a propósito do porvir, sabia que destino teria cada um dos fragmentos do Santo Lenho, daquela Cruz que Ele estava tornando sagrada pelo seu sacrifício, pois ali estava derramando o seu Sangue.

Nosso Senhor Jesus Cristo foi comparado pelo Profeta Isaías a um leproso tão chagado que, do alto da cabeça até a planta dos pés, não havia n’Ele nada que estivesse sadio. Do alto da Cruz, o  Divino Leproso previu que um dos fragmentos do Santo Lenho seria adorado por um filho leproso, em certa ocasião, no deserto.

O Redentor conheceu e ouviu o brado de entusiasmo dos guerreiros francos; contemplou a adoração angélica daquele homem que estava com o rosto em terra, bradando o seu “Quis ut Deus!” para  altar por cima dos maometanos. E o Divino Salvador Se consolou. O Homem de todas as dores teve uma consolação no alto da Cruz, pensando naquele “rei das dores”. Balduíno arrancou algo à maneira de sorriso dos pobres lábios “leprosos” de Nosso Senhor Jesus Cristo expirante.

Devemos desejar ter a alma como a de Balduíno IV

Foi só isso? Não. Nosso Senhor Jesus Cristo  também sabia que no dia 21 do mês de outubro de 1972 essa epopeia seria lembrada. E que os filhos recrutados, pela intercessão de Maria, para defenderem a causa d’Ele no século XX, haveriam  de se embevecer, sabendo que, a propósito do Rei Balduíno IV, Nosso Senhor também Se lembraria deles. E o consentimento de alma que damos à epopeia de Balduíno também consolou nosso  Divino Redentor no alto da Cruz.

De 1174 para 1972, que enorme espaço de tempo! Pois bem, passaram- se os séculos, essa história dormiu na poeira de quantos livros, na indiferença de tantos homens, mas ela estava reservada,  como uma joia, para uma meditação que nos fizesse desejar ter a alma como de um Balduíno, ainda que fracos de corpo, fortes de alma dessa maneira, e com essa confiança invencível que  Balduíno possuía. Só com trezentos combatentes, com um corpo chagado e leproso, ele teve, entretanto, a graça de receber um sopro do Espírito Santo para si e para os seus, e alcançar essa vitória extraordinária. Um dos mais belos feitos da Civilização Cristã!

(Continua no próximo número)

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 21/10/1972)

1) Cf. BORDONOVE, Georges. Les Templiers. Paris: Librairie Athème Fayard, 1977. c. XII, p. 108-111.

Do mais alto dos Céus, desce até nós, misericordiosa e benigna

Disse Nosso Senhor que “todo o que se humilha será exaltado” (Lc 14, 11). Ora, Maria Santíssima, afirmando ser escrava de Deus, humilhou-Se além de todo o limite. Por isso foi elevada ao mais alto dos Céus, ocupando um lugar que nenhuma outra mera criatura, abaixo do Homem-Deus, alcançará.

Assim, o verdadeiro escravo de Nossa Senhora, ao invocá-La, deve ter presente as magnificências de que Deus A revestiu. E, portanto, nunca se dirigirá a Ela senão com sumo respeito, suma admiração e suma confiança. Confiança, sim, porque sendo Maria a mais alta e eminente de todas as criaturas, é também a mais benigna, misericordiosa, afável e a que mais desce até nós.

A grandeza da Santíssima Virgem é tão imensa que preenche todos os espaços, por enormes que sejam, que vão d’Ela até o último dos homens. Embora entronizada no alto dos Céus, Ela nos é mais acessível, está mais disposta a nos atender e a nos perdoar. No seu insondável e fixo amor para com os degredados filhos de Eva, podemos e devemos ter uma total confiança.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 16/6/1972)/
Revista Dr Plinio 245 (Agosto de 2018)

Rainha da Contra-Revolução

Nossa Senhora enquanto Rainha dos Anjos é a Rainha da Contra-Revolução. Ela dirige a Contra-Revolução dos Anjos que atuam sobre nós e os acontecimentos da Terra, de maneira a se passar tudo como Ela quiser.

Maria Santíssima tem todos os matizes, todas as glórias, todas as cores, todas as belezas da Contra-Revolução. É a Imaculada Conceição esmagando a cabeça da serpente, a Rainha dos Anjos que comanda o exército angélico, como o exército dos Santos – “Regina Sanctorum Omnium”, Rainha de todos os Santos. É a Rainha dos contrarrevolucionários, nossa Mãe, que nos guia e nos ama especialmente por esta razão. E Nossa Senhora é o arquétipo da virtude dos anjos que, tendo decaído, terminaram por ser lançados no Inferno, e que devemos substituir no Céu. Assim, há um nexo especial entre nós e Ela.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 28/5/1988)

Bendito o dia que viu Nossa Senhora nascer!

