Gemendo e chorando neste vale de lágrimas…

A propósito de episódios ocorridos em sua infância, Dr. Plinio pondera como esta vida é um vale de lágrimas, onde os sofrimentos, dramas e problemas são inúmeros e muitas vezes procuram nos abater.

 

Na Salve Rainha, esta vida recebe o título de “vale de lágrimas”. Quando eu era jovem, ouvia na recitação da “Salve Regina” as palavras “in hac lacrimarum valle — neste vale de lágrimas”, e imaginava os vales que eu via frequentemente na serra existente no caminho de São Paulo a Santos, que naquele tempo se percorria de trem e não de automóvel.

São serranias altíssimas e, às vezes, se via no cimo de um morro brotar uma mina de água de dentro de uma pedra, a qual percorria a superfície da pedra vagarosamente, sem pressa, formando pela espuma como que uns babados de cortina. Tinha-se a impressão de uma cortina de prata com uns bordados de renda, que descia do alto do morro até embaixo.

Eu me lembrava do vale de lágrimas, e pensava: “Então essa vida é como a considera o autor da Salve Rainha(1)? Mas afinal de contas, se eu conseguir coisas desejáveis desta vida: ficar rico, ir à Europa para ver os monumentos do passado da Cristandade, a nobreza do presente, tomar contato com pessoas inteligentes e interessantes, que levam um tipo de existência toda especial, contemplar e oscular o caixão onde está sepultado Carlos Magno, ir à Place de la Concorde, em Paris, onde um amigo me mostrará qual o lugar exato onde estava a guilhotina em que Luís XVI e Maria Antonieta foram decapitados, rezar por eles, fazer um ato de execração contra o crime que então se cometeu, e de desagravo a Deus pelo horror desse crime, e depois continuar o passeio, isso não proporciona felicidade? É um vale de lágrimas ir a Paris, a Roma ou a Madri? Ou, pelo contrário, a afirmação que se faz na Salve Rainha, é equivocada?”

Quando fiquei um pouco mais velho, compreendi.

Tudo na Terra é efêmero e passageiro

Não é que a todo o momento esteja acontecendo uma coisa que nos arranque lágrimas; isso evidentemente não é verdade, graças a Deus. Mas quando ficamos um pouco mais velhos, começamos a pensar no passado e percebemos as ciladas pelas quais passamos já quando éramos meninos. Quantas ilusões, quantas desilusões, quantos “bluffs”, quantas esperanças rachadas!

Mais tarde conhecemos pessoas — será um colega, um parente, um vizinho — que nos parecem pessoas perfeitas, e pensamos: “Se ficar amigo deste, eu terei a minha alma completamente satisfeita.” Aproximamo-nos dele e começamos uma amizade. De repente vemos que tudo é ilusão.

Por quê? Como? Ele, de quem sou tão amigo, é de fato meu amigo? Ou, pelo contrário, quando vê qualquer coisa em mim um pouquinho superior a ele, fica ácido comigo? Se fosse meu amigo, se contentaria, se alegraria em ver-me superior a ele em algum ponto. Mas não: ele começa a querer mesquinhar o que estou fazendo ou dizendo, a caçoar, debicar e, sob pretexto de brincadeira, saem coisas amargas. Esse não é meu amigo, vou procurar outro; e constatamos que tudo é ilusão.

O tempo passa e nos lembramos da expressão francesa: “Tout passe, tout casse, tout lasse… et tout se remplace — Tudo passa, tudo se quebra, tudo enfastia… e tudo se substitui”. Quer dizer, tudo é efêmero. A previsão do futuro aliada à lembrança das desilusões do passado constitui um vale de lágrimas.

Uma desilusão nos tempos de infância

Lembro-me de um episódio de meu tempo de menino de colégio, e que me marcou profundamente. Eu vinha do Colégio São Luís, situado na Avenida Paulista, descendo a pé pela Avenida Angélica até minha casa nos Campos Elíseos, conversando com um colega de minha idade que me parecia um bom rapaz.

Por uma razão da qual não me recordo, nós tínhamos sido os primeiros a sair do colégio, de maneira que íamos na frente; depois outros grupos de alunos vinham descendo por aquela avenida. De repente ouço, bem atrás de nós, um menino que chamava por aquele que estava ao meu lado:

— Fulano! Fulano!

Olhei com o canto dos olhos para o que vinha ao meu lado, para ver o que ele fazia. Ele não respondia e fingia que não estava ouvindo. Mas o outro corria, enquanto nós dois não estávamos correndo, porque nunca gostei de andar muito depressa; eu caminhava devagar, e ele acertava o passo pelo meu.

Resultado: a voz do menino chamando pelo meu companheiro era cada vez mais insistente. Percebia-se que se tratava de um amigo que gostava muito dele e queria estar com ele para conversar. Poderíamos perfeitamente descer conversando os três, é uma coisa banal. Eu nem tinha notado aquele menino no Colégio São Luís, no meio daquela multidão de alunos, mas pouco me incomodava; e pensava: “Deixa entrar um outro na conversa, não tem importância nenhuma”.

O meu amigo, afinal, quando notou que a voz estava se tornando mais próxima, parou, voltou-se de costas e disse num tom amargurado:

— Hum! Mas que pressa e que mania de falar comigo, que coisa cacete! O que quer comigo esse tipo?

Pensei: “Mas ele retribui uma simpatia desta maneira? Amanhã vai chegar minha vez. Ele de repente fica saturado da minha companhia como se saturou daquele menino. Isso é um amigo?”

E o que se deu foi o contrário: antes dele se saturar da minha companhia, eu me saturei da dele e rompi as relações com ele como se arranca uma folha morta de uma árvore.

Quando se vai ficando moço compreende-se como as dificuldades, as incompreensões e as incompatibilidades pelas quais passam os adultos são ainda mais difíceis. Mesmo no seio de uma família feliz aparecem problemas que preocupam o esposo ou a esposa.

Tudo isso se dá porque a vida é um vale de lágrimas. Lágrimas ora pelo que está acontecendo, ora na previsão do que pode vir a suceder.

O tormento trazido por uma doença

Por exemplo, as doenças. Às vezes ouvimos falar de alguém que contraiu um horrível mal, que o faz sofrer muito. São verdadeiros fantasmas. Precisamos entender que de um momento para outro uma doença dessas nos agride.

Algo assim se passou comigo quando eu era pequeno. Acordei fraquíssimo pela manhã. Isso não acontecia comigo; como todo menino, eu acordava alegre, me levantava, ia dizer bom-dia a papai, mamãe, aprontava-me e começava a vida. Nesse dia eu não conseguia nem sentar-me na cama.

Sendo meu quarto contíguo ao dos meus pais, pus-me a chamar:

— Mamãe, mamãe — e ela veio.

Eu disse a ela:

— Estou me sentindo muito mal. Não sei o que eu tenho.

— O que você sente?

— Uma dor de garganta horrorosa.

Ela mandou-me abrir a boca, viu que eu estava com uma inflamação medonha na garganta e chamou o médico. Este era homeopata. Tratava-se de um homem alto, teso, saudável, rubicundo, vermelho, tendo num dos dedos um anel com uma esmeralda linda. A esmeralda era o distintivo dos médicos. Eu, que gosto muito de pedras, quando estava com ele nunca perdia oportunidade de olhar para a esmeralda.

Ele entrou no meu quarto, examinou-me e saiu com mamãe.

Eu não fiquei sabendo o que eu tinha, e estava piorando cada vez mais.

Logo depois, ela veio e me contou que o médico disse a ela o seguinte: “A senhora dê para o Plinio tais remédios de hora em hora. Pouco antes das três da tarde, esteja próxima a ele com uma toalha no colo, pois nesta hora ele deve expelir da garganta uma membrana infeccionada. Ele está com uma doença chamada crupe ou angina diftérica. Se ele expelir a membrana, está curado. Quando ele a expelir, feche a toalha porque a membrana está infeccionada; e mande queimar a toalha com a membrana e tudo o mais. Aí o Plinio está salvo. Se não for assim, terá que se fazer uma operação muito dolorida e perigosa”.

Quando chegou mais ou menos três horas, comecei a dar sinais de mal-estar, inquietação. Ela, que era muito previdente, tinha mandado abrir no quintal da casa uma espécie de tumulozinho para essa membrana. Os micróbios ficariam sepultados ali debaixo da terra.

Quando afinal de contas expeli a membrana, ela mandou uma criada ir correndo jogar nesse lugar a toalha com a membrana e pôr terra em cima, o que foi feito rapidamente. Depois ela foi falar pelo telefone com o médico, para contar que estava tudo em ordem.

Quando o médico atendeu desde o seu consultório, mamãe disse a ele:

— Dr. Murtinho…

— Não precisa me dizer o resto porque pela sua voz eu já vejo. A senhora está contente porque a membrana foi expelida.

— Muito obrigada, foi um alívio.

Pode-se imaginar o que ela sofreu durante essas horas. Sofreu muito mais do que eu —não tem comparação! —, na previsão do que podia acontecer. Essa previsão é um tormento, a vida é mesmo um vale de lágrimas.

Por isso, a única esperança verdadeira que o homem tem nesta vida é a de, no momento em que fechar os olhos com a consciência em paz, alcançar a felicidade eterna. v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência  de 24/9/1994)
Revista Dr Plinio 174 (Setembro de 2012)

 

1) A autoria da Salve Rainha é atribuída ao monge Germano Contracto que a teria escrito por volta de 1050, no mosteiro de Reichenan, na Alemanha.

 

Corpo humano e sistema feudal

Dr. Plinio não tinha uma mentalidade livresca, mas analisava detalhada e profundamente a realidade, para depois elevar-se à teoria. Comentando diversos aspectos de regiões da Espanha, ele tira luminosas conclusões a respeito da sociedade, a qual, assim como o corpo humano, deve ser organizada feudalmente.

 

Para considerarmos os diversos regionalismos espanhóis, tomemos como exemplo a Galícia. No meu modo de entender, existe uma forma de ser, uma espécie de alma galega, distinta da alma espanhola. Nessa espécie de espírito regional de um órgão da Espanha, chamada Galícia, existe uma mentalidade, uma peculiaridade própria feita para se desenvolver de um modo incompleto com vistas a se fundir num todo maior denominado Espanha.

Galícia, Catalunha, Guipúscoa

Qual o valor, o alcance ontológico da autonomia dessa região? É uma vida própria de um povo que deveria, normalmente, ter chegado a ser independente e autônomo, e sobre o qual a Espanha pesa como um manto de chumbo?

Ou, pelo contrário, a Espanha é um rio do qual a Galícia é um confluente? E esse confluente é feito para morrer no rio principal, fundir-se com ele? Então estes regionalismos não seriam feitos para ter todo o seu desenvolvimento, mas para possuírem uma vida meramente local, fundida numa vida geral?

Todo o problema das autonomias na Espanha tem sua raiz nesta questão. E quando isso não é devidamente considerado, nascem os mal-entendidos.

É possível que alguns desses regionalismos tivessem se desenvolvido quase a nível nacional, fazendo de certas regiões quase nações, e outras que realmente não tendiam a isso. Por exemplo, a Catalunha tem, mais do que a Galícia, ares de uma nação que não chegou a se realizar inteiramente.

Há, portanto, regiões da Espanha que dão a impressão de que talvez, no curso normal da História, deveriam ter tido um desenvolvimento para se tornarem quase completamente nações independentes, com cultura, vida, autonomia quase próprias. Quanto a outras regiões, entretanto, tem-se a impressão de que dariam para uma coisa menor, com formas ou graus de vitalidade diversos.

Por exemplo, Guipúscoa(1), uma região tão pequena, mas com autonomias próprias. Quem julgasse que isso não deve ser assim, faria o papel de alguém que achasse feio o miosótis. Esta é uma flor naturalmente pequena, o que é muito diferente de uma flor que por natureza deveria ser grande, mas nasceu doente. A saúde do miosótis consiste em ter aquele tamanho, com aquele azul forte por onde ele afirma sua presença na ordem do real, de um modo encantador.

Guipúscoa é um miosótis dentro do jardim que é a Espanha.

A alma de uma nação

Essas considerações nos colocam diante do seguinte problema:

Aquilo que nós chamamos a alma de uma nação, ligada à sua psicologia, constitui um todo. A língua e a cultura dessa nação são a expressão da existência real desse todo. Essa alma não existe no sentido pampsiquista ou panteísta da palavra, mas também não se trata de uma mera figura. Há algo próprio a todos os espanhóis no sentido físico, e até étnico da palavra, que constitui um traço comum, orgânico, formando uma psicologia comum.

Essa alma formaria uma cultura, uma civilização, e tem diante de Deus um quê de comum pelo qual ela é capaz de pecar ou praticar virtudes. E isso se deve ao fato, não de que há uma alma ontologicamente distinta das outras, mas é porque esse traço comum existente em toda a nação faz com que esta, às vezes, pratique solidariamente uma virtude ou um pecado. E haja então uma punição ou um prêmio para a nação nesta Terra, pois esse todo não vai ser premiado nem castigado na eternidade.

Temos, assim, a ideia de um certo modo de encaixe da vida. Seria muito útil, debaixo do ponto de vista didático, se pudéssemos mostrar que algo de análogo se dá entre as células e os órgãos, e entre estes e o organismo, porque convenceria muito mais as pessoas da realidade do quadro que acabo de traçar.

Creio que levaria até mesmo os cientistas a explicarem melhor as inter-relações existentes entre as células, órgãos e organismo, e chegaríamos a uma explicação melhor do feudalismo, e do que teve de errado o Estado unitário inaugurado pela monarquia absoluta no “Ancien Régime”(2).

Duas sinfonias

Existe um “principium vitæ”(3) próprio a cada célula. Este princípio corresponde a uma alma, não espiritual, mas biológica. Assim, um órgão seria uma “sinfonia” de milhões de princípios de vida menores, autônomos que, criados por Deus de um modo especial, fazem uma “sinfonia” correspondente ao tipo de vida próprio do órgão, que não é inteiramente o mesmo tipo de vida próprio ao organismo. Este, por sua vez, tem uma espécie de “principium vitæ” atuando em cada célula. De maneira que cada célula seria portadora de seu próprio princípio de vida e de algo do “principium vitæ” do organismo.

Aliás, a possibilidade de se fazerem transplantes de órgãos e de se conservar com vida um membro amputado, por algum tempo, fora do corpo, depõe a favor da existência desse outro “principium vitæ”, além da alma espiritual. Um princípio de uma qualidade tão inferior que o membro ou o órgão não resiste muito tempo fora do organismo, mas este princípio existe.

Isto serve para exemplificar como é o feudalismo e a sua necessidade, pois sendo a natureza tão bem constituída por Deus e havendo no corpo humano tantos elementos análogos à sociedade humana, é compreensível que esta peça para ser organizada feudalmente, por uma razão científica semelhante àquela pela qual o corpo humano constitui um sistema feudal.

Erraria quem visse o feudalismo apenas nobiliarquicamente. Sem dúvida, ele é um conjunto que possui a sua parte nobiliárquica como um componente muito importante, mas contém um mundo de outros corpos, mais ou menos autônomos, com vida própria. Por exemplo, as universidades.

A Igreja é a vida dos Estados

O grande organismo que permanece fora, acima e no fundo dessa estrutura, é a Igreja com sua influência. Ela é uma entidade tão soberana quanto o Estado, mas de uma soberania mais augusta, porque sobrenatural, enquanto a soberania do Estado vem de Deus, mas por ordem da natureza, e não da graça.

A Igreja vive dentro de todos os Estados ao mesmo tempo, e o Estado, enquanto tal, não vive dentro da Igreja, embora possa ser um Estado católico. Por exemplo, não posso dizer: a Espanha é membro da Santa Igreja Católica. Enquanto nação, não é. Os espanhóis, sim, são membros da Santa Igreja Católica.

Então, os Estados não vivem na Igreja, mas esta vive nos Estados e é a vida dos Estados. E a Igreja, que bem compreendida é inimiga da República Universal, é, entretanto, uma sociedade internacional sobrenatural imensa que realiza a mais radical e perfeita universalidade que se possa e se deva desejar. Daí o fato de toda a estrutura hierárquica da Igreja não estar sujeita às leis penais do Estado.

Contudo, isso é assim em certos pontos, em outros não. Por exemplo, numa igreja em torno da qual haja um jardim onde, de vez em quando, se faça uma festa beneficente e outros atos do gênero, o Estado tem o direito de exigir da Igreja que mantenha limpo, decoroso e belo esse jardim. Nesse pormenor, a Igreja não é independente. É uma das razões pelas quais o clero fazia parte dos Estados Gerais(4). É uma complexidade lindíssima, e que é preciso saber admirar. v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 8/8/1991)
Revista Dr Plinio 198 (Setembro de 2014)

 

1) Província do País Basco, localizada no Norte da Espanha.

2) Do francês: Antigo Regime. Sistema social e político aristocrático em vigor na França entre os séculos XVI e XVIII.

3) Do latim: princípio de vida.

4) Órgão político de caráter consultivo e deliberativo constituído por representantes do clero, da nobreza e do povo.

A beleza da hierarquia angélica

Dr. Plinio tinha um apreço especial pelo estudo sobre os Anjos e grande devoção a eles. Comentando alguns trechos de um livro de Dionísio Areopagita, analisa a ordem, a atividade dos espíritos angélicos e faz aplicações desse tema aos indivíduos, à sociedade, a áreas de civilização e até mesmo a épocas históricas.

 

Dionísio Areopagita, em seu Tratado da hierarquia celeste, descreve uma concatenação dos Anjos, apresentada por ele como a ordenação perfeita do ser criado. O puro espírito criado não teria necessariamente aquela ordenação, mas ele não está longe de dizer — ou até mesmo afirma — que os traços essenciais da ordenação são aqueles.

A multiplicidade das criaturas

O cabide que carrega todo o tema tratado por Dionísio é: uma vez que Deus criou, não poderia deixar de criar vários seres.

São Tomás defende essa tese: O Altíssimo não poderia criar um só ser, porque nenhum ser único tem suficientes qualidades para refletir adequadamente as perfeições do Criador. Ora, a ordem do criado precisa refletir a Deus globalmente e não apenas em um de seus traços.

Então, esquematizando, seria o seguinte:

  1. A ordem do criado tem que refletir a Deus globalmente, e não apenas em uma de suas perfeições.
  2. Refletir a Deus globalmente é algo de tão grande, que não pode ser feito por uma criatura, mas por várias, portanto por um universo, quer dizer, por um conjunto de criaturas que esteja em condições de dar esse reflexo global do Criador.
  3. Deus dispôs que essas criaturas fossem muitíssimas e dotadas de propriedades cujo conjunto, de fato, refletisse a Ele.

Não me parece necessário que o número de seres fosse esse, nem que as criaturas fossem exatamente como são. Podiam ser criaturas numa quantidade diferente, cuja disposição e o inter-relacionamento entre elas adequadamente refletissem a Deus, num modo pelo qual os Anjos não refletem. Mas o Criador dispôs que fossem assim. Isso equivale a julgar que haveria outros universos possíveis. Isso é uma coisa que me parece absolutamente certa.