Segundo a Liturgia, foi no mês de setembro que, há mais de vinte séculos, veio ao mundo a Mulher destinada a ser Mãe do Divino Salvador. Ao recordar esse nascimento entre todos venturoso  para o gênero humano, Dr. Plinio teceu os piedosos e admirativos comentários que ora transcrevemos.

 

O nascimento de Nossa Senhora trouxe para a humanidade um valor que, devido à falta de nossos primeiros pais, era então desconhecido: uma criatura isenta de qualquer mancha, um lírio de incomparável formosura que deveria alegrar os coros angélicos e a terra inteira. Era, em meio ao exílio do gênero humano corrompido, o aparecimento de um ser imaculado, concebido sem  pecado original.

Considere-se ainda que Nossa Senhora trazia consigo todas as riquezas naturais que podem caber numa mulher. Deus lhe concedeu uma personalidade valiosíssima, e, a esse título também, sua  presença entre os homens representava um tesouro verdadeiramente incalculável.

Entretanto, se aos dons naturais acrescentarmos os tesouros das graças incomensuráveis que com Ela vinham, as maiores que Deus Nosso Senhor tenha concedido a alguém, podemos compreender o enorme significado de seu advento ao mundo. O nascer do sol é uma pálida realidade em comparação com a resplandecente aurora que foi o aparecimento de Nossa Senhora nesta   terra! A entronização mais solene que se possa imaginar de um rei ou de uma rainha, ou os fenômenos da natureza mais grandiosos, nada são diante do nascimento de Maria, momento bendito  certamente saudado pela alegria de todos os Anjos do Céu, e pode-se conjecturar que tenha provocado inusitados sentimentos de júbilo nas almas retas esparsas pela terra.

Esse sentimento de alegria bem pode ser expresso com uma paráfrase das palavras de Jó: “Bendito o dia que viu Nossa Senhora nascer, benditas as estrelas que A viram pequenina, bendito o  momento em que veio ao  mundo a criatura virginal destinada a ser Mãe do Salvador!”

O início de nossa redenção

Se se pode dizer que a redenção dos homens teve início com o nascimento de  Nosso Senhor Jesus Cristo, pode-se afirmar que o mesmo se aplica — guardadas as proporções — à natividade de Nossa Senhora. Pois tudo quanto o Salvador nos trouxe, começou a nos vir com Aquela que O daria ao mundo.

Daí se compreendem todas as esperanças de salvação, de indulgência, de reconciliação, de perdão e de misericórdia que se abriram, afinal, para a humanidade, naquele bendito dia em que Maria nasceu nesta terra de exílio. Feliz e magnífico momento, marco inicial de uma existência insondavelmente perfeita, pura, fiel, e que seria a maior glória do gênero humano em todos os tempos,  abaixo apenas de Nosso Senhor  Jesus Cristo, o Verbo de Deus encarnado.

Afirmam muitos teólogos que, concebida sem pecado  original, Nossa Senhora foi dotada do uso da razão desde o primeiro instante de seu ser. Vivendo no seio de Sant’Ana como num tabernáculo,  á tinha, portanto, altíssimos e sublimíssimos pensamentos. Pode-se traçar um paralelo dessa situação com o que narra a Sagrada Escritura a respeito de São João Batista. Ele, que fora engendrado no pecado original, ao ouvir a voz de Nossa Senhora saudando Santa Isabel, estremeceu de alegria no seio de sua mãe.

É possível, assim, que a Bem-aventurada Virgem, com a altíssima ciência que recebera pela graça de Deus, já no seio de Sant’Ana tenha começado a pedir a vinda do Messias, estabelecendo-se, em  seu espírito, o elevadíssimo intuito de vir a ser, um dia, a servidora da Mãe do Redentor.

De qualquer modo, sua presença na terra era uma fonte de graças para todos os que d’Ela se aproximavam, quando ainda se encontrava no seio de Sant’Ana, e mais ainda depois de seu  nascimento. Se da túnica de  Nosso Senhor, como conta o Evangelho, irradiavam-se virtudes curativas para quem a tocasse, quanto mais da Mãe de Deus, Vaso de Eleição!

Recém-nascida e já vitoriosa sobre o demônio

A vinda do Salvador seria a derrota de todo o mal no gênero humano. Portanto, no bendito momento do nascimento da Santíssima Virgem, a vitória do bem começou a ser afirmada e o demônio a  ser esmagado, ele mesmo percebendo que algo de seu cetro estava irremediavelmente partido. Era Nossa Senhora já começando a influir nos destinos da humanidade.