A ordem na sociedade humana deve ser análoga à existente entre os Anjos

Contudo, uma vez que Deus criou esse número de Anjos com essa natureza, não podia deixar de ser que eles estivessem ordenados como estão. Quer dizer, eles já foram criados assim em vista a refletir o Criador. E a ordenação, o inter-relacionamento entre eles, uma vez que são assim, seria necessariamente esse.

E como a tarefa das criaturas consiste em refletir a Deus não só sendo, mas agindo sobre outros, essas criaturas não podiam existir enclausuradas sem terem contato umas com as outras. Tinham que se relacionar para que essas qualidades, esses predicados divinos se articulassem e representassem um só todo.

Essas criaturas, assim articuladas, teriam que desempenhar um papel que, esquematicamente, é o papel que Dionísio atribui aos Anjos porque, na ordem absoluta do ser, um é aquele conhecimento amoroso dos Serafins, outro é aquela inteligência dos Querubins, outro é aquele poder dos Tronos, e assim por diante.

Como nós, homens, estamos no mesmo universo que os Anjos, fazemos parte da mesma Criação, eles devem nos governar. Em consequência, nossa ordem deve ser análoga e consonante com a deles. E, como tal, o modo de nos relacionarmos e os traços fundamentais de governo da sociedade humana, feitos os descontos da diferença de naturezas, têm que ser análogos aos do mundo angélico.

A força motora do governo legítimo

Entretanto, não pode ser que alguns de nós sejamos apenas cognoscitivos e volitivos, como os Anjos. Vê-se que nossa natureza não comporta isso, mas está menos longe de nossa natureza do que se pode imaginar à primeira vista.

Em muitos trechos dos seus discursos à nobreza romana, Pio XII encaixava o regime democrático, afirmando que as mais autênticas democracias devem ter instituições aristocráticas. Nesta perspectiva e tomando, portanto, a ideia de aristocracia no seu sentido mais amplo, quer dizer, as elites, é mais ou menos certo, a meu ver, que em face da missão de uma sociedade, do que ela é, do que deve fazer, há um maior descortínio das classes mais altas do que das mais baixas. E esse descortínio deve fazer com que as classes mais altas conheçam melhor o espírito do país, o que este é como um todo, amem-no com mais finura, de maneira tal que elas filtrem isso para as classes mais baixas. E que essa filtração produza, por sua vez, um impulso diretivo do poder sobre as classes mais baixas que é verdadeiramente a força motora do autêntico governo legítimo.

As classes mais baixas, assim iluminadas e impulsionadas, têm uma capacidade de execução muito maior do que numa sociedade onde não haja isso. E disto decorre, propriamente, o vigor e a coesão de um corpo social.

Alguém que inventasse copiar a ordem angélica para a ordem humana — não se inspirar, mas copiar —, faria as coisas mais pesadas, mais tontas que se possam imaginar.

Por exemplo, é de experiência comum que, de vez em quando, saem da classe mais baixa elementos extraordinariamente dotados; mas não correspondem à figura clássica do homem muito inteligente, que vai ficar um “ploc-ploc”(1). São pessoas muito dotadas de dons naturais vivos, capazes de vencer as batalhas da vida e aproximarem-se da aristocracia merecidamente, afinarem-se.

As raízes de uma árvore e a nobreza

As raízes de uma árvore pegam matéria inerte nas capilaridades, assimilam-na e a transpõem para o estado de matéria viva, passando a circular dentro do fluxo vital da árvore. A matéria morta que passa a ter vida lembra um pouco uma ressurreição. Isto é uma maravilha que ocorre nas raízes de todas as plantas a todo momento.

Há um fenômeno parecido com esse pelo qual a nobreza suga continuamente da plebe — uma sucção generosa, bondosa, honorífica para a plebe — os elementos aproveitáveis e os eleva, ejetando de si outros que, muitas vezes, se jogam eles mesmos para baixo.

Nesse sentido, tenho certa reserva contra algumas instituições que, sob o pretexto de manter longevas as famílias, amarram-nas nos seus próprios tronos, de tal maneira que quando elas estão apodrecendo, ainda se mantêm sentadas ali.

A inalienabilidade de certo bem em determinada família, enquanto o mundo durar, revela o propósito de evitar que ela seja despojada imerecidamente de alguma coisa. Mas denota também a intenção de assegurar aquilo para a família, mesmo quando as mãos débeis dela não forem mais capazes de agarrar e sustentar.

O Anjo não pode ser promovido para uma categoria superior, nem rebaixado a uma inferior. O homem pode. Se o anjo for um Querubim, sê-lo-á até no Inferno.

Portanto, é preciso saber entender como se inspirar nisso.

A esse respeito, poder-se-ia dar a seguinte regra:

Para nos inspirarmos no mundo angélico, seria preciso ver como isso foi modelado pelo surto de vida natural e sobrenatural do começo da Idade Média até a Revolução Francesa, feitos os descontos da decadência que houve naquele período. Depois procurar ver no que aquilo, sem a intenção de imitar os Anjos, de fato imitava, para assim compreender como esta semelhança pode jogar, e como devemos fazer no Reino de Maria.

A coisa errada, “ploc-ploc”, seria: vem o Reino de Maria, consultamos nossos especialistas em matéria de Anjos, eles nos dão os esquemas e organizamos uma sociedade. Não é isso! Precisamos ver como o bom impulso natural e sobrenatural vai movendo as coisas. E procurar interpretar esse impulso à luz do exemplo angélico, para em algum ponto retificar, apoiar, fazer o que executa o jardineiro com a planta.

Ele não faz o plano da planta e puxa o vegetal para ser daquele jeito, mas toma as possibilidades de progresso da planta e a orienta, poda de cá, de lá, leva-a para o lugar onde incide mais sol, enfim, manobra, segundo uma ideia que ele tem da planta, o que há de autêntico e orgânico dentro dela.

A pulcritude da abstração

Para isso serve enormemente o estudo dos Anjos, porque, desde que se compreenda em que sentido aquele surto está imitando-os — e que as pessoas tenham consciência de que, deixando-se tocar por esse impulso, elas estão fazendo uma coisa angélica —, o surto fica ainda mais forte e toma mais autenticidade.

Se, por exemplo, sou professor e percebo que é em virtude de um tal influxo angélico que estou agindo de determinado modo, compreendo como aquilo que surge em mim, como de minhas raízes, é “angeliforme”. Então, sou capaz de dar instintivamente àquilo uma espécie de perfeição que, se eu não soubesse isso, não daria.

O exemplo dos Anjos faz sobre nós o papel do exemplo do Sol sobre a planta. Não se trata tanto de raciocínio, mas é um “heliotropismo” rumo aos Anjos, estando Deus acima. O Anjo aqui é um hífen para Deus.

Seria preciso termos teólogos e artistas da sociedade que vai nascendo, capazes, antes de tudo, de senti-la no seu fluxo providencial, natural e sobrenatural. E saber apenas iluminar esse fluxo com o exemplo dos Anjos, e outras coisas tiradas da Teologia.

Imaginemos uma sociedade que tivesse toda a atenção posta sobre aqueles que são de algum modo os maiorais dela, os Anjos, e sobre o fato de que tudo o que existe na Terra, provavelmente, é reflexo de algo de angélico para depois tocar algo em Deus e ser reflexo d’Ele. Por exemplo, o modo de o homem ver as coisas abstratas, que é o píncaro do pensamento humano por vários lados — e depois contemplar as coisas simbólicas que é também esse píncaro sob diversos aspectos —, levaria o homem a ser capaz de perceber na abstração um “pulchrum”, que é parecido com o “pulchrum” das abstrações do Dionísio.

Quando ele fala de criaturas espirituais, que nem sequer podemos conceber, e desenvolve toda esta “ordenação com beleza” das coisas espirituais que acabamos de ver, dá-me a impressão de que em muitos dos trechos dele a abstração toca violino.

O que há de encantador em muitos trechos do Dionísio?

Ouvindo a leitura deles, várias vezes eu procurava ver se, além de acompanhar o pensamento, poderia apanhar no que estava essa beleza.

Na pura abstração há certo modo de concatenar as ideias e de ver o “pulchrum” delas, bem como um certo senso do “pulchrum” que se desperta de vez em quando; isso é, penso eu, algo de parecido com o que o homem sentiria se visse um puro espírito. Mas infinitamente ainda mais se visse Deus, porque Deus é absoluto e o absoluto é a personificação de muita coisa que conhecemos como abstrato, visto por certo lado.

Sentindo o belo da vida interna de Deus

Outro dia, estávamos numa das nossas sedes em que se entoou o Credo. Em determinado momento cantou-se “Deum de Deo, lumen de lumine, Deum verum de Deo vero, genitum non factum, consubstantiálem Patri”(2). Nós todos já ouvimos isso mil vezes, mas no momento em que foi cantado me pareceu sentir o belo desta vida interna de Deus, por onde Ele toca e não é tocado, e tudo se passa sem que Ele decaia ao tocar nas coisas.

Não podemos dizer que Deus seja uma abstração, mas nossa noção sobre Deus tem algo do abstrato, porque não corresponde a nenhuma imagem do sensível. Mas foi um momento em que de repente apareceu a beleza disso.

Se tivéssemos o espírito inteiramente adestrado, seríamos capazes de ver nas abstrações todo o belo musical delas, que daria ao homem uma fome e uma sede de abstração, que tenho a impressão de que os povos do Oriente possuíam.

De onde vinha exatamente o fato de eles se interessarem tanto pela manutenção da ortodoxia contra essa ou aquela heresia; e depois torcerem pela propagação dessa ou daquela heresia contra a ortodoxia, como alguém hoje poderia torcer por uma partida de futebol. A meu ver, porque eles pegavam isso e a mudança de qualquer matiz os tocava a fundo. Eram povos que estavam numa clave muito superior à nossa.

E acrescento: só as almas capazes de verem isto assim compreendem o píncaro de uma cultura, de uma nação. Não digo que um aristocrata precisa ter necessariamente esta visão de espírito, mas afirmo que se não houver gente como estou dizendo para tocar esse fogo sagrado na mente do aristocrata, não teremos aristocracia.

Se tivéssemos isso bem organizado e posto no espírito, compreenderíamos muito melhor algo da luz primordial(3) e até do senso do ser de cada um de nós, que fica preso no porão de nossa própria personalidade, como uma mercadoria no porão do navio, e que levamos do berço até a sepultura sem nunca desembalar esse tesouro, para fazê-lo tomar ar e procurar, enfim, adornar-se com ele.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 26/4/1984)

 

1) Expressão onomatopeica criada por Dr. Plinio para designar o defeito de certas pessoas que, desprovidas de intuição e bom senso, querem explicar tudo por meio de raciocínios desenvolvidos de modo lento e pesado, à maneira de um paralelepípedo que, ao ser girado sobre o solo, emite o ruído “ploc-ploc”.

2) Trecho, em latim, do Credo Niceno-Constantinopolitano: “Deus de Deus, luz da luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro, gerado, não criado, consubstancial ao Pai”.

3) Termo cunhado por Dr. Plinio para significar a aspiração existente na alma de cada pessoa, ou num povo, para contemplar a Deus de um modo peculiar, refletindo d’Ele determinada perfeição. Ver Dr. Plinio, n. 54, p. 4.

Nossa Senhora das dores e o amor à incomodidade

Apresentamos aos leitores um comentário de Dr. Plinio acerca de um trecho de D. Guéranger, abade beneditino de Solesmes, a propósito da festa das Sete Dores de Nossa Senhora. Assim se denominava então a comemoração do 15 de setembro, que hoje se chama “Nossa Senhora das Dores”.

D. Guéranger mostra como Deus envia sofrimentos àqueles a quem ama, e como entre todas as  almas, depois da de Jesus Cristo, a mais amada por Deus foi a de Maria Santíssima, sujeita aos mais indizíveis padecimentos. Referindo-se às Sete Dores de Nossa Senhora, explica D. Guéranger que a Igreja se deteve no número sete pelo fato de este exprimir sempre a ideia de totalidade e universalidade, ou seja, todas as dores.

 

Hoje é festa das Sete Dores de Nossa Senhora, colocada com muita propriedade logo depois da festa da Exaltação da Santa Cruz. Essa festa mariana foi estendida a toda a Igreja por Pio VIII, em agradecimento pela intercessão da Santíssima Virgem na libertação de Pio VII.

A principal prova do amor que Deus tem por nós são os sofrimentos que nos envia São tantos os pensamentos que nos vêm a propósito do texto de D. Guéranger, que seríamos tentados a desenvolver excessivamente estas palavras. Parece-me entretanto oportuno concentrarmo-nos somente em duas idéias.

A primeira delas é esta: que Deus, tendo amado com amor infinito ao seu Verbo Encarnado, a Nosso Senhor Jesus Cristo, e tendo amado com amor inferior a este, mas superior a todos os outros amores, a Nossa Senhora, deu-lhes tudo quanto há de bom. E por isso, deu-lhes também aquela imensidade de cruzes que, no caso de Nossa Senhora, é representada pelo número sete. Sete dores é também o símbolo de todas as dores. E Nossa Senhora poderia ser  chamada perfeitamente Nossa Senhora de Todas as Dores.

Por causa disso, se é verdade que todas as gerações a chamarão Bem-Aventurada, a um título menor, mas imensamente real, todas as gerações poderão também chamá-la “infeliz”.

Se isso é assim, nós deveríamos compreender melhor que quando a dor entra em nossa vida, estamos recebendo uma prova do amor que Deus tem por nós. E que enquanto a dor não penetrar em nossa existência, nós não temos todas as provas desse amor de Deus. E eu acrescentaria que não temos a principal prova do amor de Deus para conosco.

O que isto significa? Há membros de nossa família de almas para cujas fisionomias eu olho e, depois de analisá-las, sou levado a pensar: a este, falta-lhe ainda sofrer, falta no fundo uma nota de maturidade, uma nota de estabilidade, uma nota de racionalidade, uma elevação que só tem aquele que sofreu, e que sofreu muito. Quem leva uma vida sem sofrimentos, leva uma vida em que essas notas não transparecem na fisionomia. E o que é muito pior: não transparecem na alma.

Nós devemos nos convencer de que isso é assim, ou seja que sofrer é um dom de Deus. E que quando começam acontecer os contratempos — as dificuldades com o apostolado, os mal-entendidos  com os amigos ou com nossos superiores, a saúde que anda mal, os negócios que dão errado, as encrencas dentro de casa — não devemos tomar tudo isso como um bicho de sete cabeças. Nós não devemos, imitando a mentalidade holywoodiana, exclamar impacientes: “Como foi que uma coisa dessas pôde acontecer?”

Não, essa não deve ser nossa atitude! Quando não sofremos, aí então é que devemos nos perguntar perplexos: “Como é que está acontecendo isto: eu não estou sofrendo nada!?” Pois o normal é  sofrer. Aquele a quem Deus ama, aquele a quem Nossa Senhora ama, esse sofre! Deus não pode recusar a um filho a quem ama aquilo que Ele deu em abundância aos dois entes que mais amou, que são Nosso Senhor Jesus Cristo e Nossa Senhora.

Devemos pois nos imbuir bem da ideia de que o normal na vida é sofrer. Sem dúvida devemos pedir à Providência que nos livre das privações, das provações, das crises nervosas e de toda espécie  de coisas penosas, mas se estiver nos planos da Providência que sejamos submetidos à prova, devemos bendizer a Deus, bendizer a Nossa Senhora por estar sofrendo.

São Luís Grignion chega a dizer que quem não sofre deveria fazer peregrinações e orações pedindo o sofrimento, embora ele condicione tal pedido à aprovação de um diretor espiritual, porque se trata de uma súplica muito séria. Mas ele diz isso porque sabe que quem não sofre não vai indo tão bem na vida espiritual quanto poderia ir, e às vezes vai indo inteiramente mal.

Todos aqueles que querem seguir a Nosso Senhor são incômodos

Bossuet tem uma expressão estupenda a respeito de Nosso Senhor Menino: “Aquele Menino incômodo”, que se aplica a todos aqueles que querem seguir a Nosso Senhor: são incômodos eles também.. Às vezes, tenho a seguinte sensação experimental: começo a dar um conselho, a dar um exemplo, a pedir um sacrifício, e no semblante do interlocutor vai aparecendo algo que revela serem incômodas as minhas palavras para ele. Como seria mais fácil para mim contar uma piada, fazer uma brincadeira, acabar a conversa com um tapinha nas costas e dispensar o outro de uma  obrigação! Como o mando seria agradável se fosse isso!

Mas mandar é o contrário. Mandar é estar exigindo que o subordinado tome as coisas a sério, que as olhe pelo seu lado mais profundo, mais alto e mais sublime. Que veja de frente sua própria alma, que se examine a si mesmo detidamente, procure corrigir efetivamente e seriamente seus defeitos. Mas como isso é incômodo! Pois bem, o peso de sermos incômodos é um dos maiores pesos que existe e também este nós devemos carregar.

Nossa Senhora teve um filho que lhe trouxe tantos divinos incômodos. Quando meditamos sobre a dor d’Ela, sobre a seriedade e a sublimidade da existência d’Ela e de nossa própria existência, Nossa Senhora das Dores também se torna para nós maternal e estupendamente incômoda.

A resignação alegre diante dessa incomodidade, a coragem de sermos incômodos em todas as circunstâncias, o amar de preferência aos nossos amigos incômodos, que nos lembram oportuna ou importunamente o dever: essas são as virtudes que no dia das Sete Dores de Nossa Senhora devemos pedir a Ela.

Plinio Corrêa de Oliveira

A Cruz permanece de pé

O obelisco encimado por uma cruz, colocado na Praça de São Pedro, nos evoca o lema dos cartuxos: “Stat Crux dum volvitur orbis” – Enquanto o mundo gira, a Cruz permanece de pé. O universo inteiro pode ser sacolejado, porém nada destruirá a Santa Igreja Católica Apostólica Romana. Ela tem a promessa da indefectibilidade, da indestrutibilidade.

 

Na Criação existem seres de uma grande durabilidade que nos falam da eternidade de Deus, o único Ser absoluto, perfeito e eterno, em função do qual e para Quem tudo existe. Essas criaturas muito duráveis falam-nos do Criador pela sua imutabilidade e aparente ou relativa indestrutibilidade.

Símbolo da eternidade de Deus

Por sua natureza pétrea e sua integridade, o obelisco é um exemplo adequado das coisas duráveis, que nada destrói.

Nesse sentido, pareceu-me de muito bom gosto terem colocado no centro da Praça de São Pedro um obelisco encimado por uma cruz, que nos evoca o lema dos cartuxos: “Stat Crux dum volvitur orbis” – Enquanto o mundo gira, a Cruz permanece de pé. Quer dizer, não há quem mude, quem derrube, quem abata a Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo. Ela é sempre a mesma, contra ventos e tempestades.