O mundo de então achava-se prostrado no mais radical paganismo. Uma situação em tudo parecida com a de nossos dias: todos os vícios imperavam, todas as formas de idolatria tinham  dominado a terra, e a decadência ameaçava a própria religião judaica, que era o prenúncio da religião católica. Por toda parte, o erro e o demônio eram vitoriosos. Porém, no momento decretado por Deus em sua misericórdia, Ele derruba a muralha do mal, fazendo nascer Nossa Senhora. E com a vinda d’Ela — que era a raiz de Jessé, da qual nasceria o divino lírio, Nosso Senhor Jesus  Cristo — tinha início a irreversível destruição do reino de satanás.

“Nascimento” de Maria em nossa vida espiritual …

Esse triunfo de Nossa Senhora sobre o mal, já por ocasião do nascimento d’Ela, sugere-nos outra reflexão.

Quantas vezes, em nossa vida espiritual, vemo-nos imersos na luta contra as tentações, contorcendo-nos e nos revolvendo em dificuldades! E não temos ideia de quando virá o bendito dia em que  uma grande graça, um insigne favor, colocará fim a nossos tormentos, a nossas lutas, e, afinal, nos proporcionará um grande progresso na prática da virtude. É então que se verifica um como que  nascimento da Santíssima Virgem em nossa alma. Na noite das maiores provações e das mais espessas trevas, Ela surge e desde logo começa a vencer as dificuldades com que nos defrontamos.

Nesse momento, Ela se levanta também  como uma aurora em nossa existência e, em nossa vida espiritual, passa a representar um papel até então desconhecido por nós.  Esse pensamento nos  deve encher de alegria e de esperança,  e nos dar a certeza de que Nossa Senhora nunca nos abandona. Nas horas mais difíceis por que passamos, Ela como que irrompe entre nós, resolve todos os  nossos problemas, alivia nossas dores, e nos dá a  combatividade e a coragem necessárias para cumprirmos nosso dever até o fim, por mais árduo que este seja.

A maior consolação que Ela nos traz é, precisamente, o fortalecer nossa vontade, para empreendermos a luta contra os inimigos da nossa salvação.

… e nas tramas da história

Como nos fortalece, também, para nos tornarmos zelosos filhos da Igreja e defensores da religião católica. Elementos históricos existem para se poder afirmar que todas as grandes almas que  combateram as diversas heresias, ao longo dos séculos, foram especialmente suscitadas por Nossa Senhora. É o que insinua, de modo muito bonito, o brasão dos claretianos, onde, além do  Imaculado Coração de Maria, figuram São Miguel Arcanjo e a divisa: Os filhos d’Ela se levantaram e A proclamaram Bem-aventurada.

Esse levantar dos devotos da Santíssima Virgem para glorificá-La não é também uma forma de nascimento d’Ela, como magnífica aurora, nas tramas da história? Assim, os verdadeiros filhos de  Nossa Senhora devem desejar e pedir a Ela a graça de serem indomáveis e implacáveis contra o demônio e seus sequazes que, em nossos dias, procuram conspurcar a glória da imortal Igreja de  Cristo.

Plinio Corrêa de Oliveira

De ferro em ouro

São Luís Grignion de Montfort compara Nossa Senhora a uma fornalha ardente e contínua de amor de Deus, na qual todo ferro que nela se lança fica abrasado e se transforma em ouro (Tratado, nº 261).

Bela imagem, que nos deve encorajar na devoção à Santíssima Virgem: tributando-Lhe nosso amor e nossa confiança, Ela há de transformar por completo nossa alma — antes dura e fria como o  ferro — em ouro, em nobre metal incandescente de piedade e adoração a Deus.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 5/6/1972)

São Raimundo Nonato – "Os exemplos arrastam…"

São Raimundo Nonato, religioso mercedário, ofereceu-se para substituir alguns cristãos prisioneiros na cidade de Túnis.

Tendo sido aceita a proposta, iniciou-se para ele uma série de horrendos tormentos: seus lábios foram cruelmente perfurados e transpassados por um cadeado de ferro, para que assim não pudesse falar de Jesus Cristo aos carcereiros.

Após oito meses de atrozes sofrimentos, alguns mercedários de Espanha acudiram com o valor necessário para resgatá-lo.

Com fortaleza de alma inabalável, de volta a Europa, São Raimundo foi por toda parte — com os lábios mal cicatrizados e com dores horríveis — pregando a Cruzada.

A eficácia de sua pregação era incomparável, pois — ante este homem que em meio a tantos sofrimentos permaneceu inquebrantável e ainda mais cheio de ânimo e coragem — não havia quem não se sentisse arrastado a segui-lo.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 30/8/1967)