Esse monumento monolítico enorme, com forma de agulha, encontrava-se originariamente no Egito, onde os faraós mandavam erigir grandes pedras com inscrições, contando fatos do reinado deles ou coisas do gênero, que eles queriam comunicar à posteridade.

O pagão que mandou esculpir aquele obelisco não imaginava estar esculpindo um símbolo da eternidade de um Deus que ele não conhecia, e da indestrutibilidade de uma Igreja que ainda não tinha nascido.

Uma “desobediência” heroica

Na época em que esse obelisco foi transladado ao seu atual lugar, no século XVI, não havia os meios mecânicos que temos hoje, e a suspensão era feita através de um sistema de cordas, complicadíssimo, amarrando a pedra de vários lados, de maneira a ser puxada ao mesmo tempo por várias forças.

Para não haver desordem e evitar acidentes existia uma ordem do Papa, que era o Rei de Roma naquele tempo, condenando à morte quem falasse. Era preciso que tudo fosse feito no maior silêncio, de maneira a só se ouvir, na imensidade da praça, a voz dos mestres e contramestres.

Os homens foram levantando a pedra e, em certo momento, um dos operários, o qual era um experiente marinheiro, percebeu que a corda segurada por ele estava tão quente, pela pressão exercida, que iria se incendiar. Se o fogo se ateasse, o obelisco cairia e mataria muitos dos circunstantes.

Esse homem, com o risco da própria vida, resolveu atrair sobre si a pena de morte, pedindo para trazerem água. Então ele gritou: “Acqua alle funi!”(1)

Trouxeram depressa água para o operário e, tendo ele apontado o lugar, este foi regado, salvando-se com isso a pirâmide de cordas, e o obelisco pôde ser erguido.

Terminado o trabalho, houve um decreto do Papa Sisto V recompensando com honrarias o Capitão Benedetto Bresca, contratado para a ereção daquele obelisco, pelo ato de heroísmo praticado: enfrentou a morte, desobedecendo à ordem papal. Evidentemente, aquela ordem deveria ser desobedecida, caso contrário seria a ruína da obra.

A obra onde está autenticamente a Cruz é inatingível

Com que olhos deve-se olhar para esse obelisco egípcio, no centro da Praça de São Pedro?

A meu ver, com aplauso, porque de si é uma coisa bonita. Em primeiro lugar, um monólito como aquele é uma obra-prima da natureza e do engenho humano. Mas também o símbolo que está posto ali é muito bonito.

O Egito foi a mais gloriosa das nações antigas. Colocar o obelisco no centro da praça, encimado por uma cruz simbolizando o triunfo da Igreja sobre toda a sabedoria pagã antiga, evidentemente é belo e bom, pois indica a perenidade da Esposa de Cristo no movediço de todas as circunstâncias humanas.

O universo inteiro pode ser sacolejado, porém nada destruirá a Santa Igreja Católica Apostólica Romana. Ela tem a promessa da indefectibilidade, da indestrutibilidade.

É também a presença da verdadeira Cruz em uma obra que assegura a sua inatingibilidade. O cosmo inteiro pode abalar-se de todas as formas; onde, de modo autêntico, está a Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo e Nossa Senhora, ninguém e nada atingem.

 

Plini0 Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências de 1/9/1973 e 8/8/1979)

 

1) Do italiano: Água para as cordas!

 

Nossa Senhora das Dores

Nossa Senhora das Dores, Vós sofrestes por mim. Que o mérito de vossas lágrimas afaste tanta dor que ameaça cair, a justo e a lindo título, sobre mim, porque não me sinto capaz de carregá-la. Sei que em algo a afastareis, mas compreendo que vossa oração pode encontrar a barreira que vosso Divino Filho encontrou, quando Ele disse: “Si fieri potest…” Então, se em algo não puder ser, dai-me forças! Tanto quanto possível, me refugio da merecida cólera de Deus junto aos vossos braços de Mãe. Contudo, se esses braços tiverem que me entregar, e eu sofrer esse holocausto por outros ou por mim, adoro essa cólera! Dai-me forças, e a suportarei.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 7/9/1981)

Levar a cruz com ufania

Os infortúnios, nossas limitações e defeitos constituem cruzes, por vezes muito pesadas, que devemos saber carregar. Certas pessoas, sem compreenderem a beleza e a necessidade do sofrimento, procuram fugir dele por meio de um blefe. Dr. Plinio nos aponta a atitude, ao mesmo tempo ufana e equilibrada, de um verdadeiro católico face à dor.

 

“Tollat”, leve-a! E não a arraste, nem sacuda, nem reduza e, ainda menos, a esconda! Isto é: leve-a bem alto na mão, sem impaciência nem pesar, sem queixa nem murmuração voluntária, sem partilha e sem alívio natural, sem envergonhar-se, e sem respeito humano. “Tollat”, que a coloque sobre a fronte, dizendo com São Paulo: “Que eu me abstenha de gloriar-me de outra coisa que não a Cruz de meu Senhor Jesus Cristo!” (cf. Gl 6, 14). Leve-a aos ombros a exemplo de Jesus Cristo, a fim de que essa cruz se torne para ele a arma de suas conquistas e o cetro de seu império: “(imperium) principatus (ejus) super humerum ejus” (cf. Is 9, 6). Enfim, coloque-a, pelo amor, em seu coração, para torná-la numa sarça ardente que, sem consumir-se queime, noite e dia, de puro amor de Deus(1).

Sofrimentos que devemos aceitar para salvar nossas almas

Neste trecho da “Carta Circular aos Amigos da Cruz”, vem enunciado o princípio de que, em relação à cruz, ou seja, ao sofrimento que Nossa Senhora nos manda, não nos cabe o levarmos resignada e arrastadamente, mas conduzi-lo alto, com alegria e ufania.

Dizia o Duque de Saint-Simon que o mundo deveria ser conduzido “à la croix haute”, tomando a cruz na mão e, com ela bem alta, fazer tocar todas as coisas. Porque se nos reportarmos ao que se entende por cruz, então compreenderemos bem o que diz esse texto de São Luís.

A cruz é o conjunto dos sofrimentos que devemos aceitar para salvar as nossas almas. Em primeiro lugar, os esforços que nossa santificação exige, abrangendo o enorme domínio da ascese. Em segundo lugar, os infortúnios que nos acontecem. E em terceiro lugar, as limitações e restrições em nós mesmos, com as quais devemos nos conformar. Todo homem tem uma série de limitações, e não deve apenas arrastá-las penosamente, tristemente, tomando-as como um fato consumado, mas, ao ver outros que têm mais virtude, mais inteligência, ou qualquer coisa a mais do que ele, precisa ter satisfação, dar graças a Deus, a Nossa Senhora, e por esta forma manifestar a aceitação das próprias limitações.

Como levamos nossa cruz em matéria de ascese? Se algo me custa muito, é de bom aviso pedir graças a Nossa Senhora para entregar não apenas o que me foi pedido, mas dar mais. Porque, assim, faço uma renúncia mais completa àquele apego que me levava a sentir dores em conceder aquilo, e vou muito mais longe no caminho da cruz e da santidade, do que um outro que não segue esse princípio.

Devemos cortar as raízes de nossos defeitos

Por exemplo, uma pessoa que seja colérica e se põe como norma: “Nunca darei o meu consentimento em encolerizar-me com alguém, sem razão”. Se o defeito preponderante dela é a cólera, ela nunca ficará nesse limite. Porque, com a preocupação de ficar no mínimo, ou seja, apenas no limite da correção nos assuntos em que temos uma tendência contrária muito forte, não extirpamos a raiz, mas apenas cortamos os maus frutos que estão em nós. Resultado: esses frutos surgirão com tanta abundância, que todo nosso tempo e energia não bastarão para cortá-los continuamente.

Então, como se leva a cruz nesse caso? Dizendo: “Tenho uma tendência para estar continuamente me irritando com os outros. Portanto, não vou me limitar a não me irritar, mas serei um modelo de correção no trato com os demais. Mesmo nos casos em que fosse meu direito me encolerizar, não me encolerizarei. Só por esta forma eu mato a raiz de minha cólera. É o meu mau gênio que me leva continuamente a estar implicado e irritado com os outros. Então, tenho que descer aos porões de minha alma e fazer uma poda dolorosa”.

Devemos pedir a Nossa Senhora as graças para fazermos essa poda generosamente e com ânimo forte, isto é, fixar uma resolução e traçar um programa: “Eu chegarei, de uma vez só ou por progressivos cortes, a eliminar dentro de mim aquilo que constitui essa raiz da qual brotam os meus pecados”. Isso será com a cólera ou com um defeito oposto à cólera, que é a apatia e a falta de sensibilidade para com as ofensas profundas; será em relação a qualquer defeito preponderante. Leva-se a cruz alta, como recomenda São Luís Grignion de Montfort, quando temos a graça de operar por esta forma.

Todos os homens passam por infortúnios

O que é a aceitação dos infortúnios que nos acontecem?

Não há pessoa que não receba, de vez em quando, uma bombarda de algo que não quereria e acontece de um modo inteiramente imprevisto. Ora é a morte inopinada de alguém a quem estimávamos muito; ora é uma campanha de calúnias, ou uma amizade que desejávamos muito e não a obtivemos, ou um dinheiro, a saúde; seja o que for, mas ninguém deixa de receber o impacto de vários infortúnios.

Como levar a cruz até o fim, em relação a esses infortúnios? Preparando a alma no período de tranquilidade para que, no tempo da adversidade e das desventuras, ela seja forte.

Se logo depois de me acontecer uma coisa desagradável, de ter me aclimatado e posteriormente saído dela, eu esfrego as mãos e penso: “Graças a Deus, saí de dentro disso, e nunca mais vai me acontecer novamente!” Quando me acontecer, apanha-me fraco e desprevenido, e tenho outro drama.

Devo pensar o contrário: “Esta vida é um vale de lágrimas. Aconteceu-me isso agora e pode me suceder outra desventura daqui a dez minutos. E isto é normal, porque são as regras do jogo, não posso estranhar. Por pouco que eu olhe em torno de mim, desde que não o faça como um ingênuo, mas procure ver como é a vida dos outros, percebo que cada um tem infortúnios sérios, grandes e, portanto, é natural que eu os tenha também. Pela bondade divina, no momento não tenho, mas tê-los-ei daqui a pouco. Se vier o sofrimento, Nossa Senhora o estará mandando para o bem de minha alma, e devo estar preparado. Assim, habituo um pouco a minha imaginação de maneira a não ficar tão surpreso e não ser colhido de improviso se me acontecer alguma desventura”.

O oposto a isso é o defeito moral de muita gente que começa a imaginar situações otimistas. Isso amolece a alma, tira completamente a coragem para a luta.

O que se deve fazer? Prever o mal, não exagerando a possibilidade de ele acontecer, mas acostumando os olhos a considerá-lo de frente. E, durante o infortúnio, rezar para Nossa Senhora afastá-lo, se for a santíssima vontade d’Ela;  pedir até que seja a santíssima vontade d’Ela afastá-lo, se Ela não nos dá a sede de cruz. Rezar filialmente, pedindo isso à Virgem Maria, mas compreendendo que Ela pode não conceder, porque, por mais altos desígnios, quer que eu tenha uma cruz a carregar nesta vida.

Cada criatura tem um belo e digno lugar nos planos de Deus

No tocante às limitações que temos, deveríamos partir da ideia de que cada criatura, por menor, mais apagada e mais defeituosa que seja — e falo, sobretudo, da criatura racional —, tem um lugar nos planos de Deus. E um lugar de formosura, de dignidade. Portanto ela deve aceitar, com enlevo, e dentro de todas as suas limitações, esse destino.

Não me refiro apenas a limitações físicas, mas a defeitos nativos, por exemplo, de inteligência, de temperamento e até morais.

A pessoa deve fazer este raciocínio: Se Deus compôs para Si um universo como um diadema, no qual há pedras centrais enormes e, à medida que se distanciam do centro, as pedras vão diminuindo, até o diadema fechar-se em pedras bem pequenas; e se, para a beleza desta joia, deve haver pedrinhas e eu sou uma delas, então vou me alegrar por isso, dar graças a Nossa Senhora e aceitar de bom humor, porque componho a beleza desse conjunto.

Portanto, não vou morrer de tristeza, por haver pedras maiores do que eu. Pelo contrário, fico alegre de compor o cortejo das pedras e ser um lampejo pequeno dentro dos lampejos maiores. Uma vez que a beleza do conjunto precisa de mim, tenho um papel, uma razão de ser, e não sou uma excrescência, desde que saiba realizar o meu destino.

Um ponto fundamental nesta questão é que não se deve ter vergonha de ninguém. Por menor que eu seja, tenho uma razão para existir e, por isso, não há motivo para me desprezarem. Estou desempenhando meu papel.

Por mais rico que seja um palácio, é necessário que nele haja vassouras. O dono da residência não pode desprezar, quebrar e jogar fora a vassoura, pois ela tem uma função a exercer.

Logo, se tenho a minha razão de ser, não terei complexo ou vergonha por não ser os outros. Quererei ser eu mesmo. E se os outros quiserem pisar em mim, eu rio deles, porque a boa razão e o bom direito estão de meu lado. O próprio Deus está de meu lado. E vou ser, com toda a paz da alma, o que sou, com os meus defeitos e limitações.

Se sou pouco inteligente ou sem graça, ou tenho má memória, ou sou pequenininho; que importa? Não tenho minha razão de ser? Então eu me afirmo: sou como sou, sou o que sou, aqui estou! Desde que eu seja de acordo com a regra com a qual devo ser, não tenho vergonha de nada e me afirmo com toda a dignidade e toda a minha finalidade.

Um blefe existente hoje mais do que em qualquer outra época histórica

Como esse senso da cruz importa ao senso contrarrevolucionário! O oposto disso é o blefe, por onde o mundo de hoje está continuamente elaborando atitudes pelas quais as pessoas procuram dar a entender que são mais do que são.

Por exemplo, bancar ser mais inteligente do que é, ou então mais fino, de melhor posição social, ou ter mais dinheiro, mais importância, mais prestígio, e outros mil recursos para blefar. Acho que hoje em dia o blefe é de uma frequência maior do que em qualquer outra época histórica. Isso significa não querer carregar a cruz.

Certa vez, uma pessoa, estando em minha residência, disse-me:

— Sua casa é bonita, e tenho muito gosto em vir até aqui. Mas não teria coragem de morar nela.

— Mas por quê? — indaguei.

— Porque, neste gênero de casas, há objetos muito mais ricos e distintos do que os existentes aqui, e eu não teria coragem de habitar num ambiente que não fosse o mais bonito no gênero. Como também, na sua posição, não teria coragem de ir até a esquina e ficar “pescando” um táxi, como o senhor “pesca”. Um homem de sua idade e condição tem automóvel. E eu teria vergonha de não possuir automóvel. Jamais iria para uma esquina, por onde passa muita gente conhecida, e estar ali “pescando” um táxi. Cada um que passa dentro de um automóvel próprio e vê o senhor ali, pensa: “Está vendo? Este chegou a essa idade e não tem automóvel!”

Eu disse:

— Meu caro, isso não me causa a menor emoção. Moro nesta casa e julgo que ela me serve de boa moldura, porque não sou, nem pretendo ser, mais do que isso. Acho, inclusive, que está de acordo com meu nível de educação e com minha posição tomar um táxi na esquina e, portanto, não me incomodo. E se eu tivesse que pegar ônibus ou bonde, também não teria vergonha, porque, se não possuo dinheiro, não adianta pensar que tenho. Se eu possuir um automóvel, darei graças a Deus; se não o tiver, estarei com a mesma fisionomia ao sol, com a mesmíssima apresentação. Aqui estou, Plinio Corrêa de Oliveira, pronto a aguentar qualquer desprezo e revidar, mantendo-me normal, sem me amargurar.

Entretanto, muitas pessoas procuram blefar até mesmo aos seus próprios olhos, quando o melhor é ver a verdade, pois a humildade é a verdade. Isso é carregar a cruz. E carregando-a, devo considerar também que posso vir a perder um pouco do que tenho e ser menos do que sou. Se isso acontecer, Deus seja bendito!

Essas são verdades conhecidas e cuja lembrança faz bem à vida espiritual.

Martírio de São Théophane Vénard

Contudo, parece-me que haveria restrições a fazer, de ordem prática, ao que eu disse. Porque, pelo nervosismo, pela debilidade de vontade, por algo de desengonçado existente nas gerações mais recentes, compreendo que esse quadro traçado assim, embora se preste a ser admirado, sua simples explicitação pode causar, em certos momentos, tremor.

Alguém me contou, outro dia, como foi o martírio do Bem-aventurado Théophane Vénard(2). Ele estava sendo preparado para ser decapitado, diante do mandarim. E o carrasco, vendo um pequeno objeto de ouro que ele possuía, disse-lhe: “Se você me der isso, eu tiro a sua cabeça de um golpe só, você nem vai sentir”. Não lembro se ele deu ou não o objeto, mas respondeu ao verdugo: “É melhor que você demore, porque quanto maior o número de pancadas, mais ocasião terei de sofrer”.

Admiro isso profundamente, mas uma coisa como essa me enregela. Se eu fosse morrer decapitado, não me passaria pela cabeça fazer isso. Eu julgaria ter cumprido inteiramente o meu dever, simplesmente deixando-me decepar. De maneira que se eu tivesse que ser martirizado, eu “tout bêtement”(3) teria que pensar em outra coisa e me entregar nas mãos da Providência. Se Nossa Senhora quiser permitir que me cortem a cabeça com vários golpes, e Ela me der forças para isso, ficarei encantado. Mas se Ela não me der forças, não há remédio, tem que ser de um golpe só, porque do contrário não aguento mesmo. O que equivale a dizer que, se for de sua vontade, Ela me dará as graças.

Esse estado de alma é um pouco o da santa mártir que tinha disposição para ser comida por qualquer fera, exceto por um leopardo. E a Providência arranjou um jeito de que não fosse um leopardo que a devorasse.

O problema da cruz e a pequena via

Esses são exemplos de uma debilidade de alma que não se pode considerar propriamente como um defeito, mas uma estrutura com sua fragilidade própria. E diante do dever descrito em toda a sua austeridade, pergunto-me se não há almas que experimentam uma constrição, uma incapacidade de realizar o sacrifício até o fim, com todas as aparências de falta de generosidade que, entretanto, não o é; trata-se apenas do indicativo de uma outra via de dentro da qual o homem pede a Nossa Senhora:

“Minha Mãe, sou fraco demais para enfrentar esses pavores. A simples perspectiva de suportá-los me faz tremer. Se quiserdes isso de mim, dai-me uma graça especial, operai na minha alma com uma rapidez, uma sublimidade, uma eficácia especial, para que ela seja capaz daquilo de que eu, pelo simples jogo da graça ordinária, não sou. E então, eu Vos peço enlevos, entusiasmos, favores e auxílios, por onde, em determinado momento, minha pobre alma se torne capaz.”

Creio ser esta uma das diferenças mais frisantes entre a grande e a pequena via; esta última conta com auxílios desses. Nossa Senhora toma a alma débil e a carrega aos ombros para fazê-la atravessar as dificuldades mais tremendas. De maneira tal que a alma faz, com toda facilidade e suavidade, coisas enormes que nunca se imaginaria capaz de realizar.

Ou, então, não faz essas coisas, porque são afastadas de seu caminho. E a Santíssima Virgem obtém para a pessoa auxílios a fim de realizar as coisas pequenas, frágeis, comuns, com tanto amor que as engrandece por esta forma.

Eis como devemos considerar esse problema da cruz na pequena via.

Muitos caminham, ora pela grande via, ora pela pequena via

O Bem-aventurado Teóphane Vénard, levado por uma grande graça no último momento de sua vida, realizou um ato da grandeza de um dos Macabeus, desses martírios mais terríveis. Mas não o fez pela ascese inaciana, com propósitos, e prevendo ponto por ponto, mas meio impelido por um vendaval da graça que o suspendeu.

A mesma coisa se deu, depois, com Santa Teresinha, grande devota dele. Ela morreu com um heroísmo que o herói da Chanson de Roland poderia invejar, ou considerar que emulou com ele. Mas ela chegou a isso pela pequena via.

Tudo quanto acima foi dito sobre a aceitação do sofrimento deve ser profundamente admirado. Mas cada alma, conforme seu caminho, toma em relação a isso alguma distância; e muitas almas, em relação a alguns pontos, ora andarão à grande via, ora à pequena via, de acordo com o feitio de cada uma e o tipo de perfeição moral que Nossa Senhora quis suscitar.

Quantas vezes, ao desvendar panoramas muito sérios e grandiosos em matéria de vida espiritual, há almas que podem se sentir alquebradas ou desanimadas e, ao mesmo tempo, empolgadas. O que fazer diante de panoramas como esses?

Devemos não só amar e admirar, mas conhecer e compreender esta outra via. Rezando bem, entenderemos como aplicá-la aos nossos próprios problemas, para transpor — suavemente, no ritmo da nossa personalidade e sem nos alquebrarmos — obstáculos para os quais de outra maneira não teríamos coragem.

Por uma via ou por outra, portanto, seguimos a Nosso Senhor Jesus Cristo com a cruz, e a levamos alto. E, guiados pelo Divino Espírito Santo, com o auxílio das graças obtidas por Nossa Senhora, seremos levados a praticar a virtude de carregar a cruz, com aquela plenitude que São Luís Maria Grignion de Montfort deseja.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 12/8/1967)

 

1) Carta Circular aos Amigos da Cruz, n. 19.

2) Jean-Théophane Vénard, presbítero e mártir (*1829 – †1861). Beatificado por São Pio X e canonizado pelo Beato João Paulo II.

3) Do francês: ingenuamente, inocentemente.

Ó vós todos…

Ó vós todos, que passais pelo caminho: olhai e vede se há dor igual à minha dor (Lamentações de Jeremias, 1, 12).

Estas pungentes palavras do Profeta são atribuídas a Nosso Senhor no auge de sua Paixão, de seus padecimentos que nos valeram a Redenção. Aplicam-se elas, também, abaixo d’Ele, a Maria Santíssima, Co-redentora do gênero humano. Imaginemos a Mãe dolorosa com o Filho exangue sobre seus joelhos, e nos dirigindo essa pergunta lancinante: ó vós todos que passais pelo caminho…

Não um caminho material, mas os caminhos da História, as vias dos séculos, pelas quais passam nações, povos, multidões e indivíduos. Consideremos todos essa dor indizível, e compreendamos que, realmente, depois da dor do Filho, não há nenhuma comparável à da Mãe.

Plinio Corrêa de Oliveira

Inigualável papel da cruz na vida humana

Festa da Exaltação da Santa Cruz, celebrada pela Igreja no dia 14 de setembro, sempre despertou em Dr. Plinio profundos sentimentos de adoração ao Santíssimo Redentor que, ao se deixar imolar no alto do madeiro, resgatou o gênero humano e nos legou para sempre seu consolador exemplo de perfeita aceitação do sofrimento.

 

Certa feita, assim se expandiu Dr. Plinio, ao considerar a sublime importância do holocausto de Nosso Senhor no alto da Cruz: “O Evangelho nos faz ver com a maior evidência quanto a misericórdia de nosso Divino Salvador se compadece de nossas dores da alma e do corpo. Basta atentar para os milagres assombrosos de sua onipotência, praticados tantas vezes para as mitigar.

Entretanto, não imaginemos que esse combate à dor tenha sido o maior benefício por Ele feito aos homens, nesta vida terrena. Não compreenderia a missão de Cristo ante os homens quem fechasse os olhos para o fato central de que Ele é nosso Redentor, e de que quis padecer dores crudelíssimas para nos remir. Até na culminância de sua Paixão, Nosso Senhor poderia ter feito cessar instantaneamente todas essas dores, por um mero ato de sua vontade divina. Desde o primeiro instante de sua Paixão até o último, Ele poderia ter ordenado que suas chagas se fechassem, seu sangue precioso deixasse de correr, os golpes por Ele recebidos deixassem de manter cicatrizes no seu corpo divino e, por fim, uma vitória brilhante e jubilosa cortasse o passo, bruscamente, à perseguição que O ia arrastando até a morte.

Porém, Ele não o quis. Pelo contrário, Ele quis deixar-se arrastar pela via dolorosa até o alto do Gólgota, quis ver sua Mãe Santíssima entregue ao auge da dor e, por fim, quis bradar, de maneira a que O ouvissem até o fim dos séculos, as palavras lancinantes: ‘Meu Deus, meu Deus, por que me abandonastes?’ (Mt 27,46). Nesses fatos compreendemos que, dando-nos a graça de sermos chamados com Ele para padecermos cada qual um quinhão da sua Paixão, Ele tornava claro o papel inigualável da cruz na vida dos homens, na História do mundo e na sua glorificação. Não pensemos que, convidando-nos a padecer as dores da vida presente, Ele tenha querido dispensar-nos de pronunciar, cada qual, no transe da morte, o seu ‘consummatum est’ (cfr. Jo 19,30).

Sem a compreensão da cruz, sem o amor à cruz, sem ter passado cada qual por sua “via crucis”, não teremos cumprido a nosso respeito os desígnios da Providência. (…) Com tal amor à Santa Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo tudo conseguiremos, ainda que nos pese o fardo sagrado da pureza e de outras virtudes, os ataques e os escárnios incessantes dos inimigos da Fé, as traições dos falsos amigos.

O grande alicerce, o máximo alicerce da Civilização Cristã está em que todos os homens exercitem generosamente o amor à Santa Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo. Que a tanto nos ajude Maria, e teremos reconquistado para o Divino Filho d’Ela o Reino de Deus, hoje tão bruxuleante no coração dos homens.”

  • * *

Há 10 anos, precisamente no dia 1º de setembro de 1995, Dr. Plinio era internado no Hospital Oswaldo Cruz, em São Paulo. Ao longo daquele mês, esse insigne varão católico provaria o seu edificante amor à Santa Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo, encetando com resignação — e inteira confiança na misericórdia da Santíssima Virgem — os derradeiros passos de sua própria “via crucis”.

Façamos nossa, a prece que Dr. Plinio costumava recitar diante de um Crucifixo:

“Nós vos adoramos, ó Cristo, e vos bendizemos, porque por vossa santa Cruz redimistes o mundo. Mãe Dolorosa, rogai por nós. Vós, que tivestes pena de vosso Filho no alto da Cruz, tende compaixão de cada um de nós, nos fundos vales de nossa existência cotidiana. Amém.”

 

Plinio Corrêa de Oliveira

A beleza da luta – I

Os contrarrevolucionários, que travam a guerra de Nossa Senhora contra o demônio, precisam compreender a beleza da luta.

 

Devemos fazer algumas considerações à vista de ilustrações representando cenas de batalhas medievais, desenhadas pelo famoso desenhista francês do século XIX, Gustavo Doré.

Porém, antes de fazer o comentário, eu queria apontar bem do que se trata, para podermos apreciar adequadamente o assunto.

A paz é a tranquilidade da ordem

Gustavo Doré é um dos maiores desenhistas do século XIX. Ele fez desenhos extraordinários, por exemplo, ilustrando a “Divina Comédia”. Quer dizer, a passagem de Dante, guiado por Virgilio, pelo Inferno, depois pelo Purgatório e até pelo Céu. E seus desenhos ficaram famosos.

São desenhos da escola romântica, com os defeitos desta escola, mas também com algumas qualidades que existem nela. Os defeitos consistem em que ele apela demais para o sentimento. Doré procura impressionar a fundo — porque, afinal, causar impressão é próprio de uma obra de arte —, mas a impressão é tão viva que chega a apagar um pouco o papel da razão. A pessoa se deixa levar apenas pela impressão.

De outro lado, entretanto, ele tem uma grande seriedade em seus desenhos e, como tal, é capaz de inspirar, elevar as cogitações dos homens a um plano superior. É o que acontece com as batalhas medievais.

Os combatentes medievais ele sabe exprimir, manifestando aquilo em que o homem da Idade Média era muito sensível, que era o “pulchrum” do combate. Como o combate é belo, como em sua beleza se sente a nobreza e o valor moral da luta e, portanto, o combate como um dos estados de alma do católico, em que a virtude católica se faz sentir de um modo excelente.

Nisso tudo há um contraste com a mentalidade contemporânea, essencialmente pacifista, mas pacifista de um modo exagerado e, sobretudo, em obediência a um conceito errado de paz.

Com efeito, Santo Agostinho definiu prodigiosamente bem a paz, e São Tomás retoma essa definição: a paz é a tranquilidade da ordem. Quando as coisas estão em ordem, reina então entre elas uma harmonia. Essa harmonia é a paz.

Não é, portanto, qualquer tranquilidade que é paz, mas a tranquilidade da ordem. Se entrarmos, por exemplo, numa sala onde se fuma maconha, e há quinze, vinte pessoas inebriadas e largadas em sofás, ninguém dirá: “Que paz!”, porque aquilo é uma desordem. E aquela desordem não proporciona a verdadeira paz.

A tranquilidade da desordem é o contrário da verdadeira paz

Deve-se ser pacifista? Sim, se se quer esta paz, isto é, a ordem, e se se tem a alegria na tranquilidade da ordem. Mas a desordem também tem tranquilidade. E a tranquilidade da desordem é nojenta, porque é o contrário da paz verdadeira e incute desprezo.

Por exemplo, o que se passou no Vietnam, em 1975. Na véspera da chegada dos comunistas a Saigon, os bares dos grandes hotéis dessa cidade estavam cheios de gente bebericando, conversando, se divertindo. Houve festas. Um repórter notou que numa loja, no dia anterior à invasão comunista, ainda um pintor estava pintando os batentes das portas do estabelecimento, para atrair mais os clientes no dia seguinte. A “paz” inteira reinava em Saigon.

Quando os comunistas entraram, por volta das 10, 11 horas da manhã, tiveram a sagacidade de mandar alguns caminhões com o que havia de mais jovem no exército comunista. Eram meninotes. Os caminhões ficaram parados em alguns pontos da cidade de Saigon, esperando ordens superiores.

Os vietnamitas do Sul passavam por lá e davam risada: “Olha aqui o que vai ser essa ocupação! Ocupação de meninos! Isso é uma tirania de brincadeira. Nossa vida vai continuar na mesma.”

Num clube de luxo, um sujeito tranquilo numa piscina gritou para o “barman”: “Traga-me uma “champagne!” O “garçon” trouxe, ofereceu, e um jornalista perguntou a quem bebia a “champagne”:

— Mas o senhor está festejando o quê?

Ele respondeu:

— Eu estou festejando minha última “champagne”. Os comunistas vão entrar, não vou ter mais “champagne”. Não sei o que vai ser feito de mim. Deixe-me, pelo menos, beber minha última “champagne” na paz!

Essa é a tranquilidade da desordem, e causa nojo.

Nós devemos distinguir no mundo de hoje o pacifismo que visa a tranquilidade da ordem. Busca a ordem por amor de Deus, porque ela é a semelhança com o Criador e, por isso, tem a paz de tudo quanto é de Deus. Mas a paz não é o fim supremo; é um fruto aprazível da ordem que amamos, porque amamos o Altíssimo.

Dou outro exemplo. Num prédio de apartamentos, mora-se embaixo do apartamento de um casal e nunca se ouve barulhos de uma briga. Como não há encrenca, chega-se à conclusão de que existe paz. De fato, marido e mulher estão brigados e nunca se dirigem a palavra. Então não há discussões; mas isso não é paz! É uma caricatura nojenta da paz, é a cristalização, a fixação, a consolidação de uma desordem: marido e mulher estão brigados, quando deveriam estar unidos.

O verdadeiro heroísmo é um dos garbos da Idade Média

Há situações em que a luta, por mais que seja perigosa e traga frutos tristes, é preferível à falsa paz. E às vezes luta-se de modo terrível para conseguir a paz!

Por exemplo, se está entrando um ladrão numa casa, que pode quebrar objetos, meter fogo na residência, matar os chefes da família, o filho já moço avança e se atraca com o ladrão; isso é uma briga na casa, mas em favor da ordem. Essa luta é meritória. A isso se chama heroísmo!

Os medievais tinham alta ideia disso. E, portanto, eles celebravam a beleza da luta. Às vezes combates entre cavaleiros em que cada um dos lados luta de boa-fé, embora um esteja errado e outro não.

Por exemplo, questão de limites entre um feudo e outro depende da interpretação de tratados que, por vezes, são muito complicados. Pode ser que nos dois lados haja boa-fé. Mas um julga que tem direito a uma terra, e o outro não está de acordo. Então se combatem.

Há um modo nobre de combater de ambos os lados que torna essa luta nobre em si, em que toda a beleza do combate é realçada pelo mútuo respeito daqueles que lutam. Aquele que combate admite que o outro esteja de boa-fé, mas nem por isso permitirá que roube uma terra que ele considera sua. Se o invasor avança é preciso contê-lo, mas com respeito, porque ele está de boa-fé.

Portanto, não é como quem avança em cima de um bandido. É um cavaleiro que investe contra outro cavaleiro, ambos aguerridos. Não raras vezes se saudavam antes da luta, reconhecendo a boa-fé do outro lado. Mas não tem remédio: vão para a guerra!

E na luta conduzida nesse espírito para a defesa de um ideal, da Religião Católica, o homem desdobra qualidades de heroísmo, de força de corpo e de alma em que, no fundo, é a varonilidade de um que se choca com a do outro.

Mas como do choque de duas pedras muito duras parte uma centelha, assim, do choque de dois homens muito duros, pode partir uma chama, uma labareda que é a manifestação do heroísmo de ambos. Esse heroísmo desinteressado, nobre é um dos garbos da Idade Média.

Gustavo Doré soube representar a beleza do heroísmo

Os desenhos de Gustavo Doré representam a beleza da luta, a beleza da guerra, a beleza do heroísmo.

É muito importante que os contrarrevolucionários, os que travam a guerra de Nossa Senhora contra o demônio, compreendam seriamente a beleza da luta.

Nessa perspectiva, então, vamos examinar alguns desenhos de Gustavo Doré.

Vemos numa ilustração um exército pronto para a batalha. Na primeira fileira se discernem mais facilmente os soldados de infantaria revestidos de couraças, capacetes, espadas, escudos contendo, em geral, emblemas religiosos que mostrassem por que eles lutavam.

Embaixo, estão os homens jogados por terra, mostrando bem a que está sujeito quem trava uma batalha. Tem-se a impressão de que o guerreiro que está na primeira fila, com um escudo quase inteiramente redondo e com uma espada na mão, acabou de prostrar por terra aquele combatente; e que esse exército deu um primeiro choque, reduzindo a primeira linha do adversário a trapos, e está avançando sobre cadáveres.

O campo de batalha é representando num dia bonito e de aspecto até risonho. Num campo de batalha assim, uma grande tragédia se desenvolve. Mas uma tragédia que é, sobretudo, um lance de dedicação e de coragem. Daí não resulta choradeira, e sim a glória.

A batalha, na Idade Media, tinha dois estágios: o primeiro é o da “bataille rangée”, e depois, da “bataille mellée”. A “bataille rangée” era em filas. Antes de começar a luta, os dois lados se mantinham em filas e, muitas vezes, um arauto ia para a frente e cantava as razões pelas quais eles combatiam, julgando que estavam com o direito. Depois o opositor mandava outro arauto refutar. E quando os arautos se retiravam, iniciava, com todo o furor, o ataque de cavalaria de lado a lado.

Episódio culminante da tomada de Jerusalém pelos cruzados

Em outra ilustração, observamos um ataque de cavalaria e um cavalo que se ergue com grandeza, num belo movimento. Ali está um homem que quis atentar contra o cavaleiro e está sendo jogado no chão. Outros homens já estão caídos no solo, e os cavalos avançam. O cavaleiro, com a espada na mão, mata na defesa de seu ideal.

Tem-se pena de quem está no chão, mas não é o aspecto principal do quadro. O aspecto principal da cena é a admiração, portanto a coragem, a glória.

Nesta gravura veem-se nuvens de fumaça de todos os lados. Trata-se de um episódio culminante da tomada de Jerusalém pelos cruzados. Os guerreiros cristãos aproximaram dos muros de Jerusalém torres de madeira sobre estrados com rodas, que eles deslocavam de um lado para outro e, em certo momento, encostavam na muralha e saltavam para dentro da fortaleza. Algumas dessas torres estão pegando fogo, e um cruzado, na primeira fila, de espada na mão, está lutando e descendo magnificamente.

No lance aqui representado, os maometanos que dominavam Jerusalém tinham ateado fogo na torre de Godofredo de Bouillon, e a fumaça sufocava os cruzados. Mas houve um determinado momento onde, por disposição da Providência, o vento soprou de outro lado, e a fumaça passou a sufocar os maometanos. Então, imediatamente, os cruzados aproveitaram a ocasião e avançaram. Este que vemos descer numa atitude magnífica é Godofredo de Bouillon, chefiando o ataque, avançando em primeiro lugar.

Na guerra moderna, os generais não avançam. Eles ficam na retaguarda, jogando xadrez com a vida dos outros. Quer dizer, vai tal corpo para cá, aquele corpo para lá, e eles ficam sentados, numa tenda.

Aqui não. Eles se expunham em primeiro lugar. E o resultado é esse: a Santa Sé ofereceu a Godofredo de Bouillon o título de Rei de Jerusalém. E ele declarou que não queria cingir a coroa de rei no lugar onde Nosso Senhor Jesus Cristo tinha cingido uma coroa de espinhos. E que a ele bastava ter o título de Barão do Santo Sepulcro. Ele usava, então, uma coroa de espinhos feita de ouro.

(Continua no próximo número)

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 19/3/1988)
Revista Dr Plinio 210 (Setembro de 2015)